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Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº 05 (de 12) - 4
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incendio. A França lá sabe o que deve aos discipulos de Salvador e de
Strauss, e nomeadamente a Renan, o compilador de Reville, de Reuss, de
Schérer e Colani. Se alguns homens illustrados pela experiencia e
receosos das fatalidades congeneres de certos livros, reprovaram que
Renan recebesse publicamente em Portugal a consideração que o snr.
Soromenho lhe faculta por sympathicas affinidades phoneticas, o que
temos a recear d'ahi é o espectaculo das vaias e satyras com que alguns
escriptores estão provando que entre nós é mais urgente um compendio de
civilidade que a convivencia academica do sabedor de linguas do Oriente.
CORRECÇÕES
Convém fazer algumas ao artigo _O Decepado_ (n.º 4, pag. 71).
Ministrou-m'as o snr. J. F. Torres; e eu, trasladando-as, ajunto á
gratidão o contentamento de encontrar quem ainda se entretem com cousas
tão remotas e alheias das _novissimas_ charadas, das _capitações_, do
_don-juanismo_ e dos bancos.
Transcrevo a carta do cavalheiro, que não tenho o prazer de conhecer; e,
se não illido as palavras que encarecem os meus estudos, é porque o
appellido que a subscreve ainda não exercita alçada litteraria que
levante turbilhões de gloriosa poeira á volta do meu carro triumphal.
Eis a carta do snr. J. F. Torres:
.........................................................................
«Deliciei-me com a leitura das veridicas noticias historicas do meu
conterraneo Duarte d'Almeida, _o Decepado_. Ora, v. incansavel em
revolver e pesquizar tudo quanto possa esclarecel-o em tão gloriosa e
ardua tarefa, não levará a mal, e relevará a um ignorante o arrojo de
lembrar a v. umas insignificantes correcções, que em nada alteram a
verdade do facto, nem desdizem do eminente grau litterario de seu
author.
«Não existe (se é que existia) casa nenhuma acastellada no lugar de
Villarigas (hoje por corrupção Vilharigues) no concelho de Vouzella[4];
mas sim um castello ou cubello quadrado e muito alto, em parte mandado
demolir pelo fallecido procurador da casa Penalva, Martinho do Banho,
para com a pedra mandar fazer escadas e outras toscas obras que conduzem
á capellinha de Santo Amaro, pertenças da mesma casa Penalva. Existe
outro igual monumento no lugar de Bandavizes, freguezia de Fataunços.
«A casa da cavallaria sita na villa de Vouzella, e que em tempo devia
ter sido uma vivenda ostentosa, como se vê do que ainda hoje existe,
pertence actualmente por emprazamento a João Corrêa d'Oliveira.
«A capella da casa é hoje adega, palheiro ou cousa semelhante; e nada
alli existe que faça lembrado o nosso celeberrimo S. fr. Gil[5]. Ha
porém na villa uma elegante capella do santo, onde se celebra missa
todas as segundas feiras; e onde se conserva a pia em que se baptisou o
santo; e bem assim o queixo inferior do mesmo, reliquia muito venerada
pelos habitantes da villa. O corpo, como v. sabe, jaz enterrado em S.
Francisco de Santarem.»
Outra correcção a respeito do prestidigitador Herrmann, mencionado como
fallecido, ha dous annos, no artigo intitulado: _A exc.^ma madrasta
d'el-rei D. Luiz I calumniada_.
O snr. Comparse Herrmann está vivo em Vienna d'Austria, e é banqueiro
opulento. Quando se retirou rico do theatro, declarou elle aos seus
admiradores que morrera na rampa e ia resuscitar na barra, a mais
eloquente de quantas conversaram com o genero humanal depois da outra
biblica.
João de Deus, o excellente poeta, cantava d'est'arte, ha 15 annos, em
Coimbra o dadivoso prestigiador:
Herrmann! Herrmann! espantas-me! Não scismo
Nos prodigios da milagrosa vara
Que o Senhor Deus te deu:
Teu coração, Moysés do christianismo,
Tua alma é que eu admiro, e te invejára,
Se o que é teu fosse teu.
Tanto era d'elle o que era d'elle que está banqueiro; e João de Deus,
que tem o condão prodigioso de abrir fontes de lagrimas, e não invejava
a varinha que tirava de uma manga da casaca trezentas jardas de fita,
ainda não é banqueiro, segundo me consta.
Pois tambem Herrmann era poeta, e, se é licito acredital-o, tinha
talento. Elle o disse aos academicos n'estas quadras que, entre outras,
sobrevivem ao prestigiador, na pag. 295 do tom. VIII do _Instituto_:
Le coeur est ulcêré, quand pour prix d'un bienfait
On s'apperçoit alors des ingrats qu'on a fait.
Et pourtant chaque jour j'adresse à l'Eternel
Une promesse sainte, dans un voex solennel!
Si, par lui, mon talent me donne la richesse,
J'ai ma mission aussi, soulager la détresse,
Grâce à vous, tout s'eclaire, un instant a suffi,
Pour ramener enfin le calme en mon esprit.
N'este poema queixava-se o gentil allemão das suas illusões perdidas, da
sua infinda tristeza, e das angustias de coração com que entrára
n'aquelle recinto da _charmante jeunesse_. Queixava-se outro sim, de
ingratidões que lhe ulceravam o peito. Era um romance de amores começado
no Porto, romance que bifurcou em dous fios de ouro: um foi prender-se á
orla de um throno não sei aonde, outro á carteira de uma casa bancaria
em Vienna d'Austria. Brilhantes desenlaces!
E foram os rapazes de Coimbra--aquelles viventissimos rapazes de 1859,
Corvo, Vieira de Castro, João de Deus, Northon, Victorino da Motta, e
dezenas de galhardos espiritos que lhe degelaram as Maldades do coração
retranzido. _Gloire à vous!_ exclamava Herrmann.
[4] Existia no seculo XVII, segundo m'o affirma um escripto
nobiliario de testemunha coeva e ocular.
[5] Em 1780 ainda se via n'esta casa a capella, no local onde
nascera S. fr. Gil.
MAU EXEMPLO DE POETAS CASADOS
... Une femme prudente y doit regarder à deux fois avant d'épouser
un poete!
J. JANIN, _Le livre_.
Se o fino amor não é condão dos poetas, é escusado esgaravatar essa rara
perola em outra concha. O amor duradouro é incompativel com a creatura
sujeita á decomposição e á morte. As recomposições interiores são
incessantes, até ao momento em que o espirito vital se evóla, e a
podridão começa.
As reformações da alma operam-se mais de afogadilho que as do corpo.
Envelhecem almas em corpos novos. Muita gente sente o graváme e a
melancolia da idade de ferro nos annos dourados. Ha tambem o reverso
d'isto. Almas floridas em corpos devastados. Os primeiros tem auréola de
poesia lugubre. Os segundos são lastimaveis quando, em honra de suas
cãs, arrancam um a um os renovos da alma, ou os vão delindo com secretas
lagrimas; e são irrisorios, quando aviltam a magestade da velhice, dando
resplendor á calva com um nimbo de namorados.
Foi d'esta especie D. Thomaz de Noronha, cognominado, no seculo XVII,
_Marcial portuguez_. Amou numerosas primas, e casou com uma, de quem
ficou viuvo. Deus sabe como o coração de sua esposa Helena de Salazar
foi anavalhado de ciumes para a cova! O perfido, em quanto se andava
pela côrte diluindo em trovas a fé conjugal, deixava em Alemquer a
consorte, cuidando dos trigaes e dos parrécos.
Casou em segundas nupcias com D. Catharina da Veiga, tanto ou mais
desafortunada que a primeira. Pensava ella, porém, que o marido, ahi
pelos cincoenta, ganharia juizo, e se faria serio, acolhendo-se ao
santuario da familia com a lyra e com o rheumatismo.
Enganára-se D. Catharina, a infausta esposa, que, por lhe agradar, se
bezuntava de posturas, e arrebicava de inuteis artificios. Santa
senhora!
O dissoluto não só a trahia, senão que a zombeteava em verso, depois de
a ter mofado na prosa caseira--a prosa de marido enfastiado, que é o
vasconso mais barbaro da glottica humana.
Aqui está um dos cantares com que o sobredito _Marcial_
desprimorosamente chasqueava as caricias, os vernizes, as tranças
retintas, os algodões que lhe acolchoavam o seio, e arqueavam as ancas
da esposa, em fim, tudo aquillo que a paixão engenhosa inventára, á
custa de inexprimiveis magoas e dolorosos retrocessos nos vestigios da
belleza perdida. E observem que o cruel a denomina _Sara_, equiparando-a
á velha da Biblia. Lêde, senhoras, que hospedaes poetas no coração:
Escuta, ó Sara! Pois te falta espelho
para vêr tuas faltas,
não quero que te falte meu conselho
em presumpções tão altas.
Lembre-te agora só que és terra e lôdo
e terra te has-de vêr do mesmo modo;
mas não te digo nem te lembro nada
porque ha muito que em terra estás tornada.
Que importa que, alguma hora, a prata pura
de tuas mãos nascesse,
e que de teus cabellos a espessura
as minas de ouro désse!
Se o tempo vil, que tudo troca e muda,
sómente do ouro poz, por mais ajuda,
em tuas mãos de prata o amarello,
e a prata, de tuas mãos em teu cabello!
se um tempo, foram de marfim brunido
no seculo dourado,
não vês que o tempo as tem já consumido,
não vês que as tem gastado?
Deixa, Sara, deixa esses vãos enredos;
que eu, quando toco teus nodosos dedos,
me parece que apalpo, e não me engano,
cinco cordões de frade franciscano.
Viciando a natureza com taes tintas,
com pinceis delicados,
jasmins e rosas em teu rosto pintas.
Deixa esses vãos cuidados;
pois quando tua cara me alvorota,
mascara me parece de chacota;
e, se é das tintas, digo n'este passo
que a mascara está inda em calhamaço.
Como pretendes, pois, com mil enganos,
vestir mil primaveras
sem ter a primavera de teus annos!
Como não desesperas!
que o tempo chegou já ao seu estio,
aonde toda a fruta perde o brio;
parecendo tua cara desmedrada
fruta que se seccou, noz arrugada.
Se feitura de Deus Eva não fôra,
dissera, sem porfias,
que de Eva foste mãi, velha senhora,
pois te sobejam dias
para esta presumpção que agora tenho;
e, concluindo em fim, a alcançar venho,
pois alcançar não posso tua idade,
que deves ser a mãi da Eternidade.
Teus olhos, por descargo da consciencia,
a idade os tem mettidos
em duas lapas, fazendo penitencia;
e estão tão escondidos,
que, quando os vou buscar porque me choram,
não acerto co' bêco aonde moram;
porque o tempo os mudou, seu passo a passo,
da flor do rosto lá para o cachaço[6].
............................................
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Em fim, senhora, se te vejo em osso,
com essa cara posta em tal pescoço,
me parece, tirada a cabelleira,
em cima de um bordão uma caveira.
.............................................
Sabe que sei, e d'isto me não gabo,
que te alugou sem duvida o diabo,
invejando teu corpo, cara e dedos
para a Santo Antão fazer maiores medos[7]
E deixa, em fim, tanto vão cuidado;
e ao sagrado te acolhe
primeiro que te ponham em sagrado.
Este conselho colhe;
admitte o que te digo sem desgosto;
que eu, quando vejo teu funesto rosto,
d'elle tambem o seu conselho tomo,
pois cuido que me diz: _Memento, homo!_
Esta poesia ou outra peor tesourou os ligamentos da vida de D.
Catharina, abrindo-lhe as portas do paraiso. Elle, o viuvo consolavel e
impenitente, por aqui ficou até aos oitenta ou mais, deshonrando a idade
provecta com poemas sordidos, e taes que os prelos não os despejaram á
circulação dos enxurros. Sem embargo, Jacintho Cordeiro, no _Elogio de
poetas lusitanos_, conceitua n'esta altura o descaroado marido:
D. Thomaz de Noronha em tanto augmento
Confirma de sus versos la escellencia
Que admirando sutil su entendimiento
Puede hazerle a Quevedo conpetencia:
Alma de tan ayroso movimiento,
Luz parece de sol de su presencia
Y sol a cuya luz crecen desmayos,
Aguila no soy yo de tantos rayos...
Que te fulminem, Jacintho!--diria um leitor circumspecto. Achou-lhe
airoso movimento na alma, assim como nós, os filhos d'este seculo cortez
e cavalheiroso, lhe achariamos na arca do peito as vertigens ebrias d'um
trovista de tasca.
A poesia, que um sorriso meigo de mulher agradeceu, logrou a sua nobre
missão: divinisou-se. Essa outra cousa, que se chama poesia, porque
metrifica a injuria ou o chasco vil á mulher, é a hydrophobia do
talento, é enfermidade repugnante.
[6] Segue uma estrophe cuja nudeza, posto que não envergonhe o
realismo hodierno, nos pareceu propriedade dos livros escriptos
para _homens_, cuja deshonestidade os authores lisonjeam com as
dedicatorias dos seus romances.
[7] _Metter medo aos medos de Santo Antão_, era adagio do tempo,
que teve a seguinte origem: No terceiro domingo de agosto de 1577
sahiu uma procissão da antiga parochia de S. Julião. Entre varias
figuras e carros triumphaes ia um homem representando Santo Antão
no deserto, e á volta d'elle varios demonios com feitio de monos o
aterravam com caretas e tregeitos medonhos.
A CASA DE BRAGANÇA «AB OVO»
D. Gonçalo Pereira, trigesimo-quarto arcebispo de Braga, quando estudava
as santas theologias em Salamanca, achou compativel a sciencia de Deus
com as curiosidades philoginias, gregamente faltando.
D'esta compatibilidade, em que foi parte integrante e constituinte,
chimicamente fallando, D. Thereza Peres Villarinho, resultou nascer um
menino robusto, como os recem-nascidos do _high-life_, o qual se chamou
Antoninho.
Este D. Antonio Gonçalves Pereira ordenou-se, foi prior do Crato, e pai
de 32 filhos, compativeis com o priorado. Uma das mães d'este rapazio
todo chamou-se Eyria de Carvalhal, e das predestinadas entranhas d'esta
menina apojou D. Nuno Alvares Pereira, pai da primeira duqueza de
Bragança, casada com o bastardo de D. João I.
D'esta estirpe, bastantemente gafa de couto-damnado e bastardias, nos
veio a redempção em 1640.
Bemditos e louvados sejam aquelles padres arcebispos e priores! Se elles
fossem castos ou infecundos, não teriamos Braganças, e gemeriamos ainda
hoje captivos de Hespanha.
O arcebispo descança ha 526 annos, em uma capella contigua á porta
travessa da sé de Braga. La lhe vi, um d'estes dias, a figura esculpida
no mausoléo. Portuguez de lei era aquelle padre, posto que se
apaixonasse por hespanholas. O coração não tem _ubi_. O escolar de
Salamanca lêra talvez o philosopho grego que dissera serem todas as
mulheres uma. Se a natureza as não discriminára, como estremal-as por
fronteiras?
Mas tão portuguez era que articulou em seu testamento que, se um dia a
mitra primacial cingisse a fronte de prelado castelhano, fosse arrazada
sobre suas cinzas a capella em que ia esperar o clangor da trombeta!
Ainda não vi impressa a noticia do desastre extraordinario que motivou a
morte do D. Gonçalo. Nem D. Rodrigo da Cunha nem o padre José Corrêa,
biographos dos arcebispos bracharenses, a souberam ou quizeram divulgar.
Parece-me, todavia, que o primeiro, tanto por haver sido prelado como
por genio investigador de antiguidade, não ignoraria o que era constante
de um processo existente no archivo da mitra.
Eis o caso:
Em 1347 foi D. Gonçalo visitar a provincia transmontana. Chegando a
Villa-Flôr com grande sequito, travaram-se alli os seus criados com os
moradores da terra, e de ambas as partes belligerantes morreram quatro
homens e sahiram doze mal-feridos. Tangeram os sinos a rebate.
Levantou-se a povoação armada. Cercaram a residencia do arcebispo,
mataram-lhe seis homens, e matariam o proprio prelado, se não fugisse,
pendurando-se de uma corda, que lhe não evitou cahir de costas no
terreiro e contundir-se gravemente. Não contentes os de Villa-Flôr com a
fuga do seu arcebispo, tomaram-lhe as mulas, de envolta com parte dos
capellães e seis criados. Protegido por atalhos, o contuso prelado
chegou a Carrazeda de Anciães, povoação importante n'aquelle tempo,
fortificou-se no castello, fez lavrar instrumento publico, e enviou-o a
D. Affonso IV.
O rei, poucos dias depois, mandou a Villa-Flôr uma alçada com dois
algozes bem escoltados, e fez enforcar os sacrilegos que pôde colher na
devassa. Esta vingança nem por isso alliviou os incommodos do arcebispo
descadeirado na queda. Transferido a Braga, deitou-se para nunca mais se
erguer. Quatro mezes depois adormeceu no Senhor.
E assim morreu, por effeito de tão miserrimo lance, aquelle valente do
Salado, que deu o exemplo da bravura e legou a espada ao seu quarto
successor D. Lourenço, o raio de Aljubarrota. Fôra elle o defensor da
cidade do Porto, quando o enfurecido amante de Ignez levava na sua
vanguarda o incendio e a devastação. Fôra elle ainda quem acaudilhára a
hoste de portuguezes, quando uma invasão de hespanhoes, em desapoderada
fuga, deixou o sangue de trezentas vidas nas lanças dos alabardeiros do
arcebispo.
Santo Deus! um heroe d'esta polpa chega a Villa-Flôr, amotina-se a
arraia-miuda, foge de escorregão por uma corda, cahe de cangalhas,
amolga o osso sacro, e morre! Mas em fim, maior seria a desgraça de
Portugal se elle, antes de lesar as vertebras lombares e regiões
visinhas, nos não tivesse deixado os embryões da casa de Bragança na
pessoa de seu filho prior!
UM INQUISIDOR PORTUGUEZ E O PRINCIPE DE GALES
O filho de Jayme I de Inglaterra veio a Madrid, em 1610, para vêr de
perto a princeza Anna, filha de Philippe III, uma das mais formosas
mulheres d'aquella época. D. Fernão Martins Mascarenhas, inquisidor
geral de Portugal, e residente em Lisboa, assim que soube da chegada do
heretico neto de Maria Stuart, escreveu-lhe com a santa presumpção de o
reduzir á fé catholica. O principe, todo embebecido nas magias da filha
de Philippe III, guardou a carta para mais tarde resolver esse negocio
que se lhe figurou de importancia subalterna. A opinião de alguns
historiadores, porém, é que a Inglaterra voltaria ao redil da igreja
romana, não tanto pela influencia theologica da carta, como pelos
filtros amorosos da princeza Anna. O principe de Gales pediu-a para
esposa; e, quando em Londres se preparavam os festejos do noivado,
morreu o noivo em 1612.
A carta do inquisidor bispo do Algarve é inedita. A este prelado devemos
a impagavel fineza de expurgar das livrarias de nossos avós todos os
livros gafados de heresias. Se não fosse elle, é muito de recear que em
Portugal se lêssem então os livros que no seculo XVII propulsaram as
sciencias na França e Allemanha: o que seria uma calamidade. Eis a carta
do santo varão:
«A vinda de V. A. a esta côrte foi de tanta alegria para todos os que
nascemos em Hespanha, que ainda aquelles que estamos mais distantes da
sua presença, temos obrigação de fazer demonstração publica, assim em
dar graças a Deus por esta mercê, como em significar a V. A. o animo, e
a vontade com que festejamos a honra que todos alcançamos por esta
causa.
«O que todos agora desejamos, e pedimos a Deus com continuas orações,
para melhor servirmos a V. A. n'aquillo que mais lhe importa, é que
queira V. A. ouvir e entender a razão do que por cá acha, e é
professarmos a fé, e a religião que professa, e ensina a igreja
catholica romana, verdadeiramente apostolica; porque o animo com que
desejamos paz perpetua entre as corôas de Hespanha e Inglaterra, nos
obriga a procurar a conformidade na religião entre os principes dellas,
pois, como diz Santo Agostinho, não póde haver verdadeira concordia
aonde os entendimentos estão desunidos na terra.
«Muitas razões se podiam allegar para V. A. se dispôr a fazer este
serviço a Deus, e mercê a toda a Hespanha, porque os livros estão cheios
d'estas materias, mas tres são só as que lembro a V. A. para satisfazer
a obrigação que tenho n'este reino de Portugal.
«A primeira é considerar V. A. que isto que nós professamos em Hespanha,
acerca da obediencia á sé apostolica-romana, professaram, sem nenhuma
interrupção, os serenissimos reis de Inglaterra por mil annos, desde o
tempo de S. Gregorio Magno pontifice, e Mauricio imperador, até o de
Henrique VIII de Inglaterra, que por seus respeitos fez mudança na
religião; porque como nunca se havia preferir o parecer dos que querem
innovar cousas ao juizo d'aquelles que dellas perseveraram por tantos
annos, bem se vê, a prudencia natural está pedindo que se repare muito
n'esta variedade que se introduziu em Inglaterra nos derradeiros annos.
E é muito para vêr a fórma em que escreveu Eduardo, rei de Inglaterra,
ao papa Alexandre III, porque ambos estão condemnando o que agora se
segue no mesmo reino com palavras tão claras que não soffrem
interpretação alguma.
«A segunda razão é porque todos os reis de Inglaterra que antes de
Henrique VIII tiveram o sceptro d'aquelle illustre reino depois de
Alberto, fundaram a sua jurisdicção na obediencia á igreja romana, em
que presidem os verdadeiros successores de S. Pedro, principe dos
apostolos, e vigario universal de Christo na terra, até Ina e Ataulfo
fazerem o proprio reino tributario da sé apostolica, e este tributo
durou por novecentos annos. E ainda que alguns reis de Inglaterra houve
que em cousas e casos particulares guardaram menos respeito do que
deviam aos pontifices romanos, nunca lhes negaram o serem cabeças da
igreja catholica, e sempre depois vieram a fazer penitencia de seus
erros, como consta dos proprios annaes e chronicas de Inglaterra que
Polidoro Virgilio II seguiu, e tratou em sua historia.
«A terceira razão é porque o mesmo Henrique VIII que fez esta mudança,
quando morreu declarou que errára, e por esta causa expirou com summa
pena, e inquietação, como consta da relação que fizeram homens de muita
virtude, letras, e authoridade que assistiram á sua morte, e os aponta
Sandero, com outros muitos historiadores inglezes que trataram de suas
cousas; e se não remediou seus erros foi por occulto juizo de Deus que
permittiu lhe faltasse n'aquella hora quem o encaminhasse, e lhe
lembrasse o que o proprio escreveu tão doutamente contra Luthero, e
dirigiu ao papa Leão X.
«Por onde tornando V. A. a receber aquillo que os reis seus antecessores
tiveram e professaram por largos annos, sendo tão virtuosos, prudentes e
valorosos, como o mundo todo reconhece, não fará mais que restituir á fé
a casa d'onde contra razão e justiça anda desterrada; e com esta
restituição além da gloria immortal, que alcançará em todos os seculos
vindouros, obrigará a Deus Nosso Senhor abrir as mãos da sua
liberalidade para lhe acrescentar muitos reinos com novas prosperidades
temporaes.»
A TRILOGIA DA «ACTUALIDADE»
Quando o snr. Moutinho de Sousa, ha pouco tempo, negociava, em Lisboa,
actores que preenchessem e aperfeiçoassem a companhia dramatica do
theatro Baquet, o snr. Silva, roto saboyardo do escangalhado realejo
litterario da _Actualidade_, escreveu, com o desplante da sua ignorancia
impenitente, que a escripturação dos tres indicados actores formava uma
agradavel TRILOGIA.
Tres actores, tres pessoas--uma _trilogia_!
O leitor (se não é elle) sabe que os gregos denominavam _trilogia_ o
conjuncto de tres peças theatraes, quando o poeta pleiteava o premio da
tragedia. Uma compoz Eschylo, a mais commevedora que nos legou a antiga
scena. Shakspeare fez uma _trilogia_ com as tres tragedias que completam
Henrique VI. O _Walstein_ de Schiller é tambem uma _trilogia_. Querem os
francezes por igual ter a sua na concatenação do _Barbeiro de Sevilha_,
_Casamento de Figaro_ e _Mãi delinquente_ de Beaumarchais. Tambem nós,
em os nossos humildes fastos litterarios, temos uma _Trilogia
romantica_, em que se annunciavam collaboradores Antonio Pereira da
Cunha, D. João de Azevedo, e João Machado Pinheiro (visconde de
Pindella).
Por analogia, tres composições em um livro, tres tratados, tres
discursos, poderemos denominal-os _trilogia_; mas chamar _tratado_
(_logos_) ao snr. Pola, e _composição_ á snr.ª Virginia, e _discurso_ á
snr.ª Emilia das Neves, hellenisando-as pessimamente, seria uma fineza
grega, se não fosse uma asneira portugueza.
Este snr. Silva (aviso aos naturalistas) dizem-me que tem as orelhas de
tamanho regular. Elle e os 2 Joaquins são tres partes de uma só
cousa--_trilogia_. Aqui vão bem; cálham: são tres peças que arredondam
um tolo superlativo. Ainda, no dominio grego, podéramos chamar aos
tres--_triga_. (Veja um _Lexicon_ o snr. Pinto). E, quando apparecer um
quarto, por não sahirmos de Athenas e das analogias remotas, os quatro
serão _quadriga_. Ora ahi tem gregarias em barda. Divirta-se.
_P. S._ Eu dissera-lhe _adeusinho_, quando fui _banido_; mas elle,
mentindo e espremendo novamente o figado, espirrou um golfo de bilis
negra. Faz-se mister não levantar mão das ventosas. Ou elle estuda, ou
eu o esfolo.
FIM DO 5.º NUMERO
Strauss, e nomeadamente a Renan, o compilador de Reville, de Reuss, de
Schérer e Colani. Se alguns homens illustrados pela experiencia e
receosos das fatalidades congeneres de certos livros, reprovaram que
Renan recebesse publicamente em Portugal a consideração que o snr.
Soromenho lhe faculta por sympathicas affinidades phoneticas, o que
temos a recear d'ahi é o espectaculo das vaias e satyras com que alguns
escriptores estão provando que entre nós é mais urgente um compendio de
civilidade que a convivencia academica do sabedor de linguas do Oriente.
CORRECÇÕES
Convém fazer algumas ao artigo _O Decepado_ (n.º 4, pag. 71).
Ministrou-m'as o snr. J. F. Torres; e eu, trasladando-as, ajunto á
gratidão o contentamento de encontrar quem ainda se entretem com cousas
tão remotas e alheias das _novissimas_ charadas, das _capitações_, do
_don-juanismo_ e dos bancos.
Transcrevo a carta do cavalheiro, que não tenho o prazer de conhecer; e,
se não illido as palavras que encarecem os meus estudos, é porque o
appellido que a subscreve ainda não exercita alçada litteraria que
levante turbilhões de gloriosa poeira á volta do meu carro triumphal.
Eis a carta do snr. J. F. Torres:
.........................................................................
«Deliciei-me com a leitura das veridicas noticias historicas do meu
conterraneo Duarte d'Almeida, _o Decepado_. Ora, v. incansavel em
revolver e pesquizar tudo quanto possa esclarecel-o em tão gloriosa e
ardua tarefa, não levará a mal, e relevará a um ignorante o arrojo de
lembrar a v. umas insignificantes correcções, que em nada alteram a
verdade do facto, nem desdizem do eminente grau litterario de seu
author.
«Não existe (se é que existia) casa nenhuma acastellada no lugar de
Villarigas (hoje por corrupção Vilharigues) no concelho de Vouzella[4];
mas sim um castello ou cubello quadrado e muito alto, em parte mandado
demolir pelo fallecido procurador da casa Penalva, Martinho do Banho,
para com a pedra mandar fazer escadas e outras toscas obras que conduzem
á capellinha de Santo Amaro, pertenças da mesma casa Penalva. Existe
outro igual monumento no lugar de Bandavizes, freguezia de Fataunços.
«A casa da cavallaria sita na villa de Vouzella, e que em tempo devia
ter sido uma vivenda ostentosa, como se vê do que ainda hoje existe,
pertence actualmente por emprazamento a João Corrêa d'Oliveira.
«A capella da casa é hoje adega, palheiro ou cousa semelhante; e nada
alli existe que faça lembrado o nosso celeberrimo S. fr. Gil[5]. Ha
porém na villa uma elegante capella do santo, onde se celebra missa
todas as segundas feiras; e onde se conserva a pia em que se baptisou o
santo; e bem assim o queixo inferior do mesmo, reliquia muito venerada
pelos habitantes da villa. O corpo, como v. sabe, jaz enterrado em S.
Francisco de Santarem.»
Outra correcção a respeito do prestidigitador Herrmann, mencionado como
fallecido, ha dous annos, no artigo intitulado: _A exc.^ma madrasta
d'el-rei D. Luiz I calumniada_.
O snr. Comparse Herrmann está vivo em Vienna d'Austria, e é banqueiro
opulento. Quando se retirou rico do theatro, declarou elle aos seus
admiradores que morrera na rampa e ia resuscitar na barra, a mais
eloquente de quantas conversaram com o genero humanal depois da outra
biblica.
João de Deus, o excellente poeta, cantava d'est'arte, ha 15 annos, em
Coimbra o dadivoso prestigiador:
Herrmann! Herrmann! espantas-me! Não scismo
Nos prodigios da milagrosa vara
Que o Senhor Deus te deu:
Teu coração, Moysés do christianismo,
Tua alma é que eu admiro, e te invejára,
Se o que é teu fosse teu.
Tanto era d'elle o que era d'elle que está banqueiro; e João de Deus,
que tem o condão prodigioso de abrir fontes de lagrimas, e não invejava
a varinha que tirava de uma manga da casaca trezentas jardas de fita,
ainda não é banqueiro, segundo me consta.
Pois tambem Herrmann era poeta, e, se é licito acredital-o, tinha
talento. Elle o disse aos academicos n'estas quadras que, entre outras,
sobrevivem ao prestigiador, na pag. 295 do tom. VIII do _Instituto_:
Le coeur est ulcêré, quand pour prix d'un bienfait
On s'apperçoit alors des ingrats qu'on a fait.
Et pourtant chaque jour j'adresse à l'Eternel
Une promesse sainte, dans un voex solennel!
Si, par lui, mon talent me donne la richesse,
J'ai ma mission aussi, soulager la détresse,
Grâce à vous, tout s'eclaire, un instant a suffi,
Pour ramener enfin le calme en mon esprit.
N'este poema queixava-se o gentil allemão das suas illusões perdidas, da
sua infinda tristeza, e das angustias de coração com que entrára
n'aquelle recinto da _charmante jeunesse_. Queixava-se outro sim, de
ingratidões que lhe ulceravam o peito. Era um romance de amores começado
no Porto, romance que bifurcou em dous fios de ouro: um foi prender-se á
orla de um throno não sei aonde, outro á carteira de uma casa bancaria
em Vienna d'Austria. Brilhantes desenlaces!
E foram os rapazes de Coimbra--aquelles viventissimos rapazes de 1859,
Corvo, Vieira de Castro, João de Deus, Northon, Victorino da Motta, e
dezenas de galhardos espiritos que lhe degelaram as Maldades do coração
retranzido. _Gloire à vous!_ exclamava Herrmann.
[4] Existia no seculo XVII, segundo m'o affirma um escripto
nobiliario de testemunha coeva e ocular.
[5] Em 1780 ainda se via n'esta casa a capella, no local onde
nascera S. fr. Gil.
MAU EXEMPLO DE POETAS CASADOS
... Une femme prudente y doit regarder à deux fois avant d'épouser
un poete!
J. JANIN, _Le livre_.
Se o fino amor não é condão dos poetas, é escusado esgaravatar essa rara
perola em outra concha. O amor duradouro é incompativel com a creatura
sujeita á decomposição e á morte. As recomposições interiores são
incessantes, até ao momento em que o espirito vital se evóla, e a
podridão começa.
As reformações da alma operam-se mais de afogadilho que as do corpo.
Envelhecem almas em corpos novos. Muita gente sente o graváme e a
melancolia da idade de ferro nos annos dourados. Ha tambem o reverso
d'isto. Almas floridas em corpos devastados. Os primeiros tem auréola de
poesia lugubre. Os segundos são lastimaveis quando, em honra de suas
cãs, arrancam um a um os renovos da alma, ou os vão delindo com secretas
lagrimas; e são irrisorios, quando aviltam a magestade da velhice, dando
resplendor á calva com um nimbo de namorados.
Foi d'esta especie D. Thomaz de Noronha, cognominado, no seculo XVII,
_Marcial portuguez_. Amou numerosas primas, e casou com uma, de quem
ficou viuvo. Deus sabe como o coração de sua esposa Helena de Salazar
foi anavalhado de ciumes para a cova! O perfido, em quanto se andava
pela côrte diluindo em trovas a fé conjugal, deixava em Alemquer a
consorte, cuidando dos trigaes e dos parrécos.
Casou em segundas nupcias com D. Catharina da Veiga, tanto ou mais
desafortunada que a primeira. Pensava ella, porém, que o marido, ahi
pelos cincoenta, ganharia juizo, e se faria serio, acolhendo-se ao
santuario da familia com a lyra e com o rheumatismo.
Enganára-se D. Catharina, a infausta esposa, que, por lhe agradar, se
bezuntava de posturas, e arrebicava de inuteis artificios. Santa
senhora!
O dissoluto não só a trahia, senão que a zombeteava em verso, depois de
a ter mofado na prosa caseira--a prosa de marido enfastiado, que é o
vasconso mais barbaro da glottica humana.
Aqui está um dos cantares com que o sobredito _Marcial_
desprimorosamente chasqueava as caricias, os vernizes, as tranças
retintas, os algodões que lhe acolchoavam o seio, e arqueavam as ancas
da esposa, em fim, tudo aquillo que a paixão engenhosa inventára, á
custa de inexprimiveis magoas e dolorosos retrocessos nos vestigios da
belleza perdida. E observem que o cruel a denomina _Sara_, equiparando-a
á velha da Biblia. Lêde, senhoras, que hospedaes poetas no coração:
Escuta, ó Sara! Pois te falta espelho
para vêr tuas faltas,
não quero que te falte meu conselho
em presumpções tão altas.
Lembre-te agora só que és terra e lôdo
e terra te has-de vêr do mesmo modo;
mas não te digo nem te lembro nada
porque ha muito que em terra estás tornada.
Que importa que, alguma hora, a prata pura
de tuas mãos nascesse,
e que de teus cabellos a espessura
as minas de ouro désse!
Se o tempo vil, que tudo troca e muda,
sómente do ouro poz, por mais ajuda,
em tuas mãos de prata o amarello,
e a prata, de tuas mãos em teu cabello!
se um tempo, foram de marfim brunido
no seculo dourado,
não vês que o tempo as tem já consumido,
não vês que as tem gastado?
Deixa, Sara, deixa esses vãos enredos;
que eu, quando toco teus nodosos dedos,
me parece que apalpo, e não me engano,
cinco cordões de frade franciscano.
Viciando a natureza com taes tintas,
com pinceis delicados,
jasmins e rosas em teu rosto pintas.
Deixa esses vãos cuidados;
pois quando tua cara me alvorota,
mascara me parece de chacota;
e, se é das tintas, digo n'este passo
que a mascara está inda em calhamaço.
Como pretendes, pois, com mil enganos,
vestir mil primaveras
sem ter a primavera de teus annos!
Como não desesperas!
que o tempo chegou já ao seu estio,
aonde toda a fruta perde o brio;
parecendo tua cara desmedrada
fruta que se seccou, noz arrugada.
Se feitura de Deus Eva não fôra,
dissera, sem porfias,
que de Eva foste mãi, velha senhora,
pois te sobejam dias
para esta presumpção que agora tenho;
e, concluindo em fim, a alcançar venho,
pois alcançar não posso tua idade,
que deves ser a mãi da Eternidade.
Teus olhos, por descargo da consciencia,
a idade os tem mettidos
em duas lapas, fazendo penitencia;
e estão tão escondidos,
que, quando os vou buscar porque me choram,
não acerto co' bêco aonde moram;
porque o tempo os mudou, seu passo a passo,
da flor do rosto lá para o cachaço[6].
............................................
............................................
Em fim, senhora, se te vejo em osso,
com essa cara posta em tal pescoço,
me parece, tirada a cabelleira,
em cima de um bordão uma caveira.
.............................................
Sabe que sei, e d'isto me não gabo,
que te alugou sem duvida o diabo,
invejando teu corpo, cara e dedos
para a Santo Antão fazer maiores medos[7]
E deixa, em fim, tanto vão cuidado;
e ao sagrado te acolhe
primeiro que te ponham em sagrado.
Este conselho colhe;
admitte o que te digo sem desgosto;
que eu, quando vejo teu funesto rosto,
d'elle tambem o seu conselho tomo,
pois cuido que me diz: _Memento, homo!_
Esta poesia ou outra peor tesourou os ligamentos da vida de D.
Catharina, abrindo-lhe as portas do paraiso. Elle, o viuvo consolavel e
impenitente, por aqui ficou até aos oitenta ou mais, deshonrando a idade
provecta com poemas sordidos, e taes que os prelos não os despejaram á
circulação dos enxurros. Sem embargo, Jacintho Cordeiro, no _Elogio de
poetas lusitanos_, conceitua n'esta altura o descaroado marido:
D. Thomaz de Noronha em tanto augmento
Confirma de sus versos la escellencia
Que admirando sutil su entendimiento
Puede hazerle a Quevedo conpetencia:
Alma de tan ayroso movimiento,
Luz parece de sol de su presencia
Y sol a cuya luz crecen desmayos,
Aguila no soy yo de tantos rayos...
Que te fulminem, Jacintho!--diria um leitor circumspecto. Achou-lhe
airoso movimento na alma, assim como nós, os filhos d'este seculo cortez
e cavalheiroso, lhe achariamos na arca do peito as vertigens ebrias d'um
trovista de tasca.
A poesia, que um sorriso meigo de mulher agradeceu, logrou a sua nobre
missão: divinisou-se. Essa outra cousa, que se chama poesia, porque
metrifica a injuria ou o chasco vil á mulher, é a hydrophobia do
talento, é enfermidade repugnante.
[6] Segue uma estrophe cuja nudeza, posto que não envergonhe o
realismo hodierno, nos pareceu propriedade dos livros escriptos
para _homens_, cuja deshonestidade os authores lisonjeam com as
dedicatorias dos seus romances.
[7] _Metter medo aos medos de Santo Antão_, era adagio do tempo,
que teve a seguinte origem: No terceiro domingo de agosto de 1577
sahiu uma procissão da antiga parochia de S. Julião. Entre varias
figuras e carros triumphaes ia um homem representando Santo Antão
no deserto, e á volta d'elle varios demonios com feitio de monos o
aterravam com caretas e tregeitos medonhos.
A CASA DE BRAGANÇA «AB OVO»
D. Gonçalo Pereira, trigesimo-quarto arcebispo de Braga, quando estudava
as santas theologias em Salamanca, achou compativel a sciencia de Deus
com as curiosidades philoginias, gregamente faltando.
D'esta compatibilidade, em que foi parte integrante e constituinte,
chimicamente fallando, D. Thereza Peres Villarinho, resultou nascer um
menino robusto, como os recem-nascidos do _high-life_, o qual se chamou
Antoninho.
Este D. Antonio Gonçalves Pereira ordenou-se, foi prior do Crato, e pai
de 32 filhos, compativeis com o priorado. Uma das mães d'este rapazio
todo chamou-se Eyria de Carvalhal, e das predestinadas entranhas d'esta
menina apojou D. Nuno Alvares Pereira, pai da primeira duqueza de
Bragança, casada com o bastardo de D. João I.
D'esta estirpe, bastantemente gafa de couto-damnado e bastardias, nos
veio a redempção em 1640.
Bemditos e louvados sejam aquelles padres arcebispos e priores! Se elles
fossem castos ou infecundos, não teriamos Braganças, e gemeriamos ainda
hoje captivos de Hespanha.
O arcebispo descança ha 526 annos, em uma capella contigua á porta
travessa da sé de Braga. La lhe vi, um d'estes dias, a figura esculpida
no mausoléo. Portuguez de lei era aquelle padre, posto que se
apaixonasse por hespanholas. O coração não tem _ubi_. O escolar de
Salamanca lêra talvez o philosopho grego que dissera serem todas as
mulheres uma. Se a natureza as não discriminára, como estremal-as por
fronteiras?
Mas tão portuguez era que articulou em seu testamento que, se um dia a
mitra primacial cingisse a fronte de prelado castelhano, fosse arrazada
sobre suas cinzas a capella em que ia esperar o clangor da trombeta!
Ainda não vi impressa a noticia do desastre extraordinario que motivou a
morte do D. Gonçalo. Nem D. Rodrigo da Cunha nem o padre José Corrêa,
biographos dos arcebispos bracharenses, a souberam ou quizeram divulgar.
Parece-me, todavia, que o primeiro, tanto por haver sido prelado como
por genio investigador de antiguidade, não ignoraria o que era constante
de um processo existente no archivo da mitra.
Eis o caso:
Em 1347 foi D. Gonçalo visitar a provincia transmontana. Chegando a
Villa-Flôr com grande sequito, travaram-se alli os seus criados com os
moradores da terra, e de ambas as partes belligerantes morreram quatro
homens e sahiram doze mal-feridos. Tangeram os sinos a rebate.
Levantou-se a povoação armada. Cercaram a residencia do arcebispo,
mataram-lhe seis homens, e matariam o proprio prelado, se não fugisse,
pendurando-se de uma corda, que lhe não evitou cahir de costas no
terreiro e contundir-se gravemente. Não contentes os de Villa-Flôr com a
fuga do seu arcebispo, tomaram-lhe as mulas, de envolta com parte dos
capellães e seis criados. Protegido por atalhos, o contuso prelado
chegou a Carrazeda de Anciães, povoação importante n'aquelle tempo,
fortificou-se no castello, fez lavrar instrumento publico, e enviou-o a
D. Affonso IV.
O rei, poucos dias depois, mandou a Villa-Flôr uma alçada com dois
algozes bem escoltados, e fez enforcar os sacrilegos que pôde colher na
devassa. Esta vingança nem por isso alliviou os incommodos do arcebispo
descadeirado na queda. Transferido a Braga, deitou-se para nunca mais se
erguer. Quatro mezes depois adormeceu no Senhor.
E assim morreu, por effeito de tão miserrimo lance, aquelle valente do
Salado, que deu o exemplo da bravura e legou a espada ao seu quarto
successor D. Lourenço, o raio de Aljubarrota. Fôra elle o defensor da
cidade do Porto, quando o enfurecido amante de Ignez levava na sua
vanguarda o incendio e a devastação. Fôra elle ainda quem acaudilhára a
hoste de portuguezes, quando uma invasão de hespanhoes, em desapoderada
fuga, deixou o sangue de trezentas vidas nas lanças dos alabardeiros do
arcebispo.
Santo Deus! um heroe d'esta polpa chega a Villa-Flôr, amotina-se a
arraia-miuda, foge de escorregão por uma corda, cahe de cangalhas,
amolga o osso sacro, e morre! Mas em fim, maior seria a desgraça de
Portugal se elle, antes de lesar as vertebras lombares e regiões
visinhas, nos não tivesse deixado os embryões da casa de Bragança na
pessoa de seu filho prior!
UM INQUISIDOR PORTUGUEZ E O PRINCIPE DE GALES
O filho de Jayme I de Inglaterra veio a Madrid, em 1610, para vêr de
perto a princeza Anna, filha de Philippe III, uma das mais formosas
mulheres d'aquella época. D. Fernão Martins Mascarenhas, inquisidor
geral de Portugal, e residente em Lisboa, assim que soube da chegada do
heretico neto de Maria Stuart, escreveu-lhe com a santa presumpção de o
reduzir á fé catholica. O principe, todo embebecido nas magias da filha
de Philippe III, guardou a carta para mais tarde resolver esse negocio
que se lhe figurou de importancia subalterna. A opinião de alguns
historiadores, porém, é que a Inglaterra voltaria ao redil da igreja
romana, não tanto pela influencia theologica da carta, como pelos
filtros amorosos da princeza Anna. O principe de Gales pediu-a para
esposa; e, quando em Londres se preparavam os festejos do noivado,
morreu o noivo em 1612.
A carta do inquisidor bispo do Algarve é inedita. A este prelado devemos
a impagavel fineza de expurgar das livrarias de nossos avós todos os
livros gafados de heresias. Se não fosse elle, é muito de recear que em
Portugal se lêssem então os livros que no seculo XVII propulsaram as
sciencias na França e Allemanha: o que seria uma calamidade. Eis a carta
do santo varão:
«A vinda de V. A. a esta côrte foi de tanta alegria para todos os que
nascemos em Hespanha, que ainda aquelles que estamos mais distantes da
sua presença, temos obrigação de fazer demonstração publica, assim em
dar graças a Deus por esta mercê, como em significar a V. A. o animo, e
a vontade com que festejamos a honra que todos alcançamos por esta
causa.
«O que todos agora desejamos, e pedimos a Deus com continuas orações,
para melhor servirmos a V. A. n'aquillo que mais lhe importa, é que
queira V. A. ouvir e entender a razão do que por cá acha, e é
professarmos a fé, e a religião que professa, e ensina a igreja
catholica romana, verdadeiramente apostolica; porque o animo com que
desejamos paz perpetua entre as corôas de Hespanha e Inglaterra, nos
obriga a procurar a conformidade na religião entre os principes dellas,
pois, como diz Santo Agostinho, não póde haver verdadeira concordia
aonde os entendimentos estão desunidos na terra.
«Muitas razões se podiam allegar para V. A. se dispôr a fazer este
serviço a Deus, e mercê a toda a Hespanha, porque os livros estão cheios
d'estas materias, mas tres são só as que lembro a V. A. para satisfazer
a obrigação que tenho n'este reino de Portugal.
«A primeira é considerar V. A. que isto que nós professamos em Hespanha,
acerca da obediencia á sé apostolica-romana, professaram, sem nenhuma
interrupção, os serenissimos reis de Inglaterra por mil annos, desde o
tempo de S. Gregorio Magno pontifice, e Mauricio imperador, até o de
Henrique VIII de Inglaterra, que por seus respeitos fez mudança na
religião; porque como nunca se havia preferir o parecer dos que querem
innovar cousas ao juizo d'aquelles que dellas perseveraram por tantos
annos, bem se vê, a prudencia natural está pedindo que se repare muito
n'esta variedade que se introduziu em Inglaterra nos derradeiros annos.
E é muito para vêr a fórma em que escreveu Eduardo, rei de Inglaterra,
ao papa Alexandre III, porque ambos estão condemnando o que agora se
segue no mesmo reino com palavras tão claras que não soffrem
interpretação alguma.
«A segunda razão é porque todos os reis de Inglaterra que antes de
Henrique VIII tiveram o sceptro d'aquelle illustre reino depois de
Alberto, fundaram a sua jurisdicção na obediencia á igreja romana, em
que presidem os verdadeiros successores de S. Pedro, principe dos
apostolos, e vigario universal de Christo na terra, até Ina e Ataulfo
fazerem o proprio reino tributario da sé apostolica, e este tributo
durou por novecentos annos. E ainda que alguns reis de Inglaterra houve
que em cousas e casos particulares guardaram menos respeito do que
deviam aos pontifices romanos, nunca lhes negaram o serem cabeças da
igreja catholica, e sempre depois vieram a fazer penitencia de seus
erros, como consta dos proprios annaes e chronicas de Inglaterra que
Polidoro Virgilio II seguiu, e tratou em sua historia.
«A terceira razão é porque o mesmo Henrique VIII que fez esta mudança,
quando morreu declarou que errára, e por esta causa expirou com summa
pena, e inquietação, como consta da relação que fizeram homens de muita
virtude, letras, e authoridade que assistiram á sua morte, e os aponta
Sandero, com outros muitos historiadores inglezes que trataram de suas
cousas; e se não remediou seus erros foi por occulto juizo de Deus que
permittiu lhe faltasse n'aquella hora quem o encaminhasse, e lhe
lembrasse o que o proprio escreveu tão doutamente contra Luthero, e
dirigiu ao papa Leão X.
«Por onde tornando V. A. a receber aquillo que os reis seus antecessores
tiveram e professaram por largos annos, sendo tão virtuosos, prudentes e
valorosos, como o mundo todo reconhece, não fará mais que restituir á fé
a casa d'onde contra razão e justiça anda desterrada; e com esta
restituição além da gloria immortal, que alcançará em todos os seculos
vindouros, obrigará a Deus Nosso Senhor abrir as mãos da sua
liberalidade para lhe acrescentar muitos reinos com novas prosperidades
temporaes.»
A TRILOGIA DA «ACTUALIDADE»
Quando o snr. Moutinho de Sousa, ha pouco tempo, negociava, em Lisboa,
actores que preenchessem e aperfeiçoassem a companhia dramatica do
theatro Baquet, o snr. Silva, roto saboyardo do escangalhado realejo
litterario da _Actualidade_, escreveu, com o desplante da sua ignorancia
impenitente, que a escripturação dos tres indicados actores formava uma
agradavel TRILOGIA.
Tres actores, tres pessoas--uma _trilogia_!
O leitor (se não é elle) sabe que os gregos denominavam _trilogia_ o
conjuncto de tres peças theatraes, quando o poeta pleiteava o premio da
tragedia. Uma compoz Eschylo, a mais commevedora que nos legou a antiga
scena. Shakspeare fez uma _trilogia_ com as tres tragedias que completam
Henrique VI. O _Walstein_ de Schiller é tambem uma _trilogia_. Querem os
francezes por igual ter a sua na concatenação do _Barbeiro de Sevilha_,
_Casamento de Figaro_ e _Mãi delinquente_ de Beaumarchais. Tambem nós,
em os nossos humildes fastos litterarios, temos uma _Trilogia
romantica_, em que se annunciavam collaboradores Antonio Pereira da
Cunha, D. João de Azevedo, e João Machado Pinheiro (visconde de
Pindella).
Por analogia, tres composições em um livro, tres tratados, tres
discursos, poderemos denominal-os _trilogia_; mas chamar _tratado_
(_logos_) ao snr. Pola, e _composição_ á snr.ª Virginia, e _discurso_ á
snr.ª Emilia das Neves, hellenisando-as pessimamente, seria uma fineza
grega, se não fosse uma asneira portugueza.
Este snr. Silva (aviso aos naturalistas) dizem-me que tem as orelhas de
tamanho regular. Elle e os 2 Joaquins são tres partes de uma só
cousa--_trilogia_. Aqui vão bem; cálham: são tres peças que arredondam
um tolo superlativo. Ainda, no dominio grego, podéramos chamar aos
tres--_triga_. (Veja um _Lexicon_ o snr. Pinto). E, quando apparecer um
quarto, por não sahirmos de Athenas e das analogias remotas, os quatro
serão _quadriga_. Ora ahi tem gregarias em barda. Divirta-se.
_P. S._ Eu dissera-lhe _adeusinho_, quando fui _banido_; mas elle,
mentindo e espremendo novamente o figado, espirrou um golfo de bilis
negra. Faz-se mister não levantar mão das ventosas. Ou elle estuda, ou
eu o esfolo.
FIM DO 5.º NUMERO
Has leído el texto 1 de Portugués literatura.