🕥 37-minuto de lectura

Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 09 - 03

El número total de palabras es 4765
El número total de palabras únicas es 1580
34.3 de palabras están entre las 2000 palabras más comunes
50.1 de palabras están entre las 5000 palabras más comunes
57.3 de palabras están entre las 8000 palabras más comunes
Cada línea representa el porcentaje de palabras por cada 1000 palabras más comunes.
  a humildade evangelica propria de um bom christão como Mr. Laurentie![4]
  Insistimos na differença do bom e do bello, porque o grande nome de
  Mendelssohn se colloca naturalmente á frente dos que os declaram
  identicos. Esta idéa se encontra já na philosophia néo-platonica e
  talvez no Hippias maior do mesmo Platão, de cujas opiniões Mendelssohn
  não estava mui longe. O que Mr. de Bonald e Alletz disseram sobre este
  ponto funda-se inteiramente naquellas doutrinas.
  Porém serão ellas verdadeiras? Nós cremos que não. A perfeição de
  qualquer coisa é o complemento de seus fins, e estes devem ser bons,
  aliás não se daria aquella. D'isto resulta sempre um interesse, quer no
  moral quer no physico, o que suppõe uma existencia real: porém o
  sentimento do bello é desinteressado e não carece de ser acompanhado do
  de existencia. Os jardins de Alcinoo, a ilha de Venus, não seriam mais
  bellos se os cressemos existentes fóra da Odyssea e dos Lusiadas. A
  imaginação é quem nos presta a idéa de que resulta o juizo acêrca do
  bello: o bom nasce de uma idéa determinada pela razão; porque, para
  julgar uma coisa boa e perfeita, é preciso saber para que serve, qual
  seu alvo, quaes suas relações: um edificio irregular, mas commodo e
  reparado, será bom, porque satisfaz o seu alvo objectivo: a Venus de
  Medicis chama-se bella, porque satisfaz, por uma idéa da imaginação, o
  jogo das nossas faculdades quando a comparamos com o ideal do bello
  humano.
  Dissemos que o bello moral é sempre acompanhado do bom. Concordando
  nisto com as opiniões actuaes dos litteratos puros, julgamos não ser
  preciso prová-lo e portanto nos absteremos d'isso. O pouco que notámos
  basta para se ver em que consiste a differença das duas idéas no mundo
  da moralidade.
  Cremos ter indicado, bem que mui de leve, as difficuldades e por ventura
  contradicções que encerra uma poetica respeitada por tantos seculos. Mas
  desde Aristoteles estava apontado, e por elle mesmo, o vicio da sua
  construcção. Applicando á Iliada os canones que tinha estabelecido e que
  julgou ter deduzido d'ella, achou que ás vezes elles falhavam, e viu-se
  obrigado a dizer que as regras se podiam pôr de parte quando o bello
  assim o exigisse. Não é d'este modo que nós concebemos a poesia. Seus
  preceitos devem ser imprescriptiveis sendo deduzidos do bello e de suas
  condições. De que modo o nosso criterio póde ser seguro, ter este
  caracter de necessidade que a consciencia requer, sendo incertos os seus
  meios? O jogo de arguições e replicas que constituem o capitulo 25 da
  sua poetica seria digno de um sophista, não do maior philosopho da
  antiguidade: ellas fariam luzir um estudante das nossas aulas de
  rhetorica em uma sabatina; mas para o estudo da litteratura parece-nos
  que de nada servem.
  Tendo até aqui procurado derribar, cumpria edificar agora: mas não
  escrevendo um livro, nem possuindo para isso o cabedal necessario,
  apenas lançaremos os primeiros traços dos (quanto a nós) unicamente
  verdadeiros fundamentos de uma poetica razoavel, para estabelecer a
  theoria da unidade de um modo mais conforme a razão, e ao mesmo tempo
  mais concorde com os grandes monumentos litterarios.
  A poesia é a expressão sensivel do bello por meio de uma linguagem
  harmoniosa.
  O bello é o resultado da relação das nossas faculdades, manifestada como
  jogo da sua actividade reciproca.
  Esta relação consistirá na comparação da idéa do objecto com uma idéa
  geral e indeterminada: a harmonia d'ella resultante produzirá o
  sentimento do bello: esta harmonia será sujectiva, residirá em nós; e a
  sua existencia _a priori_ necessaria e universal.
  Como composta a idéa do objecto leva comsigo a variedade; como geral o
  outro termo da comparação é puramente subjectivo e consequentemente uno.
  A condição, pois, do bello é a concordancia da variedade da idéa
  particular com a unidade geral: condição que é por tanto necessaria em
  todos os juizos acêrca do bello.
  Mas existindo essa harmonia no jogo das faculdades e requerendo-se para
  ella a unidade, esta será subjectivamente absoluta, e tudo o que na idéa
  particular do objecto não estiver em relação com ella nunca poderá ser
  julgado bello.
  Tanto nos basta da longa e difficil theoria do bello e sublime para o
  nosso intento. Na sua applicação restringir-nos-hemos aos poemas
  narrativos, porque os outros, sobretudo os dramaticos, exigiram um mais
  amplo desenvolvimento que não comporta este escripto.
  Dos principios que apresentámos e que em parte as antecedentes
  observações pediam, se colhe o sempre imprescriptivel canon da unidade,
  porém esta collocada mui longe d'onde os antigos a collocavam. É uma
  idéa geral e indeterminada que a torna necessaria: a acção não é mais do
  que a serie de variedades que devem, digamos assim, dar um som unisono
  com a idéa geral e una. Será, pois, em nosso systema o primeiro passo a
  dar no exame de qualquer poema o buscar qual foi essa idéa, esse _deus
  in nobis_ que constrangeu o poeta a revelar-se ao mundo em cantos
  harmoniosos. Nós a buscaremos nos cinco mais celebres poemas da
  Europa--_a Iliada_,--_a Eneida_--o _Orlando furioso_--os _Lusiadas_--e a
  _Jerusalem libertada_. Se a theoria for verdadeira acharemos essa idéa:
  as partes que os constituem serão concordes com ella; aliás estes poemas
  cessarão para nós de ser considerados como absolutamente bellos, e
  ficaremos persuadidos de que a Europa inteira se enganou tendo-os por
  modelos do gosto.
  Antes, porém, de tudo convem sujeitá-los a um exame cujo norte seja o
  que a antiga poetica exige para julgar similhantes producções. Seremos
  severos neste exame, mas limitar-nos-hemos ao mais importante
  principio--o da unidade de acção, a que nós temos a infelicidade de não
  dar valor algum. Com este nos contentamos, que de outro modo fariamos em
  vez de um artigo um volume.
  Quem será nosso guia para vêr em que essa unidade consiste? Aristoteles:
  ninguem o refusará. Elle é o unico escriptor original sobre taes
  materias: os que vieram depois d'elle o copiaram, o commentaram e talvez
  demudaram suas idéas. Diz Dacier que todas as poeticas se reduzem á do
  Stagyrita, e por outra parte Mr. Lemercier nos assegura ser bastante
  para constituir um perfeito critico em poesia o entender bem as poeticas
  de Aristoteles, Horacio, Vida e Despreaux. Reunindo, pois, as opiniões
  de dois tão illustres litteratos parece-nos que nesse escripto do velho
  grego devemos buscar a norma de nossos juizos para avaliar os poetas.
  Busquemos lá, com effeito, em que a unidade consiste. Achá-lo-hemos no
  capitulo 8. _Serão_, diz elle, _as partes de uma acção de tal geito
  ligadas entre si, que tirada ou transposta uma, fique tudo destruido ou
  mudado_.
  São os episodios que na epopêa constituem essas partes da acção,
  rigorosamente falando. Assim o julga Dacier e a Encyclopedia: assim o
  cria Voltaire dizendo que os episodios similham aos membros de um corpo
  robusto e bem affigurado. Um episodio, pois, que sendo omittido deixa a
  acção inteira, inserido nella destruirá a sua unidade. Mas ficará,
  porventura, incompleta a acção da Iliada se lhe tirarmos o longo trecho
  da descripção das naus gregas e o muito mais longo do funeral de
  Patroclo? Cremos que não, e que portanto se, pela poetica de Aristoteles
  julgarmos a Iliada, d'ella desapparecerá a unidade.
  Diz mais o critico grego, no começo d'este capitulo, que a identidade do
  heroe principal nunca estabelecerá a unidade, quando as acções forem
  multiplices. Ora, quem é que une a primeira metade da Eneida á
  segunda?--Apenas o heroe. Tudo é novo depois da sua chegada á Italia.
  Novas são as aventuras, novas são as personagens secundarias. É o mesmo
  Virgilio quem nos indica a duplicidade da acção do seu poema. A
  exposição da Eneida estava plenamente desenvolvida no fim do sexto
  livro, e assim, logo no principio do setimo, elle nos avisa que vai
  contar uma nova ordem de coisas[5]. Podemos, pois, affirmar affoitamente
  que na Eneida da falta a unidade.
  Quanto aos Lusiadas nada é preciso dizer. Salta aos olhos que a historia
  dos doze de Inglaterra, o assassinio de D. Ignez, teem tanto com a acção
  do descobrimento da India como com a da Odyssea.
  Todos acham bellissimo o Orlando furioso, ainda ninguem o achou uno. A
  distincção de poema heroico, de poema romance, de Dubois, Fontenelle, e
  de Mr. Lemercier nada mais é do que a impotencia absoluta de applicar a
  certas producções as regras da antiga poetica.
  A Jerusalem libertada é o poema que mais parece ageitar-se aos preceitos
  classicos pelo que toca á unidade. Entretanto qual é a acção do poema? A
  conquista de Jerusalem: e acaso conduziria o episodio de Olindo e
  Sophronia para o seu exito? Certo não. Além d'isso, a acção da Jerusalem
  conquistada é a mesma; o poeta mudou varios episodios e ella continuou a
  ser a da Jerusalem libertada, apesar de Aristoteles.
  Vejamos, segundo o nosso modo de julgar, se uma uma idéa geral e
  indeterminada póde estabelecer a unidade na serie de acções, de quadros
  e de descripções que constituem estes cinco poemas.
  No tempo de Homero a historia grega apresentava só um grande feito, a
  conquista e ruina de Troia. Uma grande idéa occupava a mente do poeta e
  esta idéa era a gloria da Grecia. Foi, pois, á roda d'ella que Homero
  agglomerou as variedades que lhe diziam respeito. Onde existiam ellas?
  Unicamente na memoria das batalhas pelejadas juncto aos muros de Troia:
  mas uma parte d'essa historia era vergonhosa para os gregos. Ou
  admittamos qualquer das opiniões referidas por Herodoto acêrca da queda
  d'aquella populosa cidade, ou as narrações de Triphyodoro e do supposto
  Dictys, a nodoa de fraqueza, quando não de dolo, sempre parece vir
  manchar os gregos. Neste caso o poeta repelliu todo o odioso da historia
  e aproveitou ou inventou o que dava um som unisono com a idéa que o
  dominava: assim, na Iliada tudo a ella tende; assim, o poema começa
  quando a ialta de Achilles deixa fulgir o valor dos outros heroes e
  acaba quando a morte de Heitor devia, bem pelo contrario da verdade
  historica, fazer caír Troia e dar a victoria aos gregos. Da era a mais
  gloriosa da semi-barbara Grecia, foram os successos de poucos dias que
  Homero escolheu para objecto de seus cantos; mas estes dias eram os mais
  bellos d'aquella epocha memoranda; nelles tiveram logar os mais
  brilhantes feitos de guerra tão acintosa, e o poeta ainda os tornou mais
  admiraveis com os traços vigorosos do seu pincel divino.
  Os caracteres dos heroes da Iliada são todos agigantados e o valor
  d'estes rude, como o podia conceber a mente de Homero; mas os valentes
  de Troia são sempre homens, em quanto os da Grecia são muitas vezes
  semi-deuses. O mesmo Heitor, que hoje (nós pelo menos) achamos a
  personagem mais interessante da Iliada, e que parece vir destruir a
  opinião de que a unidade exista neste poema por uma idea vaga da gloria
  patria, é uma prova do principio que estabelecemos. Para julgar Homero é
  preciso collocar-nos no seu tempo e no seu país. O amor paternal e
  conjugal por que Heitor nos interessa, não era para os antigos,
  sobretudo nos tempos primitivos, o mesmo que para nós. A robustez de
  braço e de coração era a principal virtude, e os affectos moraes estavam
  apenas esboçados nessas sociedades nascentes. Por isso elle devia
  interessar, não despedindo-se de Andromacha, porém combatendo por uma
  causa que reputava injusta, mas que se tinha tornado a da patria; não
  por suas virtudes domesticas, mas pelas virtudes publicas e por seu
  valor quasi egual ao de Achilles.
  Foi por causa d'este que Homero desenhou tão amplamente o caracter de
  Heitor. Com effeito, aquelle guerreiro que viu fugir ante si Diomedes, o
  vencedor de um nume[6], cai vencido e morto aos pés de Achilles. Quanto
  este devia parecer grande entre um povo que olhava o valor e a força
  como o dote mais digno do homem, e qual seria a ufania e a gloria de um
  país cujos filhos assim sobrelevavam os numes.
  Alguem crê dever notar o haver-nos Homero pintado Achilles arrastando o
  cadaver do seu inimigo á roda dos muros de Troia. Parece-nos tambem
  nascer isto de se julgar os antigos por nossas actuaes idéas. Nós vemos
  que para a maior parte das virtudes sociaes elles não tinham divindades
  particulares; comtudo havia-as para a amizade. Certo é, pois, que esta
  nobre paixão tinha preço e valia entre elles. Esqueçamo-nos das virtudes
  que devemos unicamente ao Christianismo, constituamo-nos gregos, e
  vejamos qual de nós não faria o mesmo no momento da vingança e da
  colera. Sómente aquelle desgraçado que não possuisse um amigo.
  Se assim examinarmos toda a Iliada, acharemos sempre a idéa de gloria
  patria servindo de nó a este admiravel poema que hoje se despreza por
  moda, crendo-se que nisso consiste o romantismo. Já lemos numa enfiada
  de versos, de que não era possivel ler vinte sem bocejar, que Homero
  fazia dormir. Ao menos quem assim calca aos pés o velho trovador da
  Grecia não corre o risco de lhe acontecer o caso do soldado liliputiano
  que metteu a lança pelo nariz de Gulliver. Homero já não espirra. Que
  pensariam taes criticos poetas se lhes dissessemos que a Odyssea, quanto
  ás imagens e mesmo ás fórmas, tem muitissimos caracteres proprios da
  poesia romantica? Certamente não nos entendiam. Não é em chamar ridiculo
  ao que é bello, nem em destemperos que deve consistir a ingenuidade das
  modernas opiniões litterarias.[7] Mas passemos a Virgilio.
  Foi na epocha d'este que Roma caíu em terra e que Cepias se assentou
  sobre a campa da patria. Todos sabem a historia dos feitos romanos e a
  gloria que os cerca: mas a gloria acaba onde a escravidão começa. Nesta
  transição appareceu Virgilio que, talvez exemplo unico, sabia mendigar
  as migalhas de um tyranno e nutrir idéas generosas. As recordações da
  republica, as memorias de um povo que já não existia reclamavam as
  canções do poeta. Esta idéa o agitava e ella gerou a Eneida. Porém o
  cortesão não podia no palacio de Augusto, nos banquetes da prostituição,
  ao som dos grilhões de Roma, entoar um hymno em que a lembrança da
  liberdade se associaria a quasi todas as imagens, a quasi todos os
  sentimentos. Por outro lado a grinalda dos louros romanos partia de uma
  caverna de salteadores: nascia de um ponto negro como o em que findava.
  Este podia illustrá-lo Virgilio; uma messeniana[8] e um punhal bastavam;
  mas elle queria gozos e repouso: Augusto ameigava-o, e o manhoso Mecenas
  dava-lhe os meios de satisfazer seus vergonhosos appetites. O mal
  denominado epicurismo que dominava na cidade eterna e que tanto
  contribuiu para ella deixar de o ser, o fazia olhar a vida feliz como um
  bem que se devia conservar mesmo á custa da moralidade. Tudo contribuiu
  para envilecer Virgilio, e notemos que até no seu estylo encontramos a
  prova disso. Aquelle lavrado, aquelle _molle atque fecetum_ que Horacio
  achava em seus versos não sabemos o que tem de analogo ás palavras
  suaves e attractivas de um homem abjecto quando a dula o seu patrono.
  Porque haverá tantas similhanças entre as pessoas do tempo de Luís XIV
  que dava pensões aos poetas, e as do seculo de Augusto que lhes dava
  tambem de comer? Porque serão elles nestas duas epochas modelos de
  perfeição, pelo que toca ao bem obrado do estylo, sempre em proporção de
  seus serviços e da sua frequencia nos passos dos Reis e dos grandes da
  terra?
  Na impossibilidade de cantar os romanos, quando dignos d'este nome,
  sómente restava a Virgilio um meio de satisfazer essa idéa de gloria
  patria, d'esse Deus que o agitava, o collocar um monumento espantoso no
  berço obscuro da sua nação: elle o fez, e a Eneida foi este monumento.
  Não tendo como Homero ao menos um pequeno cabedal de realidade, elle
  arrancou da phantasia todo o seu edificio, edificio o mais bem acabado
  que neste genero conhecemos. Porém observemos que elle desenhou os
  caracteres dos seus heroes mui differentes dos da Iliada. Os d'esta são
  rudes mas sublimes, os da Eneida são macios e cuidados, mas geralmente
  mesquinhos. No poema grego surgem, interessam individualmente os Aiaces,
  Diómedes, Ulysses, Agamemnon e tantos outros; no latino os heroes
  secundarios deslizam pelo poema, como as turbas de Roma deslizavam por
  uma existencia sem significação debaixo dos pés do Cesar. De todos os
  troianos, acabada a leitura da Eneida, apenas nos recordamos do filho de
  Anchises: Achates, Gyas, Cloantho sumiram-se como sombras. O mesmo Eneas
  tem um certo ar hypocrita que desagrada aos homens singellos e o colloca
  a seus olhos bem longe de Achilles. Foi a influencia do seculo quem fez
  Virgilio, nesta parte tão inferior a Homero: se o poeta tivesse vivido
  no tempo dos velhos romanos, nós não possuiriamos hoje a mais agradavel
  porção do 4.^o livro da Eneida. Dido não teria sido seduzida e
  abandonada, embora isto contribua, e muito, para satisfazer a idéa
  principal do poeta. Uma immoralidade tão vil, o ludibriar a
  hospitalidade e a fraqueza só podia caber a um heroe inventado na epocha
  dissoluta da queda da republica romana. Afóra isto nós não podemos
  deixar de admirar Eneas; e apesar da corrupção do seculo e da propria,
  Virgilio soube ainda dar um illustre fundador á sua patria. De todos os
  restos de Troia só d'elle precisava o poeta, assim é que só elle
  resplandece no meio dos seus troianos, emquanto os guerreiros da
  Hesperia, Turno, Pallante, Lauso, Camilla, teem muitas vezes uma côr
  homerica. Estes eram filhos da Italia e a Italia era o solo que viu
  nascer Virgilio. Quando Voltaire, acabando de ler a Eneida, achou que
  Turno interessava mais que Eneas, disse que apesar da falta da unidade
  de interesse não ousava reprehender Virgilio. Nem havia de quê: a
  unidade de interesse tem tanta validade como a de acção. Qualquer dos
  dois que interessasse principalmente, a idéa geral estava preenchida.
  Nos bellos dias de gloria de Roma, todos os povos do Lacio estavam
  fundidos no romano e as suas recordações nas d'este. Escondesse o filho
  de Venus o covil de Romulo com o seu escudo celeste, o fim de sua
  existencia estava satisfeito, e o poeta podia na serie das variedades
  buscar as que bem lhe parecessem para com ellas tirar um som accorde com
  a idéa que o dominava. Segundo nosso modo de pensar em litteratura,
  muitos defeitos que teem sido assacados á Eneida não existem nella. Em
  nenhuma coisa offendeu Virgilio os principios eternos do bello, senão
  quando o seculo com sua peçonha pôde mais do que o genio extraordinario
  do poeta. Elle não teria egual se tivesse sido livre.
  A ordem das idéas exige que desprezemos a rias datas. Circumstancias ha,
  como o leitor verá, que nos obrigam a falar dos Lusiadas em seguimento
  aos dois grandes poemas da antiguidade, e a unir as reflexões acerca do
  Orlando ás que temos de fazer acêrca da Jerusalem. Os Lusiadas são o
  poema onde mais apparece a necessidade de recorrer a uma idéa
  independente da acção para achar a imprescriptivel unidade, e o seu
  titulo nos revela logo a mente de Camões. Não foi, quanto a nós, o
  descobrimento da India que produziu este poema: foi sim a gloria
  nacional. Esta idéa bella, pura, immensa, como a alma de Camões, gerou
  os Lusiadas. A unidade, que procurada de outro modo nào póde
  encontrar-se neste poema, se encontra logo encarando-o por esta maneira.
  Era o feito mais espantoso da historia portuguesa que servia de
  frontispicio á longa collecção de maravilhas que ella offerecia; foi por
  alli pois que rompeu a canção nacional que entoou Camões; mas todas as
  recordações de Portugal, mesmo as suas debeis esperanças, estão
  consignadas nos Lusiadas. Não é um facto que elle cantou; são mil
  factos, mas unidos todos por um ponto, a idéa do renome português.
  Camões lançou mão de nossos annaes, rasgou e maldisse suas paginas
  negras, e arrojou o resto á eternidade. As differentes feições moraes
  traçadas no seu poema teem uma individualidade que não cede, em nossa
  opinião, á das personagens da Iliada ou da Jerusalem, mas todas com um
  ideal eminente de bello ou de sublime. Poucos sentimentos houve de que o
  poeta não revestisse algum de seus compatricios, e se Mr. de
  Chateaubriand accusa Tasso de ter esquecido o mais puro de todos elles,
  o da maternidade, não poderia dizer o mesmo do nosso Camões, que por
  este lado, despindo-nos de qualquer prevenção nacional, não podemos
  deixar de chamar divino. Se nisto ninguem o excede, talvez ninguem o
  eguale em agglomerar num quadro selvas tão densas e variadas de imagens
  e sentimentos. Diz Mr. J.B. Say que a descripção da partida dos
  portugueses para o descobrimento da India é mais do que a narração de um
  embarque. Nós dizemos que pouco achamos neste genero que assimilhar-lhe.
  Chegando a este trecho dos Luziadas, cremos estar vendo ondear na praia
  do Restello um tropel immenso de pessoas de todas as condições e edades;
  cremos descobrir no gesto, nas expressões de cada uma d'ellas, a
  multidão de idéas, de paixões que tal espectaculo devia excitar, e
  quando ellas acabam de passar deante de nossos olhos, um velho lá surge
  e fluem da sua bocca as palavras da sabedoria. Nós o escutamos: a vida
  exterior nos esquece: o ancião nos fez pensar sobre a vaidade de nossas
  paixões, sobre o nada de nossas esperanças; e o poeta terminando aqui e
  com arte summa um canto do poema, é que nos vem despertar da nossa
  meditação, abrindo o seguinte canto com estes versos, que exigem uma
  expressão vagarosa, similhante ao modo por que um homem embebido em
  reflexões as deixa, e começa a volver os olhos para os objectos que o
  rodeiam:
  Estas _sentenças_ taes o velho honrado
  _Vociferando_ estava, quando abrimos
  As azas ao _sereno e sooegado_
  Vento, e do porto amado nos partimos.
  Tal é sempre um poeta livre, celebrando as memorias de uma nação
  illustre. Tal é Camões a quem não pôde envilecer nem a desventura, nem o
  ar da côrte de D. João III e de seu illudido e absoluto neto, ar ja
  apestado pela escravidão. Assim talvez o unico deleito dos Lusiadas seja
  o seu absurdo maravilhoso, que elle deveu ao século, e de que mesmo
  poderiamos tirar um argumento a favor da immensidade do genio de Camões,
  se o espaço d'este artigo já demasiado longo no-lo permittisse.
  A admiração e o respeito que lhe consagramos nos fez desviar um tanto do
  nosso objecto: mas seja-nos isto desculpado. Só por Camões nós os
  portugueses seriamos grandes. Opprobrio da Europa nos tempos modernos,
  era debaixo da sua corôa de louro e das de antiga gloria, que já
  começavam a desfolhar-se quando elle a cantou, que nós nos abrigavamos
  para ainda entre os estranhos ousar dizer o nome de nossa patria. E esta
  com que retribuiu ao poeta? Nem com um amigo. O seu Antonio era filho da
  Asia. E em nossos dias levantou-se um verme da terra para insultar sua
  memoria. Deshonra eterna áquelle que pretendia despedaçar-nos nosso
  ultimo titulo de nobreza, nosso ultimo consolo no meio da infamia e das
  desditas!
  Ariosto e Tasso não tinham patria, porque é não tê-la o nascer numa
  terra de servos. D'este modo as duas idéas que dão unidade a seus poemas
  são duas idéas geraes, mas estranhas como taes á Italia,--a cavallaria e
  as cruzadas. A segunda parece conter-se na primeira, mas considerada em
  si é tão geral e tão indeterminada como ella. O que é a cavallaria? É o
  espirito humano modificado de certo modo. O que são as cruzadas? A
  resposta do Christianismo á terrivel pergunta que lhe fizera o islamismo
  quando os sarracenos invadiram a Italia, a Hespanha e uma parte da
  França. Qual de nós dominará a terra? Esta era a pergunta: a resposta
  foi o som das armas nos plainos de Ascalon, o estrondo das portas de
  Jerusalem estalando aos embates dos arietes de Godofredo. Incerta como a
  pergunta do mahometismo foi a replica da cruz. Vagas como o seu
  resultado, estas invasões longinquas teem uma certa magnificencia moral,
  digamos assim, uma certa demasia de enthusiasmo religioso, de
  generosidade e de valor que esses gélidos filhos do seculo XVIII, esses
  compiladores e discipulos da Encyclopedia escarneceram, porque eram
  incapazes de sentir profundamente o bello e sublime d'esse todo
  historico das cruzadas. Foi, pois, a idéa geral de Ariosto uma epocha
  brilhante; a de Tasso, a lucta e victoria da cruz contra o crescente. As
  variedades relativas á primeira, eram em muitissimo maior numero do que
  as relativas á segunda; assim o Orlando é mais variado do que a
  Jerusalem. Multiforme, como a vida de um cavalleiro, a idade média se
  apresentou a Ariosto ora sublime, ora bella, ora ridicula nas suas
  variedades immensas, e se o Orlando tem muitas vezes um caracter de
  verdade objectiva, isso, em vez de servir de argumento a favor da
  imitação, unicamente prova haver-se muitas vezes quasi realizado o ideal
  nesses tempos heróicos das nações modernas[9]. Faltam a Tasso a miudo as
  côres locaes, a verdade dos costumes, porque a sua grande idéa tinha um
  lado extremamente moral, e nos costumes e no historico das Cruzadas
  havia muita cousa em desharmonia com ella. O poeta substituiu tudo isso
  por ficções de côres muito mais bellas, e a Jerusalem ficou sendo um
  canto admiravel elevado em honra do christianismo e do enthusiasmo dos
  baixos tempos.
  Tasso respeitava as regras: a Jerusalem _conquistada_ foi o fructo
  d'esse respeito. Felizmente a _Libertada_ já era publica: aliás o poeta
  perseguido pelos preceitos e pelos pedantes teria destruido a sua obra
  prima para nos deixar um poema que ninguem hoje lê. Seria mais um mal
  produzido pelo fanatismo litterario; e apesar de Galileo e de Dureau
  Delamalle, nós folgamos que tal não acontecesse.[10]
  Passámos de leve na applicação de uma parte de nossos principios aos
  cinco mais celebres poemas da velha e nova Europa, porque não era
  compativel com a brevidade o fazê-lo de outro modo; por essa razão fomos
  talvez obscuros. Ser-nos-ha porventura dado algum dia tractar d'esta
  materia, fóra de uma folha periodica: então mostraremos que esta nova
  theoria não é tão horrivel como agora parecerá a muitos; nem se nos
  levará tanto a mal a nossa impiedade litteraria, quando, mais
  miudamente, fizermos surgir do cháos da antiga critica suas
  contradicções e absurdos.
  Mas, pertendendo destruir o systema da eschola classica, não somos nós
  romanticos? Alguem nos terá como taes: cumpre por tanto que nos
  expliquemos. Na verdadeira accepção do termo elle é o nosso symbolo;
  porém este symbolo nada tem em rigor com aquillo acêrca de que havemos
  falado. Tractámos das fórmas da poesia. As modernas opiniões dos
  verdadeiros romanticos versam sobre a sua essencia. Verdade é que a
  theoria do bello, que indicámos apenas, dá a razão da maior parte
  d'essas mesmas opiniões, cujo exame nos absteremos de encetar. Diremos
  sómente que somos romanticos, querendo que os portugueses voltem a uma
  litteratura sua, sem comtudo deixar de admirar os monumentos da grega e
  da romana: que amem a patria mesmo em poesia: que aproveitem os nossos
  tempos historicos, os quaes o Christianismo com sua doçura, e com seu
  enthusiasmo e o caracter generoso e valente desses homens livres do
  norte, que esmagaram o vil imperio de Constantino, tornaram mais bellos
  que os dos antigos: que desterrem de seus cantos esses numes dos gregos,
  agradaveis para elles, mas ridiculos para nós e as mais das vezes
  inharmonicos com as nossas idéas moraes: que os substituam por nossa
  mythologia nacional na poesia narrativa; e pela religião, pela
  philosophia e pela moral na lyrica. Isto queremos nós e neste sentido
  somos romanticos; porém naquelle que a esta palavra se tem dado
  impropriamente, com o fito de encobrir a falta de genio e de fazer amar
  a irreligião, a immoralidade e quanto ha de negro e abjecto no coração
  humano, nós declaramos que o não somos, nem esperamos sê-lo nunca. Nossa
  theoria fôra a primeira a caír por terra deante da barbaria d'esta seita
  miseravel que apenas entre os seus, conta um genio, e foi o que a creou:
  genio sem duvida immenso e insondavel, mas similhante aos abysmos dos
  mares tempestuosos que saudou em seus hymnos de desesperação: genio que
  passou pela terra como um relampago infernal, e cujo fogo mirrou os
  campos da poesia e os deixou aridos como o areal do deserto; genio emfim
  que não tem com quem comparar-se, que nunca o terá talvez, e que seus
  exaggerados admiradores apenas teem pretendido macaquear.
  Falamos de Byron. Qual e, com effeito, a idéa dominante nos seus poemas?
  Nenhuma ou, o que é o mesmo, um scepticismo absoluto, a negação de todas
  
Has leído el texto 1 de Portugués literatura.