Saudades: história de menina e moça - 5

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ou o que determina fazer, é cousa honesta e que convenha; que, se lhe
sae bem, todos lh'o teem a bem, e se não, ainda que o mundo lh'o tenha a
mal (o que muitas vezes acontece, porque, mal-pecado, já as cousas não
são julgadas senão pelas saidas d'elas) não tem ao menos de que se
queixar consigo.
«E grande bem é, a meu ver, excusar a pessoa as inimizades entre si,
pois não ha lugar cá n'este mundo que defenda a ninguem de si mesmo.
«Pode-se tolher inimigo e inimiga, frio e chuva; cuidado, pode-se tomar,
e tolher--não.
«Já quem faz o que deve, saindo-lhe como não deve, não quero afirmar que
lhe não dará paixão; que a perda de qualquer proposito (ainda que seja
desarrazoado) a dá. Mas, assim, digo que se lhe der paixão, dar-lhe-á
sofrimento para éla.
«Bem-aventurado se póde chamar, n'esta vida, quem tem dôr que se
suporte; pois, segundo parece, não se póde viver sem éla, assim como
assim.
«Nos amores cuidará alguem que não é isto necessario, e que não é
costumado; cuido eu que não poderá ser mais necessario. Em todas as
cousas se deve haver respeito ao como e ao quando, e ao porque ou para
que se fazem, para se não errarem. Maiormente se deve ter este respeito
nos amores, pois são tão sujeitos aos erros, que mais mal contado seria,
ao caminhante rico, se fosse desprevenido pelo lugar que de ladrões é
seguido, que por outro que o não fosse; porque n'este, se lhe
acontecesse algum desastre, culparia a ventura; mas n'aquel'outro
culparia a si, que são culpas mais graves de perdoar.
«Por isso, senhora, vos peço que aprendaes de mim, que vi culpas, e os
danos d'élas, porque assim como toda a pessoa, no bem, é mais amiga de
si que d'outrem, assim tambem no mal (quando acontece que haja algum
desvario consigo) é mais inimiga de si que de ninguem.
«E isto não é para espantar, porque é inimigo de casa, como dizem.
«Ainda mal, muitas vezes, que me foi necessario que vo-lo dissesse,
porque o soube para vo-lo dizer!
«Quereis antes, senhora, não ser contente que arrependida.»
«E aqui, fazendo a ama uma pausa, não para acabar, mas sim para
descansar (que vontade tinha já de lhe dizer tudo) sentiu dormir Aonia.
«E, cuidando que fosse fingido, esteve um pedaço espreitando-a, e, por
derradeiro, pondo-lhe a mão, e bulindo-a, se certificou que dormia.
Parece que, cansada do trabalho não acostumado, adormeceu. Éla era moça,
e nunca se vira n'outra...
«A ama, ainda que isto lhe fizesse duvidar do passado comtudo, pelo que
passara já por éla, pareceu-lhe o que era, porque não ha cousa que traga
mais certo o sôno ás moças que a dôr grande: e ás velhas tira-lh'o.
«E com esta fantasia, em que a ama se afirmou, adormeceu tambem.»


CAPITULO XXIV
Em que se conta o mais que a ama passou com a senhora Aonia ácerca de
Bimnarder

«Bimnarder, que todo aquele tempo passou como Deus sabe, vendo que assim
se calavam, não soube que determinar; porque tão magoado ficou das
palavras da ama, pelo dano que temeu de lhe fazerem, que se lhe turvou o
juizo, e não soube dar saida nenhuma áquele calar.
«E assim enleado, ácerca do que seria, esteve até que a manhan o levou
d'ali, bem contra sua vontade; porém, não se pôde ir para longe d'ali.
«Da mágoa d'êle, não vos quero contar. Era homem; poderia com éla. Mas
da coitada da Aonia (a quem as boas palavras da ama não aproveitaram
mais que para se guardar d'éla) vos contarei:
«Ergueram-se pela manhan, e, posto que a ama tentasse Aonia, dizendo-lhe
se ouvira a noite passada o que lhe éla contara, éla dissimulou
altamente. Pela sua idade, e pelo amor de creação que lhe a ama tinha,
creu logo de todo, e pelo socego de Aonia, feito por acinte, o acabou de
confirmar, e houve o passado por nada. Pareceu-lhe que seria o
desassocego de moças: que ás vezes, por mocidade, fazem cousas que não
fariam em outra idade, ainda que n'isso fosse todo o seu desejo.
«Assentando a ama n'isto, meteu-se na ocupação de casa (que era grande)
porque sobre éla carregava tudo; pelo que a Aonia ficou lugar e tempo
que bastava para pensar mais á sua vontade, e para fazer com que
Bimnarder fosse certo d'éla.
«Pondo cofres sobre cofres, fechando a porta da camara primeiro,
dissimulando fazer alguma cousa, se subiu á fresta. E, ainda bem não era
n'éla, viu Bimnarder, que não estava longe d'ali, nem tam perto que a
conhecesse logo: pelo que se deixou estar um pouco, para se afirmar
melhor.
«Éla, que não suportou já aquela tardança, lançando uma manga da camisa
fóra da fresta, fez que o chamava.
«Chegou êle com presteza, e, vendo-a, ficou assim sem lhe poder dizer
nada. Mas Aonia, que estava já determinada consigo, ousou falar-lhe
primeiro, mas não o que éla quisera, porque não pôde a tanto decidir-se.
«E, mudando o proposito n'aquilo que se acertou, lhe disse:
--«Aqui andaes, pastor, cada dia, sempre!»
--«Essa fresta, lhe respondeu êle, não está ahi, senhora, de noite
tambem?»
«Aonia, que o entendeu, muito de manso lhe tornou:
--«Está», ajudando a palavra com o abaixar dos olhos, que de todo então,
ao dizer d'aquilo, pôs n'êle.
«E não na entendera Bimnarder, se não fôra por isso, mas não lhe tornou
êle resposta. Éla, n'isto, desceu-se, porque se lhe afigurou que buliam
na porta da camara; e, tornando os cofres a seu lugar, se foi abri-la,
e, não achando ninguem, quisera tornar para a fresta, senão quando,
n'isto, eis vem a ama com outras mulheres de casa.
«De maneira que todo aquele dia, não teve outro tempo mas logo,
n'aquelas palavras que lhe o pastor dissera, entendeu que eram para que
tambem olhasse de noite para êle. E, com esta esperança que se deu a si
mesma, passou aquele dia, que tambem Bimnarder passou com sua esperança,
que tomou d'aquela palavra derradeira que lhe éla falou, com os olhos
mais que com outra cousa!
«Mas não cuidara êle, me parece a mim (dizia meu pae), que havia de ser
para tanto como lhe saiu, pelo pouco que entre ambos era passado.
«Porém, por isso estava mais certo, me tornou a mim a parecer, (dizia
meu pae) porque como a ventura venha mais em todas as cousas que tudo,
quem só a tiver não ha mister de mais.»


CAPITULO XXV
De como Bimnarder, pela fresta do aposento de Aonia, lhe falou

«Como aconteceu a Bimnarder que, vindo a noite, pondo-se á fresta, como
as passadas fizera, sentiu-as deitar, e, d'ahi a um grande pedaço, já
quando estava desesperado, ouviu pela casa andar de mansinho, e pôrem
alguma cousa contra a fresta.
«Estando com o sentido pronto, n'isto sentiu que subia alguem, e não
crendo que fosse tanto (como acontece na vista das cousas muito
desejadas, e esperadas muito), antes receando que fosse algum desastre,
abaixou-se prestes, e deixou-se estar ao pé da fresta.
«Aonia levantou o pano, e, com o escuro que fazia, não viu ninguem.
«Comtudo, deixou-se assim estar um pouco e, não sentindo nada, duvidou
de todo, e, indo para descer, disse:
--«Parece que foram só palavras!»
«Conheceu-a, na fala, Bimnarder. Dizendo:
--«Não foram, nem serão», subiu depressa á fresta.
«E éla tambem o conheceu, e subindo, chegando êle, e querendo-lhe falar,
disse éla muito devagarinho:
--«Que me perdoeis!»
«N'isto, começou a chorar a menina, e, acordando, a ama se pôs a
embalá-la, cantando-lhe; mas, não se querendo éla acalentar, se ergueu a
ama, dizendo:
--«Não sei se acharei lume, que esta criança sente alguma cousa.»
«E, desde que abriu a porta da camara, se foi á outra casa das mulheres,
a procurar lume.
«Aonia, que viu não haver remedio, querendo-se, depressa descer, chegou
o rosto muito á fresta dizendo:
--«Ide-vos embora, que não póde ser mais.»
--«De vós, lhe respondeu êle, me não posso eu ir assim.» E isto,
tremendo-lhe a fala.
«E éla, que houve dó d'êle, querendo soltar o pano, amparo da fresta,
não se pôde ter que lhe não desse de si alguma presença, e disse-lhe:
--«Pelo que fiz por vós, julgae o que tinha para vos dizer; e perdoae-me
(que vos não posso pagar em mais) o soltar d'este pano.»
«E assim o soltou, descendo-se muito depressa, e concertando tudo.
«Quando tornou a ama, já a achou deitada.»


CAPITULO XXVI
De como Bimnarder, estando na fresta de Aonia, adormeceu, e se lhe
foram, por sonho, os pès, e caiu

«Deixou-se Bimnarder ficar á fresta, e ali esteve até pela manhan, que
tam ocupado lhe ficou o pensamento d'aquelas palavras que lhe Aonia
dissera, em se indo, e da maneira como lh'as dissera, que uma cousa e
outra não lhe dava a mais vagar, nem tam só para se lembrar de fugir ao
tempo.
«Mas como êle não tivesse a noite antecedente dormido, nem o dia que se
seguiu, então, como descansado de alguma parte de seus cuidados,
adormeceu, não já por os ter menos, mas como acontece a quem traz alguma
cousa que muito deseja, e anda, entretanto aquele desejo o traz, sem
poder repousar, mas, depois que alguma segurança lhe vem de o ter
cumprido, repousa e dorme, como se o alcançára.
«E não podemos dizer que seja então menor o desejo, que antes, com
razão, deve ser maior.
«Assim foi Bimnarder, que, parte de cansado, e parte de contente,
transportou-se, parece, tanto em seu cuidado, que se lhe foram, por
sonhos, os pés e as mãos, e caiu no chão, com o pau após si.
«E, ao cair, lavou toda em sangue aquela parte do seu rosto, que
d'aquela banda da parede parece que levou; de que muitos dias esteve mal
depois.
«Mas nenhumas cousas grandes se acabaram senão por meio de grandes
desastres como aqui vereis; porque esta queda foi causa de Bimnarder ver
o que, pela ventura, nunca vira.»


CAPITULO XXVII
De como a ama, sentindo de noite o estrondo da queda, o que sobre isto
fez quando foi manhan

«Mais diz o conto que a ama (que a menina não a deixára mais dormir)
sentiu todo aquele estrondo. E Aonia, que não dormia, tambem o ouviu, e
cuidou logo o que temeu; porém, dissimulou grandemente, porque já se
guardava da ama.
«Mas éla, que já tambem estava descuidada de Aonia, foi suspeitar outra
cousa: que seria alguem d'aquelas obras, porque muita gente andava ahi,
e, porventura, viria espreitar por aquele lugar o que élas de noite
faziam, que bem sabia éla que os homens tudo ousavam fazer de noite.
«E, ainda bem não foi manhan, foi derredor da casa, e achou sinaes por
onde confirmou sua suspeita; e logo mandou tapar a fresta a pedra e cal,
contando tudo, da maneira que o éla cuidou, primeiro a Aonia, que lh'o
ouviu com tamanha mágoa, que mór trabalho cuido eu que levaria em lh'a
encobrir que em a sofrer consigo: porque o sofrer faz-se por vontade, e
a outra cousa contra éla.
«Mas, este remedio tolhido a Aonia, deu-lhe causa para buscar outro
maior; e chamando a uma mulher de casa, que Enis se chamava, avisada, e
de quem se podiam bem fiar grandes cousas, e assegurada no segredo,
pelas melhores maneiras que pôde, contando-lhe seu coração, lhe disse
que fosse ver se andava pela ribeira d'aquele rio o pastor da flauta; e,
se o não visse, que preguntasse a algum outro pastor por êle.
«Fel-o éla assim; e soube que jazia doente em um monte perto d'ali, onde
morava a mulher e filhos do maioral do rebanho em que êle andava. E,
tomando éla em sua companhia um homem de casa, determinou ir lá, porque
tamanha vontade conhecia em Aonia, que não pôde fazer menos.
«Chegou depressa ao monte; e preguntando pelo pastor da flauta, lh'o
foram mostrar lá, em uma casa de palhoça, por detraz das outras, onde
êle estava. E ficando êles sós, que assim buscou éla maneira, lhe
descobriu inteiramente ao que ia.
«Bimnarder, que logo a creu, porque era mulher, sobre a cabeceira onde
pobremente estava encostado, se lhe deixaram cair umas ralas lagrimas,
causadas d'entre contentamento e muita dôr,--que de ambas as duas
costumam élas ás vezes vir, as quaes fizeram certa a Enis do grande bem
que êle a Aonia queria; e não lhe esqueceu contar-lh'o éla depois.
«Ali estiveram ambos um grande espaço de tempo, e Bimnarder contando-lhe
tudo do começo; e detiveram-se tanto que foram suspeitando mal da
tardança, se fôra em outro lugar; mas a vida do monte não cria
suspeitas, como não cria de quem se suspeite mal.
«Mas, comtudo, detiveram-se ainda ambos n'esta pratica menos do que
ambos quiseram, por causa do homem que Enis trouxera.
«Tornada éla onde Aonia estava, lhe contou tudo, cousa por cousa, que
não ficou nada por contar.»


CAPITULO XXVIII
De como, estando da queda Bimnarder muito doente, Aonia buscou maneira
por onde o fosse visitar

«Veio assim, por acerto, que perto d'ali havia uma ermida de uma santa
de grande romagem, e era então, no outro dia, a vespera do seu dia; e a
ama e as mulheres de casa ordenaram ir lá.
«Havida licença de Lamentor para Aonia, e postos a caminho, (que a pé
podiam bem andar) ao passar pelo monte, se chegou Enis a Aonia, e
disse-lhe que ali era, porque iam já concertadas.
«N'isto, fez Aonia que cansava. A ama disse logo que repousasse um
pouco. Mas, d'esta vez, não teve éla maneira para ir aonde Bimnarder
estava. Foi lá Enis.
«De tornada, fizeram ali grande detença. Buscando achaque de querer lá
ir para detraz das casas, levando Enis consigo, houve tempo para Aonia
entrar onde êle estava então deitado, contra a outra parte da parede,
chorando, porque não vira Aonia ao passar, que bem se pudera êle erguer.
E como isto perdêra, cuidava tambem que havia de perder a tornada;
porque um mal nunca lhe viera sem outro, pelo que estava no maior pranto
do mundo para consigo.
«Entrada Aonia, deteve-se um pouco, e sentiu que êle chorava, e
suspirava baixo, de maneira que como, n'aquilo, se forçava a si mesmo.
«Éla, para vêr se poderia saber o porquê, que tudo desejava saber d'êle,
deteve-se ainda mais: mas êle com pensamentos muitos, que sobrevinham ao
choro, mais o acrescentava do que o diminuia.
«Assentando-se então Aonia na borda d'aquela sua pobre cama, lhe pôs a
mão, e quisera-lhe dizer alguma cousa, mas não pôde, que lhe faleceu o
espirito.
«Virando-se Bimnarder, e vendo-a, tambem lhe faleceu o seu.
«Estiveram assim ambos um grande pedaço sem se dizerem nada um ao outro:
e êle com os olhos postos em Aonia, e Aonia postos os seus no chão,
porque, em se virando Bimnarder, tomou vergonha. Levando-os assim á
terra, cobriu-se-lhe o seu formoso rosto de um tanto de côr, alem da
natural; e costumava dizer meu pae (porque parte d'esta historia em seu
tempo se soubera) que não parecia senão que viera aquela côr como para
ajudar ainda mais Aonia contra Bimnarder, tam formosa a éla, formosa,
fizera.
«Mas, estando assim n'isto êles ambos, e não estando êles ambos ali,
chegou Enis muito de rijo á porta, dizendo que se queriam já ir, e que a
mandavam chamar.
«Assim, foi forçoso levantar-se Aonia, e ir-se, e Bimnarder vêr tudo, e
ficar.
«Mas Aonia, que bem via os olhos de Bimnarder como ficavam, tomou uma
manga de sua camisa, e, rompendo-a, para remedio de suas lagrimas lh'a
deu, significando, na maneira só como lh'a deu o para que lh'a dava;
pois parece que a dôr grande que sentia não lh'o deixou dizer por
palavras; mas, em lh'a dando, pôs os olhos nos seus, dizendo-lhe só
assim:
«--Pesa-me, pois a minha ventura, ou desventura, não quis que vos eu
deixasse de magoar com o que eu não quisera.»
«E estas palavras lhe disse já fóra da porta.
«E com élas, e com o que sentiu ao dizer d'élas, duas a duas, lhe
começaram as lagrimas a correr dos seus formosos olhos, e pelas suas
faces formosas abaixo lhe iam fazendo carreiras por onde iam, que
Bimnarder a tanto pranto convidou quanto era a razão d'êle, pois perdia
a vista.
«Foi tanto o choro, que não lhe bastavam os seus olhos ás suas lagrimas,
pelo que lhe não pôde então dizer nada. Mas Enis, apressando Aonia com a
fala, e com as mãos, quasi puxando-a, e levando-a já, virou-se para êle
Aonia, dizendo:
--«Levam-me!»
«E, deixando-se ficar toda com os olhos, se foi assim, enlevada, até
que, com a parede das outras casas, passou alem.
«Apartada que éla foi de Bimnarder, êle não se pôde ter que pela outra
banda da sua casa se não saisse para aquela parte d'onde se podia ver o
caminho que élas levavam; e ali esteve olhando, entretanto a terra lhes
deu lugar, e depois, um grande pedaço, em quanto poderiam bem chegar a
casa; pois, parece, folgam tambem os olhos com a presunção, e descansam
em olhar para aquela parte onde está, ou vae, aquilo que podiam ver, se
não fôra a fraqueza d'êles, ou o impedimento d'alguma cousa.
«Mas como lhe pareceu que estaria já em casa, lembrou-se logo do lugar
onde éla estivera na sua cama assentada, e com grande pressa se tornou
para lá.
«E, entrando, foi-se ali pôr, onde éla estivera d'antes.
«Consigo estava fantasiando a Aonia; ora lembrando-lhe como aquilo
fizera, ora como aquel'outro.
«Depois, tomando aquela parte da manga, que lhe deixára, se punha a
chorar com éla, de mistura com palavras tristes, como que as houvesse
éla de entender.
«N'isto passou aquela doença, em que grandemente foi visitado por Enis;
e sarou depressa.
«E, d'aqui até que lhe aconteceu a desventura que vos contarei, se
passaram tempos e outras infindas cousas; porque os paços de Lamentor
acabaram-se, e pelo apartamento do lugar onde êles estavam, Aonia e a
ama, com outras mulheres de casa, iam passar tempo á ribeira d'este rio,
onde Bimnarder sempre andava.
«Mas nenhuma cousa ha n'este mundo em que se deva ninguem muito fiar;
que aquela grande segurança em que Bimnarder estava, em lugar tam ermo,
lhe não pôde durar, como agora vereis.»


CAPITULO XXIX
De como Lamentor casou Aonia com o filho de um cavaleiro seu comarcão, e
do que Enis aconselhou a Aonia que fizesse

«E foi assim que a donzela, por quem morreu o cavaleiro da ponte, (como
vos hei contado) veio tristemente a acabar por aso da irman viuva que o
levou nas andas.
«E sucedeu no castelo um filho de um cavaleiro muito valido e rico
n'esta terra, que, por meio de visinhos, desejou a Aonia para mulher, o
que foi depressa acabado, pela igualdade d'ambos n'aquilo em que a
quiseram aqueles em que estava o «_praz-me_» do casamento.
«Mas, pelo luto de Lamentor, e pelo apartamento de sua vida, não o soube
Aonia senão no dia antecedente áquele em que a haviam de levar para o
castelo,--que em sua casa não queria Lamentor ver prazeres, e bem lhe
pareceu que se não desconcertaria Aonia do esposo; porque era bem posto
cavaleiro, e, dos bens do mundo, abastado; e por isso tambem escusava
dizer-lh'o então. Mas não foi assim; que Aonia toda aquela noite passou
em um grito.
«Se não fôra Enis, que do seu segredo era sabedora, morrêra ou se fôra
por esse mundo; mas éla a consolou, e, com muitas esperanças que lhe
deu, não tam sómente a susteve, que não fizesse de si nada, mas antes
ainda lhe fez ser contente d'aquela vida e desejá-la; porque lhe dizia
que, como os casamentos ocupavam aos homens, poderia éla ter a liberdade
que quisesse; e, com resguardo, faria o que de sua vontade fosse, o que
não poderia fazer na casa onde estava.
«Este conselho foi tomado sem Bimnarder saber, porque a brevidade do
tempo não deu lugar para isso; mas concertaram-se ambas que ficasse Enis
para lh'o dizer ao outro dia, e, depois, mandaria por éla, porque logo
determinou pedi-la a Lamentor.
«E veio aquele outro dia; e, como Bimnarder não guardasse outro gado,
ainda bem não era manhan, já êle andava pela ribeira d'este rio; e viu
vir muita gente a cavalo, e passar a ponte dirigindo-se para os paços de
Lamentor.
«Mas não teve então a quem preguntar o que seria aquilo.
«Comtudo, não se tirou d'ali, porque logo se lhe revolveu o pensamento,
e inclinou a vontade a querê-lo saber; que, pela maior parte, o que ha
de ser, dá primeiro sempre na alma; e se andassemos de sobre-aviso
facilmente entenderiamos tudo, ou parte, do que nos está para vir.»


CAPITULO XXX
De como Fileno, o marido de Aonia, desejoso de a ter em seu poder, a
levou de casa de Lamentor muito acompanhada

«Descidos os de cavalo, estiveram por grande espaço com Lamentor; e,
depois, começaram saindo uns atraz dos outros, fazendo maneiras de
prazer.
«E, n'isto, viu Bimnarder donas a cavalo, e viu o fio da gente
encaminhar-se para a ponte; pelo que teve ensejo de preguntar a um pagem
que cousa era aquela.
«Disse-lh'o êle, seguindo seu caminho; mas Bimnarder não o acabou de
crer, tamanho abalo fez no seu cuidado.
«Porém, olhando, viu a Aonia, e com éla, da parte esquerda, o seu
esposo, que conhecido ia nos trajos e na comunicação da pratica que
entre ambos levavam; porque tudo, como derradeira cousa, olhava
Bimnarder, e muito bem viu!
«E Aonia nunca se virou para aquela sua banda, que continuada sempre
d'éla era; mas antes, porque ia inclinada para aquela parte onde o
esposo ia, pareceu-lhe a êle que o ia muito mais do que éla ainda ia, e
que o fazia por acinte. E isto é natural, pois quando uma pessoa vos cae
n'um erro, todas as cousas, que depois faz, tomais á pior parte, como
aqui aconteceu.
«Ficou Bimnarder tam maguado que d'ahi a mais de uma hora não cuidou de
nada. E, ao cabo d'éla, virando-se para outra parte, se foi; e não no
viram mais.
«N'aquele dia á tarde, veio Enis buscá-lo; e, não no achando, preguntou
por êle; e disse-lhe outro pastor (que por acaso acertára então de estar
perto d'êle, olhando tambem a gente) que, depois d'éla passada, estivera
êle um grande pedaço sem se mudar do lugar d'onde estava e sem tirar os
olhos do chão, como homem pensativo, em sua maneira. E tanto que êle
mesmo olhára para isso, e quisera-lhe falar, senão quando êle, n'isto,
virára para outro lado, e, pela ribeira, dando a andar apressadamente,
desaparecêra, e nunca mais o vira. E já êle mesmo fôra ao monte de seu
amo preguntar por êle, para que viesse pastorear seu gado, que andava
desmandado, e não o acharam; e que, do monte, tambem o foram buscar por
todo este mato, e pareceu a todos que seria ido, porque êle nunca tal
costumou; e já outrem andava com o seu gado.
«Ficou Enis toda fóra de si; e logo cuidou que lhe não cumpria ir ver
Aonia, nem viver com éla, pois saira tam mal o seu conselho.
«E, tornada para casa, ordenou dilatar a sua ida por alguns dias, para
ver se sabia novas de Bimnarder.
«Entretanto, não sabendo nenhumas, e apressando-a Aonia para que lh'as
levasse, determinou, comtudo, ir; porque, por outra via, cuidou para
consigo que com pouco trabalho se lhe tiraria por então Bimnarder do
pensamento; que os casamentos, á primeira vista, parecem outra cousa; e
senhoras, que d'antes foram presas de amor, logo aos primeiros dias
esqueceram todo o passado; mas depois, por cousas e desgostos, que
nascem da culpa do longo tempo, ou conversação que traz menospreso,
tornaram muitas vezes ás lembranças do primeiro.
«Porque n'isto, que Enis consigo cuidou, quis obedecer a Lamentor, que
já, a pedido de Aonia, mandava que a levassem.
«Que vos hei de dizer?
«Ainda bem não chegavam, afastou-se Aonia com éla, mas, sabido o que se
passava, chorou muitas lagrimas e maldisse o dia em que nascera.
«Enis, que era avisada, e via que, pois o mal não se podia curar, se
devia dilatar, lhe fez uma fala d'esta maneira:
--«Deixemos, senhora, o pranto, que d'êle não se vos podem seguir senão
dous males muito grandes. Um, é que mataes a vós com o choro; e quando,
porventura, vier Bimnarder, não vos quereria achar assim, e será esta
então maior ofensa para êle; porque est'outra tem desculpa, e esta não a
terá para êle, senão se lhe quiserdes dizer que desconfiaveis d'êle, que
monta tanto como cuidardes d'êle mal. Ora vede lá, senhora, convosco, se
podereis dar a culpa a quem quereis tamanho bem! Pois, afóra isto,
tendes ainda outro mal: que correis risco de se saberem vossos prantos,
e, como êles sejam tomados em tempo de bodas, não se poderá deixar de
suspeitar d'eles mal. E, por aqui, tolher-se-vos-á, porventura, o que
póde ser em algum tempo, o que eu espero; porque as lagrimas de
Bimnarder não podiam ser sem vos êle querer muito grande bem, que lhe
não doesse muito o que fizestes; e não lhe póde doer muito o que
fizestes que, n'algum tempo, não queira saber o como ou porque o
fizestes;--porque o bem-querer grande faz sentir muito os escandalos
recebidos, e crê-los em parte, quanto baste para o sentimento ser maior
do que póde ser. Mas, porém, sempre deixa uma duvida lá na crença, para
experimentar n'algum tempo, tarde ou cedo, segundo a dôr grande ou
pequena lhe dá lugar. Não póde ser que aquilo que vós, senhora, sabeis,
não faça duvidar Bimnarder do que fizestes, até se êle desenganar por si
mesmo. Ou, se isto não é assim, não ha verdade no mundo nem nos homens!»


CAPITULO XXXI
Em que se diz a grande dor que sentiu Aonia em seu casamento

«Estas palavras desagastaram a senhora Aonia algum pouco, mas não de
todo; que, na verdade, se a deixaram estar só, e ter tempo para
perseverar n'este cuidado, não creio eu que éla pudera durar muito.
«Mas era esposada de então, e umas cousas e outras não na deixavam nunca
só; espalhavam-se os cuidados.
«Assim, éla, pouco a pouco, foi-se acostumando a viver d'outra maneira;
que as ocupações de casa, e a desconfiança, ou desesperança, que foi
tendo de Bimnarder, lhe fizeram indo ter nas cousas passadas uma sombra
de esquecimento, com que éla pudera viver todas as horas da sua vida
descansada ou menos cansada, se em alguma cousa d'este mundo houvera
segurança.
«Mas não na ha; que mudança possue tudo!...»


INDICE

CAPITULO I--Em que a donzela começa a sua historia
CAPITULO II--Em que a donzela vae prosseguindo sua historia
CAPITULO III--Da conta que a dona dá á donzela de sua vinda áquela terra
CAPITULO IV--Das palavras que a dona com a donzela passou
CAPITULO V--Do que Lamentor passou n'aquela parte onde foi aportar com a
sua nau, e da batalha que teve com o cavaleiro da ponte, e do que mais
lhe sucedeu
CAPITULO VI--Em que se diz a razão por que o cavaleiro da ponte sustinha
aquele passo, e de como sua irman ali veio ter
CAPITULO VII--Como, depois de partida a irman do cavaleiro da ponte, por
aprazer aquele lugar a Lamentor, ordenára fazer ali seu assento
CAPITULO VIII--De como a Belisa vieram em crescimento as dôres do parto,
e, parindo uma criança, faleceu
CAPITULO IX--Do pranto que Aonia fez pela morte de sua irman Belisa
CAPITULO X--De como Narbindel, vindo combater com o cavaleiro da ponte,
vendo o pranto que se fazia na tenda de Lamentor, entrou dentro para o
consolar
CAPITULO XI--De como se deu sepultura ao corpo de Belisa, e do pranto
que com êle fez Lamentor
CAPITULO XII--Do que sucedeu ao cavaleiro, que saiu da tenda, vencido do
parecer e formosura da senhora Aonia
CAPITULO XIII--Em que se diz quem fosse Cruelcia, e do que o cavaleiro
passou com seu escudeiro
CAPITULO XIV--De como, partido o escudeiro do cavaleiro da tenda, entrou
em pensamentos de como se apartaria d'êle, e mudaria o nome
CAPITULO XV--De como Bimnarder soube de um servidor de Lamentor que este
ordenava fazer ali uns paços, e do mais que lhe aconteceu com a sombra
que lhe apareceu
CAPITULO XVI--De como, estando Bimnarder muito pensativo no que faria,
viu de subito vir o seu cavalo fugindo d'uns lobos que o queriam matar
CAPITULO XVII--De como Bimnarder assentou vivenda com o maioral do gado,
e do que a donzela passou com a dona em sua historia
CAPITULO XVIII--Em que a ama dá razão á donzela da cantiga de Bimnarder
CAPITULO XIX--De como conta a ama á senhora Aonia o que vira fazer ao
pastor, acabada a cantiga
CAPITULO XX--Da peleja que o touro do pastor teve com outro alheio, e de
como o matou, a qual Aonia estava vendo do eirado
CAPITULO XXI--De que maneira Bimnarder se viu com Aonia
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