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Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 09 - 04

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  as idéas positivas. Com um sorriso espantoso, elle escarneceu de tudo.
  Religião, moral, affectos humanos, mesmo a liberdade e a esperança foram
  seu ludibrio. A leitura dos seus poemas só produz, em geral,
  descoroçoamento ou antes desesperação. Byron é o Mephistopheles de
  Goethe lançado na vida real.--Virtude e crime, pudor e impudencia,
  gloria e infamia, que montam em seus cantos sinistros? Mas o homem, ser
  immortal, passageiro em um mundo transitorio, não nasceu para o
  scepticismo, para um estado violento, porque elle precisa crêr, quando
  mais não fosse ao menos na voz esperançosa ou ameaçadora da consciencia:
  infeliz, pois, d'aquelle que ao acabar de ler Byron não sente no coração
  um peso insupportavel: a sua alma será tão escura e tão vasia como a
  d'este poeta sublimemente destruidor. De sua eschola apenas restará
  elle; mas como um monumento espantoso dos pricipicios do genio quando
  desacompanhado da virtude. Dos seus imitadores diremos só que elles
  farão com seus dramas, poemas e canções em honra dos crimes, que a
  Europa, volvendo a si, amaldiçoe um dia esta litteratura, que hoje tanto
  applaude. Nossa prophecia se verificará, se, como cremos, o genero
  humano tende á perfectibilidade, e se o homem não nasceu para correr na
  vida um campo de lagrymas e despenhar-se pela morte nos abysmos do nada.
  No meio das revoluções, na epocha em que os tyrannos, enfurecidos pela
  perspectiva de uma queda eminente, se apressam a exgotar sobre os povos
  os thesouros da sua barbaridade: emquanto dura o grande combate, o
  combate dos seculos, os hymnos do desespero soam accordes com as dôres
  moraes; mas quando algum dia a Europa jazer livre e tranquilla, ninguem
  olhara sem compaixao ou horror os desvarios litterarios do nosso seculo.
  Muitos mesmo não os entenderão.
  
  
  *Origens do theatro moderno--Theatro português até aos fins do seculo
  XVI*
  PANORAMA
  1837
  
  
  *Origens do theatro moderno--Theatro português até aos fins do seculo
  XVI
  
  O país onde primeiro appareceu a arte dramatica moderna foi a
  Inglaterra, se arte dramatica podemos chamar a espectaculos tirados de
  passos historicos da Biblia, sem invenção ou enredo, e só copiados
  litteralmente em discursos e acções. Estas primeiras tentativas
  theatraes, a que depois os franceses e italianos chamaram _mysterios_,
  appareceram na Grã-Bretanha durante o seculo XI. Os monges as compunham
  e representavam, e ainda no fim do seculo XVI elles pediam a Ricardo II
  embargasse os comediantes de exercerem uma profissão que julgavam ser um
  privilegio seu, porque ordinariamente o objecto dos dramas se tirava do
  velho e novo Testamento.
  Pelas muitas relações que havia entre a Inglaterra e a França, parece
  que os mysterios ingleses não tardaram em introduzir-se neste ultimo
  país. A _Morte de Santa Catherina_, representada na abbadia de
  Dunstaple, em mil cento e tantos, foi no seculo seguinte posta de novo
  em scena no mosteiro de Sancto Albano em França, e é talvez esta a
  memoria mais antiga que temos da arte dramatica francesa. Depois esta
  continuou e cresceu, chamando se ás farças prophanas _jogos_ ou
  _representações_, e aos dramas sacros _mysterios_.
  A Italia começou mais tarde, com este genero de composições barbaras:
  mas, tendo primeiro que nenhuma outra nação seguido o gosto da
  litteratura grega e romana, brevemente o tomou tambem no theatro. Os
  dramas de Mussato compostos no principio do seculo XIV, e em latim, são
  _Ezzelino_ e _Achilles_, imitações de Seneca, escriptas com um tão falso
  estylo como o do dramaturgo romano. Foi no XV seculo que appareceram na
  Italia os primeiros dramas vulgares: Lourenço de Medicis publicou a
  _Representação de S. João e S. Paulo_, e Angelo Policiano deu pouco
  depois a sua tragedia intitulada _Orpheo_.
  Desde o seculo XIV appareceram dramas na Alemanha; mas estes nada mais
  eram do que imitações dos _mysterios_ franceses, e escriptos em latim
  pelos monges. Em meado do seculo XV foi que verdadeiramente começou
  neste país o theatro nacional. Hans-Folz e Rosemblut compuseram diversas
  farças, que se representaram em Nuremberg e Calmar: estas farças, obra
  de homens rudes, são um tecido de grossarias e indecencias apenas dignas
  de se recitarem diante da plebe mais desfaçada. Depois de 1500 é que
  appareceu _Hans-Sachs_, a quem podemos chamar o Gil Vicente da Alemanha.
  Na Hespanha, ou porque os arabes o introduzissem, ou porque os
  hespanhoes o inventassem, ou, emfim, porque muito cedo o imitassem dos
  franceses, o drama remonta aos primeiros tempos da monarchia. Só, na
  verdade, do principio do seculo XIV conhecemos a scena hespanhola; mas
  restam memorias d'ella muitissimo mais remotas, e pouco depois de 1200,
  dizem que appareceram dramas em Valenciano. Do seculo XV ainda existem
  muitas composições neste genero de litteratura.
  Essas primeiras tentativas dramaticas eram forçosamente um tecido sem
  nexo, sem ordem, e ridiculo: os seus auctores se entregavam
  desenfreadamente a todos os caprichos de uma imaginação fervente, e as
  producções d'esse tempo são em geral monstruosas e absurdas. Rodrigo de
  Cotta começou a dar alguma regularidade ao drama na comedia de _Calisto
  e Melibea_; mas a licença de seus quadros e expressões mancha o
  merecimento d'esta peça, que depois foi algum tanto corrigida e
  accrescentada por Fernando de Roxas, auctor de outra comedia--_Progne e
  Philomela_. Apesar de assim emendada a obra de Cotta ainda é monstruosa.
  Uma serie de enredos amorosos e de crimes se encruzam e estendem ahi
  através de vinte e cinco actos. Entretanto a verdade dos costumes e
  caracteres e a verosimilhança dos episodios lhe deram celebridade; e com
  o titulo de _Celestina_ ella foi muitas vezes reimpressa, traduzida em
  diversas linguas e até na latina pelo celebre Barthius. A reputação da
  _Celestina_ fez nascer os imitadores; e novas composições, com o mesmo
  ou differente titulo, mas que estão longe de ter o merito da original,
  surgiram brevemente em Hespanha.
  Por este tempo floresceram mais outros dois auctores dramaticos, o
  Marquez de Villena e João de la Enzina, que foi o principal modelo do
  nosso Gil Vicente. Os dramas do primeiro foram representados em Saragoça
  na côrte de D. João II, pelo meado do XV seculo; os do segundo o foram
  tambem, na côrte de Fernando e Isabel nos fins d'aquella mesma era.
  Resurgiam então as letras gregas e romanas, e a admiração do theatro
  antigo despertou na Hespanha o genio da tragedia. Oliva publicou duas
  composições trágicas--_Hécuba triste_ e _La venganza de Agamemnon_, as
  primeiras que neste genero se escreveram na Peninsula. Restrictas e
  acanhadas imitações dos gregos, ellas se podem considerar como
  traducções livres da _Hécuba_ de Euripides e da _Electra_ de Sophocles.
  Em Portugal é provavel começassem as representações scenicas pelo mesmo
  tempo em que principiaram na Hespanha; mas nenhuns vestigios restam
  d'esse theatro primitivo. O que é certo é que já nos fins do seculo XIV
  havia em Portugal entremezes. Garcia de Rezende na chronica de D. João
  II, narrando as festas que se fizeram em Evora no casamento do principe
  D. Affonso com a infanta D. Isabel de Castella, fala, em varios
  capitulos, dos _entremezes_ e _representaçoens_, que nessa occasião se
  fizeram, dando a entender pelo modo porque acêrca d'elles se exprime,
  que eram uma coisa bem conhecida e vulgar, e não é impossivel que ainda
  se nos depare algum monumento d'esse nosso primitivo theatro.
  Porém, o mais antigo drama que hoje conhecemos é um de Gil Vicente,
  representado em 1502 na côrte de D. Manoel, e Gil Vicente é, no estado
  actual da nossa historia litteraria, considerado como o fundador da
  scena portuguesa, pela mesma razão porque o podemos ter por inventor dos
  _rimances_, ou _xácaras_, dos quaes os mais antigos que existem são os
  que elle entresachou pelos seus _Autos_, e o que elle dedicou á morte de
  el-rei D. Manoel.
  Gil Vicente dividiu em quatro livros as suas composições dramaticas,
  incluindo no primeiro todos os autos a que chamou de _devoção_, por
  versarem em geral sobre objectos biblicos e religiosos; mas estas _obras
  de devoção_ parecem as menos devotas de todas, se das outras
  exceptuarmos a comedia de _Rubena_ que pertence ao segundo livro. Taes
  _autos_ são na essencia o mesmo que os mysterios franceses, como elles
  cheios de indecencias, porém ao mesmo tempo ricos de sal e chistes. O
  poeta abominava cordealmente o clero, sobretudo os frades, e não
  desaproveitou occasião alguma de os presentear com chascos e epigrammas.
  Os autos das _barcas_, que são como continuação uns dos outros, e formam
  a _trilogia_, ou drama em tres quadros, mais antiga da Europa,
  constituem com _Mofina Mendes_ e _Rubena_ a flôr do theatro de Gil
  Vicente; porque talvez em nenhuma das scenas que os compõem deixa de
  patentear-se em subido gráu o genio da comedia. Este poeta reunia á
  qualidade de auctor a de actor; e com seus filhos representava os
  proprios dramas na côrte de D. Manoel e de D. João III. Apesar de
  cortesão, o poeta morreu pobre, em Evora, depois de 1550. As suas obras
  se imprimiram em Lisboa em 1562, e muito mutiladas em 1586. Uma nova
  edição completa se publicou ultimamente em Hamburgo em 1833.
  Gil Vicente teve um filho do seu mesmo nome, que dizem desterrou para a
  India, levado pelo ciume de este o exceder no genio dramatico. Ao moço
  Gil Vicente se attribue a composição de um auto intitulado _D. Luiz de
  los Turcos_.
  Pelo meado do seculo XVI appareceram em Portugal varios poetas que mais
  ou menos seguiram as pisadas do auctor de _Rubena_. Ao infante D. Luiz
  se attribue o auto de _D. Duardos_, que anda impresso como de Gil
  Vicente. Antonio Ribeiro Chiado, tão conhecido na côrte de D. João III e
  de D. Sebastião, pelos seus gracejos e agudezas, e pela propriedade com
  que remedava a voz e o gesto de todos, nos deixou dois autos assás
  engraçados, o da _Natural Invenção_ e o de _Gonçalo Chambão_. Na
  _Primeira parte dos Autos e Comedias Portuguezas_, publicada em 1587,
  livro hoje bastante raro, se imprimiram sete autos de Antonio Prestes,
  que revelam espirito comico não inferior porventura ao de Gil Vicente,
  cuja escola Prestes seguiu, bem como Jorge Pinto, auctor de _Rodrigo_ e
  _Mengo_, e Jeronymo Ribeiro Soares, auctor do _Auto do Fisico_, que vem
  naquella collecção cuja segunda parte nunca se deu á estampa. O nosso
  Jorge Ferreira de Vasconcellos, auctor dos dois romances da _Tavola
  Redonda_, floresceu tambem por estes tempos. Tres composições suas nos
  restam, _Aulegrafia_, _Euphrosina_ e _Ulyssipo_, a que elle chamou
  comedias, e que, realmente, são antes dialogos do que dramas. Nellas
  teve por alvo Jorge Ferreira reunir os proverbios e annexins da lingua
  ou a philosophia popular do seu tempo, e por este lado são ellas, na
  verdade, dignas da maior estimação; mas se as quisermos considerar como
  dramas bem pequeno é o seu merito.
  No reinado de D. Sebastião, o cego Balthasar Dias, poeta natural da
  Madeira, publicou um grande numero de autos e outras obras, humildes
  pelo estilo, mas com toques tão nacionaes e tão gostosos para o povo,
  que ainda hoje são lidos por este com avidez. Correi as choupanas nas
  aldeãs, as officinas e as lojas dos artifices nas cidades, e em quasi
  todas achareis uma ou outra das multiplicadas edições dos _Autos de S.
  Aleixo_, _de S. Catherina_ e da _Historia da Imperatriz Porcina_, tudo
  obras d'aquelle poeta cego do seculo XVI.
  Este era o theatro verdadeiramente nacional até o anno de 1600, em que
  floresceu Simão Machado, auctor do _Cerco de Diu_ e da _Pastora Alfêa_.
  Muitas composições d'este genero se perderam, ou não chegaram á nossa
  noticia, como os Autos de Antonio Pires Gonge, de Sebastião Pires, e de
  António Peres, que dizem que escrevera mais de cem dramas. O auto do
  _Fidalgo de Florença_, composto por João de Escobar, no reinado de D.
  Sebastião, teve nesse tempo grande celebridade, e se imprimiu repetidas
  vezes: porém d'elle ainda não encontrámos um unico exemplar.
  Emquanto assim a escola formada por Gil Vicente progredia, e, em nosso
  entender, se aperfeiçoava, independente de estranha influencia, poetas
  de grande nome trabalhavam por introduzir em nossa litteratura as fórmas
  do theatro grego ou romano. Francisco de Sá de Miranda escreveu duas
  comedias intituladas _Vilhalpandos_ e _Os Estrangeiros_, as quaes se
  imprimiram, depois de sua morte, em 1560 a primeira, e a segunda em
  1569. Nestas procurou elle seguir as pisadas de Planto e Terencio, como
  o confessa no prologo dos _Estrangeiros_, e com effeito ellas se podem
  comparar com as dos dois comicos latinos. Antonio Ferreira compôs quasi
  pelos mesmos tempos as comedias _Bristo_ e _Cioso_ e a tragedia _D.
  Ignez de Castro_, a segunda que appareceu na Europa conforme a todas as
  regras classicas, sendo a primeira a _Sophonisba_ do poeta italiano
  Trissino; mas a de Castro é superior; e nós a temos por um milagre
  dramatico, attendendo á falta de modelos modernos e ao seculo em que foi
  escripta. O illustre Camões tambem nos deixou, com o titulo de autos,
  duas comedias--_Os Amphytrioens_ e _Filodemo_, das quaes a primeira é
  quasi uma traducção de Plauto. Desde esta epocha o theatro português foi
  caindo e podemos dizer que nunca mais tornou a restaurar-se.
  
  
  *Novellas de cavallaria Portuguesas*
  PANORAMA
  1838-1840
  
  
  *Novellas de Cavallaria Portuguesas*
  
  I
  Amadis de Gaula
  
  As idéas de honra, de valentia e de amor, que occupavam quasi
  exclusivamente os espiritos durante a edade média, reproduziram-se em
  todas as fórmas sociaes e instituições d'aquella brilhante epocha: o
  sentimento religioso traduzia-se em cruzadas ou em guerras de seitas: o
  do prazer em justas, torneios e caçadas, que eram imagem da guerra, ou
  em serões, onde os themas inexgotaveis dos trovadores eram ou amores ou
  armas: as leis apesar de terem a sua principal origem no direito
  canonico e depois no romano, lá abriam a liça aos combates judiciarios:
  as habitações eram castellos, e os adornos dos aposentos corpos de armas
  pendurados, lanças, e razes, onde as mãos das donzellas tinham lavrado a
  historia de combates. Neste predominio exclusivo de certas idéas, como
  escaparia a litteratura de ser dominada por ellas? Assim, depois das
  cantigas dos trovadores, vieram os _rimances_ mais longos, os poemos e
  as novellas de cavallaria. Era esta a litteratura d'aquelles seculos,
  nem outra podia ser: a imaginação dos poetas e novelleiros não
  alcançaria espraiar-se além das fórmas da sociedade de então; porque a
  litteratura de todas as epochas sem exceptuar a nossa, não é mais do que
  um echo harmonioso, ou um reflexo resplendente das idéas capitães, que
  vogam em qualquer d'ellas. As aventuras, os amores, os feitos d'armas
  dos heroes do Boiardo eram a imagem, vista através de um prisma, dos
  homens do XV seculo: a ancia de liberdade descomedida, a misantropia, os
  crimes, a incredulidade dos monstros de Byron são o transumpto medonho e
  sublime d'este seculo de exaggerações e de renovação social.
  O prazo durante o qual os portugueses tocaram a meta do espirito
  cavalleiroso, e o conservaram em toda a pureza e vigor, prolongou-se por
  obra de um seculo, desde os ultimos annos do reinado d'el-rei D.
  Fernando até o d'el-rei D. Affonso V. Antes d'esse tempo nossos avós
  eram demasiado rudes para conceberem e reduzirem a inteira practica a
  concepção immensamente bella da cavallaria; depois d'elle, eram muito
  cidadãos para serem cavalleiros. D. Alvaro Vaz d'Almada caindo morto na
  batalha de Alfarrobeira era o symbolo da cavallaria expirando nas
  paginas da ordenação affonsina. Nesta compilação indigesta e
  essencialmente contradictoria da legislação de tres seculos, não bastava
  o ser inserido o velho regimento de guerra português, emendado por
  jurisconsultos, para salvar da morte a cavallaria, que outras
  disposições d'esse codigo indirectamente assassinavam. Nisto como em
  quasi tudo o mais, das actas das côrtes portuguesas anteriores a D. João
  II e da ordenação affonsina, se póde extrahir toda a substancia
  philosophica da historia dos primeiros tres seculos da monarchia.
  Se o espirito puro de cavallaria dominou tão largo periodo, os
  _cavalleiros-modelos_ (permitta-se-nos a expressão) foram só os que se
  crearam na côrte de D. João I; e a poetica ficção dos Doze de Inglaterra
  pinta a epocha em que se diz succedera essa aventura. Cavalleiros
  andantes portugueses houve-os nos seculos anteriores; mas a cortesia, a
  louçainha, e a galantaria que caracterizam a verdadeira cavallaria só as
  amostra a nossa historia nos guerreiros indomaveis, que na batalha de
  Aljubarrota formavam o esquadrão brilhante chamado a _Ala dos
  Namorados_. Eram estes guerreiros que faziam aquelles _votos denodados_,
  em demanda de cuja execução muitas vezes perdiam a vida: eram estes que,
  discorrendo pelas terras estrangeiras, ahi deixavam perenne memoria de
  seus esforçados feitos.
  Foi na luzida côrte do mestre de Aviz onde achou a cavallaria de toda a
  Europa o seu Homero em Vasco de Lobeira. Como antes d'aquella houve
  poetas, assim antes d'este houve romancistas; como Homero eclypsou a
  memoria dos cantos dos seus antecessores, assim Lobeira fez esquecer as
  mal tecidas invenções dos mais antigos novelleiros, e o _Amadis de
  Gaula_ é a primeira e a principal novella no extensissimo catalogo dos
  contos de cavallaria.
  Poucas memorias nos restam acêrca de Vasco de Lobeira. Sabe-se que foi
  natural do Porto, e armado cavalleiro por D. João I antes de começar a
  batalha de Aljubarrota. Viveu a maior parte da sua vida em Elvas, e
  morreu em 1403.
  Escripto muito antes da invenção da imprensa, o _Amadis_ correu
  manuscripto até o tempo de D. João V; porque os nossos antepassados
  nunca tiveram a curiosidade de o imprimir. Foram assim escasseando as
  copias d'elle, e nos ultimos tempos se havia tornado tão raro que apenas
  se lhe conhecia um ou dois exemplares. O conde da Ericeira, testemunha
  acima de toda a excepção, o viu, e o abbade Barbosa diz que o proprio
  original estava na livraria dos duques de Aveiro. O fatal terremoto de
  1755 fez desapparecer este monumento precioso da nossa litteratura, e
  tudo nos incita hoje a crêr que se perdeu para sempre.
  Mas, se já não existe o original, existem as versões d'elle, ainda que
  alteradas pelos traductores. Trasladado em hespanhol se publicou em
  Sevilha em 1510. Vimos esta traducção, de que ha um exemplar na
  bibliotheca publica da cidade do Porto; e bem sentimos não ter tomado
  d'ella varias notas, que de grande utilidade nos foram para o que vamos
  dizer. Lemos ultimamente a edição de Garciordonez de Montalvo, impressa
  tambem em Sevilha, em 1526, da qual nenhum bibliographo, que nós
  conheçamos, faz menção. Segundo o abbade Barbosa as edições do _Amadis_,
  vertido em hespanhol, se repetiram em 1539, 1576 e 1588.
  Esta novella tambem appareceu em 1540, traduzida em francês e
  accrescentada por Nicolau de Herberay: em 1583 a publicaram os alemães
  na sua lingua; e Bernarda Tasso, pai do grande Tasso, a reduziu em
  italiano quasi por esse mesmo tempo, fazendo um poema riquissimo de
  versos pomposos, e... de dormideiras. Esta acceitação unanime das
  diversas nações é o maior elogio que se podia fazer á obra do nosso
  Lobeira.
  O _Amadis_, como hoje o conhecemos, na antiga versão hespanhola, consta
  de quatro livros, o ultimo dos quaes foi grandemente alterado por
  Garciordonez, segundo elle mesmo diz: "Corrigi (são palavras do prologo)
  estes tres livros do Amadis, que por culpa dos máus escriptores ou
  compositores mui corruptos e viciados se liam, e _trasladei_ e emmendei
  o livro 4.^o". Estes quatro livros, traduzidos tambem em francês, foram
  continuados por diversos auctores, constando hoje a obra de vinte e
  quatro.
  Sendo impossivel dar uma idéa do _Amadis de Gaula_, teia immensa de
  aventuras, que ao modo das do Ariosto formam um labyrintho inextricavel,
  buscaremos ao menos dar a conhecer o tempo e o logar da acção, e o seu
  principal actor, com a brevidade a que nos constrangem os limites do
  _Panorama_.
  A epocha escolhida pelos romancistas de cavallarias para nella
  collocarem os seus heroes fabulosos é indeterminada em todas as
  novellas. A do _Amadis_, ainda que bastante incerta, é menos vaga. O
  heroe viveu muito antes do celebre Arthur ou Artus, rei de Inglaterra:
  mas já quando este país e o de França eram christãos. É o que se lê no
  1.^o capitulo do _Amadis_, e sendo assim este guerreiro floresceu no VI
  ou VII seculo; e como a maior parte dos romances de cavallaria, que
  ainda existem, versam sobre a vida dos seus imaginarios descendentes,
  podemos tambem para elles estabelecer, ainda que imperfeitamente, uma
  especie de chronologia.
  O theatro em que se passam as aventuras de _Amadis de Gaula_, é um
  theatro quasi tamanho como o mundo conhecido no tempo de D. João I. O
  heroe e os mais cavalleiros seus contemporaneos cruzavam mares extensos,
  peregrinavam centenares de leguas, com a mesma rapidez e facilidade com
  que nós fazemos visitas dentro de Lisboa. Esta commodidade
  aproveitaram-na todos os novelleiros que vieram depois de Lobeira; e
  para as distancias que seria incrivel fazer correr em curtissimo prazo a
  um cavalleiro, lá estavam as magas e os encantadores, especie de espada
  de Alexandre, que o escriptor sempre tinha á mão para cortar todos os
  nós gordios que embaraçavam as narrações.
  Não nos cabendo neste logar tudo o que temos de dizer acêrca do
  _Amadis_, o deixaremos para segundo artigo, continuando nos subsequentes
  com a historia das outras novellas de cavallaria portuguesas.
  
  II
  Amaclis de Gaula
  (Continuação)
  
  Promettemos no antedecente artigo dar uma brevissima idéa d'esta
  primeira novella de cavallaria: cumpri-lo-hemos aqui, tocando depois um
  ponto em que de proposito deixámos de falar, e vem a ser a célebre
  questão acêrca de saber se esta novella é obra de um auctor português,
  hespanhol, ou francês. Todas estas tres nações a pretendem para si; e na
  contenda os portugueses parece estarem peior que os seus adversarios,
  visto já não existir o original. Mas, ao cabo, são elles que teem razão,
  segundo nosso entender; e por isso não duvidámos de attribuir o _Amadis_
  a Vasco de Lobeira.
  O rei Perion reinava na Gaula (França): o rei Garinter na Pequena
  Bretanha, hoje a provincia de França d'este nome. Levado pelo desejo de
  conhecer Garinter intenta Perion uma longa viagem[11]; e com efteito o
  encontra numa caçada; dão-se a conhecer um ao outro, e Perion é
  conduzido á corte do seu novo amigo. Tinha este uma filha chamada
  Elisena, que se namora de Perion, o qual d'ahi a pouco parte para a
  Gaula, deixando-a gravida. Ella para esquivar-se á infamia entrega o
  fructo dos seus amores á mercê das ondas, encerrado em uma caixa. Foi
  este Amadis. Encontrado por uma barca em que ía Gandales, cavalleiro
  escocês, este o salva e cria com seu filho Gandalim, depois escudeiro de
  Amadis. Os dois moços são levados á côrte de Languines, rei da Escocia.
  Aqui viu a Amadis el-rei Lisuarte, que de Dinamarca vinha reinar em
  Inglaterra, o qual deixou na côrte de Languines a sua filha Oriana. Foi
  então que começaram os amores d'esta princeza com Amadis, que são o
  principal objecto da novella. Amadis é reconhecido por seu pai Perion,
  já casado com a filha de Garinter, e cresce em poder e renome. Mil
  difficulclades se alevantam para elle chegar a possuir Oriana, as quaes
  vence com repetidos actos de generosidade e valentia. Emfim o romance
  acaba de um modo incompleto com os trabalhos que nos seus ultimos annos
  cercaram a el-rei Lisuarte.
  É esta, em summa, a materia que enche o volumoso romance de _Amadis_,
  novella cheia de muitas paginas fastidiosas, mas tambem de muitas que
  grandemente excitam a curiosidade. O estylo em que está escripto é o de
  uma velha chronica do seculo XV, e notamos nelle uma grande similhança
  com os escriptos do pai da nossa historia, o singelo chronista de João
  I, Fernão Lopes, que tantas vezes se mostra mais poeta que muitos que se
  arrogam este titulo.
  Traçado um leve esboço da novella de _Amadis de Gaula_, segue-se tractar
  a questão de saber se a devemos attribuir a um escriptor português.
  Primeiro que tudo, é de notar que a tradição constante em Portugal foi
  sempre que o _Amadis_ fôra composto por Lobeira. Antonio Ferreira e o
  dr. João de Barros, que escreveram no seculo XVI, não duvidam dá-lo por
  certo: o conde da Ericeira numa conta dada á academia de historia, de
  certa colleção de livros que andava examinando, diz que ali se achava um
  manuscripto do _Amadis_, sem que sobre isso faça admiração ou reparo; o
  que parece provar que naquella academia nenhuma duvida havia acêrca da
  existencia da novella, no original português. Mas não era só nossa esta
  opinião: a maior parte dos escriptores hespanhoes convem em attribuir a
  Lobeira o _Amadis de Gaula_.
  Pretendem os franceses (não todos os que na materia teem escripto) que
  esta novella fôra traduzida em hespanhol do idioma picardo, e Herberay
  diz a vira nesta lingua: mas isto nada prova. Quem impedia que os
  franceses traduzissem o original de Lobeira? A outra objecção contra nós
  é ter feito o auctor os seus heroes franceses e ingleses; mas isto
  tambem nada prova: por que prova de mais. Os ingleses teriam ainda mais
  razão para pedirem a gloria d'esta obra, visto que, apesar de ser
  francesa a personagem principal, a maior parte dos acontecimentos
  põe-nos o auctor em Inglaterra, e quasi todos os cavalleiros notaveis
  são d'este país, á excepção de Amadis e seu irmão Galaor. O certo é que
  Lobeira, tendo vivido no tempo de el-rei D. Fernando I e de D. João I,
  tinha visto as proezas que em Portugal obraram os cavalleiros ingleses,
  a quem devemos os progressos que então fizemos na arte da guerra. Devia
  elle fazer portanto alta idéa da cavallaria d'aquella nação. Nada havia
  mais natural do que fazer da Inglaterra o theatro das façanhas dos seus
  imaginarios heroes. Como, porém, o agente principal de todos os
  successos devia ser o amor, naturalissimo era que o auctor buscasse um
  principe estrangeiro que viesse tornar brilhante a côrte inglesa, com
  seus amores pela dama principal, a filha de Lisuarte, que não poderia
  aliás corresponder á affeição de um subdito de seu pai. Eis a razão
  obvia porque Amadis é francês.
  Alem d'estas observações ha uma principal, que ainda ninguem, que nós
  saibamos, se lembrou de fazer: o examinar em si a novella, para ver se
  das suas proprias entranhas se podia arrancar a certeza da sua origem.
  Se isto se tivesse feito, a questão estaria de ha muito decidida.
  Citámos mui de proposito no primeiro artigo as palavras de Garciordonez,
  que diz emendara os tres livros de _Amadis_, que andavam viciados, e
  _trasladara_ o quarto. Aqui o verbo _trasladar_, é claro que não póde
  significar senão traduzir, o que mostra a olhos desapaixonados que a
  obra não era originalmente hespanhola.
  Seria francesa?--Dizemos, sem duvida alguma, que não. Perion encontrando
  Garinter diz-lhe que viera de mui remotas terras para o vêr. Era
  possivel acaso que um escriptor francês fizesse o rei da Pequena
  Bretanhi desconhecido do da França, e pusesse na boca d'este um tão
  descompassado erro geographico? Além d'isto Perion e Lisuarte reunem
  _côrtes_, nos casos difficeis e circumstancias importantes: nestas
  côrtes apparecem, não os barões das antigas assembleas feudaes da
  Inglaterra e França, mas os _ricos-homens_ e _homens-bons_ das côrtes
  portuguesas. Emfim o auctor descreve a passagem do canal de Inglaterra
  como uma viagem de nove dias com vento favoravel. As frequentes relações
  de guerra e de paz entre a Grã-Bretanha e a França permittiam porventura
  que ignorasse um escriptor francês a distancia de um a outro país?
  Nós poderiamos accrescentar muitos outros exemplos d'esta natureza; mas
  cremos serem de sobejo os que apontamos, para que á nação portuguesa
  seja cedida a palma de ter saído da penna de um escriptor seu a mais
  antiga e mais celebre das novellas cavalheirescas.
  
  III
  Novellas do seculo XV
  
  Quando escrevemos os dois primeiros artigos acêrca das novellas de
  cavallaria portuguesas,[12] era nossa intenção continuar sem demora a
  publicação do breve resumo, que encetámos d'esta parte da nossa historia
  
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