Saudades: história de menina e moça - 3

Total number of words is 4850
Total number of unique words is 1273
38.7 of words are in the 2000 most common words
52.9 of words are in the 5000 most common words
59.0 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
«Depois de muito cansada, em alta e dorida voz, começou por estas
palavras:
--«Triste de mim, donzela de pouco tempo, desamparada em terra alheia,
sem parentes, sem ninguem, e sem prazer! Como vós, senhora irman, me
pudestes deixar só, tam longe e em tal lugar?! Para vos tirar a saudade,
me dizieis vós que vinha eu cá: e vós, para m'a dar a mim, vinheis!...
Malaventurada de mim! Para outros fados, cuidava eu que me criava a mim
minha mãe, e éla foi a enganada, e eu a que hei de pagar agora o engano!
Quam sem-razão tamanha, senhor cavaleiro, me é feita diante de vós! De
quantas donzelas por vós foram amparadas, eu só estava para o não ser!
Coitada de mim! Que farei? Onde me irei?...»
«E assim se lançou sobre o corpo de sua irman.
«Mas, ao invocar o cavaleiro, Lamentor a ouviu, como por sonhos; e
tornando em si, viu diante tantas mágoas que ficou sem fala um pouco; e
vendo logo como se matava toda a senhora Aonia, esforçou-se para a ir
ajudar, para que tam cruelmente se não matasse, dizendo:
--«Esforçae-vos, senhora, pois a fortuna quis que um tam desconsolado
vos console!»
«E foi-a a erguer; e, querendo-lhe falar, lhe faleceu a fala.
«Ali, houveram ambos mui triste pranto, e entre si se diziam, um ao
outro, palavras de muita mágoa, começadas pela dôr, rotas pelo pranto.
«E era já manhan clara.
«E acertou assim que, áquela hora, chegava um cavaleiro á ponte, e vinha
de longes terras buscar aquela aventura, por mandado d'uma senhora que
lhe queria bem a êle: mas êle a éla devia-lhe mais do que lhe queria.
«Não achando ninguem na ponte, e ouvindo perto d'ali tam grande pranto,
pareceu-lhe algum misterio, ou alguma cousa de dôr.
«Deu a andar para onde era; e, vendo uma rica tenda, e ouvindo muita
gente, dentro e fóra, chorando, preguntou a um servidor, que topou, que
cousa era aquela. E êle lh'o contou.
«E, apeando-se êle então, (mandando primeiro adiante o escudeiro de
Lamentor) muito mensurado e humildemente, entrou após êle.
«E entrando, e vendo a senhora Aonia, que em grande extremo era formosa,
soltos os seus longos cabelos que toda a cobriam, e parte d'êles
molhados em lagrimas, que o seu rosto por alguma parte descobriam, foi
logo trespassado do amor d'éla, sem haver quem, por parte d'outrem,
fizesse defeza alguma; e como o amor viesse juntamente com a piedade,
parecia que vinha éla só; mas, quando se descobriu, eram já conhecidas
tantas razões por parte da senhora Aonia, que não tam sómente lhe
esqueceu a outra, mas não lhe lembrou mais senão para lhe pesar do tempo
que gastára em seu serviço.
«D'esta maneira, foi êle preso do amor da senhora Aonia; e, depois, veio
a morrer por éla.
«Este foi um dos dous amigos de que é a nossa historia. E, por isto,
costumava meu pae dizer que tornára o amor d'este cavaleiro a morrer na
paixão onde se levantára. Mas, para isto, seu tempo lhe virá.


CAPITULO X
De como Narbindel, vindo a combater com o cavaleiro da ponte, vendo o
pranto que se fazia na tenda de Lamentor, entrou dentro para o consolar

«Dito era já a Lamentor que o cavaleiro entrára: mas êle não no viu
senão quando já o achou junto de si, dizendo-lhe palavras de consolação.
«Lamentor as recebeu d'êle o melhor que pôde, mais por lhe não dar causa
de se deter muito, que por estar para isso. Mas, depois de estarem um
pouco, vendo Lamentor que êle não fazia menção de se ir, forçadamente,
lhe disse:
--«Senhor cavaleiro, a vossa visita vos tenho em mercê. Praza a Deus
que, em outra mais alegre, vo-la pague! Nós vimos de jornada, como
sabereis. As pousadas não são maiores do que vedes; não ha ahi outra
casa senão esta, para a tristeza e para nós. Deveis-vos, senhor, ir para
onde ieis; não tomareis ao menos parte em tanto luto, porque as mágoas
alheias tambem doem a quem as vê. Perdoae-me, que não tenho agora outra
cousa em que vos sirva a vossa boa vontade.»
«O cavaleiro, passando os olhos pela senhora Aonia:
--«Eu não tenho d'onde ir d'aqui», lhe disse.
«E, parece que lembrando-lhe que a havia de deixar, cairam-lhe umas
ralas lagrimas pelo peito.
«Mas, como êle visse que ali não tinham mais do que aquela tenda, e
outra pequena, bem lhe pareceu que não podia caber ali n'aquele tempo
gente estranha, ainda que êle--no seu coração--já o não era. Erguendo-se
então, seguiu sua fala, dizendo:
--«D'este luto, senhor, não me póde a mim já caber pequena parte, para
onde quer que vá. De boamente vo-lo ajudára a passar; mas emfim, vós,
senhor, cavaleiro sois: e mais, pois vindes de longe terra, (como soube
de um servidor vosso) não deve ser este o primeiro que tendes visto;
porque, nas suas mesmas terras, os que nunca se mudam d'éllas, não se
podem escusar de ver luto cada dia, e cada hora do dia!»
«E dizendo-lhe mais que visse o que lhe mandava, se despediu d'êle, com
os olhos postos na senhora Aonia, e assim foi um poucochinho, que a
tenda não lhe deu mais lugar; mas, quando se houve de virar todo, com
muita dôr sua os arrancou d'ali.
«Assim se saiu da tenda; e assim o deixaremos, para seu tempo.»


CAPITULO XI
De como se deu sepultura ao corpo de Belisa, e do pranto que com êle fez
Lamentor

«Lamentor se tornou a seu pranto,--que muita causa tinha êle para isso.
«Mas, estando êle, e a irman, assim por um grande espaço de tempo, que
ia já o Sol para o meio-dia, a dona honrada (que ama se chamou depois,
pela criação da menina) como era já idosa, era de muito saber, e
chegando-se para onde ambos estavam no seu pranto:
--«Senhores, (começou a dizer) para o pranto, muito tempo vos ficará,
que a desventura parece que é n'esta terra como na nossa. Deixai as
lagrimas, que não é agora tempo para vós, senhor, não parecerdes
cavaleiro; nem para vós, senhora, parecerdes tanto mulher. Lembre-vos
que a tristeza é de todos; que tamanho mal foi o nosso que não tam
sómente o hemos de ter, mas ainda nos havemos de consolar uns com os
outros. E, pois temos a dôr para sempre, doâmo-nos, sequer, como de nós
que ficamos vivos. A sepultura é devida aos mortos: hão-se de fazer as
cousas necessarias; olhai que é o derradeiro dom da vida! Termos o corpo
da senhora Belisa mais tempo sobre a terra, parecerá fazermos-lhe força
no mais pouco de sua partida; e porventura se deve éla desgostar de lhe
negarmos o seu descanso quando não nos hade pedir mais cousa alguma.»
«Acabadas estas palavras, que não foram ditas sem muita dôr de todos,
tomou éla á senhora Aonia, como sobraçada, e a levou para a tenda
pequena, que chegada áquela estava; e d'ahi tornou por Lamentor, e
tambem o ajudou a ir para lá. Depois, entendeu em concertar o
necessario.
«Mas Lamentor não quis que levassem o corpo de Belisa para outra parte,
antes mandou que ali, onde falecera, fosse a sua sepultura; porque logo
assentára em sua vontade de nunca mais, emquanto vivesse, se mudar
d'aquele lugar. E assim o fez.
«E porque, nos reinos d'onde êles vinham, se costumava, antes que
mandassem os corpos mortos á terra, virem todos os parentes a
beijarem-nos nas faces, e os familiares nos pés, e o parente mais
chegado por derradeiro de todos (parece que faziam aquilo como saudação,
para que aquela transmigração fosse como em boa hora), quando tudo foi
acabado, a ama veio chamar Lamentor e a senhora Aonia, que foi prestes
lançar-se sobre as faces de sua irman.
«E, beijando-a muitas vezes, levantou a voz, dizendo:
--«N'outra terra, muitas tivereis vós que fizeram isto, mais que
n'esta!»
«E aqui começou a rasgar o seu formoso rosto.
«E todos levantaram um triste pranto.
«Á maravilha, cada um lembrava a sua dôr, e assim a iam beijar nos pés.
«Lamentor, a quem mais doía onde ainda nunca outra cousa lhe doera,
depois de muitos suspiros arrancados d'alma, olhando pelo que devia
fazer, pelo costume, d'esta maneira disse:
--«Senhora Belisa, como vos hei de saudar, eu? Por mim, deixastes vós
vossa mãe, vossa terra, vossos amigos e parentes! Quem vos pôde apartar
de mim, em terras estranhas, para me fazerdes tam triste?! Não me
querieis vós a mim, tamanho bem? Como me deixastes só? Mas alguma
desventura me houve inveja, que o que vós me fazieis para ser o mais
ledo cavaleiro do mundo--para eu ser o mais desgostoso o fazieis vós!...
Malaventurado cavaleiro, que para vós, senhora, estava ordenada uma
sepultura em terra alheia, e, para minha vida, duas! Mas a vossa terá o
corpo; e a minha: vida e alma! Não era mais rijo, senhora, o fio que nos
prendia a ambos? Como o cortastes vós, sem mim? Não vos lembrou que era
eu o que vos não havia de ver mais? Mas pedistes, senhora (me disseram)
que vos levassem de junto de mim, para me não tirarem do repouso; e
outrem tirava-m'o estando longe de vós. Não bastou a minha desventura
haver de ser mais triste do mundo, mas ainda a maneira como me veio o
havia tambem de ser! Não me chamaram senão para vos não ver; e ainda
então vos doestes de mim, que quisereis limpar-me as lagrimas, e a minha
desventura não o queria. Faleceu-vos a mão; como que vos deixava, sendo
já senhora da vossa vontade a morte. E, com os olhos derradeiros postos
em mim, me fostes mostrando que, com a alma, se vos ia tambem a vontade.
Mas devidos eram os meus anos a este vosso caminho; mas mais o era eu ás
tristezas! E, pois fico para élas, o melhor é ficar sem vós!»
«E, com isto, cumpriu o costume.
«Mas a ama, que via não haver ali outrem sobre quem recaisse o cuidado
das honras derradeiras, senão a éla, arredando Lamentor e a senhora
Aonia, tomou uma rica toalha nas mãos, e, lançando-a por cima do rosto
de Belisa:
--«Agora para sempre (disse) vos cumpre olhar para o ceu, onde éla,
bem-aventuradamente, está; que isto é terra! Quem a amar, pois já éla a
deixou, parece que errará ao bem que lhe quiser.»
«Palavras eram estas de muita consolação, se soubera a dôr presente
consolar-se.
«Mas assim a enterraram.
«Deixemos aqui as cousas de Lamentor (que foram muitas e extremadas as
que êle fez, pelo muito que a Belisa queria), porque como este conto
seja dos dous amigos, agravo se lhe fará, ao muito que d'êles ha para
dizer, gastar-se n'outrem alguma parte do tempo.»


CAPITULO XII
Do que sucedeu ao cavaleiro, que saiu da tenda, vencido do parecer e
formosura da senhora Aonia

«Torno-vos ao cavaleiro que saiu da tenda, tam triste que não pôde
alongar-se muito d'ali; e, apeando-se, sentou-se ao pé de um freixo que
cerca d'aquelle ribeiro e da ponte estava. E, para pensar mais á sua
vontade, mandou o seu escudeiro, arredado d'ali, que desse de comer ao
seu cavalo na ribeira d'aquele rio, porque logo se temeu de êle o ver
assim, e cair em alguma suspeita que fosse contar a Cruelcia (que era
aquela por quem viera ali, como ouvistes), porque todos os seus lhe eram
muito afeiçoados; e como éla quisesse a êle muito grande bem, êles não
se podiam ter que lh'o não mostrassem todo em as obras; d'onde nascia
irem-lhe êles a dizer e contar tudo o que êle passava.
«Assim o que êle fazia por bem lhe saía ás vezes em mal; que para
tamanho bem lhe éla queria que não podia deixar de ouvir, pelo tempo,
cousas que a magoassem; nem tambem êle não as podia deixar de fazer,
pelo pouco que lhe queria. Como, de feito, assim, por derradeiro, lhe
foi isto causa, a éla, de triste fim.
«Mas, sentado o cavaleiro ao pé do freixo, esteve por longo espaço
revolvendo muitas cousas na fantasia.
«E, quando se lembrava do que a Cruelcia devia, parecia-lhe sem-razão
deixá-la; por outra parte, lembrando-se de quam bem lhe parecera Aonia,
parecia-lhe desamor não lhe querer bem.
«Tinham-no assim, entre ambas, formosura e obrigação, a ver quem o
levaria; mas, por derradeiro, pôde mais a de mais perto.
«Costumava dizer meu pae que fôra vencida a obrigação, como cousa que
lhe não vinha de direito o pago no amor, e vencera a formosura, como
quem só de amor se pagava.»


CAPITULO XIII
Em que se diz quem fosse Cruelcia e do que o cavaleiro passou com seu
escudeiro

«Era Cruelcia uma de duas filhas a quem sua mãe mais que a si queria, e
de boa formosura; mas obrigou tanto este cavaleiro, com cousas que fez
por êle, que o endividou todo nas obras. Não lhe deixou nada, tam só
para que lhe devesse a formosura. Parece que lhe quis tamanho bem, que
não sofreu a tardança de o ir obrigando pouco a pouco: deu-se-lhe logo
toda. Obrigou-o assim, mas não no namorou.
«Coitadas das mulheres, que, porque vêem que as namoram os homens com
obras, cuidam que assim se devem élas tambem namorar; e é muito pelo
contrario,--que aos homens namoram-nos desdens e presunções. Após uma
brandura de olhos, aspereza muita de obras.
«Isto de seu natural lhes deve vir; porque são tam rijos que parece não
terem em muito senão o que trabalham muito.
«Nós outras, brandas de nosso nascimento, fazemos outra cousa; porém, se
êles comnosco entrassem a juizo, que razão mostrariam por si? O amor,
que é, senão vontade? Não se dá, nem se toma por força. Mas, como quer
que seja, ou pela desventura das mulheres, ou pela ventura dos homens,
sentença é dada em contrario; que a êles os vençam esquivanças; e boas
obras--a élas!
«Esta só maneira puderam ter para os namorarem, se não foram namoradas
d'êles.
«Mas, ao amor, quem lhe porá lei?
«Porém, este desagradecimento dos homens--que é o seu nome
verdadeiro--trouxe muitos desventurados fins, como vereis n'este
cavaleiro em que falâmos.
«E não foram vãos os rogos que Cruelcia fez, com as mãos erguidas ao
Ceu, pedindo d'êle vingança.
«Comtudo, assentou êle, por derradeiro, de a deixar; porque, além de lhe
parecer a senhora Aonia a mais formosa cousa que vira, pareceu-lhe
tambem (por vir de longes terras, e ser n'aquela estrangeira) que mais
depressa haveria seu amor. Esta esperança (ainda que bem visse êle que
era de longe) comtudo grande ajuda foi então para acabar de assentar e
confirmar, ou de fazer muito grande, o bem que lhe queria; porque isto
vae assim, como quando algum amparo tolhe o sol:--se o toma em cheio, é
muito maior a sombra que o amparo que a faz.
«Assim, os que bem querem; porque as esperanças, por pequenas que sejam,
tomam sempre em cheio, ou parece que tomam, os estorvos que tolhem a
cousa bem-quista; fazem o amor muito maior do que élas são; d'onde veem
depois os cuidados que com a morte, ou longa tristeza, se possuem, como
foi n'este cavaleiro, que já não cuidava senão de ver como se apartaria
do seu escudeiro, de maneira que, depois de apartado, lhe não causasse
suspeita alguma d'aquele lugar, para êle mais á sua vontade gosar d'êle.
«Desejava tanto este apartamento, porque bem sabia êle que havia de
sofrer mal o ver-lhe deixar Cruelcia; porque era da criação d'éla, que
lh'o dera para o acompanhar, e nunca outra cousa êle lhe dizia senão que
a havia de tomar em matrimonio,--porque era de alto sangue, e herdava
terras onde êle podia repousar os derradeiros dias da vida, que não
deixam tomar armas com honra.
«Mas, emfim, cuidando o que determinou, o chamou, e fazendo-lhe um
discurso largo, entre outras cousas, lhe disse que lhe não parecia bem
ser êle mesmo que levasse á senhora Cruelcia a nova da aventura que não
achára, vindo por amor d'éla; mas que seria bem levar-lh'a êle, e
dizer-lhe que da sua mofina quisera êle que fosse outrem o portador.
Que, para éla, não podia êle ir em companhia de novas tristes; e que o
esperaria no castelo, que perto d'ali estava, até tornar a trazer-lhe
recado se queria éla pô-lo n'outra aventura, pois aquela, assim, não se
pudera acabar.»


CAPITULO XIV
De como, partido o escudeiro do cavaleiro da tenda, entrou em
pensamentos de como se separaria d'êle, e mudaria o nome

«Partindo o escudeiro com o recado (enganado êle, e para quem o levava)
ficou o cavaleiro só, e começou a entrar em pensamentos de que maneira
mudaria o nome, para que não fosse sabido onde estava, nem se pudesse
saber para onde ia; que tanto se senhoreou, n'aquele pouco tempo, o amor
d'êle, que a si mesmo queria já, em parte, deixar.
«Mas, lembrando-lhe n'isto que n'outro tempo lhe dissera um adivinhador
que, quando êle mudasse a vida e o nome, seria para sempre triste, ficou
um pouco mais pensativo; mas tornando logo a fazer menos conta d'aquelas
cousas, como incertas, e, comtudo, não querendo ir de todo contra élas,
por outras muitas que tinha ouvido pensou em trocar as letras do seu
nome. De maneira que, assim, o não mudaria, nem tentaria os fados.
«Mas êle não viu que isto era engano tambem dos fados.
«Estando êle assim n'este pensamento, acertou, por acaso, que um mateiro
vinha do mato pelo caminho que ia ter á ponte, e vinha em cima de sua
besta, como deitado, e mal coberto com um enxalmo. Parece que andando
êle, despido, cortando a lenha, ateára-se algum fogo perto do seu
vestido, e lh'o queimára; e então o mateiro, por lhe querer acudir,
descuidára-se de si, e o fogo fizera-lhe algum dano, em partes de seu
corpo.
«E, a direito do cavaleiro, topou com outro mateiro, que para o mato ia,
que lhe preguntou, vendo-o vir assim sem lenha, para que fôra ao mato,
respondendo-lhe o mateiro queimado, falando-lhe galego, estas sós
palavras:
--«Bim n'arder.»
«Olhou o cavaleiro para o barbarismo da letra mudada na pronunciação de
_b_ por _v_, e pareceu-lhe misterio; porque ele era aquele que tambem se
fôra a arder,--quis-se chamar assim d'ali ávante.»


CAPITULO XV
De como Bimnarder soube de um servidor de Lamentor que este ordenava
fazer ali uns paços e do mais que lhe aconteceu com a sombra que lhe
apareceu

«Não passou muito que, por aquele lugar, não viesse um dos servidores de
Lamentor, que atravessava para o castelo.
«Quando Bimnarder soube d'êle que Lamentor tinha ordenado fazer ali uns
paços grandes, e morar n'êles toda a sua vida, algum repouso mais deu
isto a Bimnarder; que, d'antes, a pouca certeza que tinha da estada de
Aonia n'aquela terra lhe dava grande fadiga ao pensamento.
«Mas, afrouxado da parte d'este cuidado, entrou n'outro:--do que faria
de si, e para onde se iria; no qual esteve até a noite, sem poder
assentar nada consigo. Porque se o ir-se d'ali para outra parte, lhe era
já grave; ficar, parecia-lhe impossivel cousa poder-se esconder do seu
escudeiro.
«Combatido assim de uma cousa e de outra (ainda, porém, sem determinação
nenhuma) ergueu-se,--como forçado da noite, mais que da vontade.
«Buscando o seu cavalo, onde o deixára o escudeiro, não o achou.
Tornando-se então para o freixo onde antes estivera, para d'ali olhar se
fôra beber a este rio, mas não o vendo nem sentindo em nenhuma parte,
encostou-se então assim ao freixo, pensando, á primeira no cavalo. Mas
não tardou que logo não tornasse ao seu verdadeiro cuidado, imaginando,
parece, a senhora Aonia na fantasia, afigurando-se-lhe vê-la da maneira
que a vira. E, de piedade amorosa, lhe estavam vindo as lagrimas aos
olhos.
«Estando êle assim, todo ocupado d'aquela doce tristeza, sentiu como que
alguem junto de si.
«Olhando, com o luar que então fazia, viu uma sombra de homem de
estatura desproporcionada (de nosso costume) estar perto d'êle.
«A subita novidade o moveu á alteração, mas, como esforçado que era,
lançando mão á sua espada cobrou ousadia de lhe preguntar quem era; e
vendo que, comtudo, se calava, se pôs a mover para êle, já com a espada
arrancada, dizendo:
--«Ou me dirás quem és, ou o saberei eu.»
--«Está quedo, Bimnarder (chamando-o assim por seu nome)--lhe disse a
sombra--que inda agora foste vencido de uma donzela chorando!»
«Deteve Bimnarder o passo, espantado de aquilo que ainda então cuidava
êle que o não sabia ninguem; mas tornando logo a querer-lhe preguntar de
onde o sabia, a meia palavra, olhou... e viu aquela sombra que,
virando-se para umas moitas grandes, que 'hi cerca estavam, se ia
metendo por entre élas, pouco a pouco. E assim se encobriu e
desapareceu.»


CAPITULO XVI
De como, estando Bimnarder muito pensativo no que faria, viu de subito
vir o seu cavalo fugindo d'uns lobos que o queriam matar

«Ficando Bimnarder com o pensamento cheio do que aquilo seria, começou
de ouvir um estrondo grande que vinha pelo mato para onde ele estava. E,
inda bem o não ouvia, quando, correndo por ante si, viu passar o seu
cavalo, e uns lobos após êle, e após êles, de longe, vinham correndo uns
cães com grande grasnada.
«E, ao saltar d'este ribeiro, caiu n'êle o cavalo. E, chegando os lobos,
começaram a mordê-lo por todas as partes, de maneira que, comquanto
prestemente Bimnarder acudiu, já êle era morto.
«E não tardou nada que uns pastores, que perto d'ali tinham a malhada do
seu gado, ao filar dos cães, vieram ali ter, afigurando-se-lhe ser morta
alguma rês; e, achando Bimnarder assim agastado, começaram-no a querer
consolar com palavras e modos rusticos, oferecendo-lhe pousada por
aquela noite.
«Aceitou êle, ainda que não desejava então companhia; mas pelas horas o
fez, e tambem porque logo cuidou que, quando os pastores fossem no seu
rebanho, não lhe haviam mais de tolher o tempo ao pensar,--que para êles
não se fizera a noite senão para dormir.
«Foram assim ao fato de uma grande manada de vacas (que todas estavam
alevantadas, com o alvoroço dos cães e medo dos lobos) metendo-se os
pastores e Bimnarder por entre élas, que lhe iam fazendo lugar, e
escornando umas ás outras.
«E, assim, saindo d'entre élas, estava uma fogueira grande junto de uma
choupana de sebes, cortiçada por cima. E junto d'esta, ao fogo, jazia
deitado, sobre rama verde espalhada, um pastor já de todo branco, que
maioral era do fato; e tinha sua cabeça encostada sobre um tronco de
madeira; e uns rafeiros ainda pequenos lançados em parte por cima do
velho pastor, e outros, grandes, com as cabeças estendidas sobre êle.
«E, em pastores chegando, ergueu êle a cabeça um pouco, e, como homem
que era avisado em semelhantes casos, descansadamente começou a
preguntar pelo que se passava. Contando-lhe êles que não era nenhuma rês
morta, tambem lhe contaram do cavaleiro que traziam.
«Ergueu-se êle então assentado, e fazendo-lhe lugar na rama de sua cama,
lhe rogou que se fosse assentar. E assentado Bimnarder, e assentados
todos derredor d'aquella fogueira, pediu o velho maioral a Bimnarder que
lhe contasse como aquele desastre lhe acontecêra.
«Contou-lh'o êle, brevemente, por lhe satisfazer: como andando o seu
cavalo pastando vieram aqueles lobos, e mataram-lh'o, primeiro que lhe
pudesse valer.
«Ao que, começou com uma fala retumbada a falar o pastor, como que o
queria consolar n'aquela mofina, dizendo:
«Os desastres que acontecem com os animaes ferozes n'este vale, é cousa
espantosa, e, para quem o souber, mais leves de sofrer, se a companhia
em isto dá consolação! N'uma noite de inverno escura, sendo eu mais novo
que agora, diante dos meus olhos, me tomaram a minha vaca bragada (mãe
d'est'outras bragadas, que tenho'inda agora) e mataram-na. Pois tinha eu
então ao pé de mim o rafeiro malhado, e a rafeira branca sua mãe,
armados os pescoços ambos, que nunca me achei com êles, em lugar tam
ermo nem em noite tam trabalhosa, que não estivesse seguro como na
metade do dia; mas então pouco aproveitavam êles a mim, que bradava a
coitada da vaca, e bramia tam doridamente que, em breve espaço, ajuntou
quanto gado tinha, que estava, á la fé, a um bom pedaço d'ali. E já
aqui, onde agora estou, me vieram no claro dia matar quantos bezerrinhos
tinha, que inda não eram para andarem com as mães.»
--«E porque estás então aqui, pastor honrado?»--lhe disse Bimnarder.
--«Nunca vistes outra cousa, lhe disse o pastor, não ha o haver senão
onde ha o perder. A terra é abastada de pastos; e, assim como cria o
bom, cria o mau. Já ouvi dizer a um grande homem, que era dado ás cousas
do outro-mundo, falando na povoação d'esta terra (que, ainda que a vêdes
assim, por partes, metida a mato, é de pastores, em muita maneira,
povoada) que isto era uma das maravilhas da natureza: de uma mesma terra
nascerem duas, tam contrarias uma á outra. E isto não era só nas
alimarias, mas nos homens:--que não ha maus senão onde ha os bons, e não
ha ladrões senão onde ha que furtar. Mas, quanto a mim, não sei qual é
pior para nós outros, pastores:--na terra de pouca ervagem perece-nos o
gado á fome, e cá n'est'outra, matam-no-lo. Assim, em toda a parte nos
vae mal. Mas nós outros somos, emfim, como dizem que são todos os outros
homens (e vós, senhor cavaleiro, o sabereis): podemos melhor sofrer o
mal que nos faz outrem que o que nós fazemos a nós outros mesmos. Os
danos da terra fraca, porque está em nosso poder sairmo-nos d'éla, não
os podemos sofrer; os da outra, que não está em nós vedarmo-los,
sofrêmo-los como podemos. Assim, tambem digo eu, senhor cavaleiro: no
vosso caso, não estejaes agastado; descansae, e tornae tudo á culpa da
terra.»
«Estas palavras, a Bimnarder, pareceram bem; e, se não fôra porque era
contar o pastor a verdade de sua vida, cuidára êle que não eram estas
palavras de pastor; mas o que cada um passa, facilmente o sabe bem
contar; e, por isso, não lhe tornou resposta mais que umas palavras em
sinal de agradecimento d'aquele bom conforto, fazendo menção de querer
repousar; o que vendo, o velho pastor mandou a todos que se calassem, e
que dormissem. E foi feito assim.
«E começaram em breve espaço os pastores a roncar, estirando seus
rusticos membros, uns para cá, outros para lá, como ao sôno aprazia.
«Só Bimnarder não podia repousar, tendo no coração a quem êle não doía.
E quando a todos a escura claridade das estrelas aconselhava o sôno,
d'êle o tinham desterrado os seus cuidados.
«Antes, com os olhos postos para aquela parte d'onde viera (segundo
parecia, com o corpo só) á senhora Aonia, ausente, êle a ouvia chorar.
«E em a longa noite esteve assim, 'té que aquele cansado corpo adormeceu
aquela parte dos sentidos sobre que tinha algum poder. Sonhos e
fantasias ocuparam a outra.
«Mas, depois de um pouco de sôno, acordou êle, todo banhado em lagrimas,
porque sonhára, chorando, que o levava d'ali, por força, a sombra que
vira d'antes. E correndo-lhe, por isto, muitas cousas pelo pensamento,
assentou consigo de se não ir d'aquela terra, 'té vêr o que podia ser
d'êle n'aquele cuidado, que o assim tomára, e assim o seguia.
«D'esta maneira, cuidava êle que não iria contra aquilo que, porventura,
lhe adivinhava o sôno, se o fizesse.
«Tamanho desejo tinha de se não ir nunca d'ali, que tudo lhe parecia que
lh'o aconselhava; e, de muitas maneiras que cuidou, n'esta assentou por
derradeiro: despedir-se cedo d'aquele velho maioral, e ir-se a algum
lugar perto d'ali, onde mudasse os trajos, e tornasse a assentar vivenda
com êle, que grande rebanho lhe parecia que trazia.
«E, ainda que muitos mancebos lhe visse, a pouquidade da soldada faria
com que lhe não fosse sobejo qualquer pastor.
«E assim o fez.»


CAPITULO XVII
De como Bimnarder assentou vivenda com o maioral do gado, e do que a
donzela passou com a dona em sua historia

«Eis Bimnarder pastor de vacas,--que não houve ahi nada impossivel no
amor grande.
«Muito tempo passou êle n'aquela vida, com maus dias e piores noites;
porque Lamentor, no começo logo do seu assentamento, mandou fazer
primeiro umas casas para recolhimento, não mais; e a muita gente que era
vinda para as obras, pela labutação grande que tinha, por causa da
grande pressa que Lamentor dava a élas, tolhia a saida das mulheres,
pelo que Aonia não apareceu um grande tempo, para Bimnarder, ao menos,
ter aquele contentamento que a vista dos olhos dá áqueles que do mais
carecem.
«Conheciam-no, porém, já todos os de casa, e chamavam-lhe o _pastor da
flauta_, porque êle costumava trazê-la sempre, pois para remedio da sua
dôr a escolhêra, depois de se desconhecer.
«Tambem assim, muitas vezes, ora pela ribeira d'este rio, e outras horas
por estas altas assomadas (que fazem, como vêdes, mais gracioso este
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Saudades: história de menina e moça - 4
  • Parts
  • Saudades: história de menina e moça - 1
    Total number of words is 4851
    Total number of unique words is 1270
    38.0 of words are in the 2000 most common words
    52.4 of words are in the 5000 most common words
    59.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Saudades: história de menina e moça - 2
    Total number of words is 4861
    Total number of unique words is 1248
    37.4 of words are in the 2000 most common words
    51.7 of words are in the 5000 most common words
    58.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Saudades: história de menina e moça - 3
    Total number of words is 4850
    Total number of unique words is 1273
    38.7 of words are in the 2000 most common words
    52.9 of words are in the 5000 most common words
    59.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Saudades: história de menina e moça - 4
    Total number of words is 4855
    Total number of unique words is 1223
    38.3 of words are in the 2000 most common words
    54.4 of words are in the 5000 most common words
    60.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Saudades: história de menina e moça - 5
    Total number of words is 4834
    Total number of unique words is 1195
    38.5 of words are in the 2000 most common words
    53.7 of words are in the 5000 most common words
    60.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Saudades: história de menina e moça - 6
    Total number of words is 421
    Total number of unique words is 216
    51.3 of words are in the 2000 most common words
    66.5 of words are in the 5000 most common words
    70.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.