Os sonetos completos de Anthero de Quental - 4

Total number of words is 4260
Total number of unique words is 1633
31.5 of words are in the 2000 most common words
45.0 of words are in the 5000 most common words
54.6 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
O claro sol, amigo dos heroes!


These e Antithese

I

Já não sei o que vale a nova idea,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspecto, á luz da barricada,
Como bacchante após lubrica ceia...
Sanguinolento o olhar se lhe incendeia;
Respira fumo e fogo embriagada:
A deusa de alma vasta e socegada
Eil-a presa das furias de Medea!
Um seculo irritado e truculento
Chama á epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obuz...
Mas a idea é n'um mundo inalteravel,
N'um crystallino céo, que vive estavel...
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!

II

N'um céo intemerato e crystallino
Póde habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O Ser, como espectaculo divino.
Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou, vive e agita-se incessante:
Enche o ar da terra o seu pulmão possante...
Cá da terra blasphema ou ergue um hymno...
A idea encarna em peitos que palpitam:
O seu pulsar são chamas que crepitam,
Paixões ardentes como vivos soes!
Combatei pois na terra arida e bruta,
Té que a revolva o remoinhar da lucta,
Té que a fecunde o sangue dos heroes!


Justitia Mater

Nas florestas solemnes ha o culto
Da eterna, intima força primitiva:
Na serra, o grito audaz da alma captiva,
Do coração, em seu combate inulto:
No espaço constellado passa o vulto
Do innominado Alguem, que os soes aviva:
No mar ouve-se a voz grave e afflictiva
D'um deus que lucta, poderoso e inculto.
Mas nas negras cidades, onde sôlta
Se ergue, de sangue medida, a revolta,
Como incendio que um vento bravo atiça,
Ha mais alta missão, mais alta gloria:
O combater, á grande luz da historia,
Os combates eternos da Justiça!


Palavras d'um certo Morto

Ha mil annos, e mais, que aqui estou morto,
Posto sobre um rochedo, á chuva e ao vento:
Não ha como eu espectro macilento,
Nem mais disforme que eu nenhum aborto...
Só o espirito vive: vela absorto
N'um fixo, inexoravel pensamento:
«Morto, enterrado em vida!» o meu tormento
É isto só... do resto não me importo...
Que vivi sei-o eu bem... mas foi um dia,
Um dia só--no outro, a Idolatria
Deu-me um altar e um culto... ai! adoraram-me.
Como se eu fosse _alguem_! como se a Vida
Podesse ser _alguem_!--logo em seguida
Disseram que era um Deus... e amortalharam-me!


A UM POETA
_Surge et ambula_!

Tu, que dormes, espirito sereno,
Posto á sombra dos cedros seculares,
Como um levita á sombra dos altares,
Longe da lucta e do fragor terreno,
Accorda! é tempo! O sol, já alto e pleno,
Afugentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio d'esses mares,
Um mundo novo espera só um aceno...
Escuta! é a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! são canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!
Ergue-te pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!


Hymno á Razão

Razão, irmã do Amor e da Justiça,
Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz d'um coração que te appetece,
D'uma alma livre, só a ti submissa.
Por ti é que a poeira movediça
De astros e soes e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroismo medra e viça.
Por ti, na arena tragica, as nações
Buscam a liberdade, entre clarões:
E os que olham o futuro e scismam, mudos,
Por ti, podem soffrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos, que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!


1874--1880


HOMO

Nenhum de vós ao certo me conhece,
Astros do espaço, ramos do arvoredo,
Nenhum adivinhou o meu segredo,
Nenhum interpretou a minha prece...
Ninguem sabe quem sou... e mais, parece
Que ha dez mil annos já, neste degredo,
Me vê passar o mar, vê-me o rochedo
E me contempla a aurora que alvorece...
Sou um parto da Terra monstruoso;
Do humus primitivo e tenebroso
Geração casual, sem pae nem mãe...
Mixto infeliz de trevas e de brilho,
Sou talvez Satanaz;--talvez um filho
Bastardo de Jehovah;--talvez ninguem!


Disputa em familia
Dixit insipiens in corde suo: non est Deus.

I

Sae das nuvens, levanta a fronte e escuta
O que dizem teus filhos rebellados,
Velho Jehovah de longa barba hirsuta,
Solitario em teus Céos acastellados:
«--Cessou o imperio emfim da força bruta!
Não soffreremos mais, emancipados,
O tyranno, de mão tenaz e astuta,
Que mil annos nos trouxe arrebanhados!
Emquanto tu dormias impassivel,
Topámos no caminho a liberdade
Que nos sorrio com gesto indefinivel...
Já provámos os fructos da verdade...
Ó Deus grande, ó Deus forte, ó Deus terrivel.
Não passas d'uma van banalidade!--»

II

Mas o velho tyranno solitario,
De coração austero e endurecido,
Que um dia, de enjoado ou distrahido,
Deixou matar seu filho no Calvario,
Sorrio com rir extranho, ouvindo o vario
Tumultuoso côro e alarido
Do povo insipiente, que, atrevido,
Erguia a voz em grita ao seu sacrario:
«--Vanitas vanitatum! (disse). É certo
Que o homem vão medita mil mudanças,
Sem achar mais do que erro e desacerto.
Muito antes de nascerem vossos paes
D'um barro vil, ridiculas crianças,
Sabia em tudo isso... e muito mais!--»


Mors liberatrix
(A Bulhão Pato)

Na tua mão, sombrio cavalleiro,
Cavalleiro vestido de armas pretas,
Brilha uma espada feita de cometas,
Que rasga a escuridão como um luzeiro.
Caminhas no teu curso aventureiro,
Todo involto na noite que projectas...
Só o gladio de luz com fulvas betas
Emerge do sinistro nevoeiro.
--«Se esta espada que empunho é coruscante,
(Responde o negro cavalleiro-andante)
É porque esta é a espada da Verdade.
Firo, mas salvo... Prostro e desbarato,
Mas consólo... Subverto, mas resgato...
E, sendo a Morte, sou a Liberdade.»


O Inconsciente

O Espectro familiar que anda commigo,
Sem que podesse ainda ver-lhe o rosto,
Que umas vezes encaro com desgosto
E outras muitas ancioso espreito e sigo.
É um espectro mudo, grave, antigo,
Que parece a conversas mal disposto...
Ante esse vulto, ascetico e composto
Mil vezes abro a bocca... e nada digo.
Só uma vez ousei interrogal-o:
Quem és (lhe perguntei com grande abalo)
Phantasma a quem odeio e a quem amo?
Teus irmãos (respondeu) os vãos humanos,
Chamam-me Deus, ha mais de dez mil annos...
Mas eu por mim não sei como me chamo...


MORS-AMOR
(A Luiz de Magalhães)

Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me apparece
Da noite nas phantasticas estradas.
D'onde vem elle? Que regiões sagradas
E terriveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?
Um cavalleiro de expressão potente,
Formidavel, mas placido, no porte,
Vestido de armadura reluzente,
Cavalga a fera extranha sem temor.
E o corcel negro diz: «Eu sou a Morte!»
Responde o cavalleiro: «Eu sou o Amor!»


ESTOICISMO
(A Manoel Duarte de Almeida)

Tu que não crês, nem amas, nem esperas,
Espirito de eterna negação,
Teu halito gelou-me o coração
E destroçou-me da alma as primaveras...
Atravessando regiões austeras,
Cheias de noite e cava escuridão,
Como n'um sonho mau, só oiço um não,
Que eternamente ecchoa entre as espheras...
--Porque suspiras, porque te lamentas,
Cobarde coração? Debalde intentas
Oppor á Sorte a queixa do egoismo...
Deixa aos timidos, deixa aos sonhadores
A esperança van, seus vãos fulgores...
Sabe tu encarar sereno o abysmo!


ANIMA MEA

Estava a Morte alli, em pé, diante,
Sim, diante de mim, como serpente
Que dormisse na estrada e de repente
Se erguesse sob os pés do caminhante.
Era de ver a funebre bacchante!
Que torvo olhar! que gesto de demente!
E eu disse-lhe: «Que buscas, impudente,
Loba faminta, pelo mundo errante?»
--Não temas, respondeu (e uma ironia
Sinistramente estranha, atroz e calma,
Lhe torceu cruelmente a bocca fria).
Eu não busco o teu corpo... Era um tropheu
Glorioso de mais... Busco a tua alma--
Respondi-lhe: «A minha alma já morreu!»


Divina comedia
(Ao Dr. José Falcão)

Erguendo os braços para o céo distante
E apostrophando os deuses invisiveis,
Os homens clamam:--«Deuses impassiveis,
A quem serve o destino triumphante,
Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inestinguiveis,
Dor, peccado, illusão, luctas horriveis,
N'um turbilhão cruel e delirante...
Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?
Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem:--«Homens! porque é que nos criastes?»


Espiritualismo

I

Como um vento de morte e de ruina,
A Duvida soprou sobre o Universo.
Fez-se noite de subito, immerso
O mundo em densa e algida neblina.
Nem astro já reluz, nem ave trina,
Nem flor sorri no seu aereo berço.
Um veneno sutil, vago, disperso,
Empeçonhou a criação divina.
E, no meio da noite monstruosa,
Do silencio glacial, que paira e estende
O seu sudario, d'onde a morte pende,
Só uma flor humilde, mysteriosa,
Como um vago protesto da existencia,
Desabroxa no fundo da Consciencia.

II

Dorme entre os gelos, flor immaculada!
Lucta, pedindo um ultimo clarão
Aos soes que ruem pela immensidão,
Arrastando uma aureola apagada...
Em vão! Do abysmo a bocca escancarada
Chama por ti na gélida amplidão...
Sobe do poço eterno, em turbilhão,
A treva primitiva conglobada...
Tu morrerás tambem. Um ai supremo,
Na noite universal que envolve o mundo,
Ha-de ecchoar, e teu perfume extremo
No vacuo eterno se esvahirá disperso,
Como o alento final d'um moribundo,
Como o ultimo suspiro do Universo.


O CONVERTIDO
(A Gonçalves Crespo)

Entre os filhos d'um seculo maldito
Tomei tambem o logar na impia meza,
Onde, sob o folgar, geme a tristeza
D'uma ancia impotente de infinito.
Como os outros, cuspi no altar avito
Um rir feito de fel e de impureza...
Mas, um dia, abalou-se-me a firmeza,
Deu-me rebate o coração contrito!
Erma, cheia de tedio e de quebranto,
Rompendo os diques ao represo pranto,
Virou-se para Deus minha alma triste!
Amortalhei na fé o pensamento,
E achei a paz na inercia e esquecimento...
Só me falta saber se Deus existe!


ESPECTROS

Espectros que velaes, emquanto a custo
Adormeço um momento, e que inclinados
Sobre os meus somnos curtos e cançados
Me encheis as noites de agonia e susto!...
De que me vale a mim ser puro e justo,
E entre combates sempre renovados
Disputar dia a dia á mão dos Fados
Uma parcella do saber augusto,
Se a minh'alma ha-de ver, sobre si fitos,
Sempre esses olhos tragicos, malditos!
Se até dormindo, com angustia immensa,
Bem os sinto verter sobre o meu leito,
Uma a uma verter sobre o meu peito
As lagrimas geladas da descrença!


Á Virgem Santissima
_Cheia de Graça, Mãe de Misericordia_

N'um sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizivel anciedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza...
Não era o vulgar brilho da belleza,
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as ha na natureza...
Um mystico soffrer... uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira...
Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!


NOX
(A Fernando Leal)

Noite, vão para ti meus pensamentos,
Quando olho e vejo, á luz cruel do dia,
Tanto esteril luctar, tanta agonia,
E inuteis tantos asperos tormentos...
Tu, ao menos, abafas os lamentos,
Que se exhalam da tragica enxovia...
O eterno Mal, que ruge e desvaria,
Em ti descança e esquece, alguns momentos...
Oh! antes tu tambem adormecesses
Por uma vez, e eterna, inalteravel,
Cahindo sobre o mundo, te esquecesses,
E elle, o mundo, sem mais luctar nem ver,
Dormisse no teu seio inviolavel,
Noite sem termo, noite do Não-ser!


EM VIAGEM

Pelo caminho estreito, aonde a custo
Se encontra uma só flor, ou ave, ou fonte,
Mas só bruta aridez de aspero monte
E os soes e a febre do areal adusto,
Pelo caminho estreito entrei sem susto
E sem susto encarei, vendo-os defronte,
Phantasmas que surgiam do horizonte
A accommetter meu coração robusto...
Quem sois vós, peregrinos singulares?
Dor, Tedio, Desenganos e Pesares...
Atraz d'elles a Morte espreita ainda...
Conheço-vos. Meus guias derradeiros
Sereis vós. Silenciosos companheiros,
Bemvindos, pois, e tu, Morte, bemvinda!


Quia aeternus
(A Joaquim de Araujo)

Não morreste, por mais que o brade á gente
Uma orgulhosa e van philosophia...
Não se sacode assim tão facilmente
O jugo da divina tyrannia!
Clamam em vão, e esse triumpho ingente
Com que a Razão--coitada!--se inebria,
É nova forma, apenas, mais pungente,
Da tua eterna, tragica ironia.
Não, não morreste, espectro! o Pensamento
Como d'antes te encara, e és o tormento
De quantos sobre os livros desfallecem.
E os que folgam na orgia impia e devassa
Ai! quantas vezes ao erguer a taça,
Param, e estremecendo, empallidecem!


No turbilhão
(A Jayme Batalha Reis)

No meu sonho desfilam as visões,
Espectros dos meus proprios pensamentos,
Como um bando levado pelos ventos,
Arrebatado em vastos turbilhões...
N'uma espiral, de estranhas contorsões,
E d'onde sáem gritos e lamentos,
Vejo-os passar, em grupos nevoentos,
Distingo-lhes, a espaços, as feições...
--Phantasmas de mim mesmo e da minha alma,
Que me fitaes com formidavel calma,
Levados na onda turva do escarceo,
Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes?
Quem sois, visões miserrimas e atrozes?
Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?!...


IGNOTUS
(A Salomão Sáragga)

Onde te escondes? Eis que em vão clamamos,
Suspirando e erguendo as mãos em vão!
Já a voz enrouquece e o coração
Está cançado--e já desesperamos...
Por céo, por mar e terras procuramos
O Espirito que enche a solidão,
E só a propria voz na immensidão
Fatigada nos volve... e não te achamos!
Céos e terra, clamai, aonde? aonde?--
Mas o Espirito antigo só responde,
Em tom de grande tedio e de pezar:
--Não vos queixeis, ó filhos da anciedade,
Que eu mesmo, desde toda a eternidade,
Tambem me busco a mim... sem me encontrar!


NO CIRCO
(A João de Deus)

Muito longe d'aqui, nem eu sei quando,
Nem onde era esse mundo, em que eu vivia...
Mas tão longe... que até dizer podia
Que emquanto lá andei, andei sonhando...
Porque era tudo ali aereo e brando,
E lucida a existencia amanhecia...
E eu... leve como a luz... até que um dia
Um vento me tomou, e vim rolando...
Cahi e achei-me, de repente, involto
Em lucta bestial, na arena fera,
Onde um bruto furor bramia solto.
Senti um monstro em mim nascer n'essa hora,
E achei-me de improviso feito fera...
--É assim que rujo entre leões agora!


NIRVÂNA
(A Guerra Junqueiro)

Para além do Universo luminoso,
Cheio de fórmas, de rumor, de lida,
De forças, de desejos e de vida,
Abre-se como um vacuo tenebroso.
A onda d'esse mar tumultuoso
Vem ali expirar, esmaecida...
N'uma immobilidade indefinida
Termina ali o ser, inerte, ocioso...
E quando o pensamento, assim absorto,
Emerge a custo d'esse mundo morto
E torna a olhar as cousas naturaes,
Á bella luz da vida, ampla, infinita,
Só vê com tedio, em tudo quanto fita,
A illusão e o vasio universaes.


CONSULTA
(A Alberto Sampaio)

Chamei em volta do meu frio leito
As memorias melhores de outra edade,
Fórmas vagas, que ás noites, com piedade,
Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito...
E disse-lhes:--No mundo immenso e estreito
Valia a pena, acaso, em anciedade
Ter nascido? dizei-mo com verdade,
Pobres memorias que eu ao seio estreito...
Mas ellas perturbaram-se--coitadas!
E empallideceram, contristadas,
Ainda a mais feliz, a mais serena...
E cada uma d'ellas, lentamente,
Com um sorriso morbido, pungente,
Me respondeu:--Não, não valia a pena!


Divina comedia
(Ao Dr. José Falcão)
Erguendo os braços para o céo distante
E apostrophando os deuses invisiveis,
Os homens clamam:--«Deuses impassiveis,
A quem serve o destino triumphante,
Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inestinguiveis,
Dor, peccado, illusão, luctas horriveis,
N'um turbilhão cruel e delirante...
Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?
Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem:--«Homens! porque é que nos criastes?»


VISÃO
(A J. M. Eça de Queiroz)

Eu vi o Amor--mas nos seus olhos baços
Nada sorria já: só fixo e lento
Morava agora ali um pensamento
De dor sem tregoa e de intimos cançaços.
Pairava, como espectro, nos espaços,
Todo envolto n'um nimbo pardacento...
Na attitude convulsa do tormento,
Torcia e retorcia os magros braços...
E arrancava das aras destroçadas
A uma e uma as pennas maculadas,
Soltando a espaços um soluço fundo,
Soluço de odio e raiva impenitentes...
E do phantasma as lagrimas ardentes
Cahiam lentamente sobre o mundo!


1880--1884


Transcendentalismo
(A J. P. Oliveira Martins)

Já socega, depois de tanta lucta,
Já me descança em paz o coração.
Cahi na conta, emfim, de quanto é vão
O bem que ao Mundo e á Sorte se disputa.
Penetrando, com fronte não enxuta,
No sacrario do templo da Illusão,
Só encontrei, com dor e confusão,
Trevas e pó, uma materia bruta...
Não é no vasto mundo--por immenso
Que elle pareça á nossa mocidade--
Que a alma sacia o seu desejo intenso...
Na esphera do invisivel, do intangivel,
Sobre desertos, vacuo, soledade,
Vôa e paira o espirito impassivel!


EVOLUÇÃO
(A Santos Valente)

Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,
Tronco ou ramo na incognita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquissimo inimigo...
Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paúl, glauco pacigo...
Hoje sou homem--e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espiraes, na immensidade...
Interrogo o infinito e ás vezes chóro...
Mas, estendendo as mãos no vacuo, adoro
E aspiro unicamente á liberdade.


Elogio da Morte
Morrer é ser iniciado.
Anthologia Grega.

I

Altas horas da noite, o Inconsciente
Sacode-me com força, e accórdo em susto.
Como se o esmagassem de repente,
Assim me pára o coração robusto.
Não que de larvas me povôe a mente
Esse vacuo nocturno, mudo e augusto,
Ou forceje a razão por que afugente
Algum remorso, com que encara a custo...
Nem phantasmas nocturnos visionarios,
Nem desfilar de espectros mortuarios,
Nem dentro de mim terror de Deus ou Sorte...
Nada! o fundo dum poço, humido e morno,
Um muro de silencio e treva em torno,
E ao longe os passos sepulcraes da Morte.

II

Na floresta dos sonhos, dia a dia,
Se interna meu dorido pensamento.
Nas regiões do vago esquecimento
Me conduz, passo a passo, a phantasia.
Atravesso, no escuro, a nevoa fria
D'um mundo estranho, que povôa o vento,
E meu queixoso e incerto sentimento
Só das visões da noite se confia.
Que mysticos desejos me enlouquecem?
Do Nirvâna os abysmos apparecem,
A meus olhos, na muda immensidade!
N'esta viagem pelo ermo espaço,
Só busco o teu encontro e o teu abraço,
Morte! irman do Amor e da Verdade!

III

Eu não sei quem tu és--mas não procuro
(Tal é minha confiança) devassal-o.
Basta sentir-te ao pé de mim, no escuro,
Entre as fórmas da noite, com quem falo.
Atravez do silencio frio e obscuro
Teus passos vou seguindo, e, sem abalo,
No cairel dos abysmos do Futuro
Me inclino á tua voz, para sondal-o.
Por ti me engolfo no nocturno mundo
Das visões da região innominada,
A ver se fixo o teu olhar profundo...
Fixal-o, comprehendel-o, basta uma hora,
Funerea Beatriz de mão gelada...
Mas unica Beatriz consoladora!

IV

Longo tempo ignorei (mas que cegueira
Me trazia este espirito ennublado!)
Quem fosses tu, que andavas a meu lado,
Noite e dia, impassivel companheira...
Muitas vezes, é certo, na canceira,
No tedio extremo d'um viver maguado,
Para ti levantei o olhar turbado,
Invocando-te, amiga derradeira...
Mas não te amava então nem conhecia:
Meu pensamento inerte nada lia
Sobre essa muda fronte, austera e calma.
Luz intima, afinal, alumiou-me...
Filha do mesmo pae, já sei teu nome,
Morte, irman coeterna da minha alma!

V

Que nome te darei, austera imagem,
Que avisto já n'um angulo da estrada,
Quando me desmaiava a alma prostrada
Do cançaço e do tedio da viagem?
Em teus olhos vê a turba uma voragem,
Cobre o rosto e recúa apavorada...
Mas eu confio em ti, sombra velada,
E cuido perceber tua linguagem...
Mais claros vejo, a cada passo, escritos,
Filha da noite, os lemmas do Ideal,
Nos teus olhos profundos sempre fitos...
Dormirei no teu seio inalteravel,
Na communhão da paz universal,
Morte libertadora e inviolavel!

VI

Só quem teme o Não-ser é que se assusta
Com teu vasto silencio mortuario,
Noite sem fim, espaço solitario,
Noite da Morte, tenebrosa e augusta...
Eu não: minh'alma humilde mas robusta
Entra crente em teu atrio funerario:
Para os mais és um vacuo cinerario,
A mim sorri-me a tua face adusta.
A mim seduz-me a paz santa e ineffavel
E o silencio sem par do Inalteravel,
Que envolve o eterno amor no eterno luto.
Talvez seja peccado procurar-te,
Mas não sonhar comtigo e adorar-te,
Não-ser, que és o Ser unico absoluto.


Contemplação
(A Francisco Machado de Faria e Maia)

Sonho de olhos abertos, caminhando
Não entre as formas já e as apparencias,
Mas vendo a face immovel das essencias,
Entre ideas e espiritos pairando...
Que é o mundo ante mim? fumo ondeando,
Visões sem ser, fragmentos de existencias...
Uma nevoa de enganos e impotencias
Sobre vacuo insondavel rastejando...
E d'entre a nevoa e a sombra universaes
Só me chega um murmurio, feito de ais...
É a queixa, o profundissimo gemido
Das cousas, que procuram cegamente
Na sua noite e dolorosamente
Outra luz, outro fim só presentido...


Lacrimae rerum
(A Tommaso Cannizzaro)

Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,
Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oraculo sagrado,
Confidente e interprete da Sorte!
Aonde vão teus soes, como cohorte
De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o homem porque vaga desolado
E em vão busca a certeza que o conforte?
Mas, na pompa de immenso funeral,
Muda, a noite, sinistra e triumphal,
Passa volvendo as horas vagarosas...
É tudo, em torno de mim, duvida e luto:
E, perdido n'um sonho immenso, escuto
O suspiro das cousas tenebrosas...


REDEMPÇÃO
(Á Ex.^{ma} Snr.^a D. Celeste C. B. R.)

I

Vozes do mar, das arvores, do vento!
Quando ás vezes, n'um sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento...
Verbo crepuscular e intimo alento
Das cousas mudas; psalmo mysterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do mundo e o seu lamento?
Um espirito habita a immensidade:
Uma ancia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.
E eu comprehendo a vossa lingua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha...
Almas irmans da minha, almas captivas!

II

Não choreis, ventos, arvores e mares,
Côro antigo de vozes rumorosas,
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas tumulares...
Da sombra das visões crepusculares
Rompendo, um dia, surgireis radiosas
D'esse sonho e essas ancias affrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares...
Almas no limbo ainda da existencia,
Accordareis um dia na Consciencia,
E pairando, já puro pensamento,
Vereis as Formas, filhas da Illusão,
Cahir desfeitas, como um sonho vão...
E acabará por fim vosso tormento.


Voz interior
(A João de Deus)

Embebido n'um sonho doloroso,
Que atravessam phantasticos clarões,
Tropeçando n'um povo de visões,
Se agita meu pensar tumultuoso...
Com um bramir de mar tempestuoso
Que até aos céos arroja os seus cachões,
Atravez d'uma luz de exhalações,
Rodeia-me o Universo monstruoso...
Um ai sem termo, um tragico gemido
Echoa sem cessar ao meu ouvido,
Com horrivel, monotono vaivem...
Só no meu coração, que sondo e meço,
Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
Em segredo protesta e affirma o Bem!


LUCTA
Fluxo e refluxo eterno...
João de Deus.

Dorme a noite encostada nas colinas.
Como um sonho de paz e esquecimento
Desponta a lua. Adormeceu o vento,
Adormeceram valles e campinas...
Mas a mim, cheia de attracções divinas,
Dá-me a noite rebate ao pensamento.
Sinto em volta de mim, tropel nevoento,
Os Destinos e as Almas peregrinas!
Insondavel problema!... Apavorado
Recúa o pensamento!... E já prostrado
E estupido á força de fadiga,
Fito inconsciente as sombras visionarias,
Emquanto pelas praias solitarias
Echoa, ó mar, a tua voz antiga.


LOGOS
(Ao snr. D. Nicolau Salmeron)

Tu, que eu não vejo, e estás ao pé de mim
E, o que é mais, dentro de mim--que me rodeias
Com um nimbo de affectos e de ideas,
Que são o meu principio, meio e fim...
Que estranho ser és tu (se és ser) que assim
Me arrebatas comtigo e me passeias
Em regiões innominadas, cheias
De encanto e de pavor... de não e sim...
És um reflexo apenas da minha alma,
E em vez de te encarar com fronte calma,
Sobresalto-me ao ver-te, e tremo e exoro-te...
Falo-te, calas... calo, e vens attento...
És um pae, um irmão, e é um tormento
Ter-te a meu lado... és um tyranno, e adoro-te!


Com os mortos

Os que amei, onde estão? idos, dispersos,
Arrastados no gyro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos...
E eu mesmo, com os pés tambem immersos
Na corrente e á mercê dos turbilhões,
Só vejo espuma livida, em cachões,
E entre ella, aqui e ali, vultos submersos...
Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Os sonetos completos de Anthero de Quental - 5
  • Parts
  • Os sonetos completos de Anthero de Quental - 1
    Total number of words is 4519
    Total number of unique words is 1625
    31.9 of words are in the 2000 most common words
    47.3 of words are in the 5000 most common words
    55.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Os sonetos completos de Anthero de Quental - 2
    Total number of words is 4577
    Total number of unique words is 1690
    32.9 of words are in the 2000 most common words
    49.1 of words are in the 5000 most common words
    57.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Os sonetos completos de Anthero de Quental - 3
    Total number of words is 4511
    Total number of unique words is 1661
    32.7 of words are in the 2000 most common words
    48.9 of words are in the 5000 most common words
    56.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Os sonetos completos de Anthero de Quental - 4
    Total number of words is 4260
    Total number of unique words is 1633
    31.5 of words are in the 2000 most common words
    45.0 of words are in the 5000 most common words
    54.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Os sonetos completos de Anthero de Quental - 5
    Total number of words is 1353
    Total number of unique words is 584
    44.4 of words are in the 2000 most common words
    60.5 of words are in the 5000 most common words
    65.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.