Os sonetos completos de Anthero de Quental - 1

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SONETOS


OS SONETOS COMPLETOS
DE
Anthero de Quental
publicados por
J. P. Oliveira Martins
PORTO
LIVRARIA PORTUENSE
DE
_LOPES & C.^a--EDITORES_
119, Rua do Almada, 123*
1886


PORTO
TYPOGRAPHIA OCCIDENTAL
Rua da Fabrica, 66


Escrevendo estas breves paginas á frente dos _Sonetos_ de Anthero de
Quental tenho a satisfação intima de cumprir o dever de tornar conhecida
do publico a figura talvez mais caracteristica do mundo litterario
portuguez, e decerto aquella sobre que a lenda mais tem trabalhado.
Estou certo, absolutamente certo, de que este livro, embora sem écco no
espirito vulgar que faz reputações e dá popularidade, ha-de encontrar um
acolhimento amoroso em todas as almas de eleição, e durar emquanto
houver corações afflictos, e emquanto se fallar a linguagem portugueza.
Procurarei, no que vou dizer, guardar para mim aquillo que ao publico
não interessa: a viva amisade, a estreita communhão de sentimentos, o
affecto quasi fraterno que ha perto de vinte annos nos une, ao poeta e
ao seu critico de hoje, fazendo da vida de ambos como que uma unica
alma, misturando invariavelmente as nossas breves alegrias, muitas vezes
as nossas lagrimas, sempre as nossas dores e os nossos enthusiasmos ou o
nosso desalento.
Discutindo em permanencia, discordando frequentemente, ralhando a miudo,
zangando-nos ás vezes e abraçando-nos sempre: assim tem decorrido para
nós perto de vinte annos. Mas o leitor é que nada tem que vêr com esses
casos particulares, nem com o abraço que trocámos no dia em que primeiro
nos conhecemos e que só terminará n'aquelle em que um de nós, ou ambos
nós, formos descançar para sempre sob meia duzia de pás de terra fria.

I

Eu não conheço phisionomia mais difficil de desenhar, porque nunca vi
natureza mais complexamente bem dotada. Se fosse possivel desdobrar um
homem, como quem desdobra os fios de um cabo, Anthero de Quental dava
_alma_ para uma familia inteira. É sabidamente um poeta na mais elevada
expressão da palavra; mas ao mesmo tempo é a intelligencia mais critica,
o instincto mais pratico, a sagacidade mais lucida, que eu conheço. É um
poeta que sente, mas é um raciocinio que pensa. Pensa o que sente; sente
o que pensa.
Inventa, e critíca. Depois, por um movimento reflexo da intelligencia,
dá corpo ao que criticou, e raciocina o que imaginou.--O seu
temperamento apresenta um contraste correlativo: é meigo como uma
creança, sensitivo como uma mulher nervosa, mas intermittentemente é
duro e violento.
É fraco, portanto? Não. A vontade, em obediencia á qual, e com esforço,
se faz colerico, fal-o tambem forte--d'esta força persistente,
raciocinada e na apparencia placida, como a superficie do mar em dias de
bonança. O Oceano, porém, é interiormente agitado pelo _gulf stream_
quente e invisível: tambem ás vezes a placidez extrema da sua face
encobre ondas de afflicção que sobem até aos olhos e rebentam em
lagrimas ardentes. Sabe chorar, como todo o homem digno da humanidade.
É d'estas crises que nasceram os seus versos, porque Anthero de Quental
não _faz_ versos á maneira dos litteratos: nascem-lhe, brotam-lhe da
alma como solluços e agonias. Mas, apezar d'isso, é requintado e
exigente como um artista: as suas lagrimas hão de ter o contôrno de
perolas, os seus gemidos hão de ser musicaes. As faculdades artisticas
geradoras da estatuaria e da symphonia são as que vibram na sua alma
esthetica. A noção das fórmas, das linhas e dos sons, possue-a n'um gráo
eminente: não já assim a da côr nem a da _composição_. Aos quadros chama
_paineis_ com desdem, e por isso mesmo tem horror á descripção e ao
pittoresco. É artista, no que a arte contém de mais subjectivo. A sua
poesia é esculptural e hieratica, e por isso phantastica. É
exclusivamente psychologica e dantesca: não pode pintar, nem descrever:
acha isso inferior e quasi indigno.
Os seus versos são sentidos, são _vividos_ como nenhuns; mas o sentir e
o viver d'este homem é de uma natureza especial que tem por fronteiras
phisicas as paredes do seu craneo, mas que não tem fronteiras no mundo
real, porque a sua imaginação paira librada nas azas de uma razão
especulativa para a qual não ha limites.
O poeta é por isso um mystico, e o critico um philosopho. O mysticismo e
a metaphisica, o sentimento e a razão, a sensibilidade e a vontade, o
temperamento e a intelligencia, combatem-se, ás vezes dilacerando-se.
Eis ahi a explicação d'esta poesia que é o retrato vivo do homem. O
genio, esse _quid_ divinatorio, que não é honra para nenhuma creatura
possuir, porque só nos dá merecimento aquillo que ganhámos á força de
intelligencia e de vontade; o genio, que é uma faculdade tão accidental
como a côr dos cabellos, ou o desenho das feições; o genio, que pode
andar ligado a uma intelligencia mediocre, mas que o não anda no caso de
Anthero de Quental--é o predicado particular e a chave do enygma d'este
homem. O genio presuppõe a intuição de uma verdade visceral ou
fundamental da natureza. Essa intuição, essa aspiração absorvente, é
para o nosso poeta a synthese da verdade racional ou positiva e do
sentimento mystico: uma poesia que exprima o raciocinio, ou antes uma
philosophia onde caibam todas as suas visões. O proprio do genio é
querer realisar o irrealisavel; é ser chimerico, no sentido critico da
palavra, quando por chimera entendemos uma verdade essencial que não
pode todavia reduzir-se a formulas comprehensiveis, ou uma cousa cuja
realidade se sente, sem se poder ver.
Dos aspectos quasi inexgotavelmente variaveis d'esta singular
phisionomia de homem, d'esta mistura excepcional de pensamentos e de
temperamentos n'um mesmo individuo, resulta porém um typo de sinceridade
e de rectidão mais singular ainda, porque mais facilmente podia resultar
d'ella um grande cynico. É sobretudo um stoico, sem deixar de ter
bastante de sceptico; é um mystico, mas com uma forte dose de ironia e
humorismo; e um mysanthropo, quando não é o homem do trato mais affavel,
da convivencia mais alegre; é um pessimista, que todavia acha em geral
tudo optimo. Intellectualmente é a phisionomia mais dubia, complexa e
contradictoria por vezes; moralmente é o caracter mais inteiro e melhor
que existe. A sua intelligencia encontra-se permanentemente no estado de
alguem que, querendo ir para um sitio, resiste por não querer ao mesmo
tempo, sem todavia ter rasões bastantes para querer nem tambem para não
querer. O nucleo da sua personalidade, se a encaramos pelo lado
praticamente humano, está na energia do seu querer moral, e não na
lucidez do seu pensamento; embora tenha a pretenção de julgar que a sua
vontade obedece sempre á sua razão. É verdade que dentro de si tem
permanentemente um espelho facetado que representa e critíca as
modalidades do seu pensamento; mas, por isso mesmo, vê ou inventa faces
de mais ás cousas, e tambem por vezes o cristal embacia. O que nunca
esmorece é a bondade luminosa da sua alma. É um homem fundamentalmente
bom.
A complexidade do seu espirito dá-lhe uma variedade de aptidões
singular. Conversador como poucos, facil, espontaneo, original e
suggestivo, ironico, humorista, espirituoso, descendo até á propria
_charge_, não ha ninguem como elle para soltar o carro da sua phantasia
critica na ladeira de uma these, e, explorando-a em todos os sentidos,
architectar uma theoria. Os seus opusculos em prosa (da melhor prosa
portugueza d'este tempo) têm em geral este caracter. São logicos, são
bem deduzidos--sem serem sufficientemente pensados. São fructos da
imaginação; são conversas escriptas, d'essas conversas que durante horas
seduzem os que o ouvem--porque é um _charmeur_.
Elle proprio se embriaga, não com as suas palavras, mas sim com aquella
theoria passageira que inventou _ad hoc_, e, quando alguem lhe objecta
um pequeno senão, todavia essencial ao seu edificio logico, resiste,
defende-se, irrita-se ás vezes, mas por fim é elle proprio que, com um
dito, desfaz toda a construcção. Seria um orador, um jornalista de
primeira ordem, se não tomasse apenas a sério a sua missão de poeta, ou
antes de philosopho.
Depois de tudo isto dirão pessoas pouco dadas ao estudo do animal homem
que Anthero de Quental é um assombro. Longe d'isso. A sua força e a
prodigalidade com que a natureza dotou o seu espirito; mas essa força é
uma fraqueza. Tem demasiada imaginação para ver bem; e por outro lado o
raciocinio critico peia-lhe os vôos luminosos da phantasia. Vê de mais
para poder ser activo, ou não tem a energia correspondente á sua visão.
Se a tivesse, seria verdadeiramente um assombro. A imaginação e a razão,
irreductiveis nos cerebros humanos com as circumvoluções limitadas que
contêm, são egualmente poderosas no seu cerebro para que qualquer
d'ellas domine. Luctam em permanencia, procurando entender-se,
combinar-se, penetrar-se, e, no desejo chimerico da synthese,
desequilibram o homem, atrophiando-lhe a energia activa. Ainda assim,
felizes d'aquelles cuja inercia désse um livro comparavel a este!
Mas é que as suas paginas foram escriptas com sangue e lagrimas! E doe
ver a vida do mais bello espirito consumir-se em agonias de uma alma em
lucta comsigo mesmo! O commum da gente, ao ler as paginas d'este volume,
dirá então: Quantas catastrophes, que desgraças, este homem soffreu! que
singular hostilidade do mundo para com uma creatura humana!--E todavia o
mundo nunca lhe foi propriamente hostil, nenhuma desgraça o acabrunhou;
a sua vida tem corrido serena, placida, e até para o geral da gente em
condições de felicidade.
É que o geral da gente não sabe que as tempestades da imaginação são as
mais duras de passar! Não ha dores tão agudas como as dores imaginarias.
Não ha problemas mais difficeis do que os problemas do pensamento, nem
crises mais dolorosas do que as crises do sentimento. As agonias
dilacerantes da morte com as ancias do stertor, os horrores mais
inverosimeis dos crimes monstruosos, as afflicções mais pungentes da
saudade, as tristezas mais dolorosas da solidão, as luctas do dever com
a paixão, os gritos do homem arruinado, os ais da orphandade faminta...
tudo, tudo, quanto no mundo pode haver de doloroso, desde a miseria até
á prostituição, desde o andrajo até ao velludo arrastado pela
immundicie, desde o cardo que dilacera os pés até ao punhal que rasga o
coração: tudo isso é menos, do que a agonia de um poeta vendo passar
diante de si, em turbilhão medonho, as lugubres miserias do mundo. Todas
as afflicções têm o seu quê de imaginativas, e por isso ha apenas uma
especie de homens que não sentem: são os cynicos, esses que perderam os
nervos da moralidade, os anesthesiados do sentimento.
Quando se é poeta como Anthero de Quental, a imaginação exacerbada vibra
como as harpas que os gregos expunham ás virações da brisa nos ramos das
arvores. Nenhum dedo lhes feria as cordas, e todavia tocavam! Nenhuma
d'essas desgraças do mundo feriu a harpa da vida do poeta; e todavia
essa harpa geme e chora, solluça e grita, porque pelas suas cordas passa
o vento agreste das idéas, passa o écco ullulante do egoismo dos homens,
afflictivo como os uivos de uma alcateia de lobos famintos.

II

Esta collecção de Sonetos é, portanto, ao mesmo tempo biographica e
cyclica. Conta-nos as tempestades de um espirito; mas essas tempestades
não são os quaesquer episodios particulares de uma vida de homem: são a
refracção das agonias moraes do nosso tempo, vividas, porem, na
imaginação de um poeta.
O primeiro periodo, de 1860-2, contém em embryão todos os successivos,
da mesma fórma que as flores incluem em si a substancia dos fructos.
Denuncía uma alma sensivel, mas patenteia já a preoccupação metaphisica
na sua phase rudimentar de duvida theologica, e apresenta uns assomos de
tristeza que são como os farrapos de nuvens quando velam
intermittentemente o sol, deixando antever a tempestade para o dia
seguinte. Estes primeiros sonetos são o balbuciar de uma creança.
Romantica? De modo nenhum. Este poeta não se filia em escholas, não
obedece a correntes litterarias: a sua poesia é exclusivamente pessoal.
Succedia, porem, que n'esse tempo já os nossos bardos classicamente
romanticos tinham passado da moda; e a Coimbra chegavam por via de Paris
os éccos do espirito novo, expresso nas obras de Michelet, de Quinet, de
Vera-Hegel, etc.
Tudo isso fermentava no cerebro de Anthero de Quental, mas a sua
personalidade não se deixava absorver pelo optimismo que, depois dos
romanticos, se espalhou na Europa, lyricamente ingenuo no Occidente
afrancezado, systematicamente philosophico na Allemanha hegeliana.
Schopenhauer, ninguem o lia. Não era moda. Pois foi essa corrente,
dominante hoje, aquella em que o nosso poeta, espontaneamente, por um
movimento do seu temperamento, se achou levado. Aos dezoito ou vinte
annos, ignorante ainda, mas inquieto e perscrutador, o poeta que
desdenha sinceramente da fama e da gloria, vê no eterno feminino de que
nos falla Goethe a synthese da existencia. Os seus amores já são
phantasticos: só tem realidade no ceu.
Alli, ó lyrio dos celestes valles,
Tendo seu fim, terão o seu começo,
Para não mais findar, nossos amores.
E se ainda o dia, a luz, o sol _esposo amado_, têm o condão de o encher
de enthusiasmo, é mister desconfiar de um homem mais caprichoso do que
todas as mulheres, porque
Pedindo á forma, em vão, a idea pura
Tropeço, em sombras, na materia dura
E encontro a imperfeição de quanto existe.
Esta nota é mais constitucionalmente verdadeira. «Seja a terra degredo,
o ceu destino» diz n'um ponto; e n'outro:
Minha alma, ó Deus, a outros ceus aspira:
Se um momento a prendeu mortal belleza
É pela eterna patria que suspira...
Não acreditemos tambem demasiadamente n'isto, porque Deus não passa
ainda de uma interrogação:
Pura essencia das lagrimas que choro
E sonho dos meus sonhos! Se és verdade,
Descobre-te, visão, no ceu ao menos!
As luctas infantís d'este primeiro periodo para saber se Deus é ou não é
verdade, bastam, em si mesmo e no proprio modo por que estão expressas,
para nos mostrar que o poeta não saiu ainda das espheras da
representação elementar dos seres, para a esphera comprehensiva das
abstracções racionaes. Os sonetos d'esta primeira serie desenrolam-se no
terreno da phantasmagoria transcendente. O traço mais seguro de todos e
o mais significativo está n'este verso:
Que sempre o mal peior é ter nascido.
A segunda serie tem a data de 1862-6. Psychologicamente é a menos
original, artisticamente é a mais brilhante. O _Sonho oriental_, o
_Idyllio_, o _Palacio da Ventura_, são obras primas, até de colorido.
Talvez por isso mesmo que o estado de espirito do poeta o não obrigava a
tirar tanto de si, e porque n'esta epocha viveu mais á lei da natureza;
talvez por isso mesmo a sentiu e pintou melhor nas suas côres, nas suas
imagens.
A nebulose do primeiro periodo começava a resolver-se n'uma tragedia
mental, que umas vezes tem os sonhos dos que mastigam haschich, outras
vezes furias de desespero, ironias como punhaes e gritos lancinantes:
Se nada ha que me aqueça esta frieza,
Se estou cheio de fel e de tristeza,
É de crer que só eu seja o culpado.
Meu pobre amigo, como foi amarga esta epocha! Outros soffreram tambem,
outros penaram eguaes dores, sem conseguirem porem estrangular os
monstros que defendem os áditos do templo da Sabedoria. Heine e
Espronceda, Nerval e Baudelaire viveram vidas inteiras n'esse estado de
ironia e de sarcasmo, de desespero e de raiva, de orgia e de abatimento,
de furia e de atonia, que para ti representam quatro annos apenas!
Mas é que não havia em nenhum d'esses homens a semente de abstracção que
se descobre no _Palacio da Ventura_:
Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silencio e escuridão--e nada mais!
Os romanticos, mais ou menos satanistas ou satanisados, ficavam-se por
aqui. Achando apenas silencio e escuridão onde tinham sonhado venturas,
ou davam em bebedos como Espronceda, ou suicidavam-se como Nerval, ou
faziam-se cynicos, á maneira de Baudelaire, cultivando com amor as
_Flores do Mal_.
De 1864 a 74, n'esses dez annos em que a tempestade caminha, vê-se a
onda negra da desolação espraiar-se; vê-se o «silencio e a escuridão»
que antes surgiam como surprezas medonhas, ganharem um logar apropriado,
embora eminente, no regimen das cousas; vê-se o espirito do philosopho
reagir sobre o temperamento do poeta, e tornar-se systema o que até ahi
era furia. Bom prenuncio.
N'esta epocha Anthero de Quental é nihilista como philosopho, anarchista
como politico: é tudo o que fôr negativo, é tudo o que fôr excessivo; e
é-o de um modo tão terminante, tão dogmatico e tão affirmativo, que por
isso mesmo hesitamos em crer na consciencia com que o é. Da sinceridade
não é licito duvidar, mas contra a segurança depõe a propria violencia.
A nevrose contemporanea, que produzira n'elle a terceira epocha, dá de
si ainda a quarta; mas se poude galgar a saltos por entre a floresta
incendiada que devorou e consumiu os satanicos, não poderá tambem sair
da steppe lugubre onde apodrecem os pessimistas, embriagados na negação
universal, sem se lembrarem de que são contradictorios no proprio facto
de prégarem o que quer que seja?
Ora a isto responde esta propria serie, porque, ao lado dos sonetos
crepuscularmente desolados, levantam-se como auroras os sonetos stoicos.
Para curar o poeta da vertigem satanica serviu-lhe a methaphisica
pessimista; para o curar mais tarde d'essa metaphisica, servir-lhe-ha a
reacção do sentimento moral sobre a razão especulativa. Quando pede
_Mais luz_, quando chama ao sol «O claro sol amigo dos heroes», quando
define a _Idea_ acabando por estes versos diamantinos:
A Idea, o Summo bem, o Verbo, a Essencia
Só se revela aos homens e às nações
No ceu incorruptivel da Consciencia!
sentimo-nos bem distantes das phantasmagorias do principio e das
loucuras da viagem, que todavia o poeta não terminou ainda.
Luctando furioso contra a desillusão, caindo esmagado pelo
anniquilamento, Anthero de Quental _ensimismou-se_ (para usar de uma
feliz expressão hespanhola) metteu-se dentro de si, a sós comsigo,
apellou para as energias do seu instincto de homem, e foi isso o que lhe
inspirou o bello _Hymno á Razão_.
Porem na lucta entre o temperamento de stoico e a imaginação
metaphisica, o seu espirito attribulado não conseguiu manter o
equilibrio, porque as suas exigencias de critico e philosopho
(alimentadas agora por leituras variadissimas e profundas) contrariavam
ou contradiziam as suas vizões de poeta. Á maneira que a intelligencia
se lhe cultivava, que o saber lhe crescia, que a experiencia o educava
com mais de um caso doloroso ou apenas triste--apurava-se-lhe a
imaginação até ao ponto de ver claramente o que para o commum dos
espiritos são apenas concepções do entendimento abstracto. A sua poesia
despe-se então de accessorios: não ha quasi uma imagem; ha apenas
linhas, mas essas linhas de estatuas incorporeas tem uma nitidez
dantesca.
O seu pessimismo torna-se systematico: é uma philosophia inteira, a que
corresponde, como expressão sentimental, a ironia transcendente. Na
_Disputa em Familia_, Deus responde aos atheus:
Muito antes de nascerem vossos paes
D'um barro vil, ridiculas creanças,
Sabia eu tudo isso... e muito mais!
No _Inconsciente_, este heroe metaphisico, diz assim:
Chamam-me Deus ha mais de dez mil annos...
Mas eu por mim não sei como me chamo.
Na _Divina Comedia_ os homens queixam-se aos deuses do que soffrem,
invectivando-os pelos terem creado.
Mas os deuses com voz ainda mais triste
Dizem:--Homens! porque é que nos creastes?
Como se vê, houve um progresso. No periodo anterior a negação era
violenta e terminante; agora tem como expressão a ironia que é uma das
formas conhecidas do saber, e uma das linguagens da verdade. Eis ahi o
que a reacção moral conseguiu, acompanhada pelo esclarecimento da razão,
da intelligencia e do conhecimento. O antigo poeta satanico,
transformado em um nihilista, vemol-o agora na pelle de um pessimista
systematico, sorrindo já bondosamente, com a ironia n'esses proprios
labios que, primeiro cobertos de espuma, depois nos appareciam brancos
de agonias.
Não tinha eu razão para chamar cyclica a esta collecção de sonetos? Não
tem sido este o movimento das idéas, a evolução do pensamento creador na
segunda metade do nosso seculo?
Quando escreveu o primeiro soneto da quarta serie (1880-4)
Já socega, depois de tanta lucta,
Já me descança em paz o coração...
Anthero de Quental resolveu destruir todas as suas poesias _lugubres_.
Sentia remorsos por alguma vez ter estado n'uma disposição de animo que
agora considerava com horror. Entendia que esses versos tetricos não
podiam consolar ninguem, e fariam mal a muita gente. Destruiu-os, pois,
com aquella violencia propria de um caracter intermittentemente meigo e
frenetico como o de uma mulher. D'esse naufragio onde se perderam
verdadeiras obras-primas, salvei eu as poesias que vão no fim d'este
ensaio; e salvei-as porque as possuia entre os originaes remettidos em
cartas, e mais de uma vez como texto de noticias do estado do seu
espirito, ou cartas rimadas.
Que especie de paz era porem essa em que o seu coração descançava? Era o
_Nirvâna_:
E quando o pensamento, assim absorto,
Emerge a custo d'esse mundo morto
E torna a olhar as cousas naturaes,
Á bella luz da vida, ampla, infinita
Só vê com tedio em tudo quanto fita
A illusão e o vasio universaes.
O Nirvâna é o ceu do buddhismo, a religião mais philosophica e menos
phantasmagorica inventada pelos homens. É por este motivo que o
buddhismo attrae hoje em dia todos os espiritos a um tempo racionalistas
e mysticos, d'esta epocha em tudo similhante á alexandrina, menos no
volume do saber positivo que já se não compadece com muitas das theorias
sobre que os néoplatonicos especulavam. A theoria da Substancia levou-os
a elles a uma concepção do Ser que produziu o mytho do Verbo christão,
encarnado popularmente em Jesus-Christo. Ora hoje tudo isso vale apenas
como documento historico, e, por paradoxal que isto pareça, o Não-Ser é,
segundo a metaphisica contemporanea, a essencia de tudo o que existe. O
Absoluto é o Nada. O Universo, a realidade inteira, são modalidades,
aspectos fugitivos, que só se tornam verdades racionaes quando nos
apparecem despidas de todos os accidentes. E como é pelos accidentes
apenas que nós, distinguindo-as, as conhecemos, a realidade
verdadeiramente e em si é Nada.
Religiosamente, Nada é egual a Nirvâna; e o buddhismo é a única religião
que attingiu esta conclusão, summaria do pensamento scientifico moderno.
O Nirvâna é esse estado em que os seres, despindo-se de todas as suas
modalidades e accidentes, de todas as condições de realidade, condições
que os limitam distinguindo-os entre si, adquirem a não-realidade (o
não-contingente) e com ella a existencia absoluta e a absoluta
liberdade. Essa liberdade é o typo e a essencia da vida espiritual; e o
Nirvâna, puro Não-Ser para a intelligencia, é, para o sentimento moral,
o symbolo e o vehiculo de toda a perfeição e virtude: radicalmente
negativo na esphera da razão, é, na esphera do sentimento, absolutamente
affirmativo. O pessimismo torna-se d'esta fórma um optimismo gigantesco;
toda a inercia é condemnada, e o systema das cousas, agitando-se,
movendo-se na direcção do anniquilamento final, move-se e agita-se no
sentido de uma liberdade evolutivamente progressiva até attingir a
plenitude. O Universo é uma grande vida que tem, no termo, o termo de
todas as vidas--a morte, idealisada agora e tornada luminosa e
appetecivel por essa idealisação.
Leiam-se os dois sonetos _Redempção_, talvez os mais bellos de todo o
livro, e comprehender-se-ha melhor o que fica dito. Leia-se o _Elogio da
morte_
Dormirei no teu seio inalteravel,
Na communhão da paz universal,
Morte libertadora e inviolavel!
e ver-se-ha quanto estamos longe do desespero tragico de outros annos. A
tempestade acalmou.
Na esphera do invisivel, da intangivel,
Sobre desertos, vacuo, soledade,
Vôa e paira o espirito impassivel
presidindo á evolução dos seres (V. o soneto _Evolução_) desde a rocha
até ao homem, evolução que seria absolutamente inexpressiva se não
tivesse um destino, um fim, um ideal. A theoria do progresso indefinido
é, com effeito, racionalmente absurda. Esse destino, para os
neo-buddhistas, é o Nada transcendente; esse ideal é a Liberdade. A
existencia está pois consagrada racionalmente: falta consagral-a
sentimentalmente. Falta ainda ao systema um medianeiro: é o Amor.
Porém o coração feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do penar tornado crente,
Respondeu: D'esta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se é isto a vida,
Nem foi de mais o desengano e a dor.
O Universo está pois construido e sanctificado na mente do poeta e na
razão do philosopho. Dir-se-ha portanto que a chimera de que a principio
fallámos ficou desvendada, o problema resolvido, conciliada a visão com
a razão, e que nos não resta mais do que fazermo-nos todos buddhistas?
Supprema illusão! Creia-o embora o poeta: eu, como critico, observando
que o pensamento humano, desde que existe e trabalha, progride sempre,
com effeito, mas progride em tres estradas parallelas que, por serem
parallelas, nunca podem encontrar-se, atrevo-me a affirmar a
irreductibilidade do mysticismo, racional ou imaginativamente concebido,
e do naturalismo, ponderada ou orgiacamente realisado. Atrevo-me a dizer
que estes dois feitios ou temperamentos são constitucionaes do espirito
humano, e que da coexistencia necessaria d'elles resulta um terceiro--o
sceptico, o critico, o que provêm da comparação de ambos, e por isso não
tem côr, nem é affirmativo; dando-se melhor com a natureza do que com a
phantasmagoria, preferindo a harmonia mais ou menos equilibrada, ou mais
ou menos claudicante do hellenismo, á orgia desenfreada dos orientaes;
considerando a existencia como um compromisso, o dever como uma condição
da vida, mas tambem a fraqueza como uma condição dos homens. Estes tres
temperamentos são correspondentes a typos eternos e irreductiveis da
consciencia humana; e, se o buddhismo é a melhor religião para um
mystico do seculo XIX, saturado de sciencia e derreado de cogitações, o
christianismo, como directo herdeiro do hellenismo, hade eternamente
satisfazer melhor os scepticos e os naturalistas, cujo numero é e foi
sempre infinitamente maior, entre os europeos.
«Um hellenismo coroado por um buddhismo» eis a formula com que mais de
uma vez Anthero de Quental me tem exprimido o seu pensamento--a sua
chimera! Chimera, digo, por que a corôa não nos póde assentar na cabeça,
sob pena de a crivar de espinhos e de a deixar escorrendo sangue. Fundar
o principio da acção na inercia systematica, a realidade no não-ser, a
vida no anniquilamento, só é praticamente acceitavel para o commum de
homens quando acreditem na metempsycose, dogma tão infantilmente mythico
do buddhismo como v. g. o inferno do christianismo. Ao christianismo,
porém, tirando-se-lhe tudo quanto a imaginação semita deu para a sua
formação, fica ainda o hellenismo, isto é, um idealismo mais ou menos
pantheista e uma theoria moral--cousas que eu não affirmo que resistam a
uma analyse rigorosamente logica, por isso mesmo que todo o nosso
conhecimento racional das cousas assenta apenas sobre axiomas do senso
commum--ao passo que, em se tirando a metempsycose ao buddhismo, o
buddhismo reduz-se a uma nevoa de abstracções.
Pobre humanidade, se se visse condemnada á coroação buddhista! Nós
europeos, incapazes de nos sujeitarmos ao regime da contemplação inerte,
soffreriamos as agonias, experimentariamos as afflicções do poeta que,
tendo no peito um coração activo, tem na cabeça uma imaginação mystica,
e, para obedecer ao pensamento, tortura o coração, sem poder tambem
esmagal-o sob o mando da intelligencia.
D'este cruel estado vêm os documentos que attestam a transformação
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