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Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 09 - 04
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34.2 de palabras están entre las 2000 palabras más comunes
49.9 de palabras están entre las 5000 palabras más comunes
56.8 de palabras están entre las 8000 palabras más comunes
as idéas positivas. Com um sorriso espantoso, elle escarneceu de tudo.
Religião, moral, affectos humanos, mesmo a liberdade e a esperança foram
seu ludibrio. A leitura dos seus poemas só produz, em geral,
descoroçoamento ou antes desesperação. Byron é o Mephistopheles de
Goethe lançado na vida real.--Virtude e crime, pudor e impudencia,
gloria e infamia, que montam em seus cantos sinistros? Mas o homem, ser
immortal, passageiro em um mundo transitorio, não nasceu para o
scepticismo, para um estado violento, porque elle precisa crêr, quando
mais não fosse ao menos na voz esperançosa ou ameaçadora da consciencia:
infeliz, pois, d'aquelle que ao acabar de ler Byron não sente no coração
um peso insupportavel: a sua alma será tão escura e tão vasia como a
d'este poeta sublimemente destruidor. De sua eschola apenas restará
elle; mas como um monumento espantoso dos pricipicios do genio quando
desacompanhado da virtude. Dos seus imitadores diremos só que elles
farão com seus dramas, poemas e canções em honra dos crimes, que a
Europa, volvendo a si, amaldiçoe um dia esta litteratura, que hoje tanto
applaude. Nossa prophecia se verificará, se, como cremos, o genero
humano tende á perfectibilidade, e se o homem não nasceu para correr na
vida um campo de lagrymas e despenhar-se pela morte nos abysmos do nada.
No meio das revoluções, na epocha em que os tyrannos, enfurecidos pela
perspectiva de uma queda eminente, se apressam a exgotar sobre os povos
os thesouros da sua barbaridade: emquanto dura o grande combate, o
combate dos seculos, os hymnos do desespero soam accordes com as dôres
moraes; mas quando algum dia a Europa jazer livre e tranquilla, ninguem
olhara sem compaixao ou horror os desvarios litterarios do nosso seculo.
Muitos mesmo não os entenderão.
*Origens do theatro moderno--Theatro português até aos fins do seculo
XVI*
PANORAMA
1837
*Origens do theatro moderno--Theatro português até aos fins do seculo
XVI
O país onde primeiro appareceu a arte dramatica moderna foi a
Inglaterra, se arte dramatica podemos chamar a espectaculos tirados de
passos historicos da Biblia, sem invenção ou enredo, e só copiados
litteralmente em discursos e acções. Estas primeiras tentativas
theatraes, a que depois os franceses e italianos chamaram _mysterios_,
appareceram na Grã-Bretanha durante o seculo XI. Os monges as compunham
e representavam, e ainda no fim do seculo XVI elles pediam a Ricardo II
embargasse os comediantes de exercerem uma profissão que julgavam ser um
privilegio seu, porque ordinariamente o objecto dos dramas se tirava do
velho e novo Testamento.
Pelas muitas relações que havia entre a Inglaterra e a França, parece
que os mysterios ingleses não tardaram em introduzir-se neste ultimo
país. A _Morte de Santa Catherina_, representada na abbadia de
Dunstaple, em mil cento e tantos, foi no seculo seguinte posta de novo
em scena no mosteiro de Sancto Albano em França, e é talvez esta a
memoria mais antiga que temos da arte dramatica francesa. Depois esta
continuou e cresceu, chamando se ás farças prophanas _jogos_ ou
_representações_, e aos dramas sacros _mysterios_.
A Italia começou mais tarde, com este genero de composições barbaras:
mas, tendo primeiro que nenhuma outra nação seguido o gosto da
litteratura grega e romana, brevemente o tomou tambem no theatro. Os
dramas de Mussato compostos no principio do seculo XIV, e em latim, são
_Ezzelino_ e _Achilles_, imitações de Seneca, escriptas com um tão falso
estylo como o do dramaturgo romano. Foi no XV seculo que appareceram na
Italia os primeiros dramas vulgares: Lourenço de Medicis publicou a
_Representação de S. João e S. Paulo_, e Angelo Policiano deu pouco
depois a sua tragedia intitulada _Orpheo_.
Desde o seculo XIV appareceram dramas na Alemanha; mas estes nada mais
eram do que imitações dos _mysterios_ franceses, e escriptos em latim
pelos monges. Em meado do seculo XV foi que verdadeiramente começou
neste país o theatro nacional. Hans-Folz e Rosemblut compuseram diversas
farças, que se representaram em Nuremberg e Calmar: estas farças, obra
de homens rudes, são um tecido de grossarias e indecencias apenas dignas
de se recitarem diante da plebe mais desfaçada. Depois de 1500 é que
appareceu _Hans-Sachs_, a quem podemos chamar o Gil Vicente da Alemanha.
Na Hespanha, ou porque os arabes o introduzissem, ou porque os
hespanhoes o inventassem, ou, emfim, porque muito cedo o imitassem dos
franceses, o drama remonta aos primeiros tempos da monarchia. Só, na
verdade, do principio do seculo XIV conhecemos a scena hespanhola; mas
restam memorias d'ella muitissimo mais remotas, e pouco depois de 1200,
dizem que appareceram dramas em Valenciano. Do seculo XV ainda existem
muitas composições neste genero de litteratura.
Essas primeiras tentativas dramaticas eram forçosamente um tecido sem
nexo, sem ordem, e ridiculo: os seus auctores se entregavam
desenfreadamente a todos os caprichos de uma imaginação fervente, e as
producções d'esse tempo são em geral monstruosas e absurdas. Rodrigo de
Cotta começou a dar alguma regularidade ao drama na comedia de _Calisto
e Melibea_; mas a licença de seus quadros e expressões mancha o
merecimento d'esta peça, que depois foi algum tanto corrigida e
accrescentada por Fernando de Roxas, auctor de outra comedia--_Progne e
Philomela_. Apesar de assim emendada a obra de Cotta ainda é monstruosa.
Uma serie de enredos amorosos e de crimes se encruzam e estendem ahi
através de vinte e cinco actos. Entretanto a verdade dos costumes e
caracteres e a verosimilhança dos episodios lhe deram celebridade; e com
o titulo de _Celestina_ ella foi muitas vezes reimpressa, traduzida em
diversas linguas e até na latina pelo celebre Barthius. A reputação da
_Celestina_ fez nascer os imitadores; e novas composições, com o mesmo
ou differente titulo, mas que estão longe de ter o merito da original,
surgiram brevemente em Hespanha.
Por este tempo floresceram mais outros dois auctores dramaticos, o
Marquez de Villena e João de la Enzina, que foi o principal modelo do
nosso Gil Vicente. Os dramas do primeiro foram representados em Saragoça
na côrte de D. João II, pelo meado do XV seculo; os do segundo o foram
tambem, na côrte de Fernando e Isabel nos fins d'aquella mesma era.
Resurgiam então as letras gregas e romanas, e a admiração do theatro
antigo despertou na Hespanha o genio da tragedia. Oliva publicou duas
composições trágicas--_Hécuba triste_ e _La venganza de Agamemnon_, as
primeiras que neste genero se escreveram na Peninsula. Restrictas e
acanhadas imitações dos gregos, ellas se podem considerar como
traducções livres da _Hécuba_ de Euripides e da _Electra_ de Sophocles.
Em Portugal é provavel começassem as representações scenicas pelo mesmo
tempo em que principiaram na Hespanha; mas nenhuns vestigios restam
d'esse theatro primitivo. O que é certo é que já nos fins do seculo XIV
havia em Portugal entremezes. Garcia de Rezende na chronica de D. João
II, narrando as festas que se fizeram em Evora no casamento do principe
D. Affonso com a infanta D. Isabel de Castella, fala, em varios
capitulos, dos _entremezes_ e _representaçoens_, que nessa occasião se
fizeram, dando a entender pelo modo porque acêrca d'elles se exprime,
que eram uma coisa bem conhecida e vulgar, e não é impossivel que ainda
se nos depare algum monumento d'esse nosso primitivo theatro.
Porém, o mais antigo drama que hoje conhecemos é um de Gil Vicente,
representado em 1502 na côrte de D. Manoel, e Gil Vicente é, no estado
actual da nossa historia litteraria, considerado como o fundador da
scena portuguesa, pela mesma razão porque o podemos ter por inventor dos
_rimances_, ou _xácaras_, dos quaes os mais antigos que existem são os
que elle entresachou pelos seus _Autos_, e o que elle dedicou á morte de
el-rei D. Manoel.
Gil Vicente dividiu em quatro livros as suas composições dramaticas,
incluindo no primeiro todos os autos a que chamou de _devoção_, por
versarem em geral sobre objectos biblicos e religiosos; mas estas _obras
de devoção_ parecem as menos devotas de todas, se das outras
exceptuarmos a comedia de _Rubena_ que pertence ao segundo livro. Taes
_autos_ são na essencia o mesmo que os mysterios franceses, como elles
cheios de indecencias, porém ao mesmo tempo ricos de sal e chistes. O
poeta abominava cordealmente o clero, sobretudo os frades, e não
desaproveitou occasião alguma de os presentear com chascos e epigrammas.
Os autos das _barcas_, que são como continuação uns dos outros, e formam
a _trilogia_, ou drama em tres quadros, mais antiga da Europa,
constituem com _Mofina Mendes_ e _Rubena_ a flôr do theatro de Gil
Vicente; porque talvez em nenhuma das scenas que os compõem deixa de
patentear-se em subido gráu o genio da comedia. Este poeta reunia á
qualidade de auctor a de actor; e com seus filhos representava os
proprios dramas na côrte de D. Manoel e de D. João III. Apesar de
cortesão, o poeta morreu pobre, em Evora, depois de 1550. As suas obras
se imprimiram em Lisboa em 1562, e muito mutiladas em 1586. Uma nova
edição completa se publicou ultimamente em Hamburgo em 1833.
Gil Vicente teve um filho do seu mesmo nome, que dizem desterrou para a
India, levado pelo ciume de este o exceder no genio dramatico. Ao moço
Gil Vicente se attribue a composição de um auto intitulado _D. Luiz de
los Turcos_.
Pelo meado do seculo XVI appareceram em Portugal varios poetas que mais
ou menos seguiram as pisadas do auctor de _Rubena_. Ao infante D. Luiz
se attribue o auto de _D. Duardos_, que anda impresso como de Gil
Vicente. Antonio Ribeiro Chiado, tão conhecido na côrte de D. João III e
de D. Sebastião, pelos seus gracejos e agudezas, e pela propriedade com
que remedava a voz e o gesto de todos, nos deixou dois autos assás
engraçados, o da _Natural Invenção_ e o de _Gonçalo Chambão_. Na
_Primeira parte dos Autos e Comedias Portuguezas_, publicada em 1587,
livro hoje bastante raro, se imprimiram sete autos de Antonio Prestes,
que revelam espirito comico não inferior porventura ao de Gil Vicente,
cuja escola Prestes seguiu, bem como Jorge Pinto, auctor de _Rodrigo_ e
_Mengo_, e Jeronymo Ribeiro Soares, auctor do _Auto do Fisico_, que vem
naquella collecção cuja segunda parte nunca se deu á estampa. O nosso
Jorge Ferreira de Vasconcellos, auctor dos dois romances da _Tavola
Redonda_, floresceu tambem por estes tempos. Tres composições suas nos
restam, _Aulegrafia_, _Euphrosina_ e _Ulyssipo_, a que elle chamou
comedias, e que, realmente, são antes dialogos do que dramas. Nellas
teve por alvo Jorge Ferreira reunir os proverbios e annexins da lingua
ou a philosophia popular do seu tempo, e por este lado são ellas, na
verdade, dignas da maior estimação; mas se as quisermos considerar como
dramas bem pequeno é o seu merito.
No reinado de D. Sebastião, o cego Balthasar Dias, poeta natural da
Madeira, publicou um grande numero de autos e outras obras, humildes
pelo estilo, mas com toques tão nacionaes e tão gostosos para o povo,
que ainda hoje são lidos por este com avidez. Correi as choupanas nas
aldeãs, as officinas e as lojas dos artifices nas cidades, e em quasi
todas achareis uma ou outra das multiplicadas edições dos _Autos de S.
Aleixo_, _de S. Catherina_ e da _Historia da Imperatriz Porcina_, tudo
obras d'aquelle poeta cego do seculo XVI.
Este era o theatro verdadeiramente nacional até o anno de 1600, em que
floresceu Simão Machado, auctor do _Cerco de Diu_ e da _Pastora Alfêa_.
Muitas composições d'este genero se perderam, ou não chegaram á nossa
noticia, como os Autos de Antonio Pires Gonge, de Sebastião Pires, e de
António Peres, que dizem que escrevera mais de cem dramas. O auto do
_Fidalgo de Florença_, composto por João de Escobar, no reinado de D.
Sebastião, teve nesse tempo grande celebridade, e se imprimiu repetidas
vezes: porém d'elle ainda não encontrámos um unico exemplar.
Emquanto assim a escola formada por Gil Vicente progredia, e, em nosso
entender, se aperfeiçoava, independente de estranha influencia, poetas
de grande nome trabalhavam por introduzir em nossa litteratura as fórmas
do theatro grego ou romano. Francisco de Sá de Miranda escreveu duas
comedias intituladas _Vilhalpandos_ e _Os Estrangeiros_, as quaes se
imprimiram, depois de sua morte, em 1560 a primeira, e a segunda em
1569. Nestas procurou elle seguir as pisadas de Planto e Terencio, como
o confessa no prologo dos _Estrangeiros_, e com effeito ellas se podem
comparar com as dos dois comicos latinos. Antonio Ferreira compôs quasi
pelos mesmos tempos as comedias _Bristo_ e _Cioso_ e a tragedia _D.
Ignez de Castro_, a segunda que appareceu na Europa conforme a todas as
regras classicas, sendo a primeira a _Sophonisba_ do poeta italiano
Trissino; mas a de Castro é superior; e nós a temos por um milagre
dramatico, attendendo á falta de modelos modernos e ao seculo em que foi
escripta. O illustre Camões tambem nos deixou, com o titulo de autos,
duas comedias--_Os Amphytrioens_ e _Filodemo_, das quaes a primeira é
quasi uma traducção de Plauto. Desde esta epocha o theatro português foi
caindo e podemos dizer que nunca mais tornou a restaurar-se.
*Novellas de cavallaria Portuguesas*
PANORAMA
1838-1840
*Novellas de Cavallaria Portuguesas*
I
Amadis de Gaula
As idéas de honra, de valentia e de amor, que occupavam quasi
exclusivamente os espiritos durante a edade média, reproduziram-se em
todas as fórmas sociaes e instituições d'aquella brilhante epocha: o
sentimento religioso traduzia-se em cruzadas ou em guerras de seitas: o
do prazer em justas, torneios e caçadas, que eram imagem da guerra, ou
em serões, onde os themas inexgotaveis dos trovadores eram ou amores ou
armas: as leis apesar de terem a sua principal origem no direito
canonico e depois no romano, lá abriam a liça aos combates judiciarios:
as habitações eram castellos, e os adornos dos aposentos corpos de armas
pendurados, lanças, e razes, onde as mãos das donzellas tinham lavrado a
historia de combates. Neste predominio exclusivo de certas idéas, como
escaparia a litteratura de ser dominada por ellas? Assim, depois das
cantigas dos trovadores, vieram os _rimances_ mais longos, os poemos e
as novellas de cavallaria. Era esta a litteratura d'aquelles seculos,
nem outra podia ser: a imaginação dos poetas e novelleiros não
alcançaria espraiar-se além das fórmas da sociedade de então; porque a
litteratura de todas as epochas sem exceptuar a nossa, não é mais do que
um echo harmonioso, ou um reflexo resplendente das idéas capitães, que
vogam em qualquer d'ellas. As aventuras, os amores, os feitos d'armas
dos heroes do Boiardo eram a imagem, vista através de um prisma, dos
homens do XV seculo: a ancia de liberdade descomedida, a misantropia, os
crimes, a incredulidade dos monstros de Byron são o transumpto medonho e
sublime d'este seculo de exaggerações e de renovação social.
O prazo durante o qual os portugueses tocaram a meta do espirito
cavalleiroso, e o conservaram em toda a pureza e vigor, prolongou-se por
obra de um seculo, desde os ultimos annos do reinado d'el-rei D.
Fernando até o d'el-rei D. Affonso V. Antes d'esse tempo nossos avós
eram demasiado rudes para conceberem e reduzirem a inteira practica a
concepção immensamente bella da cavallaria; depois d'elle, eram muito
cidadãos para serem cavalleiros. D. Alvaro Vaz d'Almada caindo morto na
batalha de Alfarrobeira era o symbolo da cavallaria expirando nas
paginas da ordenação affonsina. Nesta compilação indigesta e
essencialmente contradictoria da legislação de tres seculos, não bastava
o ser inserido o velho regimento de guerra português, emendado por
jurisconsultos, para salvar da morte a cavallaria, que outras
disposições d'esse codigo indirectamente assassinavam. Nisto como em
quasi tudo o mais, das actas das côrtes portuguesas anteriores a D. João
II e da ordenação affonsina, se póde extrahir toda a substancia
philosophica da historia dos primeiros tres seculos da monarchia.
Se o espirito puro de cavallaria dominou tão largo periodo, os
_cavalleiros-modelos_ (permitta-se-nos a expressão) foram só os que se
crearam na côrte de D. João I; e a poetica ficção dos Doze de Inglaterra
pinta a epocha em que se diz succedera essa aventura. Cavalleiros
andantes portugueses houve-os nos seculos anteriores; mas a cortesia, a
louçainha, e a galantaria que caracterizam a verdadeira cavallaria só as
amostra a nossa historia nos guerreiros indomaveis, que na batalha de
Aljubarrota formavam o esquadrão brilhante chamado a _Ala dos
Namorados_. Eram estes guerreiros que faziam aquelles _votos denodados_,
em demanda de cuja execução muitas vezes perdiam a vida: eram estes que,
discorrendo pelas terras estrangeiras, ahi deixavam perenne memoria de
seus esforçados feitos.
Foi na luzida côrte do mestre de Aviz onde achou a cavallaria de toda a
Europa o seu Homero em Vasco de Lobeira. Como antes d'aquella houve
poetas, assim antes d'este houve romancistas; como Homero eclypsou a
memoria dos cantos dos seus antecessores, assim Lobeira fez esquecer as
mal tecidas invenções dos mais antigos novelleiros, e o _Amadis de
Gaula_ é a primeira e a principal novella no extensissimo catalogo dos
contos de cavallaria.
Poucas memorias nos restam acêrca de Vasco de Lobeira. Sabe-se que foi
natural do Porto, e armado cavalleiro por D. João I antes de começar a
batalha de Aljubarrota. Viveu a maior parte da sua vida em Elvas, e
morreu em 1403.
Escripto muito antes da invenção da imprensa, o _Amadis_ correu
manuscripto até o tempo de D. João V; porque os nossos antepassados
nunca tiveram a curiosidade de o imprimir. Foram assim escasseando as
copias d'elle, e nos ultimos tempos se havia tornado tão raro que apenas
se lhe conhecia um ou dois exemplares. O conde da Ericeira, testemunha
acima de toda a excepção, o viu, e o abbade Barbosa diz que o proprio
original estava na livraria dos duques de Aveiro. O fatal terremoto de
1755 fez desapparecer este monumento precioso da nossa litteratura, e
tudo nos incita hoje a crêr que se perdeu para sempre.
Mas, se já não existe o original, existem as versões d'elle, ainda que
alteradas pelos traductores. Trasladado em hespanhol se publicou em
Sevilha em 1510. Vimos esta traducção, de que ha um exemplar na
bibliotheca publica da cidade do Porto; e bem sentimos não ter tomado
d'ella varias notas, que de grande utilidade nos foram para o que vamos
dizer. Lemos ultimamente a edição de Garciordonez de Montalvo, impressa
tambem em Sevilha, em 1526, da qual nenhum bibliographo, que nós
conheçamos, faz menção. Segundo o abbade Barbosa as edições do _Amadis_,
vertido em hespanhol, se repetiram em 1539, 1576 e 1588.
Esta novella tambem appareceu em 1540, traduzida em francês e
accrescentada por Nicolau de Herberay: em 1583 a publicaram os alemães
na sua lingua; e Bernarda Tasso, pai do grande Tasso, a reduziu em
italiano quasi por esse mesmo tempo, fazendo um poema riquissimo de
versos pomposos, e... de dormideiras. Esta acceitação unanime das
diversas nações é o maior elogio que se podia fazer á obra do nosso
Lobeira.
O _Amadis_, como hoje o conhecemos, na antiga versão hespanhola, consta
de quatro livros, o ultimo dos quaes foi grandemente alterado por
Garciordonez, segundo elle mesmo diz: "Corrigi (são palavras do prologo)
estes tres livros do Amadis, que por culpa dos máus escriptores ou
compositores mui corruptos e viciados se liam, e _trasladei_ e emmendei
o livro 4.^o". Estes quatro livros, traduzidos tambem em francês, foram
continuados por diversos auctores, constando hoje a obra de vinte e
quatro.
Sendo impossivel dar uma idéa do _Amadis de Gaula_, teia immensa de
aventuras, que ao modo das do Ariosto formam um labyrintho inextricavel,
buscaremos ao menos dar a conhecer o tempo e o logar da acção, e o seu
principal actor, com a brevidade a que nos constrangem os limites do
_Panorama_.
A epocha escolhida pelos romancistas de cavallarias para nella
collocarem os seus heroes fabulosos é indeterminada em todas as
novellas. A do _Amadis_, ainda que bastante incerta, é menos vaga. O
heroe viveu muito antes do celebre Arthur ou Artus, rei de Inglaterra:
mas já quando este país e o de França eram christãos. É o que se lê no
1.^o capitulo do _Amadis_, e sendo assim este guerreiro floresceu no VI
ou VII seculo; e como a maior parte dos romances de cavallaria, que
ainda existem, versam sobre a vida dos seus imaginarios descendentes,
podemos tambem para elles estabelecer, ainda que imperfeitamente, uma
especie de chronologia.
O theatro em que se passam as aventuras de _Amadis de Gaula_, é um
theatro quasi tamanho como o mundo conhecido no tempo de D. João I. O
heroe e os mais cavalleiros seus contemporaneos cruzavam mares extensos,
peregrinavam centenares de leguas, com a mesma rapidez e facilidade com
que nós fazemos visitas dentro de Lisboa. Esta commodidade
aproveitaram-na todos os novelleiros que vieram depois de Lobeira; e
para as distancias que seria incrivel fazer correr em curtissimo prazo a
um cavalleiro, lá estavam as magas e os encantadores, especie de espada
de Alexandre, que o escriptor sempre tinha á mão para cortar todos os
nós gordios que embaraçavam as narrações.
Não nos cabendo neste logar tudo o que temos de dizer acêrca do
_Amadis_, o deixaremos para segundo artigo, continuando nos subsequentes
com a historia das outras novellas de cavallaria portuguesas.
II
Amaclis de Gaula
(Continuação)
Promettemos no antedecente artigo dar uma brevissima idéa d'esta
primeira novella de cavallaria: cumpri-lo-hemos aqui, tocando depois um
ponto em que de proposito deixámos de falar, e vem a ser a célebre
questão acêrca de saber se esta novella é obra de um auctor português,
hespanhol, ou francês. Todas estas tres nações a pretendem para si; e na
contenda os portugueses parece estarem peior que os seus adversarios,
visto já não existir o original. Mas, ao cabo, são elles que teem razão,
segundo nosso entender; e por isso não duvidámos de attribuir o _Amadis_
a Vasco de Lobeira.
O rei Perion reinava na Gaula (França): o rei Garinter na Pequena
Bretanha, hoje a provincia de França d'este nome. Levado pelo desejo de
conhecer Garinter intenta Perion uma longa viagem[11]; e com efteito o
encontra numa caçada; dão-se a conhecer um ao outro, e Perion é
conduzido á corte do seu novo amigo. Tinha este uma filha chamada
Elisena, que se namora de Perion, o qual d'ahi a pouco parte para a
Gaula, deixando-a gravida. Ella para esquivar-se á infamia entrega o
fructo dos seus amores á mercê das ondas, encerrado em uma caixa. Foi
este Amadis. Encontrado por uma barca em que ía Gandales, cavalleiro
escocês, este o salva e cria com seu filho Gandalim, depois escudeiro de
Amadis. Os dois moços são levados á côrte de Languines, rei da Escocia.
Aqui viu a Amadis el-rei Lisuarte, que de Dinamarca vinha reinar em
Inglaterra, o qual deixou na côrte de Languines a sua filha Oriana. Foi
então que começaram os amores d'esta princeza com Amadis, que são o
principal objecto da novella. Amadis é reconhecido por seu pai Perion,
já casado com a filha de Garinter, e cresce em poder e renome. Mil
difficulclades se alevantam para elle chegar a possuir Oriana, as quaes
vence com repetidos actos de generosidade e valentia. Emfim o romance
acaba de um modo incompleto com os trabalhos que nos seus ultimos annos
cercaram a el-rei Lisuarte.
É esta, em summa, a materia que enche o volumoso romance de _Amadis_,
novella cheia de muitas paginas fastidiosas, mas tambem de muitas que
grandemente excitam a curiosidade. O estylo em que está escripto é o de
uma velha chronica do seculo XV, e notamos nelle uma grande similhança
com os escriptos do pai da nossa historia, o singelo chronista de João
I, Fernão Lopes, que tantas vezes se mostra mais poeta que muitos que se
arrogam este titulo.
Traçado um leve esboço da novella de _Amadis de Gaula_, segue-se tractar
a questão de saber se a devemos attribuir a um escriptor português.
Primeiro que tudo, é de notar que a tradição constante em Portugal foi
sempre que o _Amadis_ fôra composto por Lobeira. Antonio Ferreira e o
dr. João de Barros, que escreveram no seculo XVI, não duvidam dá-lo por
certo: o conde da Ericeira numa conta dada á academia de historia, de
certa colleção de livros que andava examinando, diz que ali se achava um
manuscripto do _Amadis_, sem que sobre isso faça admiração ou reparo; o
que parece provar que naquella academia nenhuma duvida havia acêrca da
existencia da novella, no original português. Mas não era só nossa esta
opinião: a maior parte dos escriptores hespanhoes convem em attribuir a
Lobeira o _Amadis de Gaula_.
Pretendem os franceses (não todos os que na materia teem escripto) que
esta novella fôra traduzida em hespanhol do idioma picardo, e Herberay
diz a vira nesta lingua: mas isto nada prova. Quem impedia que os
franceses traduzissem o original de Lobeira? A outra objecção contra nós
é ter feito o auctor os seus heroes franceses e ingleses; mas isto
tambem nada prova: por que prova de mais. Os ingleses teriam ainda mais
razão para pedirem a gloria d'esta obra, visto que, apesar de ser
francesa a personagem principal, a maior parte dos acontecimentos
põe-nos o auctor em Inglaterra, e quasi todos os cavalleiros notaveis
são d'este país, á excepção de Amadis e seu irmão Galaor. O certo é que
Lobeira, tendo vivido no tempo de el-rei D. Fernando I e de D. João I,
tinha visto as proezas que em Portugal obraram os cavalleiros ingleses,
a quem devemos os progressos que então fizemos na arte da guerra. Devia
elle fazer portanto alta idéa da cavallaria d'aquella nação. Nada havia
mais natural do que fazer da Inglaterra o theatro das façanhas dos seus
imaginarios heroes. Como, porém, o agente principal de todos os
successos devia ser o amor, naturalissimo era que o auctor buscasse um
principe estrangeiro que viesse tornar brilhante a côrte inglesa, com
seus amores pela dama principal, a filha de Lisuarte, que não poderia
aliás corresponder á affeição de um subdito de seu pai. Eis a razão
obvia porque Amadis é francês.
Alem d'estas observações ha uma principal, que ainda ninguem, que nós
saibamos, se lembrou de fazer: o examinar em si a novella, para ver se
das suas proprias entranhas se podia arrancar a certeza da sua origem.
Se isto se tivesse feito, a questão estaria de ha muito decidida.
Citámos mui de proposito no primeiro artigo as palavras de Garciordonez,
que diz emendara os tres livros de _Amadis_, que andavam viciados, e
_trasladara_ o quarto. Aqui o verbo _trasladar_, é claro que não póde
significar senão traduzir, o que mostra a olhos desapaixonados que a
obra não era originalmente hespanhola.
Seria francesa?--Dizemos, sem duvida alguma, que não. Perion encontrando
Garinter diz-lhe que viera de mui remotas terras para o vêr. Era
possivel acaso que um escriptor francês fizesse o rei da Pequena
Bretanhi desconhecido do da França, e pusesse na boca d'este um tão
descompassado erro geographico? Além d'isto Perion e Lisuarte reunem
_côrtes_, nos casos difficeis e circumstancias importantes: nestas
côrtes apparecem, não os barões das antigas assembleas feudaes da
Inglaterra e França, mas os _ricos-homens_ e _homens-bons_ das côrtes
portuguesas. Emfim o auctor descreve a passagem do canal de Inglaterra
como uma viagem de nove dias com vento favoravel. As frequentes relações
de guerra e de paz entre a Grã-Bretanha e a França permittiam porventura
que ignorasse um escriptor francês a distancia de um a outro país?
Nós poderiamos accrescentar muitos outros exemplos d'esta natureza; mas
cremos serem de sobejo os que apontamos, para que á nação portuguesa
seja cedida a palma de ter saído da penna de um escriptor seu a mais
antiga e mais celebre das novellas cavalheirescas.
III
Novellas do seculo XV
Quando escrevemos os dois primeiros artigos acêrca das novellas de
cavallaria portuguesas,[12] era nossa intenção continuar sem demora a
publicação do breve resumo, que encetámos d'esta parte da nossa historia
Religião, moral, affectos humanos, mesmo a liberdade e a esperança foram
seu ludibrio. A leitura dos seus poemas só produz, em geral,
descoroçoamento ou antes desesperação. Byron é o Mephistopheles de
Goethe lançado na vida real.--Virtude e crime, pudor e impudencia,
gloria e infamia, que montam em seus cantos sinistros? Mas o homem, ser
immortal, passageiro em um mundo transitorio, não nasceu para o
scepticismo, para um estado violento, porque elle precisa crêr, quando
mais não fosse ao menos na voz esperançosa ou ameaçadora da consciencia:
infeliz, pois, d'aquelle que ao acabar de ler Byron não sente no coração
um peso insupportavel: a sua alma será tão escura e tão vasia como a
d'este poeta sublimemente destruidor. De sua eschola apenas restará
elle; mas como um monumento espantoso dos pricipicios do genio quando
desacompanhado da virtude. Dos seus imitadores diremos só que elles
farão com seus dramas, poemas e canções em honra dos crimes, que a
Europa, volvendo a si, amaldiçoe um dia esta litteratura, que hoje tanto
applaude. Nossa prophecia se verificará, se, como cremos, o genero
humano tende á perfectibilidade, e se o homem não nasceu para correr na
vida um campo de lagrymas e despenhar-se pela morte nos abysmos do nada.
No meio das revoluções, na epocha em que os tyrannos, enfurecidos pela
perspectiva de uma queda eminente, se apressam a exgotar sobre os povos
os thesouros da sua barbaridade: emquanto dura o grande combate, o
combate dos seculos, os hymnos do desespero soam accordes com as dôres
moraes; mas quando algum dia a Europa jazer livre e tranquilla, ninguem
olhara sem compaixao ou horror os desvarios litterarios do nosso seculo.
Muitos mesmo não os entenderão.
*Origens do theatro moderno--Theatro português até aos fins do seculo
XVI*
PANORAMA
1837
*Origens do theatro moderno--Theatro português até aos fins do seculo
XVI
O país onde primeiro appareceu a arte dramatica moderna foi a
Inglaterra, se arte dramatica podemos chamar a espectaculos tirados de
passos historicos da Biblia, sem invenção ou enredo, e só copiados
litteralmente em discursos e acções. Estas primeiras tentativas
theatraes, a que depois os franceses e italianos chamaram _mysterios_,
appareceram na Grã-Bretanha durante o seculo XI. Os monges as compunham
e representavam, e ainda no fim do seculo XVI elles pediam a Ricardo II
embargasse os comediantes de exercerem uma profissão que julgavam ser um
privilegio seu, porque ordinariamente o objecto dos dramas se tirava do
velho e novo Testamento.
Pelas muitas relações que havia entre a Inglaterra e a França, parece
que os mysterios ingleses não tardaram em introduzir-se neste ultimo
país. A _Morte de Santa Catherina_, representada na abbadia de
Dunstaple, em mil cento e tantos, foi no seculo seguinte posta de novo
em scena no mosteiro de Sancto Albano em França, e é talvez esta a
memoria mais antiga que temos da arte dramatica francesa. Depois esta
continuou e cresceu, chamando se ás farças prophanas _jogos_ ou
_representações_, e aos dramas sacros _mysterios_.
A Italia começou mais tarde, com este genero de composições barbaras:
mas, tendo primeiro que nenhuma outra nação seguido o gosto da
litteratura grega e romana, brevemente o tomou tambem no theatro. Os
dramas de Mussato compostos no principio do seculo XIV, e em latim, são
_Ezzelino_ e _Achilles_, imitações de Seneca, escriptas com um tão falso
estylo como o do dramaturgo romano. Foi no XV seculo que appareceram na
Italia os primeiros dramas vulgares: Lourenço de Medicis publicou a
_Representação de S. João e S. Paulo_, e Angelo Policiano deu pouco
depois a sua tragedia intitulada _Orpheo_.
Desde o seculo XIV appareceram dramas na Alemanha; mas estes nada mais
eram do que imitações dos _mysterios_ franceses, e escriptos em latim
pelos monges. Em meado do seculo XV foi que verdadeiramente começou
neste país o theatro nacional. Hans-Folz e Rosemblut compuseram diversas
farças, que se representaram em Nuremberg e Calmar: estas farças, obra
de homens rudes, são um tecido de grossarias e indecencias apenas dignas
de se recitarem diante da plebe mais desfaçada. Depois de 1500 é que
appareceu _Hans-Sachs_, a quem podemos chamar o Gil Vicente da Alemanha.
Na Hespanha, ou porque os arabes o introduzissem, ou porque os
hespanhoes o inventassem, ou, emfim, porque muito cedo o imitassem dos
franceses, o drama remonta aos primeiros tempos da monarchia. Só, na
verdade, do principio do seculo XIV conhecemos a scena hespanhola; mas
restam memorias d'ella muitissimo mais remotas, e pouco depois de 1200,
dizem que appareceram dramas em Valenciano. Do seculo XV ainda existem
muitas composições neste genero de litteratura.
Essas primeiras tentativas dramaticas eram forçosamente um tecido sem
nexo, sem ordem, e ridiculo: os seus auctores se entregavam
desenfreadamente a todos os caprichos de uma imaginação fervente, e as
producções d'esse tempo são em geral monstruosas e absurdas. Rodrigo de
Cotta começou a dar alguma regularidade ao drama na comedia de _Calisto
e Melibea_; mas a licença de seus quadros e expressões mancha o
merecimento d'esta peça, que depois foi algum tanto corrigida e
accrescentada por Fernando de Roxas, auctor de outra comedia--_Progne e
Philomela_. Apesar de assim emendada a obra de Cotta ainda é monstruosa.
Uma serie de enredos amorosos e de crimes se encruzam e estendem ahi
através de vinte e cinco actos. Entretanto a verdade dos costumes e
caracteres e a verosimilhança dos episodios lhe deram celebridade; e com
o titulo de _Celestina_ ella foi muitas vezes reimpressa, traduzida em
diversas linguas e até na latina pelo celebre Barthius. A reputação da
_Celestina_ fez nascer os imitadores; e novas composições, com o mesmo
ou differente titulo, mas que estão longe de ter o merito da original,
surgiram brevemente em Hespanha.
Por este tempo floresceram mais outros dois auctores dramaticos, o
Marquez de Villena e João de la Enzina, que foi o principal modelo do
nosso Gil Vicente. Os dramas do primeiro foram representados em Saragoça
na côrte de D. João II, pelo meado do XV seculo; os do segundo o foram
tambem, na côrte de Fernando e Isabel nos fins d'aquella mesma era.
Resurgiam então as letras gregas e romanas, e a admiração do theatro
antigo despertou na Hespanha o genio da tragedia. Oliva publicou duas
composições trágicas--_Hécuba triste_ e _La venganza de Agamemnon_, as
primeiras que neste genero se escreveram na Peninsula. Restrictas e
acanhadas imitações dos gregos, ellas se podem considerar como
traducções livres da _Hécuba_ de Euripides e da _Electra_ de Sophocles.
Em Portugal é provavel começassem as representações scenicas pelo mesmo
tempo em que principiaram na Hespanha; mas nenhuns vestigios restam
d'esse theatro primitivo. O que é certo é que já nos fins do seculo XIV
havia em Portugal entremezes. Garcia de Rezende na chronica de D. João
II, narrando as festas que se fizeram em Evora no casamento do principe
D. Affonso com a infanta D. Isabel de Castella, fala, em varios
capitulos, dos _entremezes_ e _representaçoens_, que nessa occasião se
fizeram, dando a entender pelo modo porque acêrca d'elles se exprime,
que eram uma coisa bem conhecida e vulgar, e não é impossivel que ainda
se nos depare algum monumento d'esse nosso primitivo theatro.
Porém, o mais antigo drama que hoje conhecemos é um de Gil Vicente,
representado em 1502 na côrte de D. Manoel, e Gil Vicente é, no estado
actual da nossa historia litteraria, considerado como o fundador da
scena portuguesa, pela mesma razão porque o podemos ter por inventor dos
_rimances_, ou _xácaras_, dos quaes os mais antigos que existem são os
que elle entresachou pelos seus _Autos_, e o que elle dedicou á morte de
el-rei D. Manoel.
Gil Vicente dividiu em quatro livros as suas composições dramaticas,
incluindo no primeiro todos os autos a que chamou de _devoção_, por
versarem em geral sobre objectos biblicos e religiosos; mas estas _obras
de devoção_ parecem as menos devotas de todas, se das outras
exceptuarmos a comedia de _Rubena_ que pertence ao segundo livro. Taes
_autos_ são na essencia o mesmo que os mysterios franceses, como elles
cheios de indecencias, porém ao mesmo tempo ricos de sal e chistes. O
poeta abominava cordealmente o clero, sobretudo os frades, e não
desaproveitou occasião alguma de os presentear com chascos e epigrammas.
Os autos das _barcas_, que são como continuação uns dos outros, e formam
a _trilogia_, ou drama em tres quadros, mais antiga da Europa,
constituem com _Mofina Mendes_ e _Rubena_ a flôr do theatro de Gil
Vicente; porque talvez em nenhuma das scenas que os compõem deixa de
patentear-se em subido gráu o genio da comedia. Este poeta reunia á
qualidade de auctor a de actor; e com seus filhos representava os
proprios dramas na côrte de D. Manoel e de D. João III. Apesar de
cortesão, o poeta morreu pobre, em Evora, depois de 1550. As suas obras
se imprimiram em Lisboa em 1562, e muito mutiladas em 1586. Uma nova
edição completa se publicou ultimamente em Hamburgo em 1833.
Gil Vicente teve um filho do seu mesmo nome, que dizem desterrou para a
India, levado pelo ciume de este o exceder no genio dramatico. Ao moço
Gil Vicente se attribue a composição de um auto intitulado _D. Luiz de
los Turcos_.
Pelo meado do seculo XVI appareceram em Portugal varios poetas que mais
ou menos seguiram as pisadas do auctor de _Rubena_. Ao infante D. Luiz
se attribue o auto de _D. Duardos_, que anda impresso como de Gil
Vicente. Antonio Ribeiro Chiado, tão conhecido na côrte de D. João III e
de D. Sebastião, pelos seus gracejos e agudezas, e pela propriedade com
que remedava a voz e o gesto de todos, nos deixou dois autos assás
engraçados, o da _Natural Invenção_ e o de _Gonçalo Chambão_. Na
_Primeira parte dos Autos e Comedias Portuguezas_, publicada em 1587,
livro hoje bastante raro, se imprimiram sete autos de Antonio Prestes,
que revelam espirito comico não inferior porventura ao de Gil Vicente,
cuja escola Prestes seguiu, bem como Jorge Pinto, auctor de _Rodrigo_ e
_Mengo_, e Jeronymo Ribeiro Soares, auctor do _Auto do Fisico_, que vem
naquella collecção cuja segunda parte nunca se deu á estampa. O nosso
Jorge Ferreira de Vasconcellos, auctor dos dois romances da _Tavola
Redonda_, floresceu tambem por estes tempos. Tres composições suas nos
restam, _Aulegrafia_, _Euphrosina_ e _Ulyssipo_, a que elle chamou
comedias, e que, realmente, são antes dialogos do que dramas. Nellas
teve por alvo Jorge Ferreira reunir os proverbios e annexins da lingua
ou a philosophia popular do seu tempo, e por este lado são ellas, na
verdade, dignas da maior estimação; mas se as quisermos considerar como
dramas bem pequeno é o seu merito.
No reinado de D. Sebastião, o cego Balthasar Dias, poeta natural da
Madeira, publicou um grande numero de autos e outras obras, humildes
pelo estilo, mas com toques tão nacionaes e tão gostosos para o povo,
que ainda hoje são lidos por este com avidez. Correi as choupanas nas
aldeãs, as officinas e as lojas dos artifices nas cidades, e em quasi
todas achareis uma ou outra das multiplicadas edições dos _Autos de S.
Aleixo_, _de S. Catherina_ e da _Historia da Imperatriz Porcina_, tudo
obras d'aquelle poeta cego do seculo XVI.
Este era o theatro verdadeiramente nacional até o anno de 1600, em que
floresceu Simão Machado, auctor do _Cerco de Diu_ e da _Pastora Alfêa_.
Muitas composições d'este genero se perderam, ou não chegaram á nossa
noticia, como os Autos de Antonio Pires Gonge, de Sebastião Pires, e de
António Peres, que dizem que escrevera mais de cem dramas. O auto do
_Fidalgo de Florença_, composto por João de Escobar, no reinado de D.
Sebastião, teve nesse tempo grande celebridade, e se imprimiu repetidas
vezes: porém d'elle ainda não encontrámos um unico exemplar.
Emquanto assim a escola formada por Gil Vicente progredia, e, em nosso
entender, se aperfeiçoava, independente de estranha influencia, poetas
de grande nome trabalhavam por introduzir em nossa litteratura as fórmas
do theatro grego ou romano. Francisco de Sá de Miranda escreveu duas
comedias intituladas _Vilhalpandos_ e _Os Estrangeiros_, as quaes se
imprimiram, depois de sua morte, em 1560 a primeira, e a segunda em
1569. Nestas procurou elle seguir as pisadas de Planto e Terencio, como
o confessa no prologo dos _Estrangeiros_, e com effeito ellas se podem
comparar com as dos dois comicos latinos. Antonio Ferreira compôs quasi
pelos mesmos tempos as comedias _Bristo_ e _Cioso_ e a tragedia _D.
Ignez de Castro_, a segunda que appareceu na Europa conforme a todas as
regras classicas, sendo a primeira a _Sophonisba_ do poeta italiano
Trissino; mas a de Castro é superior; e nós a temos por um milagre
dramatico, attendendo á falta de modelos modernos e ao seculo em que foi
escripta. O illustre Camões tambem nos deixou, com o titulo de autos,
duas comedias--_Os Amphytrioens_ e _Filodemo_, das quaes a primeira é
quasi uma traducção de Plauto. Desde esta epocha o theatro português foi
caindo e podemos dizer que nunca mais tornou a restaurar-se.
*Novellas de cavallaria Portuguesas*
PANORAMA
1838-1840
*Novellas de Cavallaria Portuguesas*
I
Amadis de Gaula
As idéas de honra, de valentia e de amor, que occupavam quasi
exclusivamente os espiritos durante a edade média, reproduziram-se em
todas as fórmas sociaes e instituições d'aquella brilhante epocha: o
sentimento religioso traduzia-se em cruzadas ou em guerras de seitas: o
do prazer em justas, torneios e caçadas, que eram imagem da guerra, ou
em serões, onde os themas inexgotaveis dos trovadores eram ou amores ou
armas: as leis apesar de terem a sua principal origem no direito
canonico e depois no romano, lá abriam a liça aos combates judiciarios:
as habitações eram castellos, e os adornos dos aposentos corpos de armas
pendurados, lanças, e razes, onde as mãos das donzellas tinham lavrado a
historia de combates. Neste predominio exclusivo de certas idéas, como
escaparia a litteratura de ser dominada por ellas? Assim, depois das
cantigas dos trovadores, vieram os _rimances_ mais longos, os poemos e
as novellas de cavallaria. Era esta a litteratura d'aquelles seculos,
nem outra podia ser: a imaginação dos poetas e novelleiros não
alcançaria espraiar-se além das fórmas da sociedade de então; porque a
litteratura de todas as epochas sem exceptuar a nossa, não é mais do que
um echo harmonioso, ou um reflexo resplendente das idéas capitães, que
vogam em qualquer d'ellas. As aventuras, os amores, os feitos d'armas
dos heroes do Boiardo eram a imagem, vista através de um prisma, dos
homens do XV seculo: a ancia de liberdade descomedida, a misantropia, os
crimes, a incredulidade dos monstros de Byron são o transumpto medonho e
sublime d'este seculo de exaggerações e de renovação social.
O prazo durante o qual os portugueses tocaram a meta do espirito
cavalleiroso, e o conservaram em toda a pureza e vigor, prolongou-se por
obra de um seculo, desde os ultimos annos do reinado d'el-rei D.
Fernando até o d'el-rei D. Affonso V. Antes d'esse tempo nossos avós
eram demasiado rudes para conceberem e reduzirem a inteira practica a
concepção immensamente bella da cavallaria; depois d'elle, eram muito
cidadãos para serem cavalleiros. D. Alvaro Vaz d'Almada caindo morto na
batalha de Alfarrobeira era o symbolo da cavallaria expirando nas
paginas da ordenação affonsina. Nesta compilação indigesta e
essencialmente contradictoria da legislação de tres seculos, não bastava
o ser inserido o velho regimento de guerra português, emendado por
jurisconsultos, para salvar da morte a cavallaria, que outras
disposições d'esse codigo indirectamente assassinavam. Nisto como em
quasi tudo o mais, das actas das côrtes portuguesas anteriores a D. João
II e da ordenação affonsina, se póde extrahir toda a substancia
philosophica da historia dos primeiros tres seculos da monarchia.
Se o espirito puro de cavallaria dominou tão largo periodo, os
_cavalleiros-modelos_ (permitta-se-nos a expressão) foram só os que se
crearam na côrte de D. João I; e a poetica ficção dos Doze de Inglaterra
pinta a epocha em que se diz succedera essa aventura. Cavalleiros
andantes portugueses houve-os nos seculos anteriores; mas a cortesia, a
louçainha, e a galantaria que caracterizam a verdadeira cavallaria só as
amostra a nossa historia nos guerreiros indomaveis, que na batalha de
Aljubarrota formavam o esquadrão brilhante chamado a _Ala dos
Namorados_. Eram estes guerreiros que faziam aquelles _votos denodados_,
em demanda de cuja execução muitas vezes perdiam a vida: eram estes que,
discorrendo pelas terras estrangeiras, ahi deixavam perenne memoria de
seus esforçados feitos.
Foi na luzida côrte do mestre de Aviz onde achou a cavallaria de toda a
Europa o seu Homero em Vasco de Lobeira. Como antes d'aquella houve
poetas, assim antes d'este houve romancistas; como Homero eclypsou a
memoria dos cantos dos seus antecessores, assim Lobeira fez esquecer as
mal tecidas invenções dos mais antigos novelleiros, e o _Amadis de
Gaula_ é a primeira e a principal novella no extensissimo catalogo dos
contos de cavallaria.
Poucas memorias nos restam acêrca de Vasco de Lobeira. Sabe-se que foi
natural do Porto, e armado cavalleiro por D. João I antes de começar a
batalha de Aljubarrota. Viveu a maior parte da sua vida em Elvas, e
morreu em 1403.
Escripto muito antes da invenção da imprensa, o _Amadis_ correu
manuscripto até o tempo de D. João V; porque os nossos antepassados
nunca tiveram a curiosidade de o imprimir. Foram assim escasseando as
copias d'elle, e nos ultimos tempos se havia tornado tão raro que apenas
se lhe conhecia um ou dois exemplares. O conde da Ericeira, testemunha
acima de toda a excepção, o viu, e o abbade Barbosa diz que o proprio
original estava na livraria dos duques de Aveiro. O fatal terremoto de
1755 fez desapparecer este monumento precioso da nossa litteratura, e
tudo nos incita hoje a crêr que se perdeu para sempre.
Mas, se já não existe o original, existem as versões d'elle, ainda que
alteradas pelos traductores. Trasladado em hespanhol se publicou em
Sevilha em 1510. Vimos esta traducção, de que ha um exemplar na
bibliotheca publica da cidade do Porto; e bem sentimos não ter tomado
d'ella varias notas, que de grande utilidade nos foram para o que vamos
dizer. Lemos ultimamente a edição de Garciordonez de Montalvo, impressa
tambem em Sevilha, em 1526, da qual nenhum bibliographo, que nós
conheçamos, faz menção. Segundo o abbade Barbosa as edições do _Amadis_,
vertido em hespanhol, se repetiram em 1539, 1576 e 1588.
Esta novella tambem appareceu em 1540, traduzida em francês e
accrescentada por Nicolau de Herberay: em 1583 a publicaram os alemães
na sua lingua; e Bernarda Tasso, pai do grande Tasso, a reduziu em
italiano quasi por esse mesmo tempo, fazendo um poema riquissimo de
versos pomposos, e... de dormideiras. Esta acceitação unanime das
diversas nações é o maior elogio que se podia fazer á obra do nosso
Lobeira.
O _Amadis_, como hoje o conhecemos, na antiga versão hespanhola, consta
de quatro livros, o ultimo dos quaes foi grandemente alterado por
Garciordonez, segundo elle mesmo diz: "Corrigi (são palavras do prologo)
estes tres livros do Amadis, que por culpa dos máus escriptores ou
compositores mui corruptos e viciados se liam, e _trasladei_ e emmendei
o livro 4.^o". Estes quatro livros, traduzidos tambem em francês, foram
continuados por diversos auctores, constando hoje a obra de vinte e
quatro.
Sendo impossivel dar uma idéa do _Amadis de Gaula_, teia immensa de
aventuras, que ao modo das do Ariosto formam um labyrintho inextricavel,
buscaremos ao menos dar a conhecer o tempo e o logar da acção, e o seu
principal actor, com a brevidade a que nos constrangem os limites do
_Panorama_.
A epocha escolhida pelos romancistas de cavallarias para nella
collocarem os seus heroes fabulosos é indeterminada em todas as
novellas. A do _Amadis_, ainda que bastante incerta, é menos vaga. O
heroe viveu muito antes do celebre Arthur ou Artus, rei de Inglaterra:
mas já quando este país e o de França eram christãos. É o que se lê no
1.^o capitulo do _Amadis_, e sendo assim este guerreiro floresceu no VI
ou VII seculo; e como a maior parte dos romances de cavallaria, que
ainda existem, versam sobre a vida dos seus imaginarios descendentes,
podemos tambem para elles estabelecer, ainda que imperfeitamente, uma
especie de chronologia.
O theatro em que se passam as aventuras de _Amadis de Gaula_, é um
theatro quasi tamanho como o mundo conhecido no tempo de D. João I. O
heroe e os mais cavalleiros seus contemporaneos cruzavam mares extensos,
peregrinavam centenares de leguas, com a mesma rapidez e facilidade com
que nós fazemos visitas dentro de Lisboa. Esta commodidade
aproveitaram-na todos os novelleiros que vieram depois de Lobeira; e
para as distancias que seria incrivel fazer correr em curtissimo prazo a
um cavalleiro, lá estavam as magas e os encantadores, especie de espada
de Alexandre, que o escriptor sempre tinha á mão para cortar todos os
nós gordios que embaraçavam as narrações.
Não nos cabendo neste logar tudo o que temos de dizer acêrca do
_Amadis_, o deixaremos para segundo artigo, continuando nos subsequentes
com a historia das outras novellas de cavallaria portuguesas.
II
Amaclis de Gaula
(Continuação)
Promettemos no antedecente artigo dar uma brevissima idéa d'esta
primeira novella de cavallaria: cumpri-lo-hemos aqui, tocando depois um
ponto em que de proposito deixámos de falar, e vem a ser a célebre
questão acêrca de saber se esta novella é obra de um auctor português,
hespanhol, ou francês. Todas estas tres nações a pretendem para si; e na
contenda os portugueses parece estarem peior que os seus adversarios,
visto já não existir o original. Mas, ao cabo, são elles que teem razão,
segundo nosso entender; e por isso não duvidámos de attribuir o _Amadis_
a Vasco de Lobeira.
O rei Perion reinava na Gaula (França): o rei Garinter na Pequena
Bretanha, hoje a provincia de França d'este nome. Levado pelo desejo de
conhecer Garinter intenta Perion uma longa viagem[11]; e com efteito o
encontra numa caçada; dão-se a conhecer um ao outro, e Perion é
conduzido á corte do seu novo amigo. Tinha este uma filha chamada
Elisena, que se namora de Perion, o qual d'ahi a pouco parte para a
Gaula, deixando-a gravida. Ella para esquivar-se á infamia entrega o
fructo dos seus amores á mercê das ondas, encerrado em uma caixa. Foi
este Amadis. Encontrado por uma barca em que ía Gandales, cavalleiro
escocês, este o salva e cria com seu filho Gandalim, depois escudeiro de
Amadis. Os dois moços são levados á côrte de Languines, rei da Escocia.
Aqui viu a Amadis el-rei Lisuarte, que de Dinamarca vinha reinar em
Inglaterra, o qual deixou na côrte de Languines a sua filha Oriana. Foi
então que começaram os amores d'esta princeza com Amadis, que são o
principal objecto da novella. Amadis é reconhecido por seu pai Perion,
já casado com a filha de Garinter, e cresce em poder e renome. Mil
difficulclades se alevantam para elle chegar a possuir Oriana, as quaes
vence com repetidos actos de generosidade e valentia. Emfim o romance
acaba de um modo incompleto com os trabalhos que nos seus ultimos annos
cercaram a el-rei Lisuarte.
É esta, em summa, a materia que enche o volumoso romance de _Amadis_,
novella cheia de muitas paginas fastidiosas, mas tambem de muitas que
grandemente excitam a curiosidade. O estylo em que está escripto é o de
uma velha chronica do seculo XV, e notamos nelle uma grande similhança
com os escriptos do pai da nossa historia, o singelo chronista de João
I, Fernão Lopes, que tantas vezes se mostra mais poeta que muitos que se
arrogam este titulo.
Traçado um leve esboço da novella de _Amadis de Gaula_, segue-se tractar
a questão de saber se a devemos attribuir a um escriptor português.
Primeiro que tudo, é de notar que a tradição constante em Portugal foi
sempre que o _Amadis_ fôra composto por Lobeira. Antonio Ferreira e o
dr. João de Barros, que escreveram no seculo XVI, não duvidam dá-lo por
certo: o conde da Ericeira numa conta dada á academia de historia, de
certa colleção de livros que andava examinando, diz que ali se achava um
manuscripto do _Amadis_, sem que sobre isso faça admiração ou reparo; o
que parece provar que naquella academia nenhuma duvida havia acêrca da
existencia da novella, no original português. Mas não era só nossa esta
opinião: a maior parte dos escriptores hespanhoes convem em attribuir a
Lobeira o _Amadis de Gaula_.
Pretendem os franceses (não todos os que na materia teem escripto) que
esta novella fôra traduzida em hespanhol do idioma picardo, e Herberay
diz a vira nesta lingua: mas isto nada prova. Quem impedia que os
franceses traduzissem o original de Lobeira? A outra objecção contra nós
é ter feito o auctor os seus heroes franceses e ingleses; mas isto
tambem nada prova: por que prova de mais. Os ingleses teriam ainda mais
razão para pedirem a gloria d'esta obra, visto que, apesar de ser
francesa a personagem principal, a maior parte dos acontecimentos
põe-nos o auctor em Inglaterra, e quasi todos os cavalleiros notaveis
são d'este país, á excepção de Amadis e seu irmão Galaor. O certo é que
Lobeira, tendo vivido no tempo de el-rei D. Fernando I e de D. João I,
tinha visto as proezas que em Portugal obraram os cavalleiros ingleses,
a quem devemos os progressos que então fizemos na arte da guerra. Devia
elle fazer portanto alta idéa da cavallaria d'aquella nação. Nada havia
mais natural do que fazer da Inglaterra o theatro das façanhas dos seus
imaginarios heroes. Como, porém, o agente principal de todos os
successos devia ser o amor, naturalissimo era que o auctor buscasse um
principe estrangeiro que viesse tornar brilhante a côrte inglesa, com
seus amores pela dama principal, a filha de Lisuarte, que não poderia
aliás corresponder á affeição de um subdito de seu pai. Eis a razão
obvia porque Amadis é francês.
Alem d'estas observações ha uma principal, que ainda ninguem, que nós
saibamos, se lembrou de fazer: o examinar em si a novella, para ver se
das suas proprias entranhas se podia arrancar a certeza da sua origem.
Se isto se tivesse feito, a questão estaria de ha muito decidida.
Citámos mui de proposito no primeiro artigo as palavras de Garciordonez,
que diz emendara os tres livros de _Amadis_, que andavam viciados, e
_trasladara_ o quarto. Aqui o verbo _trasladar_, é claro que não póde
significar senão traduzir, o que mostra a olhos desapaixonados que a
obra não era originalmente hespanhola.
Seria francesa?--Dizemos, sem duvida alguma, que não. Perion encontrando
Garinter diz-lhe que viera de mui remotas terras para o vêr. Era
possivel acaso que um escriptor francês fizesse o rei da Pequena
Bretanhi desconhecido do da França, e pusesse na boca d'este um tão
descompassado erro geographico? Além d'isto Perion e Lisuarte reunem
_côrtes_, nos casos difficeis e circumstancias importantes: nestas
côrtes apparecem, não os barões das antigas assembleas feudaes da
Inglaterra e França, mas os _ricos-homens_ e _homens-bons_ das côrtes
portuguesas. Emfim o auctor descreve a passagem do canal de Inglaterra
como uma viagem de nove dias com vento favoravel. As frequentes relações
de guerra e de paz entre a Grã-Bretanha e a França permittiam porventura
que ignorasse um escriptor francês a distancia de um a outro país?
Nós poderiamos accrescentar muitos outros exemplos d'esta natureza; mas
cremos serem de sobejo os que apontamos, para que á nação portuguesa
seja cedida a palma de ter saído da penna de um escriptor seu a mais
antiga e mais celebre das novellas cavalheirescas.
III
Novellas do seculo XV
Quando escrevemos os dois primeiros artigos acêrca das novellas de
cavallaria portuguesas,[12] era nossa intenção continuar sem demora a
publicação do breve resumo, que encetámos d'esta parte da nossa historia
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