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Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 09 - 07
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dramaturgos hespanhoes no seu proprio país, devemos observar que, em
quanto Lope de Vega está desterrado nas bibliothecas, e emquanto
Calderon e Moreto raras vezes sobem á scena, Tirso de Molina, de quem já
falámos, apparece mais frequentemente no theatro que outro qualquer
antigo escriptor dramatico. Fernando VII gostava muito dos _ricos_
gracejos do licencioso frade; e esta declarada predilecção fazia calar o
genio vidrento e pundonoroso de certas auctoridades, cuja sanha podiam
excitar os motejos do frade contra os grandes. A comedia de Tirso,
intitulada _D. Gil el de las calzas verdes_ era a de que el-rei mais
gostava; e por isso a camara municipal de Madrid não deixava de a mandar
representar nos dias de gala.
Posto que a representação dos _Autos Sacramentales_ fosse supprimida em
1765, todavia o advento e a quaresma, e especialmente a Semana Sancta,
ainda se festejavam ha poucos annos nas igrejas com taes representações;
levantava-se no côro uma especie de tablado, sobre o qual se
representavam os passos da paixão de Christo, e em que as numerosas
personagens que successivamente figuravam na peça, se apresentavam com
os vestuarios da idade-média, quaes se deviam usar na origem d'estas
representações, como san-benitos, mascaras pretas, farricocos, cotas,
camisolas, e, numa palavra, toda a vestiaria de uma procissão de _auto
da fé_.
*Crenças populares portuguesas ou Superstições populares*
PANORAMA
184O
*Crenças populares portuguesas*
I
Todas as nações tanto antigas como modernas teem sido sujeitas á doença
moral chamada credulidade. Dada a crença da existencia dos espiritos e
da sua immortalidade, os homens vendo diariameute morrer os seus
semelhantes, e sentindo em si uma consciencia que repugna a
anniquilação, perceberam facilmente que o espirito não morria: a
revelação não fez mais que confirmar um sentimento innato no homem.
Depois a saudade dos mortos que nos foram caros, e o temor que
experimentavam os criminosos de que as suas victimas ainda se pudessem
vingar d'elles além do sepulchro: emfim amor e remorsos, ajudados da
imaginação, povoaram este mundo de phantasmas. A Grecia, sempre poetica,
formulou esta serie de factos intellectuaes em muitas expressões
materiaes: sirva de exemplo a descida d'Orpheu aos inferno em busca
d'Euridice, mytho formosissimo, com que os antigos gregos simbolizaram o
amor como capaz de unir os espiritos que passaram com os que vivem na
terra. A imaginação multiplicou e variou estas expressões de um
pensamento vago e primitivo. D'ahi vieram os lemures, as strygas, e
todas essas creações extravagantes, que ainda no primeiro seculo
christão o severo philosopho Plinio não se atrevia inteiramente a
descrer.
Entre as nações modernas a portuguesa passa por uma das mais inclinadas
a muitas d'estas superstições. É uma das multiplicadas calumnias que
sobre nossas cabeças lançam estrangeiros: quem d'isso se quiser
desenganar leia o _Diccionario infernal_ de Colin de Plancy, e achará
que qualquer provincia da França, ainda das mais civilizadas, nos deita,
como se diz vulgarmente, a barra adiante em superstições populares.
Quasi o mesmo se pode dizer da nação mais allumiada da Europa--a allemã.
Na Inglaterra, basta dizer que não haverá ahi perro turco, ou brahmane
credulo que leve vantagem em superstição ao povo dos tres reinos unidos.
As bruxas, diabos azues, vampiros, e seiscentas outras diabruras surgem,
por assim dizer, debaixo dos pés dos ingleses, como nos pinhaes do
Alemtejo e Estremadura se erguem, debaixo dos pés dos caminhantes, as
ninhadas dos sapinhos, quando sobre o pó das estradas cai em dia de
verão um aguaceiro de trovoada.
Apesar, porém, de não sermos dos povos mais abastados neste genero de
riquezas (que poeticamente o são) tem havido entre nós muitas crenças
populares dignas de se fazer menção d'ellas; por isso mesmo que as mais
antigas são geralmente desconhecidas, e as mais modernas vão diariamente
desapparecendo;--que ao menos esse bem temos tirado das nossas luctas
politicas e d'este espirito do seculo, que renegou de tudo quanto nos
transmittiu o passado;--tanto de umas como de outras colligiremos aqui
algumas especies, que se nos não enganamos, serão lidas com interesse
pelos leitores do Panorama.
Um dos mais antigos documentos que nos restam sobre as nossas
superstições populares é a celebre postura da camara de Lisboa de 1385.
Esta postura caracteriza essencialmente o espirito religioso da epocha
de D. João I. Nella se prohibem as superstições populares, as quaes ahi
se enumeram, como querendo a camara agradecer assim a Deus a victoria
d'Aljubarrota, que assegurou a independencia de Portugal.
Transcreveremos algumas passagens do referido estatuto, sem que tentemos
explicar muitas d'essas superstições a que se allude, porque difficil
fôra apresentar mais do que conjecturas. Eis o que nos parece mais
notavel naquelle assento municipal.
«Os sobreditos estabelecem e ordenam, que d'aqui em diante nesta cidade,
nem em seu termo nenhuma pessoa não use, nem obre de feitiços, nem de
ligamento, nem de chamar os diabos, nem de descantações, nem de obra de
veadeira, nem obre de carantulas, nem de geitos, nem de sonhos, nem
d'encantamentos, nem lance roda, nem lance sortes, nem obre
d'advinhamentos... nem outrosim ponha nem meça cinta, nem _escante
olhado_ em ninguem, nem lance agua por joeira...»
«Outrosim estabelecem que d'aqui em diante nesta cidade e em seu termo
não se cantem janeiras nem maias, nem a outro nenhum mês do anno, nem se
lance cal ás portas sob titulo de janeiro, nem se furtem aguas, nem se
lancem sortes...»
«Porque o carpir e depenar sobre os finados é costume que descende dos
gentios, e é uma espécie de idolatria, e é contra os mandamentos de
Deus, ordenam e estabelecem os sobreditos que d'aqui em diante nesta
cidade, nenhum homem ou mulher, não se carpa, nem depene, nem brade
sobre algum finado, nem por elle, ainda que seja pae, mãi, filho ou
filha, irmão ou irmã, marido ou mulher, nem por outra nenhuma pena, nem
nojo, não tolhendo a qualquer que não traga seu dó, e chore se
quiser...»
Muitas d'estas disposições dizem respeito a crenças que já não existem,
ou são conhecidas por outras denominações. As janeiras e maias duraram
até os nossos dias e ainda no Minho se chamam maias as flores da
giesteira amarella, com que se adornam as janellas no primeiro de maio;
alem d'isso todos os que hoje vivemos nos lembramos de ver em Lisboa os
maios pequeninos passearem as ruas cubertos de flores, bem como de ouvir
cantar as janeiras, o que ainda dura em muitas partes das nossas
provincias.
As prohibições da camara relativamente aos prantos pelos mortos, alludem
ao carpirem-se e arrepellarem-se sobre o cadaver e por elle, depois
d'enterrado, certas mulheres, que d'isso viviam chamadas carpideiras ou
pranteadeiras, e na falta d'estas os parentes mais proximos. Fr.
Francisco Brandão diz que tal costume se acabou no tempo de D. João I;
mas engana-se manifestamente, porque nos nossos chronistas se acham
memorias de similhantes prantos em epochas mui posteriores, e lá diz Gil
Vicente.
Prantos fazem em Lisboa
Dia de Sancta Luzia
Por elrei D. Manoel
Que se finou neste dia.
Entre as superstições antigas podem contar-se os reptos, requestas, ou
desafios, em que se appellava para o juizo de Deus quando um homem
accusava outro de homicidio ou traição. Este costume, geral em toda a
Europa, vogou muito em Portugal no principio da monarchia, sendo até
declarados nos foraes de algumas terras os casos em que o duello devia
servir de prova da justiça ou injustiça da accusação ou querella. Muito
cedo porém começaram os nossos reis a trabalhar, por meio de leis
prudentes e saudaveis, em pôr termo a este costume barbaro. D. Dinis foi
o primeiro que por lei de 1318 prohibiu houvesse reptos duas leguas em
redor d'onde estivesse a côrte.--«Estabeleço e ponho por lei (diz elle)
que d'aqui adiante nenhum Filho d'algo não desafie, nem mande desafiar
outro, nem por si, nem por outrem, perante mim, nem nos logares onde eu
fôr, nem a duas leguas aredor de mim; e aquelle que contra isto vier,
morra por isso, e a desafiação não valha»--Successivas providencias se
foram dando a este respeito, de modo que na ordenação affonsina apenas
são permitidos os desafios no caso de traição contra a pessoa real, como
se pode ver no titulo 64 do Livro 1.^o d'essa ordenação.
Como, porém, os reptos não tinham logar em todos os casos, e tal era o
de caír a suspeita do crime em mulheres, as quaes não podiam ir defender
ás lançadas a sua innocencia, havia outros meios de recorrer ao juizo de
Deus. D'estes eram geralmente em toda a Europa, as provas da agua fria,
da agua quente, e do ferro em braza. A que se usou em Portugal foi a
ultima, a qual consistia no seguinte: o accusado que queria arriscar-se
á prova, depois de se confessar, e de jejuar rigorosamente por alguns
dias, e de receber exorcismos, bençãos e orações de um sacerdote, ou se
punha a andar descalço sobre uma vara de ferro em braza, ou pegava nella
e caminhava apertando-a nas mãos por certo espaço. Se o _ferro caldo_
(como lhe chamavam) não produzia o seu natural effeito, o culpado era
havido por innocente; mas se lhe queimava os pés ou as mãos impunham-lhe
a pena do crime de que fôra accusado. Já se vê que era difficultosa
empresa achar innocentes por meio tal; todavia algumas tradições existem
que a serem verdadeiras, provariam que a providencia apiedando-se dos
injustamente opprimidos, suspendera algumas vezes a favor d'elles as
leis da natureza. Juncto ao sepulcro do commendador de Leça D. Garcia
Martins se conservava, segundo o testamento de Jorge Cardoso, um ferro
de arado, que, posto em braza, transportou para alli a mulher de um
ferreiro accusada de adulterio. Fr. Bernardo de Brito e Fr. Antonio
Brandão citam uma doação feita ao mosteiro de Arouca, Por D. Tareja
Soares, mulher de D. Gonçalo Mendes de Souza, que sendo accusada pelo
marido d'adulterio, recorreu, em sua defeza, á prova do ferro em braza,
e saindo illesa, se recolheu ao convento d'Arouca, ao qual fez uma
doação, onde se menciona este successo, que seria em verdade
extraordinario, se não fosse mais facil e razoavel crêr na supposição do
documento do que na realidade do milagre.
Esta superstição da prova por fogo parece que ainda estava muito
arreigada em Portugal no fim do seculo XIV. Quando o Mestre d'Aviz matou
o conde Andeiro a rainha D. Leonor, ouvindo na sua camara o ruido que
soava, mandou saber o que era, e vieram dizer-lhe que tinham assassinado
o conde. «A rainha quando isto ouviu, houve grão temor, porem disse: Oh
sancta Maria vale me mataram em elle um bom servidor!--e sem o merecer;
cá (porque) o mataram, bem sei porque. Mas eu prometto a Deus que me vá
de manhã a S. Francisco, e que mande ahi fazer uma fogueira, e ahi farei
taes salvas, quaes nunca mulher fez por estas cousas.» (Lopes chron. de
D. João I cap II). Santos, narrando este mesmo successo, accrescenta:
«Alludiu ao antigo costume de se purificarem, tomando o ferro quente, as
mulheres accusadas, ou murmuradas d'adulterio. (Mon. Lusiti Liv. 23,
cap. 8). E com effeito não é crivel que a rainha na sua afflicção
fizesse uma figura de rhetorica, dizendo que se queria sujeitar a um
costume que já não existia; muito mais que Fernão Lopes, escriptor tão
vizinho d'aquelles tempos, parece reconhecer a actualidade de tão
barbara usança, accrescentando que a rainha _tinha mui pouca vontade de
o fazer_.
Não era este supersticioso costume, que durou por tantos seculos, apenas
uma invenção do vulgo. Nas antigas leis d'Hespanha, conhecidas pelo nome
de _Fuero juzgo_, é expressamente ordenada a prova da agua a ferver, e a
do ferro em braza, e no foral de Baeça se particularizam os casos em que
taes provas tinham logar, bem como a maneira de as fazer.
Transcreve-lo-hemos aqui por ser grandemente curioso, tanto mais que em
parte diz respeito á prova do desafio.
«A mulher, que sabidamente mover, sendo o movito por mau termo seja
queimada, ou salve-se por ferro quente. E se alguma disser que é prenhe
de algum homem, e elle a não crer, tome ferro quente, e queimando-se,
não seja crida; mas se escapar livre do ferro, dê o filho ao pai, e
crie-o como mandam as leis.»
«A mulher que _ligar_ homens ou animaes, ou quaesquer outras cousas que
podem ser ligadas, queimem-na, e se negar, salve-se por ferro quente; e
se o ligador for homem seja açoutado e lançado fóra da terra, e se
negar, salve-se por combate.»
«A mulher que der hervas peçonhentas ou for feiticeira, seja queimada,
ou se salve por ferro quente.»
«A mulher que matar seu marido seja queimada, ou se livre por ferro
quente. Toda a mulher que taes cousas faz, deve tomar ferro; mas não por
erro da sua pessoa propria, salvo quando for approvada por má mulher, e
que teve parte com cinco homens differentes. As _terceiras_ sejam
queimadas, ou, se negarem, salvem-se por ferro quente.»
«O ferro que se mandar fazer por justiça para esta experiencia, tenha um
palmo de comprimento, e dous dedos de largo, e tenha quatro pés (a modo
de banco) tão altos, que a pessoa que houver de fazer a salva possa
metter a mão por baixo. E quando o tomarem, levem-no por distancia
d'outo pés, e tornem-no a pôr em terra suavemente. Mas antes o benza o
sacerdote, e depois elle e o juiz aquentem o ferro, e em quanto o ferro
se aquentar, nenhum homem se chegue junto ao fogo, porque não acerte de
fazer alguma feitiçaria; e a que houver de tomar o ferro primeiro se
confesse mui bem, e depois seja olhada, porque não traga escondido algum
feitiço. Depois lave as mãos diante de todos, e depois de limpas, tome
ferro, mas antes façam todos oração, pedindo a Deus que mostre a
verdade. E depois que tiver levado o ferro, o juiz lhe cubra logo a mão
com cera, e sobre ella lhe ponha a estoupa ou linho, e depois atem-lha
com um panno, e leve-a o juiz a sua casa, e passados tres dias vejam-lhe
a mão e se for queimada, queimam-na tambem a ella.»
Vimos que a prova do fogo durou em Portugal, pelo menos até o fim do
seculo XIV. Não sabemos ao certo a epoca da completa extincção d'este
abuso; todavia é sabido que elle estava em esquecimento no seculo
seguinte. Não assim a crença em feitiçarias que, como sabemos, durou até
aos nossos dias, e ainda hoje tem bastante voga entre os espiritos mais
rudes.
A primeira lei, que nos lembre fosse promulgada em Portugal contra os
feiticeiros é uma de D. João I, do anno de 1403, em que se diz o
seguinte: «Não seja nenhum tão ousado, que por buscar ouro ou prata, ou
outro haver, lance varas, nem faça circo, nem veja em espelho ou em
outras partes.» Esta lei foi confirmada no codigo affonsino, d'onde em
substancia passou para os que se lhe seguiram. Vê-se por ella que a
magia portuguesa d'esse tempo se reduzia a uma especie d'alchimia, ou
sciencia de encontrar ouro, o que, em verdade, era bem pouco se o
compararmos ao incremento prodigioso que teve a feitiçaria no seculo
seguinte.
Da variedade de praticas supersticiosas que produziu este incremento,
nunca encontrámos memoria mais curiosa, que o capitulo que trata d'esta
materia no rarissimo livro das Constituições do arcebispado d'Evora,
impressas em Lisboa no anno de 1534. Eis aqui o texto da constituição
primeira do titulo 25, que se intitula--_Dos feiticeiros, benzedeiros e
agoureiros_:
«Defendemos que nenhuma pessoa de qualquer estado ou condição que seja,
tome de logar sagrado, ou não sagrado, pedra d'ara ou corporaes, ou
parte de cada uma d'ellas, ou qualquer outra cousa sagrada; nem invoque
diabolicos espiritos, em circulo, ou fora d'elle, ou em encruzilhada;
nem dê a alguma pessoa a comer ou a beber qualquer cousa, para querer
bem ou mal a outrem, ou outrem a elle; nem lance sortes para adivinhar,
nem varas para achar haveres; nem veja em agua, ou crystal, ou em
espelho, ou em espada, ou em outra qualquer cousa luzente, nem em
espadua de carneiro; nem faça, para adivinhar, figuras ou imagens
algumas de metal, nem de qualquer outra cousa; nem trabalhe de adivinhar
em cabeça de homem morto, ou de qualquer outra alimaria; nem traga
comsigo dente, nem baraço de enforcado, nem faça com as ditas cousas, ou
cada uma d'ellas, nem com outra alguma semelhante, posto que aqui não
seja nomeada, especie alguma de feitiçaria, ou para adivinhar, ou para
fazer damno ou proveito a alguma pessoa ou fazenda: nem faça cousa para
que uma pessoa queira bem ou mal a outrem, nem para ligar homem ou
mulher, etc.»
«Outrosim defendemos que nenhuma pessoa doente passe por silva ou
machieiro, ou por baixo de trovisco, ou por lameiro virgem; nem benzam
com espada que matou homem, ou que passasse o Douro e Minho tres vezes;
nem cortem solas em figueira baforeira; nem cortem çobro em limiar da
porta; nem tenham cabeças de saudadores encastoadas em ouro, ou em
prata, ou em outras cousas; nem apregoem os demoninhados; nem levem as
imagens d'alguns sanctos ácerca d'agua, fingindo que as querem lançar em
ella, e tomando fiadores, que se até certo tempo lhes não der agua, ou
outra cousa que pedem, que lançarão a dita imagem na agua, nem revolvam
penedos e os lancem na agua para haver chuva; nem lancem joeira; nem
dêem a comer bollo para saberem parte de algum furto; nem tenham
mendracolas em sua casa, com tenção de haverem graças, ou ganharem com
ellas; nem passem agua por cabeça de cão, para conseguir algum proveito;
nem digam cousa alguma do que é por vir, mostrando que lhe foi revelado
por Deus, ou algum santo, ou visão, ou em sonho, ou por qualquer outra
maneira; nem benzam com palavras ignotas e não entendidas, nem
approvadas pela egreja, ou com cutellos de tachas pretas, ou d'outra
alguma côr, nem por cintos e ourelos, ou por qualquer outro modo não
honesto; nem façam camisas fiadas e tecidas em um dia, nem as vistam,
nem usem de alguma arte de feitiçaria »
II
Transcrevemos os titulos das constituições do arcebispado d'Evora acêrca
de feitiçarias, com preferencia a outro qualquer documento, por ser o
que mais especificadamente tracta d'esta materia; as outras
constituições diocesanas que vimos, promulgadas no seculo XVI,
limitam-se em geral a prohibir agouros e bruxedos sem os particularizar,
e sem que d'ellas se possa tirar maior luz para a historia das crenças
nacionaes. Muitas d'essas antigas compilações ecclesiasticas são hoje
rarissimas, nomeadamente as que primeiro se imprimiram, como uma da
diocese do Porto, de que nos lembra ter visto uma copia, e que pela
linguagem e o estylo nos pareceu pertencer ainda ao seculo XV.--Nas mais
remotas achar-se-hiam, porventura, outras noticias; mas não as pudemos
alcançar. E de passagem lembraremos aqui aos amigos das velhas coisas do
velho Portugal, que não ha, porventura, mais rica mina para a historia
dos costumes de nossos avós, depois das compilações das leis civis, que
estas leis ecclesiasticas, que íam devassar o proceder das familias, o
proceder de todas as classes, de todos os individuos, não só nas suas
relações sociaes, como, por via de regra, acontece com aquellas, mas
tambem nas relações domesticas, nas relações com Deus, tomando muitas
vezes para si os misteres e direitos, que em boa razão só deveriam
pertencer á consciencia de cada qual. Pelas antigas constituições dos
bispados quasi podemos seguir a existencia de nossos antepassados do
berço ao tumulo, porque a religião de um até outro cabo os acompanhava,
e ella então era essencialmente positiva e pratica. A lei ecclesiastica
vigiava a infancia, a puberdade, a idade viril, e a velhice; e para cada
epocha da vida tinha preceitos, e para cada erro castigo. Perguntava ao
celibatario se as suas noites eram solitarias, aos esposos se o seu
leito era casto, ao sacerdote se o seu coração era puro; batia alta
noite á porta afferrolhada das casas da devassidão, do jogo, da
ebriedade, e fazia tremer o devasso jogador, o ebrio; porque não era uma
lei morta, mas sim lei com a sancção de penas materiaes. Esta legislação
particular que tinha por base o Evangelho, por objecto os costumes,
devia primeiro que tudo conhecer exactamente estes, e ser definida e
precisa nas suas disposições. É assim que ella nos conservou a historia
das crenças e abusões do povo: das suas paixões, dos seus trajos, das
suas festas e jogos; e até dos seus alimentos: é assim que talvez se
possa dizer em rigorosa verdade, que só com as leis civis e
ecclesiasticas se poderia escrever a historia intima, a _historia do
viver_ das gerações que antes de nós passaram nesta terra portuguesa,
desde os primeiros seculos da monarchia. Para isto, todavia, é
necessario consultar as mais remotas com dobrada curiosidade; porque o
progresso da civilização trouxe o habito de generalizar as idéas, e este
habito influindo na legislação, tornou a sua expressão mais geral, e por
consequencia, neste sentido, muito menos histórica.[23]
Mas, voltando ao nosso assumpto, de que um pouco nos affastámos,
observaremos neste logar que a lei civil que por este mesmo tempo fôra
feita (Ord. Man Liv. 5.^o Tit. 33) fazia distincção, por assim dizer, da
grande e pequena bruxaria; porque as feitiçarias em que se usava
empregar pedra d'ara ou corporaes, ou quaesquer outras cousas sagradas,
era punida com pena de morte, bem como os esconjuros e invocações de
diabos, feitos em circulo ou em encruzilhada, e o dar a beber ou a comer
cousas enfeitiçadas para querer mal ou bem a alguem.
Todos os outros bruxedos, porem, que naquella ordenação se acham
especificados, e que são, pouco mais ou menos, os mesmos que enumeram as
constituições d'Evora, tinham por pena a marca de ferro nas faces, e o
degredo perpetuo para a ilha de S. Thomé. As demais superstições
populares, que não pareciam depender de tracto com o demonio eram
punidas com açoutes, sendo o criminoso peão, e sendo vassalo ou
escudeiro, ou mulher de qualquer d'estes, com degredo de dous annos para
os logares d'Africa. Estas disposições passaram quasi textualmente para
o titulo 3.^o do livro 5.^o das Philippinas, conhecidas geralmente pela
denominação d'Ordenações do Reino.
E cumpre aqui advertir que, se quando se reformou este codigo no
principio do seculo XVII se conservaram penas tão severas contra
individuos que não passavam de meros charlatães, que por taes meios
viviam á custa da credulidade publica, ou que se enganavam a si
proprios, imaginando terem imperio nos demonios e tracto com as
potencias invisiveis, é porque ainda então se cria que similhantes
sonhos eram realidades. E fomos só nós acaso os que isso
acreditámos?--Não. A Europa inteira estava na mesma persuação: nessa
epoca todos os governos, e legisladores, e até homens da mais alta
cathegoria litteraria admittiam a possibilidade dos maleficios, dos
sortilegios, e dos adivinhamentos. E tão duradora foi essa crença, que
ainda no principio do seculo decimo-oitavo, quando appareceu a _Magica
anniquilada_ de Maffeu (livro, em nosso entender, muito aquém da sua
reputação) se levantou uma grande discussão a similhante respeito, o que
é claro signal de que para muitos homens instruidos a magia não era uma
coisa inteiramente vã.
* * * * *
Uma das coisas mais notaveis acêrca da credulidade dos nossos
antepassados no seculo XVII, é um alvará datado de 15 de outubro de
1654, impresso no _Jornal de Coimbra_ e citado por J. P. Ribeiro, em que
se dá licença a um soldado, que dizia ter o dom de _curar com palavras_,
para continuar a fazer uso d'esta estupenda habilidade com a obrigação
de empregar o seu prestimo em beneficio dos militares que d'elle
houvessem mister.
O progresso, porém, das sciencias foi pouco a pouco destruindo estas
abusões nos animos das pessoas sensatas, e os leiticeiros e bruxas, e
adivinhões viram-se obrigados a refugiar-se entre a plebe ignorante das
cidades, e entre a gente boa e simples dos campos. É ahi onde, ha mais
de cincoenta annos, apenas restam usanças que revelam a existencia das
chamadas artes diabolicas.
O conflicto entre o progresso intellectual e as antigas superstições
acarretou por vezes desgostos e perseguições áquelles que trabalhavam em
allumiar as nações; mas tambem deu aso a acontecimentos mui graciosos,
dos quaes re'ataremos aqui um, succedido em Evora no reinado de D. José.
Um frade de certa ordem tinha sido nomeado mestre de philosophia
naquella cidade. Querendo dar uma vez a seus discipulos idéa da
electricidade, pôde obter emprestada uma machina electrica, com a qual
fez algumas experiencias diante de varios padres graves do seu convento,
que ficaram pasmados de coisa tão extraordinaria, e suppuseram lá
comsigo andar nisto obra de feitiçaria. Esperaram, portanto, um dia em
que o mestre de philosophia saísse fóra do convento, e mandando o
prelado tocar á communidade, revestido, e de cruz alçada, seguido dos
demais frades, foi ao aposento, onde estava a machina para a exorcismar.
Começados os exorcismes tanta agua benta lhe deitaram que dentro em
pouco ficou completamente estragada. Quando d'ahi a dias o professor
quis trabalhar com ella, nunca o pôde alcançar; e os padres graves,
rindo uns com os outros, escarneciam do pobre philosopho, a quem, com
esconjuros, tinham inutilizado aquelle diabolico feitiço.
Concluiremos este artigo dando uma noticia do que temos alcançado acerca
das feitiçarias, bruxas, e lubis-homens, na opinião do vulgo, cuja
imaginação ainda dá existencia a estes sonhos ridiculos conservados nas
tradições populares.
O povo faz distincção entre feiticeiras, bruxas, e lubis-homens. São as
feiticeiras e bruxas, por via de regra, mulheres velhas, pobres, feias,
immundas, e de genio melancholico, ou colerico. Estes motivos bastam
para o vulgo as aborrecer, e para justificar a seus olhos qualquer
accusação que lhes façam de feitiçaria ou bruxedo. O mister das
feiticeiras é fazer maleficios a todo o genero de pessoas de qualquer
idade que sejam: estas acompanham ordinariamente o diabo em todas as
suas funcções neste mundo. As bruxas teem poder limitado, estando apenas
auctorizadas para chupar de noite o sangue ou a substancia das creanças,
matando-as pouco a pouco d'inanição, ou de repente, se chupam
desarrazoadamente.
Os lubis-homens são aquelles que teem o _fado_ ou _sina_, de se despirem
de noite no meio de qualquer caminho, principalmente encruzilhada, darem
cinco voltas, espoujando-se no chão em logar onde se esponjasse algum
animal, e em virtude d'isso transformarem-se na figura do animal
_pre-espoujado_. Esta pobre gente não faz mal a ninguem, e só anda
cumprindo a sua _sina_, no que teem uma cenreira mui galante, porque não
passam por caminho ou rua, onde haja luxes, senão dando grandes assopros
e assobios para que lh'as apaguem, de modo que seria a coisa mais facil
d'este mundo apanhar em flagrante um lubis-homem, accendendo luzes por
todos os lados por onde elle pudesse saír do sitio em que fosse
presentido. É verdade que nenhum dos que conta similhantes historias fez
a experiencia.
A instituição de qualquer feiticeira ou bruxa é pela seguinte maneira. A
adepta é levada alta noite pelas feiticeïras professas a um logar ermo,
onde o diabo apparece transformado em bode negro. Começa a ceremonia,
como é de razão, pela matricula, e a noviça escreve o termo da vencia da
sua alma com o proprio sangue: então o diabo lhe entrega um novello e um
pandeirinho que são os symbolos da nova dignidade que recebe, e pelo que
fica habil para fazer os seus maleficios, e para se transformar no que
quiser, quer sejam corpos animados, quer inanimados. Depois d'isto o
demonio _bodificado_ se assenta no seu throno cercado de candeinhas, e
por baixo d'este throno passa a noviça tres vezes; acabado o que, a nova
feiticeira dá um beijo na proximidade da cauda ao transformado rei do
inferno.
Feita esta ceremonia as circumstantes (que são todas as feiticeiras da
provincia, chamadas alli para assistir áquelle auto) tocam os seus
pandeirinhos, e com dansas mysteriosas levam a nova socia a casa, onde
lhe mostram os respectivos novellos de fiado, que são maiores ou
menores, conforme a importancia ou estimação em que as tem o diabo.
Estes novellos diabolicos em que principalmente reside a força e poderio
quanto Lope de Vega está desterrado nas bibliothecas, e emquanto
Calderon e Moreto raras vezes sobem á scena, Tirso de Molina, de quem já
falámos, apparece mais frequentemente no theatro que outro qualquer
antigo escriptor dramatico. Fernando VII gostava muito dos _ricos_
gracejos do licencioso frade; e esta declarada predilecção fazia calar o
genio vidrento e pundonoroso de certas auctoridades, cuja sanha podiam
excitar os motejos do frade contra os grandes. A comedia de Tirso,
intitulada _D. Gil el de las calzas verdes_ era a de que el-rei mais
gostava; e por isso a camara municipal de Madrid não deixava de a mandar
representar nos dias de gala.
Posto que a representação dos _Autos Sacramentales_ fosse supprimida em
1765, todavia o advento e a quaresma, e especialmente a Semana Sancta,
ainda se festejavam ha poucos annos nas igrejas com taes representações;
levantava-se no côro uma especie de tablado, sobre o qual se
representavam os passos da paixão de Christo, e em que as numerosas
personagens que successivamente figuravam na peça, se apresentavam com
os vestuarios da idade-média, quaes se deviam usar na origem d'estas
representações, como san-benitos, mascaras pretas, farricocos, cotas,
camisolas, e, numa palavra, toda a vestiaria de uma procissão de _auto
da fé_.
*Crenças populares portuguesas ou Superstições populares*
PANORAMA
184O
*Crenças populares portuguesas*
I
Todas as nações tanto antigas como modernas teem sido sujeitas á doença
moral chamada credulidade. Dada a crença da existencia dos espiritos e
da sua immortalidade, os homens vendo diariameute morrer os seus
semelhantes, e sentindo em si uma consciencia que repugna a
anniquilação, perceberam facilmente que o espirito não morria: a
revelação não fez mais que confirmar um sentimento innato no homem.
Depois a saudade dos mortos que nos foram caros, e o temor que
experimentavam os criminosos de que as suas victimas ainda se pudessem
vingar d'elles além do sepulchro: emfim amor e remorsos, ajudados da
imaginação, povoaram este mundo de phantasmas. A Grecia, sempre poetica,
formulou esta serie de factos intellectuaes em muitas expressões
materiaes: sirva de exemplo a descida d'Orpheu aos inferno em busca
d'Euridice, mytho formosissimo, com que os antigos gregos simbolizaram o
amor como capaz de unir os espiritos que passaram com os que vivem na
terra. A imaginação multiplicou e variou estas expressões de um
pensamento vago e primitivo. D'ahi vieram os lemures, as strygas, e
todas essas creações extravagantes, que ainda no primeiro seculo
christão o severo philosopho Plinio não se atrevia inteiramente a
descrer.
Entre as nações modernas a portuguesa passa por uma das mais inclinadas
a muitas d'estas superstições. É uma das multiplicadas calumnias que
sobre nossas cabeças lançam estrangeiros: quem d'isso se quiser
desenganar leia o _Diccionario infernal_ de Colin de Plancy, e achará
que qualquer provincia da França, ainda das mais civilizadas, nos deita,
como se diz vulgarmente, a barra adiante em superstições populares.
Quasi o mesmo se pode dizer da nação mais allumiada da Europa--a allemã.
Na Inglaterra, basta dizer que não haverá ahi perro turco, ou brahmane
credulo que leve vantagem em superstição ao povo dos tres reinos unidos.
As bruxas, diabos azues, vampiros, e seiscentas outras diabruras surgem,
por assim dizer, debaixo dos pés dos ingleses, como nos pinhaes do
Alemtejo e Estremadura se erguem, debaixo dos pés dos caminhantes, as
ninhadas dos sapinhos, quando sobre o pó das estradas cai em dia de
verão um aguaceiro de trovoada.
Apesar, porém, de não sermos dos povos mais abastados neste genero de
riquezas (que poeticamente o são) tem havido entre nós muitas crenças
populares dignas de se fazer menção d'ellas; por isso mesmo que as mais
antigas são geralmente desconhecidas, e as mais modernas vão diariamente
desapparecendo;--que ao menos esse bem temos tirado das nossas luctas
politicas e d'este espirito do seculo, que renegou de tudo quanto nos
transmittiu o passado;--tanto de umas como de outras colligiremos aqui
algumas especies, que se nos não enganamos, serão lidas com interesse
pelos leitores do Panorama.
Um dos mais antigos documentos que nos restam sobre as nossas
superstições populares é a celebre postura da camara de Lisboa de 1385.
Esta postura caracteriza essencialmente o espirito religioso da epocha
de D. João I. Nella se prohibem as superstições populares, as quaes ahi
se enumeram, como querendo a camara agradecer assim a Deus a victoria
d'Aljubarrota, que assegurou a independencia de Portugal.
Transcreveremos algumas passagens do referido estatuto, sem que tentemos
explicar muitas d'essas superstições a que se allude, porque difficil
fôra apresentar mais do que conjecturas. Eis o que nos parece mais
notavel naquelle assento municipal.
«Os sobreditos estabelecem e ordenam, que d'aqui em diante nesta cidade,
nem em seu termo nenhuma pessoa não use, nem obre de feitiços, nem de
ligamento, nem de chamar os diabos, nem de descantações, nem de obra de
veadeira, nem obre de carantulas, nem de geitos, nem de sonhos, nem
d'encantamentos, nem lance roda, nem lance sortes, nem obre
d'advinhamentos... nem outrosim ponha nem meça cinta, nem _escante
olhado_ em ninguem, nem lance agua por joeira...»
«Outrosim estabelecem que d'aqui em diante nesta cidade e em seu termo
não se cantem janeiras nem maias, nem a outro nenhum mês do anno, nem se
lance cal ás portas sob titulo de janeiro, nem se furtem aguas, nem se
lancem sortes...»
«Porque o carpir e depenar sobre os finados é costume que descende dos
gentios, e é uma espécie de idolatria, e é contra os mandamentos de
Deus, ordenam e estabelecem os sobreditos que d'aqui em diante nesta
cidade, nenhum homem ou mulher, não se carpa, nem depene, nem brade
sobre algum finado, nem por elle, ainda que seja pae, mãi, filho ou
filha, irmão ou irmã, marido ou mulher, nem por outra nenhuma pena, nem
nojo, não tolhendo a qualquer que não traga seu dó, e chore se
quiser...»
Muitas d'estas disposições dizem respeito a crenças que já não existem,
ou são conhecidas por outras denominações. As janeiras e maias duraram
até os nossos dias e ainda no Minho se chamam maias as flores da
giesteira amarella, com que se adornam as janellas no primeiro de maio;
alem d'isso todos os que hoje vivemos nos lembramos de ver em Lisboa os
maios pequeninos passearem as ruas cubertos de flores, bem como de ouvir
cantar as janeiras, o que ainda dura em muitas partes das nossas
provincias.
As prohibições da camara relativamente aos prantos pelos mortos, alludem
ao carpirem-se e arrepellarem-se sobre o cadaver e por elle, depois
d'enterrado, certas mulheres, que d'isso viviam chamadas carpideiras ou
pranteadeiras, e na falta d'estas os parentes mais proximos. Fr.
Francisco Brandão diz que tal costume se acabou no tempo de D. João I;
mas engana-se manifestamente, porque nos nossos chronistas se acham
memorias de similhantes prantos em epochas mui posteriores, e lá diz Gil
Vicente.
Prantos fazem em Lisboa
Dia de Sancta Luzia
Por elrei D. Manoel
Que se finou neste dia.
Entre as superstições antigas podem contar-se os reptos, requestas, ou
desafios, em que se appellava para o juizo de Deus quando um homem
accusava outro de homicidio ou traição. Este costume, geral em toda a
Europa, vogou muito em Portugal no principio da monarchia, sendo até
declarados nos foraes de algumas terras os casos em que o duello devia
servir de prova da justiça ou injustiça da accusação ou querella. Muito
cedo porém começaram os nossos reis a trabalhar, por meio de leis
prudentes e saudaveis, em pôr termo a este costume barbaro. D. Dinis foi
o primeiro que por lei de 1318 prohibiu houvesse reptos duas leguas em
redor d'onde estivesse a côrte.--«Estabeleço e ponho por lei (diz elle)
que d'aqui adiante nenhum Filho d'algo não desafie, nem mande desafiar
outro, nem por si, nem por outrem, perante mim, nem nos logares onde eu
fôr, nem a duas leguas aredor de mim; e aquelle que contra isto vier,
morra por isso, e a desafiação não valha»--Successivas providencias se
foram dando a este respeito, de modo que na ordenação affonsina apenas
são permitidos os desafios no caso de traição contra a pessoa real, como
se pode ver no titulo 64 do Livro 1.^o d'essa ordenação.
Como, porém, os reptos não tinham logar em todos os casos, e tal era o
de caír a suspeita do crime em mulheres, as quaes não podiam ir defender
ás lançadas a sua innocencia, havia outros meios de recorrer ao juizo de
Deus. D'estes eram geralmente em toda a Europa, as provas da agua fria,
da agua quente, e do ferro em braza. A que se usou em Portugal foi a
ultima, a qual consistia no seguinte: o accusado que queria arriscar-se
á prova, depois de se confessar, e de jejuar rigorosamente por alguns
dias, e de receber exorcismos, bençãos e orações de um sacerdote, ou se
punha a andar descalço sobre uma vara de ferro em braza, ou pegava nella
e caminhava apertando-a nas mãos por certo espaço. Se o _ferro caldo_
(como lhe chamavam) não produzia o seu natural effeito, o culpado era
havido por innocente; mas se lhe queimava os pés ou as mãos impunham-lhe
a pena do crime de que fôra accusado. Já se vê que era difficultosa
empresa achar innocentes por meio tal; todavia algumas tradições existem
que a serem verdadeiras, provariam que a providencia apiedando-se dos
injustamente opprimidos, suspendera algumas vezes a favor d'elles as
leis da natureza. Juncto ao sepulcro do commendador de Leça D. Garcia
Martins se conservava, segundo o testamento de Jorge Cardoso, um ferro
de arado, que, posto em braza, transportou para alli a mulher de um
ferreiro accusada de adulterio. Fr. Bernardo de Brito e Fr. Antonio
Brandão citam uma doação feita ao mosteiro de Arouca, Por D. Tareja
Soares, mulher de D. Gonçalo Mendes de Souza, que sendo accusada pelo
marido d'adulterio, recorreu, em sua defeza, á prova do ferro em braza,
e saindo illesa, se recolheu ao convento d'Arouca, ao qual fez uma
doação, onde se menciona este successo, que seria em verdade
extraordinario, se não fosse mais facil e razoavel crêr na supposição do
documento do que na realidade do milagre.
Esta superstição da prova por fogo parece que ainda estava muito
arreigada em Portugal no fim do seculo XIV. Quando o Mestre d'Aviz matou
o conde Andeiro a rainha D. Leonor, ouvindo na sua camara o ruido que
soava, mandou saber o que era, e vieram dizer-lhe que tinham assassinado
o conde. «A rainha quando isto ouviu, houve grão temor, porem disse: Oh
sancta Maria vale me mataram em elle um bom servidor!--e sem o merecer;
cá (porque) o mataram, bem sei porque. Mas eu prometto a Deus que me vá
de manhã a S. Francisco, e que mande ahi fazer uma fogueira, e ahi farei
taes salvas, quaes nunca mulher fez por estas cousas.» (Lopes chron. de
D. João I cap II). Santos, narrando este mesmo successo, accrescenta:
«Alludiu ao antigo costume de se purificarem, tomando o ferro quente, as
mulheres accusadas, ou murmuradas d'adulterio. (Mon. Lusiti Liv. 23,
cap. 8). E com effeito não é crivel que a rainha na sua afflicção
fizesse uma figura de rhetorica, dizendo que se queria sujeitar a um
costume que já não existia; muito mais que Fernão Lopes, escriptor tão
vizinho d'aquelles tempos, parece reconhecer a actualidade de tão
barbara usança, accrescentando que a rainha _tinha mui pouca vontade de
o fazer_.
Não era este supersticioso costume, que durou por tantos seculos, apenas
uma invenção do vulgo. Nas antigas leis d'Hespanha, conhecidas pelo nome
de _Fuero juzgo_, é expressamente ordenada a prova da agua a ferver, e a
do ferro em braza, e no foral de Baeça se particularizam os casos em que
taes provas tinham logar, bem como a maneira de as fazer.
Transcreve-lo-hemos aqui por ser grandemente curioso, tanto mais que em
parte diz respeito á prova do desafio.
«A mulher, que sabidamente mover, sendo o movito por mau termo seja
queimada, ou salve-se por ferro quente. E se alguma disser que é prenhe
de algum homem, e elle a não crer, tome ferro quente, e queimando-se,
não seja crida; mas se escapar livre do ferro, dê o filho ao pai, e
crie-o como mandam as leis.»
«A mulher que _ligar_ homens ou animaes, ou quaesquer outras cousas que
podem ser ligadas, queimem-na, e se negar, salve-se por ferro quente; e
se o ligador for homem seja açoutado e lançado fóra da terra, e se
negar, salve-se por combate.»
«A mulher que der hervas peçonhentas ou for feiticeira, seja queimada,
ou se salve por ferro quente.»
«A mulher que matar seu marido seja queimada, ou se livre por ferro
quente. Toda a mulher que taes cousas faz, deve tomar ferro; mas não por
erro da sua pessoa propria, salvo quando for approvada por má mulher, e
que teve parte com cinco homens differentes. As _terceiras_ sejam
queimadas, ou, se negarem, salvem-se por ferro quente.»
«O ferro que se mandar fazer por justiça para esta experiencia, tenha um
palmo de comprimento, e dous dedos de largo, e tenha quatro pés (a modo
de banco) tão altos, que a pessoa que houver de fazer a salva possa
metter a mão por baixo. E quando o tomarem, levem-no por distancia
d'outo pés, e tornem-no a pôr em terra suavemente. Mas antes o benza o
sacerdote, e depois elle e o juiz aquentem o ferro, e em quanto o ferro
se aquentar, nenhum homem se chegue junto ao fogo, porque não acerte de
fazer alguma feitiçaria; e a que houver de tomar o ferro primeiro se
confesse mui bem, e depois seja olhada, porque não traga escondido algum
feitiço. Depois lave as mãos diante de todos, e depois de limpas, tome
ferro, mas antes façam todos oração, pedindo a Deus que mostre a
verdade. E depois que tiver levado o ferro, o juiz lhe cubra logo a mão
com cera, e sobre ella lhe ponha a estoupa ou linho, e depois atem-lha
com um panno, e leve-a o juiz a sua casa, e passados tres dias vejam-lhe
a mão e se for queimada, queimam-na tambem a ella.»
Vimos que a prova do fogo durou em Portugal, pelo menos até o fim do
seculo XIV. Não sabemos ao certo a epoca da completa extincção d'este
abuso; todavia é sabido que elle estava em esquecimento no seculo
seguinte. Não assim a crença em feitiçarias que, como sabemos, durou até
aos nossos dias, e ainda hoje tem bastante voga entre os espiritos mais
rudes.
A primeira lei, que nos lembre fosse promulgada em Portugal contra os
feiticeiros é uma de D. João I, do anno de 1403, em que se diz o
seguinte: «Não seja nenhum tão ousado, que por buscar ouro ou prata, ou
outro haver, lance varas, nem faça circo, nem veja em espelho ou em
outras partes.» Esta lei foi confirmada no codigo affonsino, d'onde em
substancia passou para os que se lhe seguiram. Vê-se por ella que a
magia portuguesa d'esse tempo se reduzia a uma especie d'alchimia, ou
sciencia de encontrar ouro, o que, em verdade, era bem pouco se o
compararmos ao incremento prodigioso que teve a feitiçaria no seculo
seguinte.
Da variedade de praticas supersticiosas que produziu este incremento,
nunca encontrámos memoria mais curiosa, que o capitulo que trata d'esta
materia no rarissimo livro das Constituições do arcebispado d'Evora,
impressas em Lisboa no anno de 1534. Eis aqui o texto da constituição
primeira do titulo 25, que se intitula--_Dos feiticeiros, benzedeiros e
agoureiros_:
«Defendemos que nenhuma pessoa de qualquer estado ou condição que seja,
tome de logar sagrado, ou não sagrado, pedra d'ara ou corporaes, ou
parte de cada uma d'ellas, ou qualquer outra cousa sagrada; nem invoque
diabolicos espiritos, em circulo, ou fora d'elle, ou em encruzilhada;
nem dê a alguma pessoa a comer ou a beber qualquer cousa, para querer
bem ou mal a outrem, ou outrem a elle; nem lance sortes para adivinhar,
nem varas para achar haveres; nem veja em agua, ou crystal, ou em
espelho, ou em espada, ou em outra qualquer cousa luzente, nem em
espadua de carneiro; nem faça, para adivinhar, figuras ou imagens
algumas de metal, nem de qualquer outra cousa; nem trabalhe de adivinhar
em cabeça de homem morto, ou de qualquer outra alimaria; nem traga
comsigo dente, nem baraço de enforcado, nem faça com as ditas cousas, ou
cada uma d'ellas, nem com outra alguma semelhante, posto que aqui não
seja nomeada, especie alguma de feitiçaria, ou para adivinhar, ou para
fazer damno ou proveito a alguma pessoa ou fazenda: nem faça cousa para
que uma pessoa queira bem ou mal a outrem, nem para ligar homem ou
mulher, etc.»
«Outrosim defendemos que nenhuma pessoa doente passe por silva ou
machieiro, ou por baixo de trovisco, ou por lameiro virgem; nem benzam
com espada que matou homem, ou que passasse o Douro e Minho tres vezes;
nem cortem solas em figueira baforeira; nem cortem çobro em limiar da
porta; nem tenham cabeças de saudadores encastoadas em ouro, ou em
prata, ou em outras cousas; nem apregoem os demoninhados; nem levem as
imagens d'alguns sanctos ácerca d'agua, fingindo que as querem lançar em
ella, e tomando fiadores, que se até certo tempo lhes não der agua, ou
outra cousa que pedem, que lançarão a dita imagem na agua, nem revolvam
penedos e os lancem na agua para haver chuva; nem lancem joeira; nem
dêem a comer bollo para saberem parte de algum furto; nem tenham
mendracolas em sua casa, com tenção de haverem graças, ou ganharem com
ellas; nem passem agua por cabeça de cão, para conseguir algum proveito;
nem digam cousa alguma do que é por vir, mostrando que lhe foi revelado
por Deus, ou algum santo, ou visão, ou em sonho, ou por qualquer outra
maneira; nem benzam com palavras ignotas e não entendidas, nem
approvadas pela egreja, ou com cutellos de tachas pretas, ou d'outra
alguma côr, nem por cintos e ourelos, ou por qualquer outro modo não
honesto; nem façam camisas fiadas e tecidas em um dia, nem as vistam,
nem usem de alguma arte de feitiçaria »
II
Transcrevemos os titulos das constituições do arcebispado d'Evora acêrca
de feitiçarias, com preferencia a outro qualquer documento, por ser o
que mais especificadamente tracta d'esta materia; as outras
constituições diocesanas que vimos, promulgadas no seculo XVI,
limitam-se em geral a prohibir agouros e bruxedos sem os particularizar,
e sem que d'ellas se possa tirar maior luz para a historia das crenças
nacionaes. Muitas d'essas antigas compilações ecclesiasticas são hoje
rarissimas, nomeadamente as que primeiro se imprimiram, como uma da
diocese do Porto, de que nos lembra ter visto uma copia, e que pela
linguagem e o estylo nos pareceu pertencer ainda ao seculo XV.--Nas mais
remotas achar-se-hiam, porventura, outras noticias; mas não as pudemos
alcançar. E de passagem lembraremos aqui aos amigos das velhas coisas do
velho Portugal, que não ha, porventura, mais rica mina para a historia
dos costumes de nossos avós, depois das compilações das leis civis, que
estas leis ecclesiasticas, que íam devassar o proceder das familias, o
proceder de todas as classes, de todos os individuos, não só nas suas
relações sociaes, como, por via de regra, acontece com aquellas, mas
tambem nas relações domesticas, nas relações com Deus, tomando muitas
vezes para si os misteres e direitos, que em boa razão só deveriam
pertencer á consciencia de cada qual. Pelas antigas constituições dos
bispados quasi podemos seguir a existencia de nossos antepassados do
berço ao tumulo, porque a religião de um até outro cabo os acompanhava,
e ella então era essencialmente positiva e pratica. A lei ecclesiastica
vigiava a infancia, a puberdade, a idade viril, e a velhice; e para cada
epocha da vida tinha preceitos, e para cada erro castigo. Perguntava ao
celibatario se as suas noites eram solitarias, aos esposos se o seu
leito era casto, ao sacerdote se o seu coração era puro; batia alta
noite á porta afferrolhada das casas da devassidão, do jogo, da
ebriedade, e fazia tremer o devasso jogador, o ebrio; porque não era uma
lei morta, mas sim lei com a sancção de penas materiaes. Esta legislação
particular que tinha por base o Evangelho, por objecto os costumes,
devia primeiro que tudo conhecer exactamente estes, e ser definida e
precisa nas suas disposições. É assim que ella nos conservou a historia
das crenças e abusões do povo: das suas paixões, dos seus trajos, das
suas festas e jogos; e até dos seus alimentos: é assim que talvez se
possa dizer em rigorosa verdade, que só com as leis civis e
ecclesiasticas se poderia escrever a historia intima, a _historia do
viver_ das gerações que antes de nós passaram nesta terra portuguesa,
desde os primeiros seculos da monarchia. Para isto, todavia, é
necessario consultar as mais remotas com dobrada curiosidade; porque o
progresso da civilização trouxe o habito de generalizar as idéas, e este
habito influindo na legislação, tornou a sua expressão mais geral, e por
consequencia, neste sentido, muito menos histórica.[23]
Mas, voltando ao nosso assumpto, de que um pouco nos affastámos,
observaremos neste logar que a lei civil que por este mesmo tempo fôra
feita (Ord. Man Liv. 5.^o Tit. 33) fazia distincção, por assim dizer, da
grande e pequena bruxaria; porque as feitiçarias em que se usava
empregar pedra d'ara ou corporaes, ou quaesquer outras cousas sagradas,
era punida com pena de morte, bem como os esconjuros e invocações de
diabos, feitos em circulo ou em encruzilhada, e o dar a beber ou a comer
cousas enfeitiçadas para querer mal ou bem a alguem.
Todos os outros bruxedos, porem, que naquella ordenação se acham
especificados, e que são, pouco mais ou menos, os mesmos que enumeram as
constituições d'Evora, tinham por pena a marca de ferro nas faces, e o
degredo perpetuo para a ilha de S. Thomé. As demais superstições
populares, que não pareciam depender de tracto com o demonio eram
punidas com açoutes, sendo o criminoso peão, e sendo vassalo ou
escudeiro, ou mulher de qualquer d'estes, com degredo de dous annos para
os logares d'Africa. Estas disposições passaram quasi textualmente para
o titulo 3.^o do livro 5.^o das Philippinas, conhecidas geralmente pela
denominação d'Ordenações do Reino.
E cumpre aqui advertir que, se quando se reformou este codigo no
principio do seculo XVII se conservaram penas tão severas contra
individuos que não passavam de meros charlatães, que por taes meios
viviam á custa da credulidade publica, ou que se enganavam a si
proprios, imaginando terem imperio nos demonios e tracto com as
potencias invisiveis, é porque ainda então se cria que similhantes
sonhos eram realidades. E fomos só nós acaso os que isso
acreditámos?--Não. A Europa inteira estava na mesma persuação: nessa
epoca todos os governos, e legisladores, e até homens da mais alta
cathegoria litteraria admittiam a possibilidade dos maleficios, dos
sortilegios, e dos adivinhamentos. E tão duradora foi essa crença, que
ainda no principio do seculo decimo-oitavo, quando appareceu a _Magica
anniquilada_ de Maffeu (livro, em nosso entender, muito aquém da sua
reputação) se levantou uma grande discussão a similhante respeito, o que
é claro signal de que para muitos homens instruidos a magia não era uma
coisa inteiramente vã.
* * * * *
Uma das coisas mais notaveis acêrca da credulidade dos nossos
antepassados no seculo XVII, é um alvará datado de 15 de outubro de
1654, impresso no _Jornal de Coimbra_ e citado por J. P. Ribeiro, em que
se dá licença a um soldado, que dizia ter o dom de _curar com palavras_,
para continuar a fazer uso d'esta estupenda habilidade com a obrigação
de empregar o seu prestimo em beneficio dos militares que d'elle
houvessem mister.
O progresso, porém, das sciencias foi pouco a pouco destruindo estas
abusões nos animos das pessoas sensatas, e os leiticeiros e bruxas, e
adivinhões viram-se obrigados a refugiar-se entre a plebe ignorante das
cidades, e entre a gente boa e simples dos campos. É ahi onde, ha mais
de cincoenta annos, apenas restam usanças que revelam a existencia das
chamadas artes diabolicas.
O conflicto entre o progresso intellectual e as antigas superstições
acarretou por vezes desgostos e perseguições áquelles que trabalhavam em
allumiar as nações; mas tambem deu aso a acontecimentos mui graciosos,
dos quaes re'ataremos aqui um, succedido em Evora no reinado de D. José.
Um frade de certa ordem tinha sido nomeado mestre de philosophia
naquella cidade. Querendo dar uma vez a seus discipulos idéa da
electricidade, pôde obter emprestada uma machina electrica, com a qual
fez algumas experiencias diante de varios padres graves do seu convento,
que ficaram pasmados de coisa tão extraordinaria, e suppuseram lá
comsigo andar nisto obra de feitiçaria. Esperaram, portanto, um dia em
que o mestre de philosophia saísse fóra do convento, e mandando o
prelado tocar á communidade, revestido, e de cruz alçada, seguido dos
demais frades, foi ao aposento, onde estava a machina para a exorcismar.
Começados os exorcismes tanta agua benta lhe deitaram que dentro em
pouco ficou completamente estragada. Quando d'ahi a dias o professor
quis trabalhar com ella, nunca o pôde alcançar; e os padres graves,
rindo uns com os outros, escarneciam do pobre philosopho, a quem, com
esconjuros, tinham inutilizado aquelle diabolico feitiço.
Concluiremos este artigo dando uma noticia do que temos alcançado acerca
das feitiçarias, bruxas, e lubis-homens, na opinião do vulgo, cuja
imaginação ainda dá existencia a estes sonhos ridiculos conservados nas
tradições populares.
O povo faz distincção entre feiticeiras, bruxas, e lubis-homens. São as
feiticeiras e bruxas, por via de regra, mulheres velhas, pobres, feias,
immundas, e de genio melancholico, ou colerico. Estes motivos bastam
para o vulgo as aborrecer, e para justificar a seus olhos qualquer
accusação que lhes façam de feitiçaria ou bruxedo. O mister das
feiticeiras é fazer maleficios a todo o genero de pessoas de qualquer
idade que sejam: estas acompanham ordinariamente o diabo em todas as
suas funcções neste mundo. As bruxas teem poder limitado, estando apenas
auctorizadas para chupar de noite o sangue ou a substancia das creanças,
matando-as pouco a pouco d'inanição, ou de repente, se chupam
desarrazoadamente.
Os lubis-homens são aquelles que teem o _fado_ ou _sina_, de se despirem
de noite no meio de qualquer caminho, principalmente encruzilhada, darem
cinco voltas, espoujando-se no chão em logar onde se esponjasse algum
animal, e em virtude d'isso transformarem-se na figura do animal
_pre-espoujado_. Esta pobre gente não faz mal a ninguem, e só anda
cumprindo a sua _sina_, no que teem uma cenreira mui galante, porque não
passam por caminho ou rua, onde haja luxes, senão dando grandes assopros
e assobios para que lh'as apaguem, de modo que seria a coisa mais facil
d'este mundo apanhar em flagrante um lubis-homem, accendendo luzes por
todos os lados por onde elle pudesse saír do sitio em que fosse
presentido. É verdade que nenhum dos que conta similhantes historias fez
a experiencia.
A instituição de qualquer feiticeira ou bruxa é pela seguinte maneira. A
adepta é levada alta noite pelas feiticeïras professas a um logar ermo,
onde o diabo apparece transformado em bode negro. Começa a ceremonia,
como é de razão, pela matricula, e a noviça escreve o termo da vencia da
sua alma com o proprio sangue: então o diabo lhe entrega um novello e um
pandeirinho que são os symbolos da nova dignidade que recebe, e pelo que
fica habil para fazer os seus maleficios, e para se transformar no que
quiser, quer sejam corpos animados, quer inanimados. Depois d'isto o
demonio _bodificado_ se assenta no seu throno cercado de candeinhas, e
por baixo d'este throno passa a noviça tres vezes; acabado o que, a nova
feiticeira dá um beijo na proximidade da cauda ao transformado rei do
inferno.
Feita esta ceremonia as circumstantes (que são todas as feiticeiras da
provincia, chamadas alli para assistir áquelle auto) tocam os seus
pandeirinhos, e com dansas mysteriosas levam a nova socia a casa, onde
lhe mostram os respectivos novellos de fiado, que são maiores ou
menores, conforme a importancia ou estimação em que as tem o diabo.
Estes novellos diabolicos em que principalmente reside a força e poderio
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