Saudades: história de menina e moça - 4

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vale) andava tangendo, e cantando em palavras pastoris. Este só
contentamento lhe era algum conforto para o seu mal, e para desabafar o
seu coração, que tam ocupado de profundos e muito penosos pensamentos
trazia.
«Muitas cousas sabia meu pae, suas, que arremedavam de pastor, e tinham
as cousas de alto engenho, ou, mais verdadeiramente, de alta dôr, postas
e semeadas tam docemente por outras palavras rusticas, que quem bem
olhasse facilmente entenderia como foram feitas.
«E, assim, tinha mais outra cousa, a meu fraco juizo e parecer: é que o
bom pastor, n'aquela baixeza de estilo, pela impressão da presunção que
punha, e de si mostrava, como que via mais depressa haverem d'êle
compaixão todas as pessoas que o ouviam, tanto póde a imaginação em
todas as cousas.
«Mas, de todas, uma só me vem á memoria, e lembra-me que dizia meu pae
que êle a cantára, e ouvira-lh'a a ama da menina.
«Por certo, parece que assim o ordenou a ventura para que Aonia fosse
sabedora de seu cuidado, já quando êle de todo andava desesperado; e,
não se podendo d'ali apartar, ordenava, andando desvairadas cousas de
si, que desvairadamente o atormentavam.
«Tambem, para que tudo fosse como cumpria á desventura que estava
ordenada, aconteceu que a velha ama era natural d'esta terra, e, n'outro
tempo, quando era moça, parece que um mercador muito rico e
gentil-homem, (que viera d'aquelas partes d'onde Lamentor) por asos e
visinhanças, houvera o seu amor; e com dadivas grandes, e promessas
maiores, a levára de sua terra, de casa de seu pae, que a tinha muito
estimada e guardada, mais ainda do que a seu estado convinha; mas tudo,
pela sua formosura d'éla, era bem empregado.
«Era ensinada a livros de historias, pelo que era já então sabida, e
depois, quando velha, o foi muito mais.
«E, dizem que, chegando ambos á terra do mercador, por grandes
desventuras, o veio éla a perder, ainda quando moça e formosa. Mas
ficando assim em terras estranhas, movida de compaixão, a mãe de Belisa
a recolhera para sua casa, d'onde ainda lhe estava ordenado este outro
desterro para a sua terra.
«De como a levou êle, e o éla perdeu, se conta um grande conto.
Deixá-lo-ei agora, porque tenho outro caminho tomado, ainda que, entre
os homens, todos os caminhos vão ter a fim de mulheres; mas, pois moraes
n'esta terra, outra hora nos veremos, e contarvo-lo-ei então, se por
ventura vos ficar desejo de ouvi-lo.»
--«Ainda, senhora (me não pude eu ter que lhe não dissesse) que eu tinha
já posto em minha vontade nunca ter desejo nenhum, este quero eu
ter,--que tanto podem as cousas vossas comigo; e mais, pois é conto de
mulher, não póde deixar de ser triste. E, d'esta maneira, tambem em
parte não irei contra meu proposito; porque desejando ouvir tristezas,
não se póde isto verdadeiramente chamar desejo, que só o desejo deve vir
d'aquilo com que se haja de folgar. E, se tambem acontece o contrario,
será porque tambem o desejo engana muitas vezes, como todos os outros
sentidos.»
--«Nós outras, tristes, (me tornou éla então) chamaremos logo a este
desejo desgosto; porque não se deve espantar ninguem de ver mudadas as
palavras ou o entendimento d'élas, nas pessoas em que se mudaram tambem
muitas outras cousas, que não dissera nem cuidára ninguem que se podiam
mudar.
«E tambem, filha e senhora, ainda que me vós vejaes assim, já em idade
em que as tristezas passadas não deviam ser-me causa de mais que de
haver tudo por nada, e julgar o presente pelo passado, e, emfim,
estimá-lo assim; comtudo, tamanhas foram as causas que me fizeram
triste, que o sofrimento d'élas, e o longo tempo, não me faz sentil-as
menos. Pensando n'isto, muitas vezes digo eu que não póde ser senão que
quando a fortuna ordenou desgostar-me, para que a vida não sobejasse á
dôr, as compassou, parece, ambas assim, que não fosse uma maior que a
outra; e venho a entender n'isto que não se acrescenta mais a minha dôr
que a vida. E perdoae-me ir-vos assim saltar a falar de mim, tendo ainda
por cumprir o que vos prometi. Que a sua dôr traz a cada um assim.
Tambem os meus feitos: indo para fazer uma cousa, faço outra. E a mim,
muitas vezes, d'esta maneira, me sou eu mesma em vergonha.»
--«Não podeis vós já, senhora, fazer cousa ante mim que haja mister
perdão de mim; antes, quanto mais vossas cousas ólho, me vae parecendo
que não viestes aqui senão para vos eu ouvir; que, até agora, costumava
eu andar espantada, de mim para comigo, como podia durar tanto uma dôr
depois d'acabada a causa d'éla, e como a não gastava o tempo, como as
outras cousas todas que n'êle ha! E, porque eu não via isto na minha
mágoa, tornava dando a culpa d'isto a outrem, porque, pela ventura, me
era forçado tornar a dar a mim maior pena... Ou... que digo eu, pela
ventura?... E aqui, indo eu para dizer outra cousa mais, se me pôs
diante o pouco conhecimento d'entre nós ambas, e calei-me,--assim como
que me não quisera calar. Éla, docemente, dissimulando porventura,
(segundo no fim de sua fala me pareceu) seguiu dizendo:
--«Das culpas que alguem dá a quem bem-quer, sempre lhe ficam as penas
d'élas, e com razão; que vos não quereria eu a vós bem se vos eu o pior
desse: mas antes me espanto ainda de, quem quer bem, como póde culpar a
quem o quer; senão que, torno a dizer eu, que pódem fazer isto, pela
pena que lhes fica; que a éla tomam êles, como por vingança da força que
se fazem n'isto a si mesmos. Tambem, senhora, fui moça como vós; culpei
já alguem contra minha vontade. Causa de grandes desgostos me foi,
muitas vezes, não me poder eu escusar a mim mesma só de culpar outrem.
Foram desvarios de amor. Ha isto n'êle, como ha outras sem-razões
infindas, sofridas como êle quis, que'té n'este nosso sofrimento pôs
tambem cousas que se não sofrem senão pela ventura!»
«E, a esta palavra, tirou os olhos de mim, como que queria dizer que não
me entendia, pois lh'o eu queria encobrir. E a mim, que me pareceu mau
ensino, a uma senhora, dona e triste, que me tanto dava de si, negar-lhe
parte de minhas tristezas, pois lh'as já d'antes quisera significar,
disse eu então:
--«Cuidae de mim, senhora, o que quiserdes; que, assim, me parece que
sois desgostosa; que esta maneira é melhor que todas para saberdes a
verdade da minha vida, que toda é uma longa queixa.
--«Fazeis bem (me tornou éla) que essa maneira é tambem a melhor para
vo-lo eu não ousar perguntar, que tambem afeiçoada vos sou já. E, pois
ha de ser tam triste, não na quero antes ouvir. Por isso, tornaremos ao
conto. Ele acabado, farão de nós as nossas tristezas á sua vontade, que
tambem se desejam contadas, como os prazeres. Mas, o conto, foi assim
como agora direi:»


CAPITULO XVIII
Em que a ama dá razão á donzela da cantiga de Bimnarder

«Disse (se vos lembra) que uma só cantiga me lembrava, que dizia meu pae
que lhe ouvira a ama,--e foi d'esta maneira.
«Começava a cair a calma, e havia pedaço que o pastor da flauta estava
assentado á beira d'este ribeiro, sobre um torrão, olhando para a parte
contraria, d'onde a ama acertou por acaso de vir. Estava tangendo de
mansinho a flauta, para consigo.
«Estando êle n'isto, deixára-se vir um rebanho de vacas, correndo,
apressadas da mosca. Passando por êle, se foram meter na ágoa até aos
peitos; e, deixando êle então de tanger, ficou como pensativo um pouco,
porém, sem tirar a flauta d'onde a d'antes tinha, como transportado.
«Olhou para isto a ama, e quisera-lhe dizer que tangesse, que bem lhe
parecera d'antes. Mas, estando para lh'o dizer, começou êle então a
tocar a flauta, docemente, de maneira que fez detença a ama.
«Parecendo-lhe cousa triste, e mais que de pastor, deu-se toda a
ouvi-lo, senão quando êle, depois de um pedaço grande, soltou a flauta,
e começou assim:
«P'ra todos houve 'hi remedio
P'ra mim só não no houve ahi:
Inda mal que o soube assi.
«Fogem as vacas p'ra a ágoa,
Quando a mosca as vae seguir;
Eu só, triste em minha mágoa,
Não tenho a d'onde fugir:
D'aqui não me posso eu ir,
Estar não me cumpre aqui,
Que o que eu quero não o ha 'hi.
«Entretanto a calma dura,
Tem esta fadiga o gado,
A manhan pasce em verdura,
A tarde em o seco prado;
Dorme a noite sem cuidado,
Pois tudo achou para si.
Descanso, eu só o perdi.
«A mim, nem quando o Sol sae,
Nem depois que se vae pôr,
Nem quando a calma mór cae,
Não me deixa a minha dôr.
Dôr, e outra cousa maior,
Convosco hoje amanheci,
Convosco honte' anouteci.
«Crendo que assim findaria,
Dei-me todo ao que padeço:
Um dia leva outro dia,
Por um mal, outro conheço.
Se o fim responde ao começo,
Ai! quam mal que me provi,
Que no começo o fim vi!
«Se nasci p'ra meu mal vêr,
E não p'ra vê-lo acabado,
Melhor fôra não nascer,
Que vêr-me desesperado.
E, pois que n'este cuidado
Me traz tam cego após si,
Inda mal que o soube assi!
Fim
«Entre lagrimas e prantos,
Nasceu o meu pensamento.
Cresceu, em tam pouco, tanto,
Que é mais alto que o tormento!
Passa o que passo ao que sento.
Mal faz quem me esquece assim
Que após mim não ha outro mim.»


CAPITULO XIX
De como conta a ama á senhora Aonia o que vira fazer ao pastor acabada a
cantiga

«Em dizendo este derradeiro verso, parece que não podendo êle já suster
as suas lagrimas, calou-se, como estorvado d'élas; e, entendendo-o a
ama, pelo soltar da flauta, e tomar da aba do gabão para limpar-se,
tamanha paixão a comoveu que não pôde ter as suas, lá onde estava, e
sempre lhe falara, se não fôra que vinham chamá-la já de casa.
«Foi forçada a levantar-se éla, e foi-se, ocupada toda a fantasia
d'aquele pastor, pois algum grande misterio lhe pareceu.
«E como o que está ordenado de ser, logo traga asos consigo, entrando a
ama em casa, e topando Aonia só, á boa-fé, sem mau engano, se pôs a
contar-lhe tudo, e a jurar-lhe e tresjurar-lhe que não podia ser pastor.
«E, porque já Aonia entendia a lingoagem d'esta terra muito bem, lhe
disse a ama a cantiga. E quando lhe veio a contar como o pastor, com
aquelas derradeiras palavras, deixara cair a flauta no chão, e com a aba
do gabão (que de burel era) se limpara das lagrimas que com élas lhe
vieram; e, acabando de limpar-se, olhara para a aba, que com ambas as
mãos tinha, e como (parece) lembrando-lhe do que éla era, ou não sabia
porque, encostara o rosto a éla, assim entre as mãos, como estava; e,
após um grande suspiro, se deixara estar assim, e assim ficara quando
éla viera, que, pela chamarem n'este meio tempo se tornara tam triste
como havia muito tempo que o não fôra por causa alheia... E
encheram-se-lhe á velha ama os olhos d'ágoa, em dizendo «cousa alheia».
E assim se virou para outro lado, e foi-se fazer cousas de casa.
«A senhora Aonia, (que ainda então era donzela d'entre treze a quatorze
anos) sem saber que cousa era bem-querer, de umas lagrimas piedosas
regou as suas formosas faces, e, sobre élas, os sentidos primeiros lhe
inclinou, tanto podem, algumas horas, as cousas ouvidas!
«E, se não fôra que era éla moça, facilmente o entendêra logo; mas, não
o entendendo, mil vezes n'aquele dia tornou a pedir á ama lhe dissesse,
ora a cantiga, e ora como estava o pastor.
«E, por acerto, perguntando-lhe uma vez de que feições era, lhe disse a
ama:
--«Eu já outras vezes o vi, de bom corpo, e de boa disposição; a barba
um pouco espessa e um pouco crescida que a êle traz, parece que é aquela
a primeira ainda. Os olhos brancos, de um branco um pouco nublado; na
presença, logo se enxerga que alguma alta tristeza lhe sujeita o
coração.»
«Lembrou a Aonia só tornar-lhe a perguntar quando foram as outras vezes
que o vira.
«Disse-lhe então a ama que o pastor se vinha pôr derredor d'aquelas
casas sempre, e ás vezes se punha a falar com os oficiaes, e outras
andava defronte (na ribeira d'aquele rio) pastorando o seu gado. E este
era o pastor a que todos chamavam «o da flauta», que conhecido era de
todos.
«Não o conhecia Aonia, porque nunca saira fóra. Mas como então logo pôs
na sua vontade de olhar para êle, e de buscar maneira para isso,
(tamanho dó lhe fez ouvir d'êle o seu canto) enganada assim d'aquela
falsa sombra de piedade, toda aquela noite seguinte não pôde dormir. Mas
não que já fosse declarada consigo, nem debaixo d'aquele desejo
determinasse nada; porém, ardia em fogos de dentro de si.
«E porque de todo o ponto se acabasse isto de confirmar de todo, ainda
bem não era manhan, saindo a ama da menina a uma varanda á maneira
d'eirado (que sobre uma parte das casas estava, e fôra feita, logo no
começo, para despejo) viu o pastor estar só, sobre a borda d'este rio,
não muito longe do lugar onde o éla vira o dia antecedente,--que ali
estava o freixo onde se ele pôs a primeira vez que saira da tenda, onde
tambem viu a sombra, como vos disse, e ali foi onde depois veio a
morrer.»


CAPITULO XX
Da peleja que o touro do pastor teve com outro alheio e de como o matou;
a qual Aonia estava vendo do eirado

«E como assim o viu, foi logo dizê-lo a Aonia, correndo, tamanha pressa
dava já a fortuna ao desastre, ou era vinda a hora que se não podia
alongar. E, como lh'o houve dito, ocupou-se em negocios de casa.
«Levantou-se Aonia, e deitando só uma roupa grande sobre si (que, em
camisa, estava ainda na cama) se foi ao eirado, e viu-o estar virado
para aquela mesma parte. Mas, vendo-se Aonia no eirado, e vendo-o,
lembrou-se logo de que ia toucada de um arrodilhado só, como se erguera;
e ou por não parecer que se erguera então, ou já para não parecer mal,
lançou uma manga da camisa sobre a cabeça, e se deixou estar assim.
«E, n'isto, começaram as vacas, pascendo, a rodeá-lo n'aquele lugar onde
êle estava, que era uma maneira d'outeiro pequeno.
«Andando pascendo élas, umas para cá, e outras para lá, deixou-se de
outra manada vir um touro grande e medonho, urrando, e lançando de
quando em quando a terra sobre as ancas; e, d'outras vezes, parecia que
a queria comer, meneando a cabeça para uma e outra parte.
«E, chegando ás vacas, começou tam feramente a pelejar com outro seu
egual, que espanto fazia a éla, lá onde segura estava d'êles, não mais.
«E, andando assim, começaram de se ir chegando, com grande peleja, para
o lugar onde êle estava. Mas vendo éla que não se mudava êle, nem tirava
os olhos d'aquela parte onde olhava, antes parecia (segundo estava
segura) que os não via, senão que isto não era para crêr; quando éla, de
todo em todo, viu que os touros se iam chegando a êle, ficou esmorecida;
e, tornando a si olhou. E, com o espaço que se metia em meio,
tolhendo-lhe os touros a vista d'ele, parecendo-lhe que o tomavam
debaixo, caiu para o outro lado, como morta.
«Vendo Bimnarder aquilo (que para outro lado não olhava) deu-lhe logo no
coração o que era; e ainda que êle tivesse muitas razões para o duvidar,
ou não o haver por certo, (pois de sua vontade, Aonia, não era sabedora,
que êle soubesse) comtudo creu; porque assim o quis o bem-querer grande;
que todas as cousas duvidosas fossem mais certas, ou por mais certas se
crêssem.
«E, cobrando força da melancolia que houvera, pelo que suspeitou, com um
cajado grande que tinha na mão, atirou ao touro alheio, que já a melhor
do seu levava, e quis a sua dita que lhe quebrasse uma perna. E,
lançando-se rijo e acordadamente para ele, o levou por um dos cornos. E
como Bimnarder fosse de muito grandes forças, e com a ajuda do seu
touro, que por instinto natural conheceu o socorro (e lhe tambem
começou, por sua maneira, a ajudar) prontamente deu com o outro em
terra; e virando-lhe a cabeça para o ar, o deixou que se não pôde bulir.
«Viram isto todos os de casa, que ao estrondo grande, e urros dos
touros, acudiram; e foram todos espantados do esforço grande do pastor,
e não falavam de outra cousa.
«A ama, que tambem o viu, foi-se em busca de Aonia, para lh'o contar;
mas, não a achando na camara, lembrou-se que estaria no eirado. Indo lá,
a achou deitada.
«Chegando-se a éla, a viu como passada d'este mundo, e, dando um ai
grande, lançou a mão ao seu rosto; mas, ao brado, acordou Aonia, como
cansada.
«E, parece, como trazia o pensamento ocupado do pastor, foi-se-lhe
afigurar o que receava, pois cuidou que o que fazia a ama seria com dó
do pastor, que assim tambem chorava éla quando lhe contava o que fizera
êle o dia antecedente. E a primeira palavra que lhe disse foi:--«E o
pastor?...»
«Descansou a ama com isto que lhe ouviu, parecendo-lhe que esmorecêra
éla por ver a afronta tamanha em que se pusera o pastor, como é costume
das mulheres.
«Mas n'éla era outra cousa maior, que estava ainda ha bem pouco tam
longe de poder ser como éla de o poder então cuidar.
«Mas tudo já póde ser; ao longo tempo, não é nenhuma cousa nova.
«Contou-lhe então a velha ama tudo o que passara o pastor. E, tornada em
suas forças, se ergueu Aonia, e puseram-se ambas um pouco a olhar para o
touro, que no chão jazia.
«Estava ahi muita gente, dos oficiaes da obra e de casa; e se não fôra
pela vergonha que havia Aonia de a verem, que era em extremo bem
acostumada, não se fôra éla d'ali. Mas comtudo foi-se, já um pouco tam
declaradamente contra sua vontade, que o entendeu éla; porém como era
aquele o primeiro cuidado, não lhe pareceu de todo o que foi, senão que
já consentia éla a si mesma cuidar que, se êle não fosse pastor, logo
lhe quereria bem.
«Recolheu-se Aonia para a camara, a vestir-se; e, em se recolhendo,
acertou de vir de fóra uma mulher de casa, que tambem, parece, saira a
ver a peleja dos touros; e, entrando na casa onde ficara a ama, começou,
um pouco alto, a falar-lhe, dizendo:
--«Quereis vós, senhora ama, saber?»
«Aqui, calou-se, como muito maravilhada.
«A esta palavra, que Aonia ouviu, se pôs a escutar detraz da
guarda-porta da camara.
--«Quê! O pastor?» lhe tornou a ama.
--«É uma maravilha grande, lhe respondeu a mulher. Deveis saber (não sei
se vos lembra) que este pastor é um cavaleiro que n'aquela ante-manhan,
que a Deus prouve levar Belisa para si, chegou aqui e falou a Lamentor.
Eu me acertei de estar então ahi, e o vi sair da tenda com os olhos
cheios da senhora Aonia, e d'agoa; e, todo o tempo que ahi estivera
d'antes, sempre a olhou de uma maneira como que não podia outra cousa
fazer, e que não desejava fazer outra cousa. Que vos hei de dizer?!
Verdadeiramente, me pareceu que se ia êle então como que lhe ficava ahi
o coração. E, por isto que entendi, saí logo após êle para ver onde ia;
e êle foi-se sentar junto de um freixo grande que ali está, onde foi a
peleja dos touros. Eu não olhei mais o que êle fizera, nem o tempo era
para isto disposto, senão agora, que fui ver aquilo que êle fez; e, em
lhe pondo os olhos, deu-me logo a sombra d'êle, e tomei isto por mais
misterio; porque, quando então, estava eu bem fóra de cuidar n'êle; por
esta imaginação subita que me veio, tornei a atentar mais n'êle, e vi
que não podia tirar os olhos de cá. E, quando vós vos fostes do eirado,
ficou triste, mais que d'antes. Quanto a mim, bastou aquilo para
confirmar a minha presunção; porque êle era aquele, como Deus é Deus!»
«Era esta mulher um poucochinho lingoareira; porém, era avisada, se o
alguem era. Mas, pelo outro defeito que tinha, quis-se a ama encobrir
d'éla; e, posto que aquilo tudo logo se lhe assentasse na alma, para o
desfazer, disse-lhe que se fosse d'ali; que éla conhecia aquele pastor,
e, por lhe ver um dia tanger uma flauta bem, perguntára por êle, e
disseram-lhe que era filho do maioral de uma grande manada de vacas e
gado que n'este vale anda.
«E assim se despediu d'éla; porém, a velha ama ficou crendo, por que bem
sabia éla que os acertos em todas as cousas podiam muito, e no
querer-bem mais que em todas élas.»


CAPITULO XXI
De que maneira Bimnarder se viu com Aonia

«Aonia, que estava escutando, ouviu toda esta pratica; e, comquanto a
ama contradissera a outra, éla o creu. E não fôra isto nada, senão que,
após a crença, foram todas as outras cousas que as crenças, n'estes
casos, costumam trazer após si; que logo teve desejos, pensando em
querer-bem; e já não havia dia nem hora que êle fosse certo de sua
vontade para que se não apartasse d'ali por algum desastre, que éla
começou a recear,--porque o verdadeiro bem-querer não póde estar muito
tempo sem receios.
«Vêdes aqui como se namorou esta donzela de Bimnarder, que pareceu cousa
feita de acinte; porque ambos se começaram a querer-bem sob uma sombra
de piedade; e como haviam de acabar ambos de uma mesma
maneira,--começaram assim tambem, ambos de dous, de uma!
«Aonia, logo que se determinou consigo, não pôde mais descansar.
«E como êle tivesse por costume vir sempre por derredor d'aqueles paços
(que sumptuosos se faziam, á maravilha), por uma fresta alta, que na
camara onde éla dormia fôra feita só para o lume, se subiu Aonia,
sabendo que êle andava ahi.
«E, como o viu, com os desejos que tinha de o ver, e com o que consigo
tinha assentado, pareceu-lhe não tam só assim como êle era, mas como éla
queria que fosse.
«Depois de o éla estar olhando um pouco, bem á sua vontade, porque êle,
ainda que contra a fresta com o rosto acertasse então de estar, acertou
tambem de estar olhando para o chão, pensativo como costumava, teve éla
tempo para o ver bem. Mas, depois de um pedaço bom, não suportando não
ser vista por êle, fez que falava com alguma pessoa de casa.
«A isto, olhou Bimnarder, e, conhecendo-a, transportou-se, e lhe caiu o
cajado no chão.
«Levou Aonia contentamento d'aquele desacordo, que bem o viu. E esteve
assim mais um pouco; mas não pôde tanto forçar-se que a vergonha natural
de donzela (ainda tam moça, e tam guardada, como éla era) não pudesse
mais que o seu desejo, e tirou-se depressa da fresta.
«Porém, não estando ainda bem em baixo, tornou a espreitar se se fôra
êle, e tornou-se logo a tirar.
«Tambem quisera éla tornar outra vez e outras, mas não pôde tantas vezes
decidir-se a fazer o que não devia.
«Veio a noite n'aquele dia mais cedo, para Aonia, do que nunca outra
viera. Deus sabe como éla aquela tarde passou! Mas não quero aqui contar
muitas cousas, que, por querer-bem, se fazem de maneira que se não podem
dizer. A velha e honrada ama, que, com o que suspeitou, entendeu o
desassocego de Aonia, que diferente foi logo para quem atentasse n'isso,
andava triste, e desgostosa, em parte de si, pelo que lhe contara d'êle.
E, por isso, o sentia muito mais, e áquela ceia não pôde comer.
«Mas, recolhidas que élas foram áquela camara da fresta, onde dormiam, e
pondo-se a ama a tratar da menina que creava, como costumava,--como
pessoa agastada de alguma nova dôr, e quis tornar ás cantigas; e começou
éla então, para a menina que estava tratando, a cantar-lhe um cantar á
maneira de solau; que era o que, nas cousas tristes, se costumava cantar
n'estas partes, e dizia assim:

ROMANCE
«Pensando-vos estou, filha;
Vossa mãe me está lembrando:
Enchem-se-me os olhos d'agoa...
N'éla vos estou lavando.
«Nascestes, filha, entre mágoa.
Para bem inda vos seja,
Pois em vosso nascimento
Fortuna vos houve inveja.
«Morto era o contentamento,
Nenhuma alegria ouvistes;
Vossa mãe era finada,
Nós outros eramos tristes.
«Nada em dôr, em dôr creada,
Não sei onde isto ha de ir ter...
Vejo-vos, filha, formosa,
Com olhos verdes crescer.
«Não era esta graça vossa
Para nascer em desterro.
Mal haja a desaventura
Que pôs mais n'isto que o erro!
«Tinha aqui a sepultura
Vossa mãe, e mágoa--nós;
Não ereis vós, filha, não,
Para morrerem por vós.
«Não ouvem fados razão,
Nem se consentem rogar;
De vosso pae hei mór dó,
Que de si se ha de queixar.
«Eu vos ouvi a vós, só,
Primeiro que outrem ninguem;
Não foreis vós, se eu não fôra;
Não sei se fiz mal, se bem!
«Mas não póde ser, senhora,
Para mal nenhum nascerdes,
Com esse riso gracioso
Que tendes sob olhos verdes.
«Conforto mais duvidoso
Me é este que tomo assi;
Deus vos dê melhor ventura
Do que tivestes 'té aqui!
«A Dita e a Formosura,
Dizem patranhas antigas,
Que pelejaram um dia,
Sendo d'antes muito amigas.
«Muitos hão que é fantasia;
Eu que vi tempos e anos
Nenhuma cousa duvido,
Que tudo é sujeito a danos.
«Mas nenhum mal não é crido;
O bem só é esperado?
E na crença, e na esperança,
Em ambas ha 'hi cuidado,
Em ambas ha 'hi mudança!»


CAPITULO XXII
De como Bimnarder, estando na fresta da camara de Aonia, se pôs devagar
a ouvir a ama

«O pastor da flauta (que não era pastor) teve n'aquela noite maneira de,
com um pau que colheu, arribar á fresta; e já estava n'éla quando
começara o solau.
«Bem conheceu na limpeza das palavras, e na pronunciação d'élas, que a
ama era natural d'esta terra, e avisada; por onde logo receou que, se
não tivesse n'éla ajuda, teria grande estorvo.
«Encomendou-se á sua sorte.
«Acabou a ama de tratar da creança, que não foi tratada sem muitas
lagrimas d'ambas, d'éla e de Aonia, que penteando-se esteve entretanto,
segundo sentiu Bimnarder,--que êle nada de dentro podia bem divisar,
pelo impedimento de um pano que diante da fresta estava, para amparo
d'éla.
«Acabada a menina de tratar; apagando o lume, se deitaram élas; e,
porque a ama tinha sua suspeita, fez que dormia, para espreitar a Aonia;
e Aonia, porque tinha seu cuidado, não podia dormir, e ora se revolvia
para uma parte, e ora para outra; e outras vezes, após um socego de um
pouco, (colhendo folego) dava um baixo suspiro longo, á maneira de
cansada d'aquilo que acabara de pensar.
«Esteve tudo a ama notando por um grande pedaço.
«E já Bimnarder estava para descer, cuidando que era outrem a que fazia
aquilo, senão quando a ama começou assim a falar para a senhora Aonia:»


CAPITULO XXIII
Do singular conselho que deu a ama á senhora Aonia pelo que suspeitou
dos seus amores

«Não dormis, senhora Aonia? E que será, senhora, se não podeis dormir?
Parecendo-me vae que esta nossa vinda aqui para desastres foi, e não
mais; mas assim de longe os ordena a ventura, que logo ao começo se não
podem conhecer.
«Mal cuidara eu o que havia de acontecer á senhora Belisa, quando,
aquela noite, depois de dormirem todos, nos levantamos nós sós,
caladamente, e pelo laranjal do jardim (que com a espessura do arvoredo
fazia então mais escuro) passámos cheias de medo, e vós pegada a mim,
toda tremendo, fomos sair pela portinha falsa que acolá, no mais escuro
lugar d'êle, estava, onde achámos a Lamentor aguardando-nos já havia
pedaço, todo cheio de esperanças tam longas que, emfim, haviam de vir a
ser, assim, esperanças, não mais!
«Por isso, cumpre a todas as pessoas (e ás donas, senhora, muito mais
cumpre, pois são as que aventuram mais) que, ao principio das cousas,
olhem onde élas podem ir parar; que não ha nenhuma tamanha, que no
começo d'éla, se lhe não possa resistir, ou deixar sem trabalho; que
muitos rios grandes ha ahi que, onde nascem, se podem impedir com um pé,
ou levar para outro ponto; e no meio d'êles, ou depois que colhem
forças, todo o mundo junto os não poderá tolher ou mudar. Chama uma agoa
a outras agoas, e um erro a muitos erros... Em pequeno espaço, crescem
de maneira que se não podem depois deixar!
«Gravemente, e com muita prudencia, devia cada um cuidar se o que faz,
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