Saudades: história de menina e moça - 1

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SAUDADES
HISTÓRIA
DE
MENINA E MOÇA


COMPOSTO E IMPRESSO NA
IMPRENSA
DE MANUEL LUCAS TORRES,
RUA DO DIARIO DE NOTICIAS, 87 A 93


*Trovas de Crisfal*, de Bernardim Ribeiro, 1 vol. broch. $30
*Bernardim Ribeiro* (_O Poeta Crisfal_), por Delfim Guimarães, 1 vol.
broch. $80
*Theóphilo Braga e a lenda do Crisfal*, por Delfim Guimarães, 1 vol.
broch. $50
*A máscara d'um poeta* (_Bernardim Ribeiro_), por Sílvio de Almeida, 1
vol. broch. $30
A PUBLICAR:
*Éclogas de Jano*, de Bernardim Ribeiro.


Colecção Horas de Leitura

BERNARDIM RIBEIRO
SAUDADES
HISTÓRIA
DE
MENINA E MOÇA
2.ª edição, revista
POR
DELFIM GUIMARÃES


1916
GUIMARÃES & C.ª--Editores
68, Rua do Mundo, 70
LISBOA


SAUDADES
(Historia de Menina e moça)
de
Bernardim Ribeiro
2.ª edição, revista
por
Delfim Guimarães


ADVERTENCIA
(DA 1.ª EDIÇÃO)

Contribuir para a vulgarização do adoravel volumezinho que torna
imorredoiro o nome de Bernardim Ribeiro, quer-me parecer uma boa acção.
Por isso, me encarreguei gostosamente de dirigir esta edição das
«_Saudades_», tarefa que não é de molde a conquistar louros, mas que não
reputo banal nem despida de algum mérito.
Tratando-se de uma edição popular, entenderam os editores, e a meu ver
judiciosamente, que se não devia fazer uma simples reimpressão de
qualquer das edições conhecidas do livro de Bernardim, o que poderia ser
muito apreciado de eruditos e estudiosos, mas que condenaria,
fatalmente, o volume a uma existencia inglória.
Consultando as edições das «_Saudades_», e seguindo, criteriosamente, os
textos; procurando interpretar o mais fielmente possivel a ideia de
Bernardim Ribeiro, e estudando com atenção as variantes que as diversas
edições salientam; modificando uma ou outra palavra caída em desuso;
aclarando uma ou outra passagem de compreensão embaraçosa, e por vezes
quase enigmatica;--tornava-se mister preparar o original que servisse
para a factura d'esta edição, e que, sem alterar sensivelmente a
lingoagem inconfundivel da obra, e sem desvirtuar o pensamento do seu
autor, colocasse as «_Saudades_» ao alcance do grande publico, tornando
conhecida, lida e estimada uma obra de peregrino brilho, um dos mais
belos florões da nossa literatura.
A esse trabalho meti ombros, e dispensei-lhe a melhor vontade e
carinhoso amor, procurando suprir o que me mingoasse em competencia á
força de cuidado.
Como me saí da empreza, não sei, nem a mim cumpre averiguá-lo.
Diz-me a consciencia que procedi com o zelo e a probidade com que se
haveria o artista que fosse chamado a retocar um quadro de mestre;
porque, embora esse artista fosse, como eu, dos mais modestos, todos os
seus cuidados havia de empregar para _se haver na justa grandemente_,
como diria o nosso Bernardim.
A edição ahi fica.
Julguem-na os que teem competencia para fazê-lo.
Lisboa, 4 de agosto de 1905.
Delfim Guimarães


SAUDADES
(História de Menina e moça)
DE
BERNARDIM RIBEIRO


CAPITULO I
Em que a donzela começa a sua historia

Menina e moça, me levaram de casa de meu pae para longes terras. Qual
fosse então a causa d'aquela minha levada,--era eu pequena,--não na
soube. Agora, não lhe ponho outra, senão que já então, parece, havia de
ser o que depois foi.
Vivi ali tanto tempo, quanto foi necessario para não poder viver em
outra parte.
Muito contente fui eu n'aquela terra; mas, coitada de mim, em breve
espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou, e para longo
tempo se buscava! Grande desventura foi a que me fez ser triste, ou a
que, porventura, me fez ser leda!
Mas depois que vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito
mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que
tive, que do mal que tinha.
Escolhi para meu contentamento (se em tristezas e saudades ha algum) vir
viver para este monte, onde o lugar, e mingoa da conversação da gente,
fosse como para meu cuidado cumpria: porque grande erro fôra, depois de
tantos desgostos, quantos eu com estes meus olhos vi, aventurar-me ainda
a esperar do mundo o descanso que êle nunca deu a ninguem!--Estando eu
aqui só, tam longe de toda a outra gente, e de mim ainda mais longe;
d'onde não vejo senão serras, de um lado, que se não mudam nunca, e do
outro agoas do mar, que nunca estão quedas, cuidava eu já que esquecia á
desventura, porque éla, e depois eu, com todo o poder que ambas pudemos,
não deixámos em mim nada em que pudesse nova mágoa ter lugar,--antes
havia muito tempo que tudo era povoado de tristezas, e com razão. Mas
parece que, em desventuras, ha mudanças para outras desventuras; porque,
no bem, não as havia para outro bem; e foi assim que, por caso estranho,
fui levada a um lugar onde me foram ante os meus olhos apresentadas, em
cousas alheias, todas as minhas angustias; e o meu sentido d'ouvir não
ficou sem sua parte da dôr.
Ali vi então, na piedade que tive d'outrem, quam grande a devêra ter de
mim, se não fôra tam demasiadamente mais amiga de minha dôr do que
parece que foi de mim quem me é a causa d'éla; mas tamanha é a razão
porque sou triste que nunca me veio mal nenhum que eu não andasse em
busca d'êle.
D'aqui me vem a mim a parecer que esta mudança, em que me eu vi, já
então começava a buscar, quando esta terra, onde me éla aconteceu, me
aprouve mais que outra nenhuma, para vir aqui acabar os poucos dias de
vida que eu cuidei que me sobejavam. Mas n'isto, como em outras cousas
muitas, me enganei eu. Agora, ha já dous anos que estou aqui, e não sei
ainda tam sómente determinar para quando me aguarda a derradeira hora!
Não póde já vir longe!
Isto me pôs em duvida de começar a escrever as cousas que vi e ouvi.
Mas, depois, cuidando comigo, disse eu que recear de não acabar de
escrever o que vi, não era causa para o deixar de fazer; pois não havia
de escrever para ninguem, senão para mim só. Quanto mais que, em cousas
não acabadas, não havia de ser esta a primeira: pois quando vi eu prazer
acabado, ou mal que tivesse fim?! Antes me pareceu que este tempo que
hei de estar aqui n'este ermo (como a meu mal aprouve) não o podia
empregar em cousa que mais de minha vontade fosse:--pois Deus quis que
assim minha vontade seja.
Se em algum tempo se achar este livrinho na mão de pessoas alegres, não
o leiam, que, porventura, parecendo-lhe que seus casos serão mudaveis,
como os aqui contados, o seu prazer lhe será menos prazer. Isto, onde eu
estivesse, me doeria, porque assaz bastava eu nascer para minhas mágoas,
quanto mais ainda para as d'outrem. Os tristes o poderão lêr: mas ahi
não os houve mais, homens, depois que nas mulheres houve piedade;
mulheres, sim, porque sempre nos homens houve desamor: mas para élas não
o faço eu, pois que o seu mal é tamanho que se não póde confortar com
outro nenhum. Para as mais entristecer, sem-razão seria querer eu que o
lessem élas; antes lhes peço muito que fujam d'êle e de todas as cousas
de tristeza, que, ainda com isto, poucos serão os dias que hão de poder
ser ledas,--porque assim está ordenado pela desventura com que élas
nascem.
Para uma só pessoa podia êle ser; mas d'esta não soube eu mais parte,
depois que as suas desditas, e as minhas, o levaram para longes terras
estranhas, onde bem sei eu que, vivo ou morto, o possue a terra sem
prazer nenhum. Meu amigo verdadeiro, quem me vos levou tam longe? Vós
comigo, e eu convosco, sós, sabiamos suportar nossos grandes desgostos,
e tam pequenos para os de depois! A vós, contava eu tudo. Como vós vos
fostes, tudo se tornou tristeza; nem parece senão que estava espreitando
já que vos fosseis. E para que tudo mais me magoasse, nem tam sómente me
foi deixado, em vossa partida, o conforto de saber para que parte da
terra ieis, porque descansariam os meus olhos em levarem para lá a
vista!
Tudo me foi tirado no meu mal; remedio nem conforto, nenhum houve ahi.
Para morrer mais depressa, me pudera isto aproveitar; mas, para isso,
não me aproveitou. Ainda convosco usou a vossa desventura algum modo de
piedade (dos que não costuma ter com nenhuma pessoa) em vos alongar da
vista d'esta terra; pois que, se para não sentirdes mágoas não havia
remedio, para as não ouvirdes vo-lo deu. Coitada de mim, que estou
falando, e não vejo eu agora que leva o vento as minhas palavras, e que
me não póde ouvir a quem eu falo! Bem sei eu que não era para isto a que
me agora quero pôr; que o escrever alguma cousa pede muito repouso; e a
mim as minhas mágoas ora me levam para um cabo, ora para outro;
trazem-me assim, que me é forçoso tomar as palavras que me élas dão,
porque não sou tam constrangida a servir o engenho, como a minha dôr.
D'estas culpas me acharão muitas n'este livrinho: mas da minha ventura
foram élas. Ainda que, quem me manda a mim olhar por culpas, nem por
desculpas?
O livro ha de ser do que vae escrito n'êle. Das tristezas não se pode
contar nada ordenadamente, porque desordenadamente acontecem élas.
Tambem, por outra parte, não se me dá nada que o não leia ninguem; que
eu não no faço senão para um só, ou para nenhum; pois d'êle, como disse,
não sei novas, tanto ha.
Mas, se ainda me está guardado, para me ser em algum tempo outorgado,
que este pequeno penhor de meus longos suspiros vá ante os seus olhos,
muitas outras cousas desejo, mas esta me seria assaz.


CAPITULO II
Em que a donzela vae prosseguindo a sua historia

N'este monte, mais alto de todos, (que eu vim buscar pela soledade,
diferente dos outros, que n'êle achei) passava eu a minha vida como
podia, ora em me ir pelos fundos vales que o cingem derredor, ora em me
pôr, do mais alto d'êle, a olhar a terra como ia acabar no mar, e depois
o mar como se estendia logo após éla, para acabar onde ninguem o visse.
Mas, quando vinha a noite, entregue a meus pensamentos, e via as aves
buscarem seus pousos, umas chamarem as outras, parecendo que queria
sossegar a terra mesma; então eu, triste, com os cuidados dobrados com
que amanhecia, me recolhia para a minha pobre casa, onde Deus me é boa
testemunha de como as noites dormia!
Assim passava eu o tempo, quando, uma das passadas noites, pouco ha,
levantando-me, eu vi a manhan como se erguia formosa, e se estendia
graciosamente por entre os vales, e deixar indo os altos.
O sol, já levantado até aos peitos, vinha tomando posse dos outeiros,
como quem se queria assenhorear da terra.
As doces aves, batendo as asas, andavam buscando umas ás outras; os
pastores, tangendo as suas flautas, e rodeados dos seus gados, começavam
a assomar pelas cumiadas.
Para todos, parecia que vinha aquele dia assim ledo. Só os meus
cuidados, vendo, parece, como vinha poderoso seu contrario, se recolhiam
a mim, pondo ante meus olhos para quanto prazer e contentamento pudera
aquele dia vir, se não fôra tudo tam mudado; d'onde o que fazia alegre a
todas as cousas, a mim só teve causa de fazer triste!
E como os meus cuidados, para o que tinha a ventura ordenado, me
começassem de entrar pela lembrança de algum tempo, que foi, e que nunca
fôra, assenhorearam-se assim de mim que não me podia já sofrer a par de
minha casa, e desejava ir-me para lugares sós, onde desabafasse em
suspirar.
E ainda bem não foi alto dia, quando eu (parece que acinte) determinei
ir-me para o pé d'este monte, que d'arvoredos grandes, e verdes ervas, e
deleitosas sombras, é cheio; por onde corre um pequeno ribeiro de agoa
de todo o ano, que, nas noites caladas, o rugido d'êle faz no mais alto
d'este monte um saudoso tom, que muitas vezes me tolhe o sôno; onde,
outras muitas, vou eu lavar minhas lagrimas, e onde, muitas, infinitas,
as torno a beber.
Começava então de querer cair a calma: e no caminho, com a pressa, por
fugir d'éla, ou pela desventura que me levava a mim, três ou quatro
vezes caí ali; mas eu (que, depois de triste, cuidei que não tinha mais
que temer) não olhei nada para aquilo, em que me parece que Deus me
queria avisar da mudança que depois havia de vir. Chegando á borda do
rio, olhei para onde haveria melhores sombras. Pareceram-m'o as que
estavam além do rio. Disse então que n'aquilo se enxergava que era
desejado tudo o que com mais trabalho se podia haver; porque não se
podia ir alem sem se passar a agoa, que corria ali mansa e mais alta que
na outra parte.
Mas eu (que sempre folguei de buscar meu dano) passei alem, e fui-me
assentar sob a espessa sombra de um verde freixo, que, para baixo um
pouco, estava.
Algumas das ramas estendiam-se por cima d'agoa, que ali fazia algum
tanto de corrente, e, impedida por um penedo, que no meio d'éla estava,
se partia para um e outro lado, murmurando.
Eu, que os olhos levava ali postos, comecei a cuidar que tambem nas
cousas que não tinham entendimento havia fazerem-se dano umas ás outras.
Estava d'ali aprendendo a tomar algum conforto no meu mal: porque assim
aquele penedo estava contrariando aquela agoa que queria ir seu caminho,
como as minhas desventuras no outro tempo costumavam fazer a tudo o que
eu mais queria,--que já agora não quero nada. E crescia-me d'aquilo um
pesar!
Ao cabo do penedo, tornava a agoa a juntar-se, e ir seu caminho sem
estrondo algum, antes parecia que corria ali mais depressa que pela
outra parte: e dizia eu que seria aquilo para se apartar mais
rapidamente d'aquele penedo, inimigo do seu curso natural, que, como por
força, ali estava.
Não tardou muito que, estando eu assim cuidando, sobre verde um ramo que
por cima da agoa se estendia, se veio pousar um rouxinol. Começou a
cantar tam docemente que de todo me levou após si o meu sentido d'ouvir.
E êle cada vez crescia mais em seus queixumes, que parecia que, como
cansado, queria acabar, senão quando tornava, como que começava.
Então (triste da avezinha) estando-se assim queixando, não sei como, se
caiu morta sobre aquela agoa! Caindo por entre as ramas, muitas folhas
cairam tambem com éla. Pareceu aquilo sinal de pesar, n'aquele arvoredo,
de caso tam desastrado.
Levava-a após si a agoa, e as folhas após éla. Quisera-a eu ir apanhar,
mas pela corrente que ali fazia, e pelo mato que d'ali para baixo, cerca
do rio, logo estava, prestemente se alongou da vista.
O coração me doeu tanto, então, em vêr tam depressa morto quem d'antes,
tam pouco havia, vira estar cantando, que não pude ter as lagrimas.
Certamente que por causa do mundo, depois que perdi outra cousa, me não
pareceu a mim que assim chorasse de vontade; mas em parte este meu
cuidado não foi em vão; porque, ainda que a desventura d'aquela avezinha
fosse causa de minhas lagrimas, lá, ao sair d'elas, foram juntas outras
muitas lembranças tristes.
Grande pedaço de tempo estive assim embargada dos meus olhos, entre os
cuidados que muito havia que me tinham já então, e ainda terão, até que
venha o tempo em que alguma pessoa estranha, com dó de mim, com as suas
mãos cerre estes meus olhos, que nunca foram fartos de me mostrarem
mágoas de si.
E estando assim, olhando para onde corria a agoa, ouvi bulir o arvoredo.
Cuidando que fosse outra cousa, tomou-me medo; mas, olhando para ali, vi
que vinha uma mulher; e, pondo n'ela bem os olhos, vi que era de corpo
alto, disposição boa, e o rosto de dona, senhora do tempo antigo.
Vestida toda de preto, no seu manso andar, e meneios seguros do corpo,
do rosto e do olhar, parecia d'acatamento. Vinha só, e tam pensativa que
não apartava os ramos de si, senão quando lhe impediam o caminho, ou lhe
feriam o rosto.
Os seus pés trazia por entre as frescas ervas, e parte do vestido
estendido por élas. E, entre uns vagarosos passos que éla dava, de
quando em quando colhia um cansado folego, como que lhe queria falecer a
alma.
Sendo cerca de mim e me viu, ajuntando as mãos, á maneira de medo de
mulher, um pouco, como que vira cousa desacostumada, ficou; e eu tambem
assim estava,--não de medo, que a sua boa sombra logo m'o não consentiu,
mas da novidade d'aquilo que ainda ali não vira, havendo muito que, por
meu mal, tinha frequentado aquele lugar, e toda aquela ribeira.
Mas não esteve éla muito tempo assim, porque, parece, conhecendo tambem
que estava com uma boa sombra, começou a dizer, vindo ao meu encontro:
--«Maravilha é ver donzela em ermo, depois que a minha grande desventura
levou a todo o mundo o meu...»
E d'ahi a grande pedaço, misturado já com lágrimas, disse:
--«... filho!»
Depois, tirando um lenço, começou a limpar o rosto, e a chegar-se para
onde eu estava.
Levantei-me eu então, fazendo-lhe aquela cortesia, que éla, com a sua, e
consigo mesma, me obrigava.
E éla:
--«O descostume grande, (me disse) ha muito tempo que vivo n'este ermo,
de ver pessoa alguma, me faz, senhora, desejar saber quem sois, e que
fazeis aqui, ou que viestes a fazer, formosa e só.»
Como eu um pouco tardava em lhe responder, pela duvida em que estava do
que lhe diria, (parece que entendendo-me éla) me tornou:
--«A mim, podereis dizer tudo, que eu sou mulher como vós, e, segundo
vossa presença, vos devo ainda ser muito semelhante; porque me parece
(agora que vos ólho de mais perto) que deveis ser triste, que vossos
olhos teem vossa formosura desfeita, e, ao longe, não se enxergava.»
--«Pareceis vós logo ao longe (respondi eu) o que sois ao perto; e não
vos saberia negar cousa em que de mim vos servisseis; que os vossos
trajos, e tudo o que vos eu ólho, é cheio de tristeza, cousa a que eu
sou ha muito tempo conforme; e porque posso mal encobrir o senhorio que,
eu mesma, ás longas mágoas sobre mim tenho dado, não me quero rogar,
antes vos devia ainda agradecer quererdes saber de mim o que quereis,
para ser ao menos meu mal escutado alguma hora!»
--«Pois dizei-m'o (me tornou éla) que ficardes-me devendo ouvir-vos eu,
nova maneira é tambem de me obrigardes; mas assim me pareceis vós, que,
de vos ser obrigada, folgo muito ainda.»
Satisfazendo-lhe eu então, disse:
--«Sou uma donzela que n'este monte, da banda d'alem d'este ribeiro,
pouco ha que vivo, e não posso viver muito. N'outra terra nasci,
n'outra, de muita gente, me creei, d'onde vim fugindo para esta,
despovoada de tudo, senão só das mágoas que eu trouxe comigo! Este vale,
por onde correm estas agoas claras, que vêdes, os altos arvoredos de
espessas sombras sobre a verde erva, as flores que por aqui aparecem, e
a seu prazer se estendem, ribeira d'esta agoa fria, doces moradas e
pousos das sós deleitosas aves, são tam conformes a meu cuidado, que o
mais do tempo em que o sol anima a terra passo aqui, e, ainda que me
vejaes só, acompanhada estou.
«Muito ha que tenho andado este caminho: nunca vi senão agora a vós. A
grande solidão d'este vale, e de toda esta terra por aqui derredor, me
faz ousar vir assim, mulher... formosa, bem vêdes já que não! E pois não
tenho armas para ofender, para me defender para que me seriam já
necessarias? A toda parte posso já ir, segura de tudo, senão só do meu
cuidado; que não vou a nenhum cabo que êle não vá após mim. Ainda agora
estava eu aqui, só, olhando para aquele penedo (mostrando-lh'o eu então
d'ali) a ver como ele estava contrariando aquela ágoa que queria ir seu
caminho. Ante os meus olhos, sobre aquele ramo que a cobre, se veio pôr
um rouxinol, docemente cantando. De quando em quando parecia, que lhe
respondia outro, lá de muito longe.
«Estando êle assim, no melhor do canto, caiu morto sobre aquela ágoa,
que o levava tam depressa que o não pude eu ir apanhar.
«Tamanha mágoa me nasceu d'isto, que me recordei de outras minhas, de
que tambem grandes desastres foram causa, e levaram-me onde eu tambem
não podia ir buscar-me... (A estas palavras se me arrasaram os olhos de
ágoa, e fui-me com as mãos a êles.) Isto, senhora, fazia quando vós
aparecestes, e o faço as mais das vezes; porque, sempre, ou chóro, ou
estou para chorar!»
Eu, que lhe tinha já respondido, detive-me um pouco cuidando como lhe
preguntaria outro tanto d'éla: maiormente da causa que foi das suas
lagrimas quando não pôde, senão muito tarde, dizer: «filho».
Éla, cuidando que, porventura, eu não queria dizer mais, disse:
--«Bem se vê n'isso, senhora, que sois d'outra parte, e ha pouco que
estaes n'esta, pois dos desastres que n'este ribeiro acontecem vos
espantaes. Ha uma historia muito falada n'esta terra, por aqui derredor,
que muito ha que aconteceu. Lembra-me que era eu menina, e ouvia-a já
então contar a meu pae, por historia. Agora, ainda folgo de cuidar n'éla
pelos grandes acontecimentos e desventuras que n'éla houve. E ainda que
nenhum mal alheio possa confortar o proprio de cada um, parte de ajuda
me é saber, para o sofrimento, que antigo é fazerem-se as cousas sem
razão, e contra razão. De boa vontade, pois parece que ainda a não
ouvistes, vo-la contarei; que, segundo entendo, devem-vos aprazer as
cousas tristes, como vós a mim me dizeis.»
--«O sol (lhe respondi eu) vae alto, e eu folgaria muito de a ouvir,
pela ouvir a vós, e depois por saber que não busquei embalde esta terra
para minhas tristezas, pois tanto ha que se costumam n'ela. Outra cousa,
senhora, vos quisera eu agora preguntar; mas fique para depois, que para
tudo haverá tempo, ainda que a historia, como dizeis, é de tristezas, e
não poderá durar tam pouco como o dia.»
--«Os dias são agora grandes (me tornou éla) e não poderão êles nunca
ser tam pequenos que eu, com todo o meu poder, vos não fizesse a vontade
n'êles, assim sou, senhora, paga por vós; mas olhae o que quereis
antes.»
--«Porque é cousa em que vós folgaes ainda agora de cuidar (lhe respondi
eu) não póde ser pouco para desejar ouvir. Fique o que eu d'antes
quisera para depois, ou para sempre; que só de o eu querer lhe deve vir
isto. Não tomeis de aqui que eu não folgarei de ouvir a historia, porque
isto pudera ser se não fôra de tristezas, para que eu vou achando, já
agora, o tempo curto, tanto folgo com élas. Por isso, contae-a, senhora;
contae-a, pois é de tristezas... Gastaremos o tempo n'aquilo para que
parece que no-lo deram,--a vós e a mim.»


CAPITULO III
Da conta que a dona dá á donzela de sua vinda áquela terra

«Coitada de mim (começou éla) que, para me magoar, busco ainda
desventuras alheias, como se as minhas não bastassem; que são tantas
que, muitas vezes, n'este despovoado, eu mesma ando espantada de mim,
como as posso sofrer!
«Por isso, vos não parecia sem causa triste; que assim o sou eu que, se
o soubesseis, ainda muito mais vo-lo pareceria do que cuido que
parecerei no aspecto; porque a longa dôr, que ha já muito tempo que eu
passo, tem o cansado d'este meu corpo tam acostumado a sofrê-la, que, já
agora, vive n'éla.
«Este é um dos queixumes grandes que eu tenho do corpo, que não ha cousa
para que êle, por longo costume, não seja.
«Assim ha já muitos anos que eu não vivo para mim, e que vim para estes
ermos, fugindo das gentes para quem só anoiteceu e amanheceu...
«Muito me aprouve achar-vos tambem conforme á minha tristeza; porque nos
consolaremos, ambas desconsoladas:--que isto vae assim como quem é
doente d'alguma peçonha, e se cura com outra.
«Quando vos eu á primeira vista vi, em o apartamento de toda a gente
(que n'esta terra ha muito) e o muito que tambem ha que eu não via n'éla
cousa com que falasse, me moveu á alteração, e não pus em vós os olhos,
tanto, como depois que vos falei; e, quanto mais vos ólho, mais acho que
vos olhar. As passadas palavras vossas me dizem que deveis ter o coração
altamente agravado.
«Nas mágoas que as lagrimas teem feitas no vosso rosto (que para esse
efeito parece que não foi dado) entendo eu quam dada deveis ser aos
cuidados, porque não costumam élas fazer-se sem razão.
«Vejo-vos moça; ainda ereis para viver no mundo. Mal haja a desventura
que tam cedo começou em vós, e tam tarde acaba em mim!
«Muito folgaria de me contardes vossas tristezas, uma a uma, que assim,
como vos eu ouvi, não me bastou mais que para me magoar. Mas, pois vós,
senhora, assim fostes servida, eu sou contente.
«E já que não pudestes escusar desventuras, folgo em que vós folgueis de
encobrir vossos males,--que o pesar ha este bem: Inda que não aproveite
para doer menos, aproveita para se sofrer melhor.
«Isto é assaz para as tristes das mulheres, que não teem remedios para o
mal, que os homens teem; porque, n'esse pouco tempo que ha que eu vivo,
tenho aprendido que não ha tristeza nos homens. Só as mulheres são
tristes; que as tristezas quando viram que os homens andavam de um lugar
para outro, e, como as mais das cousas, com as continuas mudanças, ora
se espalhavam ora se perdiam, e que as muitas ocupações lhe tolhiam o
mais do tempo, tornaram-se ás coitadas das mulheres,--ou porque
aborreceram as mudanças, ou porque não tinham para onde lhe fugir.
«Porque, certamente, segundo as desventuras são desarrazoadas e graves,
aos homens se haviam de fazer; mas, quando com êles não puderam,
tornaram-se a nós, como á parte mais fraca. E assim é que padecemos dous
males, um que sofremos, e outro que se não fez para nós. Os homens
cuidam outra cousa, mas o que das mulheres não cuidam êles?! Logo,
costumaram ter em pouco as suas tristezas. Mas se élas, por isso, teem
razão de serem mais tristes, sabê-lo-á quem souber que mágoa é manter
verdade desconhecida!»
A isto não pude eu suster um cansado suspiro de dentro d'alma; e éla,
sentindo-o (com quanto o eu encobri) estendeu a sua mão direita, e,
tomando a minha, com dissimulação, suspeitosa, tornou a falar para mim,
dizendo:
--«Quando eu era da vossa edade, e estava em casa de meu pae, nos longos
serões das espaçosas noites do inverno, entre as outras mulheres de
casa, umas fiando, e outras dobando, muitas vezes, para enganarmos o
trabalho, ordenavamos que alguma de nós contasse historias, que não
deixassem parecer o serão longo; e uma mulher de casa, já velha, que
vira muito e ouvira muitas cousas, por mais ancian, dizia sempre que a
éla pertencia aquele oficio, e, então, contava historias de cavaleiros
andantes.
«E, verdadeiramente, as afrontas e grandes aventuras (que éla contava) a
que se êles punham, pelas donzelas, me faziam a mim haver dó
d'êles,--porque cuidava eu que um cavaleiro convenientemente armado
sobre seu formoso cavalo, pela ribeira de um rio, de gracioso campo
passeando, podia ir tam triste como uma delicada donzela, em alto
aposento, encostada a seu estrado, entre paredes, só podia estar,
vendo-se de altos muros cercada, com tantas guardas,--feitas para tam
pequena força. Mas, para lhe tolherem as vontades, fizeram grandes
defezas, e, para lhe entrar o desgosto, muito pequenas.
«Mais maneiras teem os cavaleiros para se mostrarem mais tristes do que
são; e muito menos teem as donzelas para se mostrarem mais tristes do
que parecem aos homens.
«Ao menos, se eu, depois que soube muitas cousas, pudera tornar atraz,
menos me houveram de magoar do que me magoaram. Que tambem se deve
esperar da dôr aquilo para que cada um a tem; de outra maneira, não se
devia éla ter.
«Digo isto, senhora, porque pelo lugar onde suspirou vosso coração, (que
vós de mim, quanto podieis, vos quisereis encobrir) suspeito eu que
d'alguma grande sem-razão deveis trazer o cuidado magoado; porque a
vossa edade não era para viverdes nos matos. Se os homens não
costumassem agravar donzelas, muito fôra de sentir; mas, das cousas
costumadas, quem se deve agravar?!
«Muito bem vos posso dizer isto (ainda que o conhecimento entre nós seja
pouco) porque sou mais velha que vós, e porque é verdade, para que se
não deve esperar tempo, como para as outras cousas.
«Quantas donzelas comeu já a terra com a saudade que lhe deixaram
cavaleiros, que come outra terra, com outras saudades?!
«Cheios são os livros de historias de donzelas que ficaram chorando por
cavaleiros que se iam, e se lembravam ainda de dar de esporas a seus
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