Os sonetos completos de Anthero de Quental - 2

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soffrida pela ironia dos periodos anteriores. Que nome se hade dar ao
sentimento que inspira os sonetos _Á Virgem Santissima_ e o _Na mão de
Deus_ que fecha o volume? Eu por mim chamarei humorismo transcendente a
essa liga intima da piedade e da ironia, e declaro que nunca vi cousa
parecida posta em verso. Em prosa, ha mais de um periodo de Renan
inspirado por um espirito similhante, embora menos agudo.
Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa,
E deixa-me sonhar a vida inteira!
A visão é a Virgem Santissima, e a poesia é tão sincera, tão verdadeira,
tão cheia de piedade e uncção, que eu sei de mais de um livro de resas
onde andam copias escriptas.
Dorme o teu somno, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!
Um monge christão escreveria isto. E Anthero de Quental nem é christão,
nem crê em Deus, nem na Virgem, segundo o sentido ordinario da palavra
crer.
Blasphemar era bom n'outros tempos; para a ironia tambem a idade passou;
finalmente para o _exercicio litterario_ nunca se inclinou a penna que o
poeta molhou sempre no seu sangue. Como explicar, pois, o phenomeno?
Por acaso subiu já o leitor ao cume de um monte sufficientemente alto
para que toda a paysagem lhe apparecesse á vista, fundida a ponto de não
distinguir uma arvore de um cazal, nem um rio de um valle sem curso de
agua? Pois succede assim nas campinas da historia do pensamento humano,
quando as olhamos das cumiadas luminosas da critica. Vêem-se as cousas
na sua essencia, não importam os accidentes. O fetiche que o selvagem
adora, a imagem perante a qual se prostra o commum dos crentes, o
architecto universal dos pensadores livres, e finalmente esse _quid_
innominado a que a philosophia moderna chamou Inconsciente--tudo isso é
egualmente Deus: sómente é Deus percebido pela imaginação infantil, Deus
percebido pela intelligencia vulgar, Deus percebido pelo saber
incipiente, e Deus finalmente incomprehendido, mas sentido, pela
sabedoria. E todas essas modalidades de uma mesma impressão, recebida e
representada de fórma diversa, consoante a natureza e o estado de
educação dos homens, são egualmente verdadeiras, egualmente santas e
egualmente humoristicas, para aquelle que tem coração para sentir as
cousas por dentro, e olhos para as ver de fora--objectivamente, como os
allemães dizem, e nós diremos criticamente.
Eis ahi a suprema liberdade do espirito, o Nirvâna apenas intellectual,
a que eu prefiro chamar impassibilidade subjectiva: um estado que
permitte comprehender todas as cousas, analysando-as e classificando-as,
sem todavia nos transmittir essa especie de frialdade de coração,
propria dos naturalistas quando estudam uma rocha, uma planta ou um
animal. O philosopho, impassivel ao analysar e classificar os phenomenos
do espirito humano, ha-de misturar ao sorriso que provocam todas as
vaidades e illusões, o amor que merecem todos os sentimentos ingenuos e
fundamentalmente bons; hade alliar á comprehensão da nullidade
extrinseca das cousas, a comprehensão da sua excellencia intrinseca;
exigindo que o homem seja activo, porque a actividade é boa por ser
indispensavel á saude do espirito, embora os objectos da actividade
sejam as mais das vezes irritos e nullos, quando considerados em si
proprios e isoladamente.
E eis ahi as razões porque eu não sou buddhista... nem Anthero de
Quental o é, embora julgue sel-o. A evolução dolorosa que terminou com o
seu ultimo soneto, esta longa e tempestuosa viagem atravez do mar
tenebroso da phantasia metaphisica, parece ter concluido. A edade,
talvez, acima de tudo, trouxe ao espirito do poeta uma paz illuminada de
bondade e sabedoria, e como a sua alma é san e a sua intelligencia firme
e sempre activa, é mais que provavel que o declinar da vida de Anthero
de Quental enriqueça o peculio por signal bem pobre da philosophia
portuguesa com algum trabalho tão digno de se conservar na memoria dos
tempos, como estes _Sonetos_ que são as amargas flores de uma mocidade.
Esse trabalho, porem, não será um cathecismo buddhista, não pode ser
nenhuma revelação milagrosa do _verdadeiro_ systema, porque a sabedoria
nos diz que toda a pretenção de Verdade é illusoria, pois sendo nós, a
nossa intelligencia, os nossos pensamentos, simples e fugitivas
contingencias, é loucura pensar que jamais possamos definir o Absoluto.
Cada qual sente-o a seu modo, segundo o seu temperamento; e sabio é
aquelle que se limita a registrar as relações das cousas.

III

Quem deante d'estes versos não sentir elevar-se-lhe o espirito, como
n'uma oração, áquella especie de Deus que é compativel com o seu
temperamento ou com o estado de educação do seu pensamento, é por que
tem dentro do peito, no logar do coração, um seixo polido e frio. Quem,
no meio do lidar da vida, roçando os braços pelas arestas cortantes que
a erriçam de angulos, pousar o olhar da alma sobre um d'estes sonetos e
não sentir o que os sequiosos sentem ao encontrarem um arroio de agua
limpida, é porque tem a alma feita apenas de egoismo. Quem, emergindo
dos montões de papelada que as imprensas vomitam diariamente, deitar os
olhos sobre estas paginas, e não sentir o deslumbramento que os
diamantes produzem, é porque a sua vista se embaciou com o exame dos
livros grosseiros em todo o sentido, e a sua lingua perdeu o habito de
fallar portuguez.
Um dos nossos mais queridos amigos, um dos que conhecem de perto Anthero
de Quental--e sómente o conhece quem com elle viveu largo tempo na
intimidade--interroga-me geralmente d'este modo: «E _santo_ Anthero,
como vae?»
Dil-o com a convicção quente dos artistas, mas eu, que o não sou, tenho
a pôr embargos, porque a santidade não é planta adequada ao clima do
nosso tempo. Exige uma porção de sentimento ingenuo que já não ha nos
ares que respiramos.
A vida contemplativa, porem, a vida asceta inclusivamente: essa virtude
austera para comsigo, tolerante para com tudo e para com todos; esse
observar constante de si proprio e o dispensar de um sorriso sempre bom,
embora indifferente com frequencia, aos que alguma vez o rodeiam; a
caridade, o amor, a abnegação, as tentações, as crises, as lagrimas, as
afflicções, as duvidas cruciantes e as dores angustiosas: tudo o que,
reunido, forma uma alma mystica--tudo isso móra na alma d'este poeta
arrebatada pela visão inextinguivel do Bem.
Só no meu coração, que sondo e meço,
Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
Em segredo protesta e affirma o Bem.
E para nada faltar a este mystico, anachronicamente perdido no meio do
borborinho de um seculo activo até á demencia, tem tambem uma fé
ardente--uma fé buddhista. Somente o seu Deus, Deus sem vontade, sem
intelligencia e sem consciencia, é, para nós outros, a quem são vedados
os mysterios da metaphisica buddhista, igual a cousa nenhuma.
Este homem, fundamentalmente bom, se tivesse vivido no seculo VI ou no
seculo XIII, seria um dos companheiros de S. Bento ou de S. Francisco de
Assis. No seculo XIX é um excentrico, mas d'esse feitio de
excentricidade que é indispensavel, porque a todos os tempos foram
indispensaveis os herejes, a que hoje se chama dissidentes.
_Oliveira Martins_.


OS CAPTIVOS

Encostados ás grades da prisão,
Olham o céo os pallidos captivos.
Já com raios obliquos, fugitivos,
Despede o sol um ultimo clarão.
Entre sombras, no longe, vagamente,
Morrem as vozes na extensão saudosa.
Cae do espaço, pesada, silenciosa,
A tristeza das cousas, lentamente.
E os captivos suspiram. Bandos de aves
Passam velozes, passam apressados,
Como absortos em intimos cuidados,
Como absortos em pensamentos graves.
E dizem os captivos: Na amplidão
Jamais se extingue a eterna claridade...
A ave tem o vôo e a liberdade...
O homem tem os muros da prisão!
Aonde ides? qual é vossa jornada?
Á luz? á aurora? á immensidade? aonde?
--Porém o bando passa e mal responde:
Á noite, á escuridão, ao abysmo, ao nada!--
E os captivos suspiram. Surge o vento,
Surge e perpassa esquivo e inquieto,
Como quem traz algum pezar secreto,
Como quem soffre e cala algum tormento.
E dizem os captivos: Que tristezas,
Que segredos antigos, que desditas,
Caminheiro de estradas infinitas,
Te levam a gemer pelas devezas?
Tu que procuras? que visão sagrada
Te acena da soidão onde se esconde?
--Porém o vento passa e só responde:
A noite, a escuridão, o abysmo, o nada!--
E os captivos suspiram novamente.
Como antigos pezares mal extinctos,
Como vagos desejos indistinctos,
Surgem do escuro os astros, lentamente.
E fitam-se, em silencio indecifravel,
Contemplam-se de longe, mysteriosos,
Como quem tem segredos dolorosos,
Como quem ama e vive inconsolavel...
E dizem os captivos: Que problemas
Eternos, primitivos vos attrahem?
Que luz fitaes no centro d'onde saem
A flux, em jorro, as intuições supremas?
Por que esperaes? n'essa amplidão sagrada
Que soluções esplendidas se escondem?
--Porém os astros tristes só respondem:
A noite, a escuridão, o abysmo, o nada!--
Assim a noite passa. Rumorosos
Susurram os pinhaes meditativos,
Encostados ás grades, os captivos
Olham o céo e choram silenciosos.


OS VENCIDOS

Tres cavalleiros seguem lentamente
Por uma estrada erma e pedregosa.
Geme o vento na selva rumorosa,
Cae a noite do céo, pesadamente.
Vacilam-lhes nas mãos as armas rotas,
Têm os corceis poentos e abatidos,
Em desalinho trazem os vestidos,
Das feridas lhe cae o sangue, em gotas.
A derrota, traiçoeira e pavorosa,
As fontes lhes curvou, com mão potente.
No horisonte escuro do poente
Destaca-se uma mancha sanguinosa.
E o primeiro dos tres, erguendo os braços,
Diz n'um soluço: «Amei e fui amado!
Levou-me uma visão, arrebatado,
Como em carro de luz, pelos espaços!
Com largo vôo, penetrei na esphera
Onde vivem as almas que se adoram,
Livre, contente e bom, como os que moram
Entre os astros, na eterna primavera.
Porque irrompe no azul do puro amor
O sopro do desejo pestilente?
Ai do que um dia recebeu de frente
O seu halito rude e queimador!
A flor rubra e olorosa da paixão
Abre languida ao raio matutino,
Mas seu profundo calix purpurino
Só reçuma veneno e podridão.
Irmãos, amei--amei e fui amado...
Por isso vago incerto e fugitivo,
E corre lentamente um sangue esquivo
Em gotas, de meu peito alanceado.»
Responde-lhe o segundo cavalleiro,
Com sorriso de tragica amargura:
«Amei os homens e sonhei ventura,
Pela justiça heroica, ao mundo inteiro.
Pelo direito, ergui a voz ardente
No meio das revoltas homicidas:
Caminhando entre raças opprimidas,
Fil-as surgir, como um clarim fremente.
Quando ha de vir o dia da justiça?
Quando ha de vir o dia do resgate?
Trahio-me o gladio em meio do combate
E semeei na areia movediça!
As nações, com sorriso bestial,
Abrem, sem ler, o livro do futuro.
O povo dorme em paz no seu monturo,
Como em leito de purpura real.
Irmãos, amei os homens e contente
Por elles combati, com mente justa...
Por isso morro á mingoa e a areia adusta
Bebe agora meu sangue, ingloriamente.»
Diz então o terceiro cavalleiro:
«Amei a Deus e em Deus puz alma e tudo.
Fiz do seu nome fortaleza e escudo
No combate do mundo traiçoeiro
Invoquei-a nas horas affrontosas
Em que o mal e o peccado dão assalto.
Procurei-o, com ancia e sobresalto,
Sondando mil sciencias duvidosas.
Que vento de ruina bate os muros
Do templo eterno, o templo sacrosanto?
Rolam, desabam, com fragor e espanto,
Os astros pelo céo, frios e escuros!
Vacila o sol e os santos desesperam...
Tedio reçuma a luz dos dias vãos...
Ai dos que juntam com fervor as mãos!
Ai dos que crêem! ai dos que inda esperam!
Irmãos, amei a Deus, com fé profunda...
Por isso vago sem conforto e incerto,
Arrastando entre as urzes do deserto
Um corpo exangue e uma alma moribunda.»
E os tres, unindo a voz n'um ai supremo,
E deixando pender as mãos cançadas
Sobre as armas inuteis e quebradas,
N'um gesto inerte de abandono extremo,
Sumiram-se na sombra duvidosa
Da montanha calada e formidavel,
Sumiram-se na selva impenetravel
E no palor da noite silenciosa.


ENTRE SOMBRAS

Vem ás vezes sentar-se ao pé de mim
--A noite desce, desfolhando as rosas--
Vem ter commigo, ás horas duvidosas,
Uma visão, com azas de setim...
Pousa de leve a delicada mão
--Rescende amena a noite socegada--
Pousa a mão compassiva e perfumada
Sobre o meu dolorido coração...
E diz-me essa visão compadecida
--Ha suspiros no espaço vaporoso--
Diz-me: Porque é que choras silencioso?
Porque é tão erma e triste a tua vida?
Vem commigo! Embalado nos meus braços
--Na noite funda ha um silencio santo--
N'um sonho feito só de luz e encanto
Transporás a dormir esses espaços...
Porque eu habito a região distante
--A noite exhala uma doçura infinda--
Onde ainda se crê e se ama ainda,
Onde uma aurora igual brilha constante...
Habito ali, e tu virás commigo
--Palpita a noite n'um clarão que offusca--
Porque eu venho de longe, em tua busca,
Trazer-te paz e alivio, pobre amigo...
Assim me fala essa visão nocturna
--No vago espaço ha vozes dolorosas--
São as suas palavras carinhosas
Agua correndo em crystalina urna...
Mas eu escuto-a immovel, somnolento
--A noite verte um desconsolo immenso--
Sinto nos membros como um chumbo denso,
E mudo e tenebroso o pensamento...
Fito-a, n'um pasmo doloroso absorto
--A noite é erma como campa enorme--
Fito-a com olhos turvos de quem dorme
E respondo: Bem sabes que estou morto!


HYMNO DA MANHÃ

Tu, casta e alegre luz da madrugada,
Sobe, cresce no céo, pura e vibrante,
E enche de força o coração triumphante
Dos que ainda esperam, luz immaculada!
Mas a mim pões-me tu tristeza immensa
No desolado coração. Mais quero
A noite negra, irmã do desespero,
A noite solitaria, immovel, densa,
O vacuo mudo, onde astro não palpita,
Nem ave canta, nem susurra o vento,
E adormece o proprio pensamento,
Do que a luz matinal... a luz bemdita!
Porque a noite é a imagem do Não-Ser,
Imagem do repouso inalteravel
E do esquecimento inviolavel,
Que anceia o mundo, farto de soffrer...
Porque nas trevas sonda, fixo e absorto,
O nada universal o pensamento,
E despreza o viver e o seu tormento.
E olvida, como quem está já morto...
E, interrogando intrepido o Destino,
Como reu o renega e o condemna,
E virando-se, fita em paz serena
O vacuo augusto, placido e divino...
Porque a noite é a imagem da Verdade,
Que está além das cousas transitorias.
Das paixões e das formas illusorias,
Onde sómente ha dor e falsidade...
Mas tu, radiante luz, luz gloriosa,
De que és symbolo tu? do eterno engano,
Que envolve o mundo e o coração humano
Em rede de mil malhas, mysteriosa!
Symbolo, sim, da universal traição,
D'uma promessa sempre renovada
E sempre e eternamente perjurada,
Tu, mãe da Vida e mãe da Illusão...
Outros estendam para ti as mãos,
Supplicantes, com fé, com esperança...
Ponham outros seu bem, sua confiança
Nas promessas e a luz dos dias vãos...
Eu não! Ao ver-te, penso: Que agonia
E que tortura ainda não provada
Hoje me ensinará esta alvorada?
E digo: Porque nasce mais um dia?
Antes tu nunca fosses, luz formosa!
Antes nunca existisses! e o Universo
Ficasse inerte e eternamente immerso
Do possivel na nevoa duvidosa!
O que trazes ao mundo em cada aurora?
O sentimento só, só a consciencia,
D'uma eterna, incuravel impotencia,
Do insaciavel desejo, que o devora!
De que são feitos os mais bellos dias?
De combates, de queixas, de terrores!
De que são feitos? de illusões, de dores,
De miserias, de maguas, de agonias!
O sol, inexoravel semeador,
Sem jamais se cançar, percorre o espaço,
E em borbotões lhe jorram do regaço
As sementes innumeras da Dor!
Oh! como cresce, sob a luz ardente,
A seara maldita! como treme
Sob os ventos da vida e como geme
N'um susurro monotono e plangente!
E cresce e alastra, em ondas voluptuosas,
Em ondas de cruel fecundidade,
Com a força e a subtil tenacidade
Invencivel das plantas venenosas!
De podridões antigas se alimenta,
Da antiga podridão do chão fatal...
Uma fragrancia morbida, mortal
Lhe reçuma da seiva peçonhenta...
E é esse aroma languido e profundo,
Feito de seducções vagas, magneticas,
De ardor carnal e de attracções poeticas,
É esse aroma que envenena o mundo!
Como um clarim soando pelos montes,
A aurora acorda, placida e inflexivel,
As miserias da terra: e a hoste horrivel,
Enchendo de clamor e horisontes.
Torva, cega, colerica, faminta,
Surge mais uma vez e arma-se á pressa
Para o bruto combate, que não cessa,
Onde é vencida sempre e nunca extincta!
Quantos erguem n'esta hora, com esforço,
Para a luz matinal as armas novas,
Pedindo a lucta e as formidaveis provas,
Alegres e crueis e sem remorso,
Que esta tarde ha-de ver, no duro chão
Cahidos e sangrentos, vomitando
Contra o céo, com o sangue miserando,
Uma extrema e importante imprecação!
Quantos tambem, de pé, mas esquecidos,
Ha-de a noite encontrar, sós e encostados
A algum marco, chorando aniquilados
As lagrimas caladas dos vencidos!
E porque? para que? para que os chamas,
Serena luz, ó luz inexoravel,
Á vida incerta e á lucta inexpiavel,
Com as falsas visões, com que os inflamas?
Para serem o brinco d'um só dia
Na mão indifferente do Destino...
Clarão de fogo-fatuo repentino,
Cruzando entre o nascer e a agonia...
Para serem, no páramo enfadonho,
Á luz de astros malignos e enganosos,
Como um bando de espectros lastimosos,
Como sombras correndo atraz d'um sonho...
Oh! não! luz gloriosa e triumphante!
Sacode embora o encanto e as seducções,
Sobre mim, do teu manto de illusões:
A meus olhos, és triste e vacillante...
A meus olhos, és baça e luctuosa
E amarga ao coração, ó luz do dia,
Como tocha esquecida que allumia
Vagamente uma crypta monstruosa...
Surges em vão, e em vão, por toda a parte,
Me envolves, me penetras, com amor...
Causas-me espanto a mim, causas-me horror,
E não te posso amar--não quero amar-te!
Symbolo da Mentira universal,
Da apparencia das cousas fugitivas,
Que esconde, nas moventes perspectivas,
Sob o eterno sorriso o eterno Mal,
Symbolo da Illusão, que do infinito
Fez surgir o Universo, já marcado
Para a dor, para o mal, para o peccado,
Symbolo da existencia, sê maldito!


A FADA NEGRA

Uma velha de olhar mudo e frio,
De olhos sem cor, de labios glaciaes,
Tomou-me nos seus braços sepuleraes.
Tomou-me sobre o seio ermo e vasio.
E beijou-me em silencio, longamente,
Longamente me unio á face fria...
Oh! como a minha alma se estorcia
Sob os seus beijos, dolorosamente!
Onde os labios pousou, a carne logo
Myrrou-se e encaneceu-se-me o cabello,
Meus ossos confrangeram-se. O gelo
Do seu bafo seccava mais que o fogo.
Com seu olhar sem cor, que me fitava,
A Fada negra me qualhou o sangue.
Dentro em meu coração inerte e exangue
Um silencio de morte se engolfava.
E volvendo em redor olhos absortos,
O mundo pareceu-me uma visão,
Um grande mar de nevoa, de illusão,
E a luz do sol como um luar de mortos...
Como o espectro d'um mundo já defuncto,
Um farrapo de mundo, nevoento,
Ruina aerea que sacode o vento,
Sem cor, sem consistencia, sem conjuncto...
E quanto adora quem adora o mundo,
Brilho e ventura, esperar, sorrir,
Eu vi tudo oscilar, pender, cahir,
Inerte e já da cor d'um moribundo.
Dentro em meu coração, n'esse momento,
Fez-se um buraco enorme--e n'esse abysmo
Senti ruir não sei que cataclismo,
Como um universal desabamento...
Razão! velha de olhar agudo e cru
E de halito mortal mais do que a peste!
Pelo beijo de gelo que me deste,
Fada negra, bemdita sejas tu!
Bemdita sejas tu pela agonia
E o lucto funeral d'aquella hora
Em que eu vi baquear quanto se adora,
Vi de que noite é feita a luz do dia!
Pelo pranto e as torturas bemfazejas
Do desengano... pela paz austera
D'um morto coração, que nada espera,
Nem deseja tambem... bemdita sejas!


*1860--1862*


IGNOTO DEO

Que belleza mortal se te assemelha,
Ó sonhada visão d'esta alma ardente,
Que reflectes em mim teu brilho ingente,
Lá como sobre o mar o sol se espelha?
O mundo é grande--e esta ancia me aconselha
A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,
Pelo mundo procuro um Deus clemente,
Mas a ara só lhe encontro... nua e velha...
Não é mortal o que eu em ti adoro.
Que és tu aqui? olhar de piedade,
Gota de mel em taça de venenos...
Pura essencia das lagrimas que chóro
E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
Descobre-te, visão, ao céo ao menos!


LAMENTO

Um diluvio de luz cae da montanha:
Eis o dia! eis o sol! o esposo amado!
Onde ha por toda a terra um só cuidado
Que não dissipe a luz que o mundo banha?
Flor a custo medrada em erma penha,
Revolto mar ou golfo congelado,
Aonde ha ser de Deus tão olvidado
Para quem paz e alivio o céo não tenha?
Deus é Pae! Pae de toda a creatura:
E a todo o ser o seu amor assiste:
De seus filhos o mal sempre é lembrado...
Ah! se Deus a seus filhos dá ventura
N'esta hora santa... e eu só posso ser triste...
Serei filho, mas filho abandonado!


A M.C.

Poz-te Deus sobre a fronte a mão piedosa:
O que fada o poeta e o soldado
Volveu a ti o olhar, de amor velado,
E disse-te: «vae, filha, sê formosa!»
E tu, descendo na onda harmoniosa,
Pousaste n'este solo angustiado,
Estrella envolta n'um clarão sagrado,
Do teu limpido olhar na luz radiosa...
Mas eu... posso eu acaso merecer-te?
Deu-te o Senhor, mulher! o que é vedado,
Anjo! Deu-te o Senhor um mundo á parte.
E a mim, a quem deu olhos para ver-te,
Sem poder mais... a mim o que me ha dado?
Voz, que te cante, e uma alma para amar-te!


A Santos Valente

Estreita é do prazer na vida a taça:
Largo, como o oceano é largo e fundo,
E como elle em venturas infecundo,
O cális amargoso da desgraça.
E comtudo nossa alma, quando passa
incerta peregrina, pelo mundo,
Prazer só pede à vida, amor fecundo,
É com essa esperança que se abraça.
É lei de Deus este aspirar immenso...
E comtudo a illusão impoz à vida.
E manda buscar luz e dá-nos treva!
Ah! se Deus accendeu um foco intenso
De amor e dor em nós, na ardente lida,
Porque a miragem cria... ou porque a leva?


Tormanto do Ideal

Conheci a Belleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,
Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre:
Assim eu vi o mundo e o que elle encerra
Perder a côr, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.
Pedindo à fórma, em vão, a idea pura,
Tropéço, em sombras, na materia dura.
E encontro a imperfeição de quanto existe.
Recebi o baptismo dos poetas,
E assentado entre as fórmas incompletas
Para sempre fiquei pallido e triste.


ASPIRAÇÃO

Meus dias vão correndo vagarosos
Sem prazer e sem dôr, e até parece
Que o foco interior já desfallece
E vacilla com raios duvidosos.
É bella a vida e os annos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor fallece...
Mas, se a belleza aqui nos apparece,
Logo outra lembra de mais puros gosos.
Minh'alma, ó Deus! a outros céos aspira:
Se um momento a prendeu mortal belleza,
É pela eterna patria que suspira...
Porém do presentir dá-me a certeza.
Dá-ma! e sereno, embora a dôr me fira,
Eu sempre bemdirei esta tristeza!


A FLORIDO TELLES

Se comparo poder ou ouro ou fama,
Venturas que em si têm occulto o damno,
Com aquele outro affecto soberano,
Que amor se diz e é luz de pura chama,
Vejo que são bem como arteira dama,
Que sob honesto riso esconde o engano,
E o que as segue, como homem leviano
Que por um vão prazer deixa quem ama.
Nasce do orgulho aquelle esteril goso
E a gloria d'elle é cousa fraudulenta,
Como quem na vaidade tem a palma:
Tem na paixão seu brilho mais formoso
E das paixões tambem some-o a tormenta...
Mas a gloria do amor... essa vem d'alma!


PSALMO

Esperemos em Deus! Elle ha tomado
Em suas mãos a massa inerte e fria
Da materia impotente e, n'um só dia,
Luz, movimento, acção, tudo lhe ha dado.
Elle, ao mais pobre de alma, ha tributado
Desvelo e amor: elle conduz á via
Segura quem lhe foge e se extravia,
Quem pela noite andava desgarrado.
E a mim, que aspiro a elle, a mim, que o amo,
Que anceio por mais vida e maior brilho.
Ha-de negar-me o termo d'este anceio?
Buscou quem o não quiz; e a mim, que o chamo,
Ha-de fugir-me, como a ingrato filho?
Ó Deus, meu pae e abrigo! espero!... eu creio!


A M.C.

No céo, se existe um céo para quem chora.
Céo, para as magoas de quem soffre tanto...
Se é lá do amor o foco, puro e santo,
Chama que brilha, mas que não devora...
No céo, se uma alma n'esse espaço mora.
Que a prece escuta e encharga o nosso pranto...
Se ha Pae, que estenda sobre nós o manto
Do amor piedoso... que eu não sinto agora...
No céo, ó virgem! findarão meus males:
Hei-de lá renascer, eu que pareço
Aqui ter só nascido para dôres.
Ali, ó lyrio dos celestes valles!
Tendo seu fim, terão o seu começo.
Para não mais findar, nossos amores.


A João de Deus

Se é lei, que rege o escuro pensamento,
Ser vã toda a pesquisa da verdade,
Em vez da luz achar a escuridade,
Ser uma queda nova cada invento;
É lei tambem, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento.
O que ha-de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crê de fé, logo duvida:
Se procura, só acha... o desatino!
Só Deus póde acudir em tanto damno:
Esperemos a luz d'uma outra vida,
Seja a terra degredo, o céo destino.


A Alberto Telles

Só!--Ao ermita sósinho na montanha
Visita-o Deus e dá-lhe confiança:
No mar, o nauta, que o tufão balança,
Espera um sopro amigo que o céo tenha...
Só!--Mas quem se assentou em riba estranha,
Longe dos seus, lá tem inda a lembrança:
E Deus deixa-lhe ao menos a esperança
Ao que á noite soluça em erma penha...
Só!--Não o é quem na dor, quem nos cançaços,
Tem um laço que o prenda a este fadario.
Uma crença, um desejo... e inda um cuidado...
Mas cruzar, com desdem, inertes braços,
Mas passar, entre turbas, solitario,
Isto é ser só, é ser abandonado!


A J. Felix dos Santos

Sempre o futuro, sempre! e o presente
Nunca! Que seja esta hora em que se existe
De incerteza e de dor sempre a mais triste,
E só farte o desejo um bem ausente!
Ai! que importa o futuro, se inclemente
Essa hora, em que a esperança nos consiste,
Chega... é presente... e só á dor assiste?...
Assim, qual é a esperança que não mente?
Desventura ou delirio?... O que procuro,
Se me foge, é miragem enganosa,
Se me espera, peor, espectro impuro...
Assim a vida passa vagarosa:
O presente, a aspirar sempre ao futuro:
O futuro, uma sombra mentirosa.


A M. C.

Porque descrês, mulher, do amor, da vida?
Porque esse Hermon transformas em Calvario?
Porque deixas que, aos poucos, do sudario
Te aperte o seio a dobra humedecida?
Que visão te fugio, que assim perdida
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