🕥 36-minuto de lectura

Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 09 - 08

El número total de palabras es 4638
El número total de palabras únicas es 1638
35.2 de palabras están entre las 2000 palabras más comunes
50.2 de palabras están entre las 5000 palabras más comunes
58.1 de palabras están entre las 8000 palabras más comunes
Cada línea representa el porcentaje de palabras por cada 1000 palabras más comunes.
  das feiticeiras são compostos de uma especie de linha fiada _pela mão do
  diabo_, e cuja materia prima é o pello do bode, em que o cão tinhoso
  costuma transformar-se. Tambem as bruxas teem por apanagio uma maçaroca
  preta; mas a demonologia popular não declara de que maneira, ou de que
  materia seja feita, bem como as dos lubis-homens, que tambem possuem
  este adminiculo, do qual apenas sabemos uma circumstancia, que é o ser
  de fio pardo.
  Quando alguma d'estas importantes personagens, que tem pacto, ou fado,
  está para morrer, chama a pessoa que mais estima, e a esta entrega o
  fatal novello. Se lh'o não aceitam, não pode expirar, ainda que esteja
  em agonias mortaes; mas apenas essa, ou alguma das circumstantes lh'o
  recebe, a pobre creatura entrega logo descansadamente a sua alma a
  satanaz. Parece que a posse de tal herança dá um direito na secretaria
  d'estado infernal, para o herdeiro ser preterido no prehenchimento do
  logar que ficou vago.
  Tem a feiticeira obrigação, cada vez que quer infeitiçar alguem, de
  invocar primeiramente o diabo, e de lhe pedir licença para exercer seu
  officio, o que prova que não só na terra ha maus systemas de legislação.
  A formula usada em taes casos, segundo alguns gravissimos auctores, é:
  _Tenato, ferrata, andato, passe por baixo_, o que se repete tres vezes.
  Acode o démo ao reclamo, e a professora de feitiços póde então ter a
  certeza de tirar a sua a limpo.
  Se, porém, se não tracta de um feitiço de segunda ordem; mas sim d'algum
  que deva produzir a morte do individuo enfeitiçado, é preciso mais
  trabalho, e pelas leis infernaes não é licito a qualquer feiticeira
  tomar sobre si só tamanha responsabilidade, d'onde se póde concluir qual
  seja a prudencia, gravidade e consciencia do diabo, que por certo não é
  tão feio como o pintam. Quando, pois, alguma d'estas boas creaturas quer
  dar cabo de qualquer individuo, toca o seu pandeirinho e chama duas suas
  companheiras para d'ellas se ajudar naquella boa obra. Então as taes
  fazem uma figura da pessoa condemnada a morrer, e compostos certos
  unguentos liquidos vão com elles unctando aquelle vulto, e á proporção
  que o trabalho se vai adiantando, vai o enfeitiçado adoecendo, até que
  chega ás ultimas. Neste ponto a feiticeira mais velha tira o seu
  novello, põe-se a dobá-lo, e quando o doente deve morrer uma das outras
  corta o fio com uma tesoura, e no mesmo instante expira o enfeitiçado.
  Depois invocam todas tres o demonio, que vem, e solda de novo o fio que
  ficou cortado.
  Limitamo-nos neste artigo a tractar com mais alguma individuação a mais
  notavel das superstições populares, o imaginario pacto com o demonio.
  Deixamos para outra occasião o falar de muitas outras crenças e costumes
  que poderiamos ajunctar a estes incompletos apontamentos, e então
  daremos especial noticia das _mulheres de virtude_, especie de
  contraveneno com que o povo de algum modo quis destruir os terrores que
  lhe causava o poderio das feiticeiras que elle proprio creara.
  
  
  *A Casa de Gonsalo*
  COMEDIA EM CINCO ACTOS
  PARECER
  Memorias do Conservatorio
  1840
  
  
  *A Casa de Gonsalo*
  COMEDIA EM CINCO ACTOS
  PARECER
  
  A commissão encarregada de dar o seu parecer sobre a comedia
  intitulada--_A Casa de Gonsalo_--que concorreu aos premios destinados
  para os dramas originaes portugueses, que mais se avantajarem entre os
  outros no concurso aberto por este Conservatorio para o corrente anno de
  1840, vem apresentar a sua opinião a este Jury, desempenhando assim o
  encargo que lhe coube em sorte.
  A comedia sobre que versa este parecer é precedida por um prologo, ou,
  como seu auctor lhe chama, por um endereço aos censores.
  A Commissão hesitou se devia ou não fazer algumas observações sobre a
  materia nelle contida: grave e importante é esta; ridicula e talvez
  chula a fórma porque o auctor a tractou; mas a Commissão intendeu por
  fim que tocando-se nesse prologo a grande questão das condições da arte,
  que hoje agita o mundo litterario, era da sua obrigação, entrar no exame
  das idéas contidas nelle. Pospondo, por tanto, os gracejos do auctor, e
  considerando somente as suas opiniões e proposições, até porque elle
  parece apresentá-las, como norma por onde os censores houvessem de
  guiar-se, antes de julgar o drama dirá algumas palavras sobre o
  mencionado prologo.
  Começa o auctor esse prologo pela sua biographia litteraria referindo
  como tem composto um bom numero de _comedias comicas_, e outras
  lamentosas ou patheticas, de que, segundo elle diz, são muito
  apaixonados os alemães. Deixando de parte as noticias
  biographico-litterarias, importantissimas para uma nova edição da
  Bibliotheca Lusitana, ou do Diccionario dos homens illustres, mas que no
  caso presente nada montam para o Conservatorio, a Commissão apenas se
  faz cargo das duas circumstancias que deixa apontadas: a 1.^a de ter o
  auctor composto comedias lamentosas, ou como, com Voltaire, elle lhes
  chama, _larmoyantes_: 2.^a a de affirmar que d'este genero são muito
  apaixonados os alemães. Admira com effeito, que o auctor tão afferrado
  aos sãos principios dos antigos, tão desprezador dos desvarios modernos,
  gastasse o seu tempo com um genero dramatico bastardo, em que os antigos
  nem sonharam, porque só conheceram a tragedia e a comedia, vendo-se
  daqui que houve uma epoca em que o illustre auctor da _Casa de Gonsalo_
  sacrificou ao Moloch revolucionario: não admira menos, que um escriptor
  tão versado em materias litterarias ignore que o drama lamentoso nasceu
  em França, e que a Alemanha só conta um auctor notavel neste
  genero--Kotzebue--que não teve successores, e que hoje está quasi
  completamente esquecido naquelle país, onde exclusivamente apparecem
  poucas comedias, bastantes tragedias, e infindos dramas da eschola
  moderna que está bem longe de ser a de Diderot, ou dos dramaturgos
  chorões, lamentosos ou patheticos.
  Continua o illustre auctor da _Casa de Gonsalo_ dizendo que sabe que a
  sua comedia não hade agradar porque tem aquelle mau gôsto de composição
  que recommenda Aristoteles e Horacio que eram uns rançosos e d'esse
  ranço é Menandro, Aristophanos e Terencio etc.; fala nos freios da arte
  da eschola classica, unidade de acção, consistencia de caracteres;
  paixões e affectos naturaes, verdade de costumes, (!) estabilidade de
  logar, unidade de tempo; fala no Sales que tinha a habilidade de fazer
  velhos os rapazes que iam ouvir-lhe as licções de poetica e rhetorica
  (!); diz que todas as regras acabaram com Hugo e Delavigne, e que os
  modernos destruiram a unidade d'acção, de caracter, de tempo, e de
  logar. Do que tudo conclue o auctor que a sua comedia não hade agradar,
  e que por isso a apresentou sem a mandar copiar.
  Se a letra em que a comedia está escripta, e a historia litteraria do
  illustre auctor inserida neste prologo, não revelassem, aquella a mão
  trémula de um velho, esta uma larga vida cheia de recordações do
  sapientissimo Sales, que, bem differente das magas das novellas de
  cavallaria, as quaes transformavam as rugas de velhice em viço de
  mocidade, convertia a mocidade em velhice: se a Commissão, digo, não
  inferisse de tudo isso que este prologo encerrava um pensamento de
  Sansão, classico, o qual vendo morta a sua nação quer morrer tambem
  levando comsigo os philisteus da nova arte, e se este pensamento não
  fosse generoso, ella se teria abstido de fazer observações algumas
  acêrca das idéas do auctor, que em um homem moço e que não tivesse essas
  razões d'amor ás coisas com que se creou, seriam apenas dignas de
  compaixão muda. A Commissão, porém, pertence infelizmente ao presente, e
  quando vê um campeão do passado, de quem se póde dizer como Virgilio:
  _Et dulces moriens reminiscitur Argos.
  Do caro Sales lembra-se morrendo_.
  não pode deixar de lhe dar o extremo _vale_, nem é licito que responda
  com um silencio que se poderia tomar pelo silencio do desprezo a quem
  vem lançar na estacada a luva do combate, por uma causa talvez bella,
  mas nestes tempos irreverentes e dissolutos, bem mal-aventurada.
  Senhores! A guerra que os homens do passado fazem ás opiniões do
  presente é um phenomeno trivialissimo, e repetido todas as vezes, que,
  ou as meditações ou as inspirações do genio, ou finalmente a accumulação
  das idéas e das observações de muitos homens, tem produzido uma
  revolução, seja ella de que natureza fôr. A razão d'isto dá-se neste
  prologo. Quem encanecendo no estudo de qualquer ramo de sciencia nunca
  pôde passar além de comprehender o que os outros pensaram, intende que a
  isto se deve reduzir todo o poderio intellectual do genero humano. Taes
  individuos são por via de regra os representantes da immobilidade. Bem
  longe da theoria do progresso indefinido, crêem que a civilização é como
  a praia do mar, os homens como as ondas d'elle, que ora se aproximam ora
  se afastam em continuados éstos. São taes individuos que nunca se
  persuadiriam de que as chamadas trevas da edade média não eram mais que
  a chrisalida de uma civilização maior e melhor que a grega e romana, de
  uma civilização cuja aura vital era a grande transformação religiosa
  chamada o christianismo. São taes individuos para quem fôra baldada a
  demonstração de que no objecto de que neste logar se tracta--o
  drama--uma nova epoca e por consequencia uma nova fórma tinha começado
  com o berço das nações modernas, e de que entre o nosso theatro e o dos
  antigos devia haver a mesma differença que ha entre a civilização
  christã e a pagã, entre o christianismo e o polytheismo; emfim que nas
  respectivas litteraturas dramaticas devia haver uma diversidade
  parallela á que ha entre aparte material do theatro antigo e a do
  theatro moderno.
  Era licito, pois, a estes homens morrerem abraçados com as poeticas e
  rhetoricas sobre que encaneceram; era-lhes licito desprezarem os fructos
  das cogitações dos modernos; era-lhes licito terem commentado as regras,
  na impossibilidade de fazerem dramas. Tudo isso lhes era licito menos
  ignorarem a historia da arte antiga, desconhecerem os principios da
  moderna, mentirem acêrca d'aquella, e calumniarem esta. Isto é o que tem
  feito os admiradores dos rhetoricos de todas as nações, isto é o que se
  reproduz no prologo do erudito discipulo do eruditissimo Sales.
  A Commissão não entrará aqui no exame do valor relativo dos principios
  da eschola antiga, e da eschola moderna que tambem os tem mais profundos
  e por ventara mais creadores de difficuldades que os da antiga. A
  comparação d'esses principios seria materia de um livro, de um curso de
  litteratura dramatica, e nunca de um parecer que deve servir de base á
  discussão especial do merito de um drama. Mas a Commissão se mostraria
  pouco attenta á dignidade, e á honra litteraria do Conservatorio se
  deixasse passar como exactas affirmativas contrarias á historia do
  theatro e á critica, sem que rectificasse inexactidões que se lhe vem
  apresentar como verdades.
  O auctor diz que sabe que a comedia não ha de agradar por se verem nella
  cumpridos os decretos de Aristoteles e de Horacio. Desejaria a Commissão
  que elle tivesse declarado cujo era o desagrado em que tinha a certeza
  d'incorrer. Se era o do publico, como tendo essa certeza concorre ás
  provas publicas?--Neste procedimento ha pelo menos um pleonasmo tão
  flagrante como ha no titulo de _comedia comica_ que elle dá a esta. Se é
  o do Conservatorio, parece fazer com isso grave injúria a este.
  O Conservatorio possue no seu seio homens de convicções differentes, e
  até certo ponto oppostas, em materias litterarias: uns pertencem, como o
  auctor, ás idéas antigas, outros ás opiniões modernas. Para os primeiros
  a execução d'essas regras é um merito; para os segundos se as suas
  opiniões assentam sobre uma theoria completa da arte--e a Commissão crê
  que sim--o desempenho d'essas regras é indifferente, porque não é nem na
  falta, nem na existencia d'ellas que consiste a arte. O auctor devia
  saber que a eschola moderna colloca quasi a par de Shakespeare e acima
  talvez de Calderon e Lopo da Vega, dois escriptores da arte dos
  preceitos--Moliere e Corneille: devia saber que ella rejeita d'esses
  preceitos aquelles que não teem uma sancção esthetica; aquelles que, ou
  o capricho, ou um exame superficial das materias litterarias, admittiu
  como canones imprescriptiveis; aquelles que são mui proximos parentes
  dos achrosticos, dos echos, e dos versos leoninos--mas devia tambem
  saber, que a eschola moderna nunca desprezou o dramaturgo, cujo genio,
  apesar d'essas peias escholasticas, se remontasse a altura da verdadeira
  arte, e que, por tanto os membros do Conservatorio cujas opiniões são
  modernas não rejeitariam o drama só porque se assujeitava ás andadeiras
  rethoricas da eschola antiga. Se um pensamento unico tivesse precedido á
  composição d'esta comedia: se o ideal de um ou muitos caracteres comicos
  tivessem nella revestido as fórmas da vida real, embora o drama
  estivesse arrebicado de cem regras e duzentos preceitos, os sectarios da
  nova eschola teriam dicto com os da antiga; _equites romani plaudant_!
  O digno auctor da _Casa de Gonsalo_, seguindo as pisadas dos homens da
  sua eschola parece querer tornar solidaria a arte dos gregos e romanos
  com a arte do renascimento; essa arte bella, pura, e nacional dos
  antigos com a arte caprichosa, polvilhada, cortesã e regreira do seculo
  de Luis XVI. Hoje não é licito ignorar as differenças que ha d'aquella a
  esta: ignorar que além de outras coisas duas regras essenciaes para os
  modernos faltam entre os antigos as unidades de logar e de tempo, e que
  vice-versa entre os antigos havia no theatro os coros que os classicos
  modernos deixaram, bem como a musica tanto dos coros como da scena, a
  qual fazia que o drama fosse então o que é hoje a opera italiana, ou a
  vulgar, onde esta existe.
  Senhores: o drama moderno nasceu dos mysterios ou representações
  religiosas da edade média: o caracter essencial dos mysterios era o
  vestir o ideal christão--e o nome o está dizendo--com as fórmas da vida
  real, e a vida real era então como hoje, como sempre, uma indistincta
  mistura de lagrimas e riso, de paixões vis e nobres, d'infamias e de
  grandezas. Nos mosteiros onde o drama começou, se reuniam os extremos
  oppostos da sociedade: o monge era a um tempo sacerdote e jogral: a
  ignorancia vejetava ahi ao lado da sciencia, a crapula ao lado da
  modestia e da virtude, o folguedo e o bom humor ao lado da penitencia,
  os grandes crimes ao lado da pura innocencia. Então o monge a quem a
  natureza fizera poeta, tendo quasi por unicos estudos a historia
  symbolica dos hebreus, as sublimes invenções da sua poesia, e esse
  evangelho tão ideal desde a primeira até a ultima pagina, não conhecendo
  o drama antigo, fazia, sem o saber, uma transformação na arte dramatica
  e começava essa eschola moderna, salva apenas na Hespanha e na
  Inglaterra no seculo XVII e restaurada hoje em toda a Europa com mais
  brilho, e aperfeiçoada pela philosophia. O caracter d'esta eschola é na
  essencia um contraste completo com a antiga: esta tomava o mundo real,
  positivo e até trivial e vestia-o de fórmas ideaes: os caracteres, as
  paixões, as situações procurava-as na vida quotidiana: nas expressões,
  na fraze é que estava a poesia, e é por isso que o poeta antigo carecia
  dos coros para ahi principalmente derramar as harmonias da sua alma; é
  por isso, que Sophócles, ou Euripides não comprehenderiam o drama em
  prosa; é por isso que o theatro dos antigos não separava a musica da
  letra, porque a tragedia não era senão uma larga elegia sobre as
  amarguras da existencia ordinaria; a comedia não era senão uma satyra,
  um escarneo contra os vicios e as ridicularias da vida commum. Pelo
  contrario o theatro da edade média buscava no ideal paixões, caracteres,
  situações. Onde achamos nós essas martyres tão suaves, tão aereas, tão
  amorosas de um objecto sumido nas profundezas do céu? Onde achamos esses
  demonios chocarreiros e perversos, cujos motejos e risadas infernaes nos
  fazem ao mesmo tempo rir e tremer? Onde esses corações, ao mesmo tempo
  tão robustos e tão delicados, dos cavalleiros do romance e do drama da
  edade média?--Nos mysterios e nos autos; e os mysterios e os autos são
  ascendentes do drama actual: as Angelas, os Myphistopheles, e os
  Hernanis não refusam a sua arvore genealogica.
  Esta familia, nobre, porque, como as familias humanas, vai entroncar-se
  na edade média, teve um tempo em que caíu na abjecção: foi quando os
  paços a rejeitaram; quando appareceu outra, que se chamava mais
  illustre; outra que se dizia de mais antiga ascendencia, aparentando-se
  com gregos e romanos: mas a critica mostrou que isto era falso, a
  philosophia que, ainda sendo verdade, não era tal razão bastante para a
  preferencia. Esta é em resumo a historia das vicissitudes da arte.
  Ha ainda duas proposições no prologo da _Casa de Gonsalo_ as quaes a
  Commissão intendeu que não devia deixar passar sem fazer sobre ellas
  alguns reparos. Consiste a primeira em dizer que os modernos destruiram
  o principio do desenvolvimento logico dos caracteres, ou como o auctor e
  a sua eschola lhe chamam--a unidade de caracter. De todas as accusações
  que se podiam fazer á eschola moderna esta é a mais infundada. Condição
  absoluta da arte actual é essa unidade dos caracteres, e neste ponto a
  Commissão não recearia d'eslabelecer parallelos entre os melhores dramas
  classicos e os dramas de segunda ordem, escriptos debaixo da influencia
  dos novos principios, certa de que a vantagem ficaria sempre ou quasi
  sempre aos ultimos. Consiste a segunda proposição em affirmar o auctor
  que todas as regras acabaram com Hugo e Delavigne: nisto ha uma
  falsidade e um êrro de historia litteraria. Falsidade porque não é
  preciso ter lido senão os prologos de Victor Hugo ao _Cromwel_, e ao
  _Ruy-Blas_ para se ver que ainda o dramaturgo mais exaggeradamente
  liberal da eschola moderna estabelece regras, que a Commissão não avalia
  aqui, mas que incontestavelmente o são, boas ou más. Accresce que, sem
  falar numa grande multidão d'escriptos sobre a arte dramatica publicados
  ha vinte annos, basta ler as revistas litterarias francesas, alemãs, e
  inglesas, para ver que a critica tem já assentado muitos principios
  incontestaveis para julgar as producções do theatro, e que se em outros
  ha diversidade de opiniões, não é isso de admirar numa eschola que conta
  apenas vinte annos como theoria, e que é obrigada a provar a justiça da
  sua causa com razões e ao mesmo tempo com obras, ao passo que os
  defensores da antiga, firmados em monumentos e glorias seculares,
  desobrigados, e por ventura incapazes de crear obras de arte, não tem
  outro trabalho senão defender e amparar seus principios, principios que
  apesar d'esses monumentos, d'essas glorias, d'essas defensões, e sobre
  tudo de sua antiguidade, não deixam muitas vezes de ser incertos e até
  contradictorios. Agora quanto ao êrro de historia litteraria a Commissão
  julga escusado dizer mais nada, senão que quem pôe em parallelo
  Delavigne e Hugo, como egualmente destructores da arte antiga, mostra
  que nem os comparou, nem os leu, e por certo nem um nem outro lhe deve
  ficar obrigado. Delavigne, o academico Delavigne, que treme a cada passo
  de pertencer ao seu seculo, não se julgaria em decente companhia
  vendo-se ao lado de Victor Hugo, e este, que vai por ventura mais longe
  do que devera, crer-se-ia sujo de todo o pó dos bacamartões pedantes dos
  commentadores d'Aristoteles, achando-se collocado a par do classico
  auctor da _Princesa Aurelia_, do bucolico auctor do _Pariá_.
  Entremos no exame da comedia.
  O auctor tomou por objecto nesta composição o converter em uma acção
  dramatica um dos antigos proverbios populares, especie de formulas com
  que o vulgo exprime muitas vezes idéas complexas. É este o que se
  applica a qualquer casa mal governada e arruinada por toda a casta de
  desvarios: _É a casa de Gonsalo_:--eis a expressão proverbial; eis o
  pensamento que presidiu á composição do drama. Vejamos como o auctor o
  tractou.
  Um viuvo e uma viuva são casados em segundas nupcias: ella tem uma
  filha. D. Farnacia é o nome da mulher: elle chama-se Gonsalo--pobre
  homem que se deixa governar inteiramente por D. Farnacia prezada de
  fidalga, caprichosa, e gastadora. Gonsalo instigado por D. Farnacia pôs
  na rua seu filho Bernardo, moço tão sisudo e composto, quanto Leonor,
  filha de D. Farnacia, é tola, namoradeira e desassisada.
  A familia compõe-se, além dos tres, Gonsalo, D. Farnacia e Leonor, de um
  irmão e de uma sobrinha de D. Farnacia, chamados Bonifacio e D.
  Dorothea; aquelle é um peralvilho, frequentador de botequins, e que não
  pensa senão em acceitar cartas d'amores; esta é uma presumida de sábia,
  que em todos os seus discursos mistura palavras e phrazes francesas, e
  que só lê novellas, citando a torto e a direito quantos destemperos tem
  lido. Um creado e uma creada desobedientes, ladrões, e desavergonhados
  completam aquella ninhada domestica.
  Gonsalo tem um amigo, Florencio, a quem deve obrigações, e dinheiro,
  homem prudente e sério, que pretende tirá-lo da vida de abjecção em que
  vive, aconselhando-o sempre para que tome o logar de verdadeiro dono da
  casa, e seguindo-se d'isto o ser cordealmente odiado por D. Farnacia.
  Dois alindados frequentam esta casa, ou antes torre de Babel--Constando
  e Carlos: o primeiro é o namorado de Leonor.
  É com estas personagens, que o auctor conduz a comedia a seu fim, e a
  Commissão seria demasiado prolixa se quisesse historiá-la por todos os
  cinco actos em que elle a dividiu. Bastará dizer que á fôrça de gastos
  loucos, Gonsalo se acha finalmente no maior apuro, do qual o livra o
  expulso e maltractado Bernardo, obtendo uma provisão para administrar a
  casa paterna, ajudado por Florencio, que sendo o principal credor exige
  para seu filho a mão de Leonor, e faz casar Bernardo com Dorothea, a
  qual tem um avultado dote, a que por isso era requestada por Carlos,
  amigo de Constancio, e que juntamente com elle frequentava a casa de D.
  Farnacia.
  Á Commissão parece que o drama é em geral bem conduzido, o dialogo
  excellentemente travado, a successão das scenas logica e natural, e a
  linguagem accommodada ao assumpto, e com poucas excepções, limpa e
  corrente. Estes são os meritos que julgou se davam no drama, e pelos
  quaes seu auctor é digno de ser louvado.
  Infelizmente partes e circumstancias são estas que não bastam.
  Obte-las-ha para as suas composições todo aquelle que escrever
  fortalecido de estudo: mas só o genio dá vida ás obras d'arte. As fórmas
  exteriores póde-as traçar mão amestrada; vida só a infunde o alento do
  poeta, que se assimelha ao sôpro vivificante de Deus.
  Os caracteres, as situações, e os pensamentos das personagens de
  qualquer comedia abrangem forçosamente toda a graça comica que nella se
  póde dar; e nesta não ha nem um caracter, nem uma situação, nem um
  pensamento verdadeiramente comico. D'isto ficarão persuadidos aquelles
  que se derem ao trabalho de ler o drama; a Commissão está prompta a
  mostrá-lo quando haja quem o conteste.
  Do que fica ponderado se conclue naturalmente que este drama, falho dos
  meios de attrahir a attenção dos espectadores, correrá grande risco em
  ser posto ás provas públicas, e portanto a Commissão louvando o que ha
  bom nelle, isto é, o que propriamente se póde chamar a sua parte
  material, deixa ao Conservatorio o resolver o que mais justo e acertado
  fôr quanto ao destino que se lhe deve dar.
  Conservatorio Dramatico, 17 de Julho de 1840.--_A. Herculano_, Relator.
  
  
  *Elogio historico*
  de
  SEBASTIÃO XAVIER BOTELHO
  Memorias do Conservatorio
  1842
  
  
  *Elogio Historico*
  de
  SEBASTIÃO XAVIER BOTELHO
  
  Senhores:
  Honrado com o encargo de revocar hoje a memoria de um nosso illustre
  consocio que a morte nos roubou, não posso deixar de sinceramente
  lamentar que este Conservatorio quisesse que eu, intendimento humilde,
  va bater á porta do sepulchro para através d'elle citar uma nobre
  intelligencia, que repousa no seio de Deus, e dizer-lhe--Vem ouvir o
  processo da tua gloria, o julgamento sobre o modo porque desempenhaste a
  tua missão intellectual na terra.
  Porque, Senhores, ou muito me engano, ou é esse o principal, diria quasi
  o unico mister que nos incumbe, aos que fomos escolhidos para falar
  neste dia e neste logar dos nossos fallecidos consocios. Em nome das
  letras, d'essa revelação formosa e sancta do ingenho humano, nos
  ajuntámos neste recinto: por ellas existimos como corporação: ellas nos
  fizeram irmãos e eguaes. Pelas letras as differenças voluntarias e
  incertas do mundo--as riquezas, o poder, os nomes d'avós, se convertem
  em palavras sem sentido. A democracia absoluta, sonho impossivel,
  talvez, de realizar na sociedade civil, torna-se entre nós uma condição
  d'existencia. Nas associações litterarias a vida é de certo modo
  immaterial, e as nossas distincções são unicamente as da superioridade
  do ingenho. Mas a ultima instancia onde taes preferencias se julgam é o
  tribunal da posteridade. Só a morte abre de par em par as portas d'este,
  e é ahi que definitivamente se resolve se o nome do que passou será
  lançado na herança dos seculos, na memoria perenne dos homens, ou se tal
  nome deve esquecer como esquece o som derradeiro da loisa caindo sobre a
  borda do sepulchro, onde foi repousar o que não pôde ou não soube
  conquistar a immortalidade.
  É por este caracter democratico, de todas as corporações como a nossa,
  porque alheias inteiramente ás condições da sociedade civil, que me
  parece não ser nos archivos d'esse pobre mundo das vaidades, a que
  chamam realidade, onde hajamos de ir buscar documentos e testemunhos,
  que provarão muito para outro genero de renome e gloria, mas que de
  nenhum modo vem a ponto para as canonizações litterarias, no momento
  solemne em que devemos preparar o processo pelo qual a posteridade tem
  de julgar intelligencias ja livres d'este sudario da vida. Antepassados,
  haveres, grandeza, cargos, que nos importam? Outra é a nossa missão:
  temos de perguntar ao que traçou algumas palavras no livro eterno e
  immenso da arte e sciencia humana--Que foi o que fizeste?--Que era o que
  podias fazer? Isto é o que nos pertence, o resto á sociedade.
  O nosso fallecido consocio, que passando na terra escreveu nesse livro
  uma das suas formosas paginas, foi o sr. Sebastião Xavier Botelho. Para
  se poder avaliar o merito d'esta escriptura de que preciso eu?--De
  lê-la.
  Difficultosa é similhante leitura; porque as palavras do homem de
  ingenho são concisas e profundas: soletram-nas a custo os que não
  possuem esse dom de cima; e, sem humildade hypocrita, eu sei que
  pertenço a estes.
  A culpa do máu desempenho será, pois, vossa, Senhores, que medistes
  erradamente as minhas forças pelos meus e pelos vossos desejos.
  A historia intellectual e intima do sr. Botelho divide-se em dois
  grandes periodos: corre o primeiro desde a epoca em que concluiu os seus
  estudos de jurisprudencia na Universidade de Coimbra até áquella em que
  importantes e laboriosos cargos, que lhe foram confiados, o
  constrangeram a dedicar-se inteiramente ao cumprimento de suas
  obrigações, e a deixar os ocios litterarios da juventude: o segundo
  abrange o tempo que discorreu desde esta epocha até á da sua morte. O
  primeiro periodo foi para elle o do tracto e cultura das boas lettras: o
  segundo o do estudo dos homens e das coisas, da sciencia, da historia e
  do governo. No primeiro, o Sr. Botelho foi poeta: foi o homem do ideal:
  no segundo foi historiador, economista, e politico; foi o homem do mundo
  real. É nestes dois periodos que eu considerarei as obras da sua
  intelligencia, e procurarei responder á pergunta--Que serviços fez o sr.
  Botelho ao progresso do espirito humano?
  As primeiras composições poeticas do nosso illustre consocio foram
  escriptas nos fins do anterior ou nos comêços do presente seculo:
  d'estas nenhuma viu a luz publica: as que se lhes seguiram, pertencendo
  pela maior parte á litteratura dramatica, tiveram o seu primeiro modo de
  publicação--o da scena: mas o unico penhor de duradoiras recordações e o
  unico fiador da perpetuidade da gloria, essa fonte de toda a sciencia e
  civilização modernas--a imprensa--faltou-lhes como ainda ha dez annos
  faltava commumente ás obras dos nossos bons ingenhos que nasciam e
  
Has leído el texto 1 de Portugués literatura.