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Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 09 - 03
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a humildade evangelica propria de um bom christão como Mr. Laurentie![4]
Insistimos na differença do bom e do bello, porque o grande nome de
Mendelssohn se colloca naturalmente á frente dos que os declaram
identicos. Esta idéa se encontra já na philosophia néo-platonica e
talvez no Hippias maior do mesmo Platão, de cujas opiniões Mendelssohn
não estava mui longe. O que Mr. de Bonald e Alletz disseram sobre este
ponto funda-se inteiramente naquellas doutrinas.
Porém serão ellas verdadeiras? Nós cremos que não. A perfeição de
qualquer coisa é o complemento de seus fins, e estes devem ser bons,
aliás não se daria aquella. D'isto resulta sempre um interesse, quer no
moral quer no physico, o que suppõe uma existencia real: porém o
sentimento do bello é desinteressado e não carece de ser acompanhado do
de existencia. Os jardins de Alcinoo, a ilha de Venus, não seriam mais
bellos se os cressemos existentes fóra da Odyssea e dos Lusiadas. A
imaginação é quem nos presta a idéa de que resulta o juizo acêrca do
bello: o bom nasce de uma idéa determinada pela razão; porque, para
julgar uma coisa boa e perfeita, é preciso saber para que serve, qual
seu alvo, quaes suas relações: um edificio irregular, mas commodo e
reparado, será bom, porque satisfaz o seu alvo objectivo: a Venus de
Medicis chama-se bella, porque satisfaz, por uma idéa da imaginação, o
jogo das nossas faculdades quando a comparamos com o ideal do bello
humano.
Dissemos que o bello moral é sempre acompanhado do bom. Concordando
nisto com as opiniões actuaes dos litteratos puros, julgamos não ser
preciso prová-lo e portanto nos absteremos d'isso. O pouco que notámos
basta para se ver em que consiste a differença das duas idéas no mundo
da moralidade.
Cremos ter indicado, bem que mui de leve, as difficuldades e por ventura
contradicções que encerra uma poetica respeitada por tantos seculos. Mas
desde Aristoteles estava apontado, e por elle mesmo, o vicio da sua
construcção. Applicando á Iliada os canones que tinha estabelecido e que
julgou ter deduzido d'ella, achou que ás vezes elles falhavam, e viu-se
obrigado a dizer que as regras se podiam pôr de parte quando o bello
assim o exigisse. Não é d'este modo que nós concebemos a poesia. Seus
preceitos devem ser imprescriptiveis sendo deduzidos do bello e de suas
condições. De que modo o nosso criterio póde ser seguro, ter este
caracter de necessidade que a consciencia requer, sendo incertos os seus
meios? O jogo de arguições e replicas que constituem o capitulo 25 da
sua poetica seria digno de um sophista, não do maior philosopho da
antiguidade: ellas fariam luzir um estudante das nossas aulas de
rhetorica em uma sabatina; mas para o estudo da litteratura parece-nos
que de nada servem.
Tendo até aqui procurado derribar, cumpria edificar agora: mas não
escrevendo um livro, nem possuindo para isso o cabedal necessario,
apenas lançaremos os primeiros traços dos (quanto a nós) unicamente
verdadeiros fundamentos de uma poetica razoavel, para estabelecer a
theoria da unidade de um modo mais conforme a razão, e ao mesmo tempo
mais concorde com os grandes monumentos litterarios.
A poesia é a expressão sensivel do bello por meio de uma linguagem
harmoniosa.
O bello é o resultado da relação das nossas faculdades, manifestada como
jogo da sua actividade reciproca.
Esta relação consistirá na comparação da idéa do objecto com uma idéa
geral e indeterminada: a harmonia d'ella resultante produzirá o
sentimento do bello: esta harmonia será sujectiva, residirá em nós; e a
sua existencia _a priori_ necessaria e universal.
Como composta a idéa do objecto leva comsigo a variedade; como geral o
outro termo da comparação é puramente subjectivo e consequentemente uno.
A condição, pois, do bello é a concordancia da variedade da idéa
particular com a unidade geral: condição que é por tanto necessaria em
todos os juizos acêrca do bello.
Mas existindo essa harmonia no jogo das faculdades e requerendo-se para
ella a unidade, esta será subjectivamente absoluta, e tudo o que na idéa
particular do objecto não estiver em relação com ella nunca poderá ser
julgado bello.
Tanto nos basta da longa e difficil theoria do bello e sublime para o
nosso intento. Na sua applicação restringir-nos-hemos aos poemas
narrativos, porque os outros, sobretudo os dramaticos, exigiram um mais
amplo desenvolvimento que não comporta este escripto.
Dos principios que apresentámos e que em parte as antecedentes
observações pediam, se colhe o sempre imprescriptivel canon da unidade,
porém esta collocada mui longe d'onde os antigos a collocavam. É uma
idéa geral e indeterminada que a torna necessaria: a acção não é mais do
que a serie de variedades que devem, digamos assim, dar um som unisono
com a idéa geral e una. Será, pois, em nosso systema o primeiro passo a
dar no exame de qualquer poema o buscar qual foi essa idéa, esse _deus
in nobis_ que constrangeu o poeta a revelar-se ao mundo em cantos
harmoniosos. Nós a buscaremos nos cinco mais celebres poemas da
Europa--_a Iliada_,--_a Eneida_--o _Orlando furioso_--os _Lusiadas_--e a
_Jerusalem libertada_. Se a theoria for verdadeira acharemos essa idéa:
as partes que os constituem serão concordes com ella; aliás estes poemas
cessarão para nós de ser considerados como absolutamente bellos, e
ficaremos persuadidos de que a Europa inteira se enganou tendo-os por
modelos do gosto.
Antes, porém, de tudo convem sujeitá-los a um exame cujo norte seja o
que a antiga poetica exige para julgar similhantes producções. Seremos
severos neste exame, mas limitar-nos-hemos ao mais importante
principio--o da unidade de acção, a que nós temos a infelicidade de não
dar valor algum. Com este nos contentamos, que de outro modo fariamos em
vez de um artigo um volume.
Quem será nosso guia para vêr em que essa unidade consiste? Aristoteles:
ninguem o refusará. Elle é o unico escriptor original sobre taes
materias: os que vieram depois d'elle o copiaram, o commentaram e talvez
demudaram suas idéas. Diz Dacier que todas as poeticas se reduzem á do
Stagyrita, e por outra parte Mr. Lemercier nos assegura ser bastante
para constituir um perfeito critico em poesia o entender bem as poeticas
de Aristoteles, Horacio, Vida e Despreaux. Reunindo, pois, as opiniões
de dois tão illustres litteratos parece-nos que nesse escripto do velho
grego devemos buscar a norma de nossos juizos para avaliar os poetas.
Busquemos lá, com effeito, em que a unidade consiste. Achá-lo-hemos no
capitulo 8. _Serão_, diz elle, _as partes de uma acção de tal geito
ligadas entre si, que tirada ou transposta uma, fique tudo destruido ou
mudado_.
São os episodios que na epopêa constituem essas partes da acção,
rigorosamente falando. Assim o julga Dacier e a Encyclopedia: assim o
cria Voltaire dizendo que os episodios similham aos membros de um corpo
robusto e bem affigurado. Um episodio, pois, que sendo omittido deixa a
acção inteira, inserido nella destruirá a sua unidade. Mas ficará,
porventura, incompleta a acção da Iliada se lhe tirarmos o longo trecho
da descripção das naus gregas e o muito mais longo do funeral de
Patroclo? Cremos que não, e que portanto se, pela poetica de Aristoteles
julgarmos a Iliada, d'ella desapparecerá a unidade.
Diz mais o critico grego, no começo d'este capitulo, que a identidade do
heroe principal nunca estabelecerá a unidade, quando as acções forem
multiplices. Ora, quem é que une a primeira metade da Eneida á
segunda?--Apenas o heroe. Tudo é novo depois da sua chegada á Italia.
Novas são as aventuras, novas são as personagens secundarias. É o mesmo
Virgilio quem nos indica a duplicidade da acção do seu poema. A
exposição da Eneida estava plenamente desenvolvida no fim do sexto
livro, e assim, logo no principio do setimo, elle nos avisa que vai
contar uma nova ordem de coisas[5]. Podemos, pois, affirmar affoitamente
que na Eneida da falta a unidade.
Quanto aos Lusiadas nada é preciso dizer. Salta aos olhos que a historia
dos doze de Inglaterra, o assassinio de D. Ignez, teem tanto com a acção
do descobrimento da India como com a da Odyssea.
Todos acham bellissimo o Orlando furioso, ainda ninguem o achou uno. A
distincção de poema heroico, de poema romance, de Dubois, Fontenelle, e
de Mr. Lemercier nada mais é do que a impotencia absoluta de applicar a
certas producções as regras da antiga poetica.
A Jerusalem libertada é o poema que mais parece ageitar-se aos preceitos
classicos pelo que toca á unidade. Entretanto qual é a acção do poema? A
conquista de Jerusalem: e acaso conduziria o episodio de Olindo e
Sophronia para o seu exito? Certo não. Além d'isso, a acção da Jerusalem
conquistada é a mesma; o poeta mudou varios episodios e ella continuou a
ser a da Jerusalem libertada, apesar de Aristoteles.
Vejamos, segundo o nosso modo de julgar, se uma uma idéa geral e
indeterminada póde estabelecer a unidade na serie de acções, de quadros
e de descripções que constituem estes cinco poemas.
No tempo de Homero a historia grega apresentava só um grande feito, a
conquista e ruina de Troia. Uma grande idéa occupava a mente do poeta e
esta idéa era a gloria da Grecia. Foi, pois, á roda d'ella que Homero
agglomerou as variedades que lhe diziam respeito. Onde existiam ellas?
Unicamente na memoria das batalhas pelejadas juncto aos muros de Troia:
mas uma parte d'essa historia era vergonhosa para os gregos. Ou
admittamos qualquer das opiniões referidas por Herodoto acêrca da queda
d'aquella populosa cidade, ou as narrações de Triphyodoro e do supposto
Dictys, a nodoa de fraqueza, quando não de dolo, sempre parece vir
manchar os gregos. Neste caso o poeta repelliu todo o odioso da historia
e aproveitou ou inventou o que dava um som unisono com a idéa que o
dominava: assim, na Iliada tudo a ella tende; assim, o poema começa
quando a ialta de Achilles deixa fulgir o valor dos outros heroes e
acaba quando a morte de Heitor devia, bem pelo contrario da verdade
historica, fazer caír Troia e dar a victoria aos gregos. Da era a mais
gloriosa da semi-barbara Grecia, foram os successos de poucos dias que
Homero escolheu para objecto de seus cantos; mas estes dias eram os mais
bellos d'aquella epocha memoranda; nelles tiveram logar os mais
brilhantes feitos de guerra tão acintosa, e o poeta ainda os tornou mais
admiraveis com os traços vigorosos do seu pincel divino.
Os caracteres dos heroes da Iliada são todos agigantados e o valor
d'estes rude, como o podia conceber a mente de Homero; mas os valentes
de Troia são sempre homens, em quanto os da Grecia são muitas vezes
semi-deuses. O mesmo Heitor, que hoje (nós pelo menos) achamos a
personagem mais interessante da Iliada, e que parece vir destruir a
opinião de que a unidade exista neste poema por uma idea vaga da gloria
patria, é uma prova do principio que estabelecemos. Para julgar Homero é
preciso collocar-nos no seu tempo e no seu país. O amor paternal e
conjugal por que Heitor nos interessa, não era para os antigos,
sobretudo nos tempos primitivos, o mesmo que para nós. A robustez de
braço e de coração era a principal virtude, e os affectos moraes estavam
apenas esboçados nessas sociedades nascentes. Por isso elle devia
interessar, não despedindo-se de Andromacha, porém combatendo por uma
causa que reputava injusta, mas que se tinha tornado a da patria; não
por suas virtudes domesticas, mas pelas virtudes publicas e por seu
valor quasi egual ao de Achilles.
Foi por causa d'este que Homero desenhou tão amplamente o caracter de
Heitor. Com effeito, aquelle guerreiro que viu fugir ante si Diomedes, o
vencedor de um nume[6], cai vencido e morto aos pés de Achilles. Quanto
este devia parecer grande entre um povo que olhava o valor e a força
como o dote mais digno do homem, e qual seria a ufania e a gloria de um
país cujos filhos assim sobrelevavam os numes.
Alguem crê dever notar o haver-nos Homero pintado Achilles arrastando o
cadaver do seu inimigo á roda dos muros de Troia. Parece-nos tambem
nascer isto de se julgar os antigos por nossas actuaes idéas. Nós vemos
que para a maior parte das virtudes sociaes elles não tinham divindades
particulares; comtudo havia-as para a amizade. Certo é, pois, que esta
nobre paixão tinha preço e valia entre elles. Esqueçamo-nos das virtudes
que devemos unicamente ao Christianismo, constituamo-nos gregos, e
vejamos qual de nós não faria o mesmo no momento da vingança e da
colera. Sómente aquelle desgraçado que não possuisse um amigo.
Se assim examinarmos toda a Iliada, acharemos sempre a idéa de gloria
patria servindo de nó a este admiravel poema que hoje se despreza por
moda, crendo-se que nisso consiste o romantismo. Já lemos numa enfiada
de versos, de que não era possivel ler vinte sem bocejar, que Homero
fazia dormir. Ao menos quem assim calca aos pés o velho trovador da
Grecia não corre o risco de lhe acontecer o caso do soldado liliputiano
que metteu a lança pelo nariz de Gulliver. Homero já não espirra. Que
pensariam taes criticos poetas se lhes dissessemos que a Odyssea, quanto
ás imagens e mesmo ás fórmas, tem muitissimos caracteres proprios da
poesia romantica? Certamente não nos entendiam. Não é em chamar ridiculo
ao que é bello, nem em destemperos que deve consistir a ingenuidade das
modernas opiniões litterarias.[7] Mas passemos a Virgilio.
Foi na epocha d'este que Roma caíu em terra e que Cepias se assentou
sobre a campa da patria. Todos sabem a historia dos feitos romanos e a
gloria que os cerca: mas a gloria acaba onde a escravidão começa. Nesta
transição appareceu Virgilio que, talvez exemplo unico, sabia mendigar
as migalhas de um tyranno e nutrir idéas generosas. As recordações da
republica, as memorias de um povo que já não existia reclamavam as
canções do poeta. Esta idéa o agitava e ella gerou a Eneida. Porém o
cortesão não podia no palacio de Augusto, nos banquetes da prostituição,
ao som dos grilhões de Roma, entoar um hymno em que a lembrança da
liberdade se associaria a quasi todas as imagens, a quasi todos os
sentimentos. Por outro lado a grinalda dos louros romanos partia de uma
caverna de salteadores: nascia de um ponto negro como o em que findava.
Este podia illustrá-lo Virgilio; uma messeniana[8] e um punhal bastavam;
mas elle queria gozos e repouso: Augusto ameigava-o, e o manhoso Mecenas
dava-lhe os meios de satisfazer seus vergonhosos appetites. O mal
denominado epicurismo que dominava na cidade eterna e que tanto
contribuiu para ella deixar de o ser, o fazia olhar a vida feliz como um
bem que se devia conservar mesmo á custa da moralidade. Tudo contribuiu
para envilecer Virgilio, e notemos que até no seu estylo encontramos a
prova disso. Aquelle lavrado, aquelle _molle atque fecetum_ que Horacio
achava em seus versos não sabemos o que tem de analogo ás palavras
suaves e attractivas de um homem abjecto quando a dula o seu patrono.
Porque haverá tantas similhanças entre as pessoas do tempo de Luís XIV
que dava pensões aos poetas, e as do seculo de Augusto que lhes dava
tambem de comer? Porque serão elles nestas duas epochas modelos de
perfeição, pelo que toca ao bem obrado do estylo, sempre em proporção de
seus serviços e da sua frequencia nos passos dos Reis e dos grandes da
terra?
Na impossibilidade de cantar os romanos, quando dignos d'este nome,
sómente restava a Virgilio um meio de satisfazer essa idéa de gloria
patria, d'esse Deus que o agitava, o collocar um monumento espantoso no
berço obscuro da sua nação: elle o fez, e a Eneida foi este monumento.
Não tendo como Homero ao menos um pequeno cabedal de realidade, elle
arrancou da phantasia todo o seu edificio, edificio o mais bem acabado
que neste genero conhecemos. Porém observemos que elle desenhou os
caracteres dos seus heroes mui differentes dos da Iliada. Os d'esta são
rudes mas sublimes, os da Eneida são macios e cuidados, mas geralmente
mesquinhos. No poema grego surgem, interessam individualmente os Aiaces,
Diómedes, Ulysses, Agamemnon e tantos outros; no latino os heroes
secundarios deslizam pelo poema, como as turbas de Roma deslizavam por
uma existencia sem significação debaixo dos pés do Cesar. De todos os
troianos, acabada a leitura da Eneida, apenas nos recordamos do filho de
Anchises: Achates, Gyas, Cloantho sumiram-se como sombras. O mesmo Eneas
tem um certo ar hypocrita que desagrada aos homens singellos e o colloca
a seus olhos bem longe de Achilles. Foi a influencia do seculo quem fez
Virgilio, nesta parte tão inferior a Homero: se o poeta tivesse vivido
no tempo dos velhos romanos, nós não possuiriamos hoje a mais agradavel
porção do 4.^o livro da Eneida. Dido não teria sido seduzida e
abandonada, embora isto contribua, e muito, para satisfazer a idéa
principal do poeta. Uma immoralidade tão vil, o ludibriar a
hospitalidade e a fraqueza só podia caber a um heroe inventado na epocha
dissoluta da queda da republica romana. Afóra isto nós não podemos
deixar de admirar Eneas; e apesar da corrupção do seculo e da propria,
Virgilio soube ainda dar um illustre fundador á sua patria. De todos os
restos de Troia só d'elle precisava o poeta, assim é que só elle
resplandece no meio dos seus troianos, emquanto os guerreiros da
Hesperia, Turno, Pallante, Lauso, Camilla, teem muitas vezes uma côr
homerica. Estes eram filhos da Italia e a Italia era o solo que viu
nascer Virgilio. Quando Voltaire, acabando de ler a Eneida, achou que
Turno interessava mais que Eneas, disse que apesar da falta da unidade
de interesse não ousava reprehender Virgilio. Nem havia de quê: a
unidade de interesse tem tanta validade como a de acção. Qualquer dos
dois que interessasse principalmente, a idéa geral estava preenchida.
Nos bellos dias de gloria de Roma, todos os povos do Lacio estavam
fundidos no romano e as suas recordações nas d'este. Escondesse o filho
de Venus o covil de Romulo com o seu escudo celeste, o fim de sua
existencia estava satisfeito, e o poeta podia na serie das variedades
buscar as que bem lhe parecessem para com ellas tirar um som accorde com
a idéa que o dominava. Segundo nosso modo de pensar em litteratura,
muitos defeitos que teem sido assacados á Eneida não existem nella. Em
nenhuma coisa offendeu Virgilio os principios eternos do bello, senão
quando o seculo com sua peçonha pôde mais do que o genio extraordinario
do poeta. Elle não teria egual se tivesse sido livre.
A ordem das idéas exige que desprezemos a rias datas. Circumstancias ha,
como o leitor verá, que nos obrigam a falar dos Lusiadas em seguimento
aos dois grandes poemas da antiguidade, e a unir as reflexões acerca do
Orlando ás que temos de fazer acêrca da Jerusalem. Os Lusiadas são o
poema onde mais apparece a necessidade de recorrer a uma idéa
independente da acção para achar a imprescriptivel unidade, e o seu
titulo nos revela logo a mente de Camões. Não foi, quanto a nós, o
descobrimento da India que produziu este poema: foi sim a gloria
nacional. Esta idéa bella, pura, immensa, como a alma de Camões, gerou
os Lusiadas. A unidade, que procurada de outro modo nào póde
encontrar-se neste poema, se encontra logo encarando-o por esta maneira.
Era o feito mais espantoso da historia portuguesa que servia de
frontispicio á longa collecção de maravilhas que ella offerecia; foi por
alli pois que rompeu a canção nacional que entoou Camões; mas todas as
recordações de Portugal, mesmo as suas debeis esperanças, estão
consignadas nos Lusiadas. Não é um facto que elle cantou; são mil
factos, mas unidos todos por um ponto, a idéa do renome português.
Camões lançou mão de nossos annaes, rasgou e maldisse suas paginas
negras, e arrojou o resto á eternidade. As differentes feições moraes
traçadas no seu poema teem uma individualidade que não cede, em nossa
opinião, á das personagens da Iliada ou da Jerusalem, mas todas com um
ideal eminente de bello ou de sublime. Poucos sentimentos houve de que o
poeta não revestisse algum de seus compatricios, e se Mr. de
Chateaubriand accusa Tasso de ter esquecido o mais puro de todos elles,
o da maternidade, não poderia dizer o mesmo do nosso Camões, que por
este lado, despindo-nos de qualquer prevenção nacional, não podemos
deixar de chamar divino. Se nisto ninguem o excede, talvez ninguem o
eguale em agglomerar num quadro selvas tão densas e variadas de imagens
e sentimentos. Diz Mr. J.B. Say que a descripção da partida dos
portugueses para o descobrimento da India é mais do que a narração de um
embarque. Nós dizemos que pouco achamos neste genero que assimilhar-lhe.
Chegando a este trecho dos Luziadas, cremos estar vendo ondear na praia
do Restello um tropel immenso de pessoas de todas as condições e edades;
cremos descobrir no gesto, nas expressões de cada uma d'ellas, a
multidão de idéas, de paixões que tal espectaculo devia excitar, e
quando ellas acabam de passar deante de nossos olhos, um velho lá surge
e fluem da sua bocca as palavras da sabedoria. Nós o escutamos: a vida
exterior nos esquece: o ancião nos fez pensar sobre a vaidade de nossas
paixões, sobre o nada de nossas esperanças; e o poeta terminando aqui e
com arte summa um canto do poema, é que nos vem despertar da nossa
meditação, abrindo o seguinte canto com estes versos, que exigem uma
expressão vagarosa, similhante ao modo por que um homem embebido em
reflexões as deixa, e começa a volver os olhos para os objectos que o
rodeiam:
Estas _sentenças_ taes o velho honrado
_Vociferando_ estava, quando abrimos
As azas ao _sereno e sooegado_
Vento, e do porto amado nos partimos.
Tal é sempre um poeta livre, celebrando as memorias de uma nação
illustre. Tal é Camões a quem não pôde envilecer nem a desventura, nem o
ar da côrte de D. João III e de seu illudido e absoluto neto, ar ja
apestado pela escravidão. Assim talvez o unico deleito dos Lusiadas seja
o seu absurdo maravilhoso, que elle deveu ao século, e de que mesmo
poderiamos tirar um argumento a favor da immensidade do genio de Camões,
se o espaço d'este artigo já demasiado longo no-lo permittisse.
A admiração e o respeito que lhe consagramos nos fez desviar um tanto do
nosso objecto: mas seja-nos isto desculpado. Só por Camões nós os
portugueses seriamos grandes. Opprobrio da Europa nos tempos modernos,
era debaixo da sua corôa de louro e das de antiga gloria, que já
começavam a desfolhar-se quando elle a cantou, que nós nos abrigavamos
para ainda entre os estranhos ousar dizer o nome de nossa patria. E esta
com que retribuiu ao poeta? Nem com um amigo. O seu Antonio era filho da
Asia. E em nossos dias levantou-se um verme da terra para insultar sua
memoria. Deshonra eterna áquelle que pretendia despedaçar-nos nosso
ultimo titulo de nobreza, nosso ultimo consolo no meio da infamia e das
desditas!
Ariosto e Tasso não tinham patria, porque é não tê-la o nascer numa
terra de servos. D'este modo as duas idéas que dão unidade a seus poemas
são duas idéas geraes, mas estranhas como taes á Italia,--a cavallaria e
as cruzadas. A segunda parece conter-se na primeira, mas considerada em
si é tão geral e tão indeterminada como ella. O que é a cavallaria? É o
espirito humano modificado de certo modo. O que são as cruzadas? A
resposta do Christianismo á terrivel pergunta que lhe fizera o islamismo
quando os sarracenos invadiram a Italia, a Hespanha e uma parte da
França. Qual de nós dominará a terra? Esta era a pergunta: a resposta
foi o som das armas nos plainos de Ascalon, o estrondo das portas de
Jerusalem estalando aos embates dos arietes de Godofredo. Incerta como a
pergunta do mahometismo foi a replica da cruz. Vagas como o seu
resultado, estas invasões longinquas teem uma certa magnificencia moral,
digamos assim, uma certa demasia de enthusiasmo religioso, de
generosidade e de valor que esses gélidos filhos do seculo XVIII, esses
compiladores e discipulos da Encyclopedia escarneceram, porque eram
incapazes de sentir profundamente o bello e sublime d'esse todo
historico das cruzadas. Foi, pois, a idéa geral de Ariosto uma epocha
brilhante; a de Tasso, a lucta e victoria da cruz contra o crescente. As
variedades relativas á primeira, eram em muitissimo maior numero do que
as relativas á segunda; assim o Orlando é mais variado do que a
Jerusalem. Multiforme, como a vida de um cavalleiro, a idade média se
apresentou a Ariosto ora sublime, ora bella, ora ridicula nas suas
variedades immensas, e se o Orlando tem muitas vezes um caracter de
verdade objectiva, isso, em vez de servir de argumento a favor da
imitação, unicamente prova haver-se muitas vezes quasi realizado o ideal
nesses tempos heróicos das nações modernas[9]. Faltam a Tasso a miudo as
côres locaes, a verdade dos costumes, porque a sua grande idéa tinha um
lado extremamente moral, e nos costumes e no historico das Cruzadas
havia muita cousa em desharmonia com ella. O poeta substituiu tudo isso
por ficções de côres muito mais bellas, e a Jerusalem ficou sendo um
canto admiravel elevado em honra do christianismo e do enthusiasmo dos
baixos tempos.
Tasso respeitava as regras: a Jerusalem _conquistada_ foi o fructo
d'esse respeito. Felizmente a _Libertada_ já era publica: aliás o poeta
perseguido pelos preceitos e pelos pedantes teria destruido a sua obra
prima para nos deixar um poema que ninguem hoje lê. Seria mais um mal
produzido pelo fanatismo litterario; e apesar de Galileo e de Dureau
Delamalle, nós folgamos que tal não acontecesse.[10]
Passámos de leve na applicação de uma parte de nossos principios aos
cinco mais celebres poemas da velha e nova Europa, porque não era
compativel com a brevidade o fazê-lo de outro modo; por essa razão fomos
talvez obscuros. Ser-nos-ha porventura dado algum dia tractar d'esta
materia, fóra de uma folha periodica: então mostraremos que esta nova
theoria não é tão horrivel como agora parecerá a muitos; nem se nos
levará tanto a mal a nossa impiedade litteraria, quando, mais
miudamente, fizermos surgir do cháos da antiga critica suas
contradicções e absurdos.
Mas, pertendendo destruir o systema da eschola classica, não somos nós
romanticos? Alguem nos terá como taes: cumpre por tanto que nos
expliquemos. Na verdadeira accepção do termo elle é o nosso symbolo;
porém este symbolo nada tem em rigor com aquillo acêrca de que havemos
falado. Tractámos das fórmas da poesia. As modernas opiniões dos
verdadeiros romanticos versam sobre a sua essencia. Verdade é que a
theoria do bello, que indicámos apenas, dá a razão da maior parte
d'essas mesmas opiniões, cujo exame nos absteremos de encetar. Diremos
sómente que somos romanticos, querendo que os portugueses voltem a uma
litteratura sua, sem comtudo deixar de admirar os monumentos da grega e
da romana: que amem a patria mesmo em poesia: que aproveitem os nossos
tempos historicos, os quaes o Christianismo com sua doçura, e com seu
enthusiasmo e o caracter generoso e valente desses homens livres do
norte, que esmagaram o vil imperio de Constantino, tornaram mais bellos
que os dos antigos: que desterrem de seus cantos esses numes dos gregos,
agradaveis para elles, mas ridiculos para nós e as mais das vezes
inharmonicos com as nossas idéas moraes: que os substituam por nossa
mythologia nacional na poesia narrativa; e pela religião, pela
philosophia e pela moral na lyrica. Isto queremos nós e neste sentido
somos romanticos; porém naquelle que a esta palavra se tem dado
impropriamente, com o fito de encobrir a falta de genio e de fazer amar
a irreligião, a immoralidade e quanto ha de negro e abjecto no coração
humano, nós declaramos que o não somos, nem esperamos sê-lo nunca. Nossa
theoria fôra a primeira a caír por terra deante da barbaria d'esta seita
miseravel que apenas entre os seus, conta um genio, e foi o que a creou:
genio sem duvida immenso e insondavel, mas similhante aos abysmos dos
mares tempestuosos que saudou em seus hymnos de desesperação: genio que
passou pela terra como um relampago infernal, e cujo fogo mirrou os
campos da poesia e os deixou aridos como o areal do deserto; genio emfim
que não tem com quem comparar-se, que nunca o terá talvez, e que seus
exaggerados admiradores apenas teem pretendido macaquear.
Falamos de Byron. Qual e, com effeito, a idéa dominante nos seus poemas?
Nenhuma ou, o que é o mesmo, um scepticismo absoluto, a negação de todas
Insistimos na differença do bom e do bello, porque o grande nome de
Mendelssohn se colloca naturalmente á frente dos que os declaram
identicos. Esta idéa se encontra já na philosophia néo-platonica e
talvez no Hippias maior do mesmo Platão, de cujas opiniões Mendelssohn
não estava mui longe. O que Mr. de Bonald e Alletz disseram sobre este
ponto funda-se inteiramente naquellas doutrinas.
Porém serão ellas verdadeiras? Nós cremos que não. A perfeição de
qualquer coisa é o complemento de seus fins, e estes devem ser bons,
aliás não se daria aquella. D'isto resulta sempre um interesse, quer no
moral quer no physico, o que suppõe uma existencia real: porém o
sentimento do bello é desinteressado e não carece de ser acompanhado do
de existencia. Os jardins de Alcinoo, a ilha de Venus, não seriam mais
bellos se os cressemos existentes fóra da Odyssea e dos Lusiadas. A
imaginação é quem nos presta a idéa de que resulta o juizo acêrca do
bello: o bom nasce de uma idéa determinada pela razão; porque, para
julgar uma coisa boa e perfeita, é preciso saber para que serve, qual
seu alvo, quaes suas relações: um edificio irregular, mas commodo e
reparado, será bom, porque satisfaz o seu alvo objectivo: a Venus de
Medicis chama-se bella, porque satisfaz, por uma idéa da imaginação, o
jogo das nossas faculdades quando a comparamos com o ideal do bello
humano.
Dissemos que o bello moral é sempre acompanhado do bom. Concordando
nisto com as opiniões actuaes dos litteratos puros, julgamos não ser
preciso prová-lo e portanto nos absteremos d'isso. O pouco que notámos
basta para se ver em que consiste a differença das duas idéas no mundo
da moralidade.
Cremos ter indicado, bem que mui de leve, as difficuldades e por ventura
contradicções que encerra uma poetica respeitada por tantos seculos. Mas
desde Aristoteles estava apontado, e por elle mesmo, o vicio da sua
construcção. Applicando á Iliada os canones que tinha estabelecido e que
julgou ter deduzido d'ella, achou que ás vezes elles falhavam, e viu-se
obrigado a dizer que as regras se podiam pôr de parte quando o bello
assim o exigisse. Não é d'este modo que nós concebemos a poesia. Seus
preceitos devem ser imprescriptiveis sendo deduzidos do bello e de suas
condições. De que modo o nosso criterio póde ser seguro, ter este
caracter de necessidade que a consciencia requer, sendo incertos os seus
meios? O jogo de arguições e replicas que constituem o capitulo 25 da
sua poetica seria digno de um sophista, não do maior philosopho da
antiguidade: ellas fariam luzir um estudante das nossas aulas de
rhetorica em uma sabatina; mas para o estudo da litteratura parece-nos
que de nada servem.
Tendo até aqui procurado derribar, cumpria edificar agora: mas não
escrevendo um livro, nem possuindo para isso o cabedal necessario,
apenas lançaremos os primeiros traços dos (quanto a nós) unicamente
verdadeiros fundamentos de uma poetica razoavel, para estabelecer a
theoria da unidade de um modo mais conforme a razão, e ao mesmo tempo
mais concorde com os grandes monumentos litterarios.
A poesia é a expressão sensivel do bello por meio de uma linguagem
harmoniosa.
O bello é o resultado da relação das nossas faculdades, manifestada como
jogo da sua actividade reciproca.
Esta relação consistirá na comparação da idéa do objecto com uma idéa
geral e indeterminada: a harmonia d'ella resultante produzirá o
sentimento do bello: esta harmonia será sujectiva, residirá em nós; e a
sua existencia _a priori_ necessaria e universal.
Como composta a idéa do objecto leva comsigo a variedade; como geral o
outro termo da comparação é puramente subjectivo e consequentemente uno.
A condição, pois, do bello é a concordancia da variedade da idéa
particular com a unidade geral: condição que é por tanto necessaria em
todos os juizos acêrca do bello.
Mas existindo essa harmonia no jogo das faculdades e requerendo-se para
ella a unidade, esta será subjectivamente absoluta, e tudo o que na idéa
particular do objecto não estiver em relação com ella nunca poderá ser
julgado bello.
Tanto nos basta da longa e difficil theoria do bello e sublime para o
nosso intento. Na sua applicação restringir-nos-hemos aos poemas
narrativos, porque os outros, sobretudo os dramaticos, exigiram um mais
amplo desenvolvimento que não comporta este escripto.
Dos principios que apresentámos e que em parte as antecedentes
observações pediam, se colhe o sempre imprescriptivel canon da unidade,
porém esta collocada mui longe d'onde os antigos a collocavam. É uma
idéa geral e indeterminada que a torna necessaria: a acção não é mais do
que a serie de variedades que devem, digamos assim, dar um som unisono
com a idéa geral e una. Será, pois, em nosso systema o primeiro passo a
dar no exame de qualquer poema o buscar qual foi essa idéa, esse _deus
in nobis_ que constrangeu o poeta a revelar-se ao mundo em cantos
harmoniosos. Nós a buscaremos nos cinco mais celebres poemas da
Europa--_a Iliada_,--_a Eneida_--o _Orlando furioso_--os _Lusiadas_--e a
_Jerusalem libertada_. Se a theoria for verdadeira acharemos essa idéa:
as partes que os constituem serão concordes com ella; aliás estes poemas
cessarão para nós de ser considerados como absolutamente bellos, e
ficaremos persuadidos de que a Europa inteira se enganou tendo-os por
modelos do gosto.
Antes, porém, de tudo convem sujeitá-los a um exame cujo norte seja o
que a antiga poetica exige para julgar similhantes producções. Seremos
severos neste exame, mas limitar-nos-hemos ao mais importante
principio--o da unidade de acção, a que nós temos a infelicidade de não
dar valor algum. Com este nos contentamos, que de outro modo fariamos em
vez de um artigo um volume.
Quem será nosso guia para vêr em que essa unidade consiste? Aristoteles:
ninguem o refusará. Elle é o unico escriptor original sobre taes
materias: os que vieram depois d'elle o copiaram, o commentaram e talvez
demudaram suas idéas. Diz Dacier que todas as poeticas se reduzem á do
Stagyrita, e por outra parte Mr. Lemercier nos assegura ser bastante
para constituir um perfeito critico em poesia o entender bem as poeticas
de Aristoteles, Horacio, Vida e Despreaux. Reunindo, pois, as opiniões
de dois tão illustres litteratos parece-nos que nesse escripto do velho
grego devemos buscar a norma de nossos juizos para avaliar os poetas.
Busquemos lá, com effeito, em que a unidade consiste. Achá-lo-hemos no
capitulo 8. _Serão_, diz elle, _as partes de uma acção de tal geito
ligadas entre si, que tirada ou transposta uma, fique tudo destruido ou
mudado_.
São os episodios que na epopêa constituem essas partes da acção,
rigorosamente falando. Assim o julga Dacier e a Encyclopedia: assim o
cria Voltaire dizendo que os episodios similham aos membros de um corpo
robusto e bem affigurado. Um episodio, pois, que sendo omittido deixa a
acção inteira, inserido nella destruirá a sua unidade. Mas ficará,
porventura, incompleta a acção da Iliada se lhe tirarmos o longo trecho
da descripção das naus gregas e o muito mais longo do funeral de
Patroclo? Cremos que não, e que portanto se, pela poetica de Aristoteles
julgarmos a Iliada, d'ella desapparecerá a unidade.
Diz mais o critico grego, no começo d'este capitulo, que a identidade do
heroe principal nunca estabelecerá a unidade, quando as acções forem
multiplices. Ora, quem é que une a primeira metade da Eneida á
segunda?--Apenas o heroe. Tudo é novo depois da sua chegada á Italia.
Novas são as aventuras, novas são as personagens secundarias. É o mesmo
Virgilio quem nos indica a duplicidade da acção do seu poema. A
exposição da Eneida estava plenamente desenvolvida no fim do sexto
livro, e assim, logo no principio do setimo, elle nos avisa que vai
contar uma nova ordem de coisas[5]. Podemos, pois, affirmar affoitamente
que na Eneida da falta a unidade.
Quanto aos Lusiadas nada é preciso dizer. Salta aos olhos que a historia
dos doze de Inglaterra, o assassinio de D. Ignez, teem tanto com a acção
do descobrimento da India como com a da Odyssea.
Todos acham bellissimo o Orlando furioso, ainda ninguem o achou uno. A
distincção de poema heroico, de poema romance, de Dubois, Fontenelle, e
de Mr. Lemercier nada mais é do que a impotencia absoluta de applicar a
certas producções as regras da antiga poetica.
A Jerusalem libertada é o poema que mais parece ageitar-se aos preceitos
classicos pelo que toca á unidade. Entretanto qual é a acção do poema? A
conquista de Jerusalem: e acaso conduziria o episodio de Olindo e
Sophronia para o seu exito? Certo não. Além d'isso, a acção da Jerusalem
conquistada é a mesma; o poeta mudou varios episodios e ella continuou a
ser a da Jerusalem libertada, apesar de Aristoteles.
Vejamos, segundo o nosso modo de julgar, se uma uma idéa geral e
indeterminada póde estabelecer a unidade na serie de acções, de quadros
e de descripções que constituem estes cinco poemas.
No tempo de Homero a historia grega apresentava só um grande feito, a
conquista e ruina de Troia. Uma grande idéa occupava a mente do poeta e
esta idéa era a gloria da Grecia. Foi, pois, á roda d'ella que Homero
agglomerou as variedades que lhe diziam respeito. Onde existiam ellas?
Unicamente na memoria das batalhas pelejadas juncto aos muros de Troia:
mas uma parte d'essa historia era vergonhosa para os gregos. Ou
admittamos qualquer das opiniões referidas por Herodoto acêrca da queda
d'aquella populosa cidade, ou as narrações de Triphyodoro e do supposto
Dictys, a nodoa de fraqueza, quando não de dolo, sempre parece vir
manchar os gregos. Neste caso o poeta repelliu todo o odioso da historia
e aproveitou ou inventou o que dava um som unisono com a idéa que o
dominava: assim, na Iliada tudo a ella tende; assim, o poema começa
quando a ialta de Achilles deixa fulgir o valor dos outros heroes e
acaba quando a morte de Heitor devia, bem pelo contrario da verdade
historica, fazer caír Troia e dar a victoria aos gregos. Da era a mais
gloriosa da semi-barbara Grecia, foram os successos de poucos dias que
Homero escolheu para objecto de seus cantos; mas estes dias eram os mais
bellos d'aquella epocha memoranda; nelles tiveram logar os mais
brilhantes feitos de guerra tão acintosa, e o poeta ainda os tornou mais
admiraveis com os traços vigorosos do seu pincel divino.
Os caracteres dos heroes da Iliada são todos agigantados e o valor
d'estes rude, como o podia conceber a mente de Homero; mas os valentes
de Troia são sempre homens, em quanto os da Grecia são muitas vezes
semi-deuses. O mesmo Heitor, que hoje (nós pelo menos) achamos a
personagem mais interessante da Iliada, e que parece vir destruir a
opinião de que a unidade exista neste poema por uma idea vaga da gloria
patria, é uma prova do principio que estabelecemos. Para julgar Homero é
preciso collocar-nos no seu tempo e no seu país. O amor paternal e
conjugal por que Heitor nos interessa, não era para os antigos,
sobretudo nos tempos primitivos, o mesmo que para nós. A robustez de
braço e de coração era a principal virtude, e os affectos moraes estavam
apenas esboçados nessas sociedades nascentes. Por isso elle devia
interessar, não despedindo-se de Andromacha, porém combatendo por uma
causa que reputava injusta, mas que se tinha tornado a da patria; não
por suas virtudes domesticas, mas pelas virtudes publicas e por seu
valor quasi egual ao de Achilles.
Foi por causa d'este que Homero desenhou tão amplamente o caracter de
Heitor. Com effeito, aquelle guerreiro que viu fugir ante si Diomedes, o
vencedor de um nume[6], cai vencido e morto aos pés de Achilles. Quanto
este devia parecer grande entre um povo que olhava o valor e a força
como o dote mais digno do homem, e qual seria a ufania e a gloria de um
país cujos filhos assim sobrelevavam os numes.
Alguem crê dever notar o haver-nos Homero pintado Achilles arrastando o
cadaver do seu inimigo á roda dos muros de Troia. Parece-nos tambem
nascer isto de se julgar os antigos por nossas actuaes idéas. Nós vemos
que para a maior parte das virtudes sociaes elles não tinham divindades
particulares; comtudo havia-as para a amizade. Certo é, pois, que esta
nobre paixão tinha preço e valia entre elles. Esqueçamo-nos das virtudes
que devemos unicamente ao Christianismo, constituamo-nos gregos, e
vejamos qual de nós não faria o mesmo no momento da vingança e da
colera. Sómente aquelle desgraçado que não possuisse um amigo.
Se assim examinarmos toda a Iliada, acharemos sempre a idéa de gloria
patria servindo de nó a este admiravel poema que hoje se despreza por
moda, crendo-se que nisso consiste o romantismo. Já lemos numa enfiada
de versos, de que não era possivel ler vinte sem bocejar, que Homero
fazia dormir. Ao menos quem assim calca aos pés o velho trovador da
Grecia não corre o risco de lhe acontecer o caso do soldado liliputiano
que metteu a lança pelo nariz de Gulliver. Homero já não espirra. Que
pensariam taes criticos poetas se lhes dissessemos que a Odyssea, quanto
ás imagens e mesmo ás fórmas, tem muitissimos caracteres proprios da
poesia romantica? Certamente não nos entendiam. Não é em chamar ridiculo
ao que é bello, nem em destemperos que deve consistir a ingenuidade das
modernas opiniões litterarias.[7] Mas passemos a Virgilio.
Foi na epocha d'este que Roma caíu em terra e que Cepias se assentou
sobre a campa da patria. Todos sabem a historia dos feitos romanos e a
gloria que os cerca: mas a gloria acaba onde a escravidão começa. Nesta
transição appareceu Virgilio que, talvez exemplo unico, sabia mendigar
as migalhas de um tyranno e nutrir idéas generosas. As recordações da
republica, as memorias de um povo que já não existia reclamavam as
canções do poeta. Esta idéa o agitava e ella gerou a Eneida. Porém o
cortesão não podia no palacio de Augusto, nos banquetes da prostituição,
ao som dos grilhões de Roma, entoar um hymno em que a lembrança da
liberdade se associaria a quasi todas as imagens, a quasi todos os
sentimentos. Por outro lado a grinalda dos louros romanos partia de uma
caverna de salteadores: nascia de um ponto negro como o em que findava.
Este podia illustrá-lo Virgilio; uma messeniana[8] e um punhal bastavam;
mas elle queria gozos e repouso: Augusto ameigava-o, e o manhoso Mecenas
dava-lhe os meios de satisfazer seus vergonhosos appetites. O mal
denominado epicurismo que dominava na cidade eterna e que tanto
contribuiu para ella deixar de o ser, o fazia olhar a vida feliz como um
bem que se devia conservar mesmo á custa da moralidade. Tudo contribuiu
para envilecer Virgilio, e notemos que até no seu estylo encontramos a
prova disso. Aquelle lavrado, aquelle _molle atque fecetum_ que Horacio
achava em seus versos não sabemos o que tem de analogo ás palavras
suaves e attractivas de um homem abjecto quando a dula o seu patrono.
Porque haverá tantas similhanças entre as pessoas do tempo de Luís XIV
que dava pensões aos poetas, e as do seculo de Augusto que lhes dava
tambem de comer? Porque serão elles nestas duas epochas modelos de
perfeição, pelo que toca ao bem obrado do estylo, sempre em proporção de
seus serviços e da sua frequencia nos passos dos Reis e dos grandes da
terra?
Na impossibilidade de cantar os romanos, quando dignos d'este nome,
sómente restava a Virgilio um meio de satisfazer essa idéa de gloria
patria, d'esse Deus que o agitava, o collocar um monumento espantoso no
berço obscuro da sua nação: elle o fez, e a Eneida foi este monumento.
Não tendo como Homero ao menos um pequeno cabedal de realidade, elle
arrancou da phantasia todo o seu edificio, edificio o mais bem acabado
que neste genero conhecemos. Porém observemos que elle desenhou os
caracteres dos seus heroes mui differentes dos da Iliada. Os d'esta são
rudes mas sublimes, os da Eneida são macios e cuidados, mas geralmente
mesquinhos. No poema grego surgem, interessam individualmente os Aiaces,
Diómedes, Ulysses, Agamemnon e tantos outros; no latino os heroes
secundarios deslizam pelo poema, como as turbas de Roma deslizavam por
uma existencia sem significação debaixo dos pés do Cesar. De todos os
troianos, acabada a leitura da Eneida, apenas nos recordamos do filho de
Anchises: Achates, Gyas, Cloantho sumiram-se como sombras. O mesmo Eneas
tem um certo ar hypocrita que desagrada aos homens singellos e o colloca
a seus olhos bem longe de Achilles. Foi a influencia do seculo quem fez
Virgilio, nesta parte tão inferior a Homero: se o poeta tivesse vivido
no tempo dos velhos romanos, nós não possuiriamos hoje a mais agradavel
porção do 4.^o livro da Eneida. Dido não teria sido seduzida e
abandonada, embora isto contribua, e muito, para satisfazer a idéa
principal do poeta. Uma immoralidade tão vil, o ludibriar a
hospitalidade e a fraqueza só podia caber a um heroe inventado na epocha
dissoluta da queda da republica romana. Afóra isto nós não podemos
deixar de admirar Eneas; e apesar da corrupção do seculo e da propria,
Virgilio soube ainda dar um illustre fundador á sua patria. De todos os
restos de Troia só d'elle precisava o poeta, assim é que só elle
resplandece no meio dos seus troianos, emquanto os guerreiros da
Hesperia, Turno, Pallante, Lauso, Camilla, teem muitas vezes uma côr
homerica. Estes eram filhos da Italia e a Italia era o solo que viu
nascer Virgilio. Quando Voltaire, acabando de ler a Eneida, achou que
Turno interessava mais que Eneas, disse que apesar da falta da unidade
de interesse não ousava reprehender Virgilio. Nem havia de quê: a
unidade de interesse tem tanta validade como a de acção. Qualquer dos
dois que interessasse principalmente, a idéa geral estava preenchida.
Nos bellos dias de gloria de Roma, todos os povos do Lacio estavam
fundidos no romano e as suas recordações nas d'este. Escondesse o filho
de Venus o covil de Romulo com o seu escudo celeste, o fim de sua
existencia estava satisfeito, e o poeta podia na serie das variedades
buscar as que bem lhe parecessem para com ellas tirar um som accorde com
a idéa que o dominava. Segundo nosso modo de pensar em litteratura,
muitos defeitos que teem sido assacados á Eneida não existem nella. Em
nenhuma coisa offendeu Virgilio os principios eternos do bello, senão
quando o seculo com sua peçonha pôde mais do que o genio extraordinario
do poeta. Elle não teria egual se tivesse sido livre.
A ordem das idéas exige que desprezemos a rias datas. Circumstancias ha,
como o leitor verá, que nos obrigam a falar dos Lusiadas em seguimento
aos dois grandes poemas da antiguidade, e a unir as reflexões acerca do
Orlando ás que temos de fazer acêrca da Jerusalem. Os Lusiadas são o
poema onde mais apparece a necessidade de recorrer a uma idéa
independente da acção para achar a imprescriptivel unidade, e o seu
titulo nos revela logo a mente de Camões. Não foi, quanto a nós, o
descobrimento da India que produziu este poema: foi sim a gloria
nacional. Esta idéa bella, pura, immensa, como a alma de Camões, gerou
os Lusiadas. A unidade, que procurada de outro modo nào póde
encontrar-se neste poema, se encontra logo encarando-o por esta maneira.
Era o feito mais espantoso da historia portuguesa que servia de
frontispicio á longa collecção de maravilhas que ella offerecia; foi por
alli pois que rompeu a canção nacional que entoou Camões; mas todas as
recordações de Portugal, mesmo as suas debeis esperanças, estão
consignadas nos Lusiadas. Não é um facto que elle cantou; são mil
factos, mas unidos todos por um ponto, a idéa do renome português.
Camões lançou mão de nossos annaes, rasgou e maldisse suas paginas
negras, e arrojou o resto á eternidade. As differentes feições moraes
traçadas no seu poema teem uma individualidade que não cede, em nossa
opinião, á das personagens da Iliada ou da Jerusalem, mas todas com um
ideal eminente de bello ou de sublime. Poucos sentimentos houve de que o
poeta não revestisse algum de seus compatricios, e se Mr. de
Chateaubriand accusa Tasso de ter esquecido o mais puro de todos elles,
o da maternidade, não poderia dizer o mesmo do nosso Camões, que por
este lado, despindo-nos de qualquer prevenção nacional, não podemos
deixar de chamar divino. Se nisto ninguem o excede, talvez ninguem o
eguale em agglomerar num quadro selvas tão densas e variadas de imagens
e sentimentos. Diz Mr. J.B. Say que a descripção da partida dos
portugueses para o descobrimento da India é mais do que a narração de um
embarque. Nós dizemos que pouco achamos neste genero que assimilhar-lhe.
Chegando a este trecho dos Luziadas, cremos estar vendo ondear na praia
do Restello um tropel immenso de pessoas de todas as condições e edades;
cremos descobrir no gesto, nas expressões de cada uma d'ellas, a
multidão de idéas, de paixões que tal espectaculo devia excitar, e
quando ellas acabam de passar deante de nossos olhos, um velho lá surge
e fluem da sua bocca as palavras da sabedoria. Nós o escutamos: a vida
exterior nos esquece: o ancião nos fez pensar sobre a vaidade de nossas
paixões, sobre o nada de nossas esperanças; e o poeta terminando aqui e
com arte summa um canto do poema, é que nos vem despertar da nossa
meditação, abrindo o seguinte canto com estes versos, que exigem uma
expressão vagarosa, similhante ao modo por que um homem embebido em
reflexões as deixa, e começa a volver os olhos para os objectos que o
rodeiam:
Estas _sentenças_ taes o velho honrado
_Vociferando_ estava, quando abrimos
As azas ao _sereno e sooegado_
Vento, e do porto amado nos partimos.
Tal é sempre um poeta livre, celebrando as memorias de uma nação
illustre. Tal é Camões a quem não pôde envilecer nem a desventura, nem o
ar da côrte de D. João III e de seu illudido e absoluto neto, ar ja
apestado pela escravidão. Assim talvez o unico deleito dos Lusiadas seja
o seu absurdo maravilhoso, que elle deveu ao século, e de que mesmo
poderiamos tirar um argumento a favor da immensidade do genio de Camões,
se o espaço d'este artigo já demasiado longo no-lo permittisse.
A admiração e o respeito que lhe consagramos nos fez desviar um tanto do
nosso objecto: mas seja-nos isto desculpado. Só por Camões nós os
portugueses seriamos grandes. Opprobrio da Europa nos tempos modernos,
era debaixo da sua corôa de louro e das de antiga gloria, que já
começavam a desfolhar-se quando elle a cantou, que nós nos abrigavamos
para ainda entre os estranhos ousar dizer o nome de nossa patria. E esta
com que retribuiu ao poeta? Nem com um amigo. O seu Antonio era filho da
Asia. E em nossos dias levantou-se um verme da terra para insultar sua
memoria. Deshonra eterna áquelle que pretendia despedaçar-nos nosso
ultimo titulo de nobreza, nosso ultimo consolo no meio da infamia e das
desditas!
Ariosto e Tasso não tinham patria, porque é não tê-la o nascer numa
terra de servos. D'este modo as duas idéas que dão unidade a seus poemas
são duas idéas geraes, mas estranhas como taes á Italia,--a cavallaria e
as cruzadas. A segunda parece conter-se na primeira, mas considerada em
si é tão geral e tão indeterminada como ella. O que é a cavallaria? É o
espirito humano modificado de certo modo. O que são as cruzadas? A
resposta do Christianismo á terrivel pergunta que lhe fizera o islamismo
quando os sarracenos invadiram a Italia, a Hespanha e uma parte da
França. Qual de nós dominará a terra? Esta era a pergunta: a resposta
foi o som das armas nos plainos de Ascalon, o estrondo das portas de
Jerusalem estalando aos embates dos arietes de Godofredo. Incerta como a
pergunta do mahometismo foi a replica da cruz. Vagas como o seu
resultado, estas invasões longinquas teem uma certa magnificencia moral,
digamos assim, uma certa demasia de enthusiasmo religioso, de
generosidade e de valor que esses gélidos filhos do seculo XVIII, esses
compiladores e discipulos da Encyclopedia escarneceram, porque eram
incapazes de sentir profundamente o bello e sublime d'esse todo
historico das cruzadas. Foi, pois, a idéa geral de Ariosto uma epocha
brilhante; a de Tasso, a lucta e victoria da cruz contra o crescente. As
variedades relativas á primeira, eram em muitissimo maior numero do que
as relativas á segunda; assim o Orlando é mais variado do que a
Jerusalem. Multiforme, como a vida de um cavalleiro, a idade média se
apresentou a Ariosto ora sublime, ora bella, ora ridicula nas suas
variedades immensas, e se o Orlando tem muitas vezes um caracter de
verdade objectiva, isso, em vez de servir de argumento a favor da
imitação, unicamente prova haver-se muitas vezes quasi realizado o ideal
nesses tempos heróicos das nações modernas[9]. Faltam a Tasso a miudo as
côres locaes, a verdade dos costumes, porque a sua grande idéa tinha um
lado extremamente moral, e nos costumes e no historico das Cruzadas
havia muita cousa em desharmonia com ella. O poeta substituiu tudo isso
por ficções de côres muito mais bellas, e a Jerusalem ficou sendo um
canto admiravel elevado em honra do christianismo e do enthusiasmo dos
baixos tempos.
Tasso respeitava as regras: a Jerusalem _conquistada_ foi o fructo
d'esse respeito. Felizmente a _Libertada_ já era publica: aliás o poeta
perseguido pelos preceitos e pelos pedantes teria destruido a sua obra
prima para nos deixar um poema que ninguem hoje lê. Seria mais um mal
produzido pelo fanatismo litterario; e apesar de Galileo e de Dureau
Delamalle, nós folgamos que tal não acontecesse.[10]
Passámos de leve na applicação de uma parte de nossos principios aos
cinco mais celebres poemas da velha e nova Europa, porque não era
compativel com a brevidade o fazê-lo de outro modo; por essa razão fomos
talvez obscuros. Ser-nos-ha porventura dado algum dia tractar d'esta
materia, fóra de uma folha periodica: então mostraremos que esta nova
theoria não é tão horrivel como agora parecerá a muitos; nem se nos
levará tanto a mal a nossa impiedade litteraria, quando, mais
miudamente, fizermos surgir do cháos da antiga critica suas
contradicções e absurdos.
Mas, pertendendo destruir o systema da eschola classica, não somos nós
romanticos? Alguem nos terá como taes: cumpre por tanto que nos
expliquemos. Na verdadeira accepção do termo elle é o nosso symbolo;
porém este symbolo nada tem em rigor com aquillo acêrca de que havemos
falado. Tractámos das fórmas da poesia. As modernas opiniões dos
verdadeiros romanticos versam sobre a sua essencia. Verdade é que a
theoria do bello, que indicámos apenas, dá a razão da maior parte
d'essas mesmas opiniões, cujo exame nos absteremos de encetar. Diremos
sómente que somos romanticos, querendo que os portugueses voltem a uma
litteratura sua, sem comtudo deixar de admirar os monumentos da grega e
da romana: que amem a patria mesmo em poesia: que aproveitem os nossos
tempos historicos, os quaes o Christianismo com sua doçura, e com seu
enthusiasmo e o caracter generoso e valente desses homens livres do
norte, que esmagaram o vil imperio de Constantino, tornaram mais bellos
que os dos antigos: que desterrem de seus cantos esses numes dos gregos,
agradaveis para elles, mas ridiculos para nós e as mais das vezes
inharmonicos com as nossas idéas moraes: que os substituam por nossa
mythologia nacional na poesia narrativa; e pela religião, pela
philosophia e pela moral na lyrica. Isto queremos nós e neste sentido
somos romanticos; porém naquelle que a esta palavra se tem dado
impropriamente, com o fito de encobrir a falta de genio e de fazer amar
a irreligião, a immoralidade e quanto ha de negro e abjecto no coração
humano, nós declaramos que o não somos, nem esperamos sê-lo nunca. Nossa
theoria fôra a primeira a caír por terra deante da barbaria d'esta seita
miseravel que apenas entre os seus, conta um genio, e foi o que a creou:
genio sem duvida immenso e insondavel, mas similhante aos abysmos dos
mares tempestuosos que saudou em seus hymnos de desesperação: genio que
passou pela terra como um relampago infernal, e cujo fogo mirrou os
campos da poesia e os deixou aridos como o areal do deserto; genio emfim
que não tem com quem comparar-se, que nunca o terá talvez, e que seus
exaggerados admiradores apenas teem pretendido macaquear.
Falamos de Byron. Qual e, com effeito, a idéa dominante nos seus poemas?
Nenhuma ou, o que é o mesmo, um scepticismo absoluto, a negação de todas
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