Os Lusíadas - 10

Total number of words is 4496
Total number of unique words is 1864
26.1 of words are in the 2000 most common words
38.3 of words are in the 5000 most common words
45.4 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
Era este Catual, hum dos que estauão
Corrutos pela Maumetana gente,
O principal por quem ſe gouernauão
As cidades do Samorim potente:
Delle ſomente os Mouros eſperauão
Efeyto a ſeus enganos torpemente,
Elle, que no concerto vil conſpira
De ſuas eſperanças nam delira.
O Gama com inſtancia lhe requere
Que o mande por nas naos, & não lhe val,
E que aſsi lho mandàra, lhe refere,
O nobre ſucceſſor de Perimal:
Porque razão lhe empede & lhe difere
A fazenda trazer de Portugal,
Pois aquillo que os Reis ja tem mandado
Nam pode ſer por outrem derrogado?
Pouco obedece o Catual corruto
A tais palauras, antes reuoluendo
Na fantaſia algum ſutil, & aſtuto
Engano diabolico, & eſtupendo,
Ou como banhar poſſa o ferro bruto
No ſangue auorrecido, eſtaua vendo,
Ou como as naos em fogo lhe abraſaſſe,
Porque nenhũa aa patria mais tornaſſe.
Que nenhum torne aa patria ſo pretende
O conſelho infernal dos Maumetanos,
Porque nam ſaiba nunca onde ſe eſtende
Aterra Eoa o Rei dos Luſitanos:
Não parte o Gama em fim, que lho defende
O Regedor dos barbaros profanos,
Nem ſem licença ſua yrſe podia,
Que as almâdias todas lhe tolhia.
Aos brados & razões do Capitão,
Responde o Idolatra, que mandaſſe
Chegar aa terra as naos, que longe eſtão,
Porque milhor dali foſſe, & tornaſſe:
Sinal he de inimigo, & de ladrão,
Que la tam longe a frota ſe alargaſſe,
Lhe diz, porque do certo & fido amigo
He nam temer do ſeu nenhum perigo.
Nestas palauras o diſcreto Gama
Enxerga bem, que as naos deſeja perto
O Catual, porque com ferro, & flama
Lhas aſſalte, por odio deſcuberto:
Em varios penſamentos ſe derrama:
Fantaſiando eſtâ remedio certo,
Que deſſe a quanto mal ſe lhe ordenaua
Tudo temia, tudo em fim cuidaua.
Qual o reflexo lume do polido
Eſpelho de aço, ou de cristal fermoſo,
Que do rayo ſolar ſendo ferido,
Vai ferir noutra parte luminoſo,
E ſendo da oucioſa mão mouido
Pela caſa do moço curioſo,
Anda pelas paredes, & telhado,
Tremulo, aqui & ali, & deſſoſſegado.
Tal o vago juyzo fluctuaua
Do Gama preſo, quando lhe lembrara
Coelho, ſe por caſo o eſparaua
Na praia cos bateis, como ordenara:
Logo ſecretamente lhe mandaua,
Que ſe tornaſſe aa frota, que deixâra,
Nam foſſe ſalteado dos enganos,
Que eſperaua, dos feros Maumetanos.
Tal ha de ſer, quem quer co dom de Marte
Imitar os illuſtres, & igoalalos.
Voar co penſamento a toda parte,
Adiuinhar pirigos, & euitallos:
Com militar engenho, & ſutil arte
Entender os imigos, & enganalos,
Crer tudo em fim, que nunca louuarey
O Capitão que diga, não cuidey.
Inſiste o Malabar em telo preſo,
Senão manda chegar a terra a armada,
Elle conſtante, & de yra nobre aceſo,
Os ameaços ſeus nam teme nada:
Que antes quer ſobre ſi tomar o peſo,
De quanto mal a vil malicia ouſada
Lhe andar armando, que por em ventura
A frota de ſeu Rei, que tem ſegura.
Aquella noite eſteue ali detido,
E parte do outro dia, quando ordena
De ſe tornar ao Rei. mas impedido
Foi da guarda que tinha não pequena:
Comete lhe o Gentio outro partido,
Temendo de ſeu Rei castigo, ou pena,
Se ſabe esta malicia, a qual aſinha
Saberâ, ſe mais tempo ali o detinha.
Diz lhe que mande vir toda á fazenda
Vendibil, que trazia, pera a terra,
Pera que de vagar ſe troque, & venda,
Que quem nam quer comercio, buſca guerra:
Posto que os maos prepoſitos entenda
O Gama, que o danado peito encerra,
Conſente, porque ſabe por verdade,
Que compra co a fazenda a liberdade.
Concertã ſe que o negro mande dar,
Embarcações idoneas com que venha,
Que os ſeus bateis não quer auenturar,
Onde lhos tome o imigo, ou lhos detenha:
Partem as almàdias a buſcar
Mercadoria Hispana, que conuenha,
Eſcreue a ſeu yrmão, que lhe mandaſſe
A fazenda, com que ſe reſgataſſe.
Vem a fazenda a terra, aonde logo
A agaſalhou o iffame Catual:
Coella ficam Aluaro & Diogo,
Que a podeſſem vender pelo que val,
Se mais que obrigação, que mando & rogo
No peito vil o premio pode, & val,
Bem o moſtra o Gentio a quem o entenda,
Pois o Gama ſoltou pela fazenda.
Por ella o ſolta, crendo que ali tinha
Penhor baſtante, donde recebeſſe
Intereſſe maior do que lhe vinha,
Se o Capitão mais tempo detiueſſe:
Elle vendo que ja lhe nam conuinha
Tornar a terra, porque nam podeſſe
Ser mais retido, ſendo aas naos chegado
Nellas eſtar ſe deixa deſcanſado.
Nas naos estar ſe deyxa vagaroſo,
Atê ver o que o tempo lhe deſcobre,
Que não ſe fia ja do cobiçoſo
Regedor corrompido, & poauco nobre.
Veja agora o juyzo curioſo
Quanto no rico, aſsi como no pobre
Pode o vil intereſſe & ſede imiga
Do dinheyro, que a tudo nos obriga.
A Polidoro mata o Rey Treicio,
Sò por ficar ſenhor do grão teſouro:
Entra, pelo fortiſsimo edificio,
Com a filha de Acriſo a chuua douro:
Pode tanto em Tarpeia auaro vicio,
Que a troco do metal luzente, & louro,
Entrega aos inimigos a alta torre,
Do qual quaſi afogada empago morre.
Eſte rende munidas fortalezas,
Faz tredoros, & falſos os amigos,
Eſte a mais nobres faz fazer vilezas,
E entrega Capitães aos inimigos:
Este corrompe virginais purezas,
Sem temer de honra, ou fama algũs perigos,
Eſte depraua as vezes âs ciencias,
Os juyzos cegando, & as conſciencias.
Eſte interpreta mais que ſutilmente
Os textos. eſte faz & desfaz leis:
Eſte cauſa os perjurios entre a gente:
E mil vezes tirânos torna os Reis.
A te os que ſo a Deos omnipotente
Se dedicão, mil vezes ouuireis,
Que corrompe eſte encantador, & illude:
Mas não ſem cor com tudo de virtude.
F I M.

❧ Canto Nono.
Tiuerão longamen-
te na cidade
Sem vender ſe a fazenda os do-
us feitores,
Que os infieis por manha, & falſidade
Fazem, que nam lha comprem mercadores,
Que todo ſeu propoſito, & vontade
Era, deter ali os deſcubridores
Da India, tanto tempo que vieſſem
De Meca as naos, que as ſuas desfizeſſem.
La no ſeio Eritreo, onde fundada
Arſinoe foi do Fgipcio Ptholomeo,
Do nome da irmã ſua aſsi chamada,
Que deſpois em Suez ſe conuerteo,
Não longe, o porto jaz da nomeada
Cidade Meca, que ſe engrandeceo
Com a ſuperstiçam falſa, & profana,
Da relegioſa agoa Maumetana.
Gidâ ſe chama o porto, aonde o trato
De todo o roxo mar mais florecia,
De que tinha proueito grande, & grato
O Soldão que eſſe Reino poſſuia:
Daqui aos Malabares, por contrato
Dos infieis, fermoſa companhia
De grandes naos, pelo Indico Oceano,
Eſpeciaria vem buſcar cada anno.
Por eſtas naos os Mouros eſperauão,
Que como foſſem grandes & poſſantes
Aquellas, que o comerçio lhe tomauão,
Com flamas abraſaſſem crepitantes:
Neſte ſocorro tanto confiauão,
Que ja nam querem mais dos nauegantes,
Se nam que tanto tempo ali tardaſſem,
Que da famoſa Meca as naos chegaſſem.
Mas o Gouernador dos ceos, & gentes,
Que pera quanto tem determinado,
De longe os meios dâ conuenientes,
Por onde vem a effeito o fim fadado,
Influio piadoſos accidentes
De affeiçam em Monçaide, que guardado
Estaua pera dar ao Gama auiſo,
E merecer por iſſo o Paraiſo.
Eſte de quem ſe os Mouros não guardauão,
Por ſer Mouro como elles, antes era
Participante em quanto machinauão,
A tençam lhe deſcobre torpe, & fera:
Muitas vezes as naos que longe eſtauão
Viſita, & com piedade conſidera
O dano, ſem razão, que ſe lhe ordena,
Pela maligna gente Sarracena.
Informa o cauto Gama das armadas,
Que de Arabica Meca vem cadano,
Que agora ſam dos ſeus tam deſejadas,
Pera ſer inſtrumento deſte dano:
Diz lhe que vem de gente carregadas,
E dos trouões horrendos de Vulcano,
E que pode ſer dellas opremido,
Segundo eſtaua mal apercebido.
O Gama que tambem conſideraua
O tempo, que pera a partida o chama,
E que deſpacho ja não eſparaua
Milhor do Rei, que os Maumetanos ama:
Aos feitores, que em terra eſtão, mandaua
Que ſe tornem aas naos: & porque a fama
Deſta ſubita vinda os não impida,
Lhe manda que a fizeſſem eſcondida.
Porem não tardou muito, que voando
Hum rumor nam ſoaſſe com verdade,
Que forão preſos os feitores, quando
Foram ſentidos virſe da cidade:
Eſta fama as orelhas penetrando
Do ſabio capitão, com breuidade
Faz repreſaria nũs, que aas naos vierão,
A vender pedraria que trouxerão.
Eram eſtes antigos mercadores
Ricos em Calecu, & conhecidos
Da falta delles, logo entre os milhores
Sentido foi, que eſtão no mar retidos:
Mas ja nas naos os bõs trabalhadores,
Voluem o cabrestante, & repartidos
Pelo trabalho, hũs puxão pela amarra,
Outros quebrão co peito duro a barra.
Outros pendem da verga, & ja deſatão
A vella, que com grita ſe ſoltaua,
Quando com maior grita ao Rei relatão
A preſſa, com que a armada ſe leuaua:
As molheres & filhos, que ſe matão
Daquelles que vão preſos, onde eſtaua
O Samorim, ſe aqueixão que perdidos
Hũs tem os pais, as outras os maridos.
Manda logo os feitores Luſitanos
Com toda ſua fazenda liuremente,
A peſar dos imigos Maumetanos,
Porque lhe torne a ſua preſa gente:
Deſculpas manda o Rei de ſeus enganos,
Recebe o Capitão de melhormente
Os preſos, que as deſculpas, & tornando
Algũs negros, ſe parte as vellas dando.
Parteſe coſta abaxo, porque entende
Que em vão co Rei gentio trabalhaua,
Em querer delle paz, a qual pretende
Por firmar o comercio que trataua:
Mas como aquella terra que ſe estende
Pela Aurora, ſabida ja deixaua,
Com eſtas nouas torna aa patria cara,
Certos ſinais leuando do que achara.
Leua algũs Malabares, que tomou
Per força, dos que o Samorim mandâra,
Quando os preſos feitores lhe tornou:
Leua pimenta ardente que compràra:
A ſeca flor de Banda não ficou,
A Noz, & o negro crauo, que faz clara
A noua ilha Maluco, coa canella,
Com que Ceilão he rica illustre & bella.
Isto tudo lhe ouuera a deligencia
De Monçaide fiel, que tambem leua,
Que inſpirado de Angelica influencia,
Quer no liuro de Chriſto que ſe eſcreua,
O ditoſo .Affricano, que a clemencia
Diuina aſsi tirou deſcura treua,
E tam longe da patria achou maneira,
Pera ſubir aa patria verdadeira.
Apartadas aſsi da ardente costa,
As venturoſas naos, leuando a proa
Pera onde a natureza tinha poſta
A Meta Austrina da eſparança boa,
Leuando alegres nouas & repoſta,
Da parte Oriental pera Lisboa,
Outra vez cometendo os duros medos
Do mar incerto, temidos & ledos.
O prazer de chegar aa patria cara,
A ſeus penates caros & parentes,
Pera contar a peregrina, & rara
Nauegaçam, os varios çeos, & gentes,
Vir a lograr o premio, que ganhàra
Por tão longos trabalhos, & accidentes,
Cada hum, tem por goſto tam perfeito,
Que o coração para elle he vaſo eſtreito.
Porem a Deoſa Cipria, que ordenada
Era pera fauor dos Luſitanos
Do Padre eterno, & por bom genio dada
Que ſempre os guia ja de longos annos.
A gloria por trabalhos alcançada,
Satisfação de bem ſofridos danos,
Lhe andaua ja ordenando, & pretendia
Darlhe nos mares tristes alegria.
Deſpois de ter hum pouco reuoluido
Na mente, o largo mar que nauegârão,
Os trabalhos, que pelo Deos naſcido,
Nas Amphioneas Thebas, ſe cauſarão,
Ia trazia de longe no ſentido,
Pera premio de quanto mal paſſarão,
Buſcarlhe algum deleite, algum deſcanſo
No Reino de criſtal liquida, & manſo.
Algum repouſo em fim, com que podeſſe
Refucilar a laſſa humanidade
Dos nauegantes ſeus, como intereſſe
Do trabalho, que incurta a breue idade:
Parecelhe razão que conta deſſe
A ſeu filho, por cuja poteſtade
Os Deoſes faz decer ao vil terreno,
E os humanos ſubir ao ceo ſereno.
Iſto bem reuoluido, determina
De terlhe aparelhada la no meio
Das agoas, algũa inſula diuina,
Ornada deſmaltado & verde arreio:
Que muitas tem no reino, que confina
Da primeira co terreno ſeio,
Afora as que paſſue ſoberanas,
Pera dentro das portas Herculanas.
Ali quer que as aquaticas donzellas,
Eſperem os fortiſsimos barões,
Todas as que tem titolo de bellas,
Gloria dos olhos, dor dos corações,
Com danças, & coreas, porque nellas
Influirâ ſecretas affeições,
Pera com mais vontade trabalharem
De contentar a quem ſe affeiçoarem.
Tal manha buſcou ja, pera que aquelle
Que de Achiſes pario, bem recebido
Foſſe no campo que a bouina pelle
Tomou de eſpaço, por ſutil partido:
Seu filho vai buſcar, porque ſo nelle
Tem todo ſeu poder, fero Cupido,
Que aſsi como naquella empreſa antiga
A ajudou ja, neſtoutra a ajude & ſiga.
No carro ajunta as aues, que na vida
Vão da morte as exequias celebrando,
E aquellas em que ja foi conuertida
Peristera, as boninas apanhando:
Em derredor da Deoſa ja partida,
No ar laſciuos beijos ſe vão dando,
Ella por onde paſſa o ar, & o vento
Sereno faz, com brando mouimento.
Ia ſobre os Idalios montes pende,
Onde o filho frecheiro eſtaua então,
Ajuntando outros muitos, que pretende
Fazer hũa famoſa expedição
Contra o mundo reuelde, porque emende
Erros grandes, que ha dias nelle eſtão,
Amando couſas que nos ſorão dadas,
Nam pera ſer amadas, mas vſadas.
Via Acteon na caça, tam auſtero,
De cego na alegria bruta, inſana,
Que por ſeguir hum feo animal fero,
Foge da gente, & bella forma humana:
E por caſtigo quer doçe, & ſeuero,
Maſtra lhe a fermoſura de Diana,
E guarde ſe nam ſeja inda comido
Deſſes cães que agora ama, & conſumido.
E vè do mundo todo os principais,
Que nenhum no bem pubrico imagina,
Vê nelles, que não tem amor a mais
Que a ſi ſomente, & a quem Philaucia inſina
Vê que eſſes que frequentão os reais
Paços, por verdadeira & ſaã doctrina
Vendem adulação, que mal conſente
Mandarſe o nouo trigo florecente.
Vê que aquelles que deuem aa pobreza
Amor diuino, & ao pouo charidade,
Amão ſomente mandos, & riqueza,
Simulãdo juſtiça, & integridade:
Da fea tyrania & de aſpereza
Fazem direito, & vaã ſeueridade:
Leis em fauor do Rei ſe estabelecem,
As em fauor do pouo ſo perecem.
Vê em fim que ninguem ama o que deue,
Se não o que ſomente mal deſeja,
Não quer que tanto tempo ſe releue,
O castigo que duro, & justo ſeja:
Seus miniſtros ajunta, porque leue
Exercitos conformes aa peleja,
Que eſpera ter coa mal regida gente,
Que lhe não for agora obediente.
Muitos deſtes mininos voadores,
Eſtão em varias obras trabalhando,
Hũs amolando ferros paſſadores,
Outros aſteas de ſetas delgaçando,
Trabalhando cantando estão de amores,
Varios caſos em verſo modulando,
Melodia ſonora, & concertada,
Suaue a letra, angelica a ſoada.
Nas fragras immortais, onde forjauão,
Pera as ſetas as pontas penetrantes,
Por lenha, corações ardendo eſtauão,
Viuas entranhas inda palpitantes:
As agoas onde os ferros temperauão,
Lagrimas ſam de miſeros amantes,
A viua flama, o nunca morto lume,
Deſejo he ſo que queima, & não conſume.
Algũs exercitando a mão andauão,
Nos duros corações da plebe ruda,
Crebros ſoſpiros pelo ar ſoauão,
Dos que feridos vão, da ſeta aguda,
Fermoſas Nimphas ſam, as que curauão
As chagas recebidas, cuja ajuda
Não ſomente dâ vida aos mal feridos:
Mas poem em vida os inda não naſcidos.
Fermoſas ſam algũas, & outras feas,
Segundo a qualidade for das chagas,
Que o veneno eſpalhado pelas veas,
Curão no aas vezes aſperas triagas
Algũs ficão ligados em cadeas,
Por palauras ſutis de ſabias Magas,
Iſto acontece aas vezes quando as ſetas
Acertão de leuar eruas ſecretas.
Deſtes tiros aſsi deſordenados,
Que estes moços mal deſtros vão tirando,
Naſcem amores mil desconcertados,
Entre o pouo ferido miſerando,
E tambem nos heroes de altos eſtados,
Exemplos mil ſe vem de amor nefando,
Qual o das moças, Bibli, & Cynirea
Hum mancebo de Aſsiria, hum de Iudea.
E vos ô poderoſo por paſtoras
Muytas vezes ferido o peyto vedes,
E por bayxos, & rudos vos ſenhoras
Tambem vos tomão nas Vulcanias redes,
Hũs eſperando andais nocturnas horas,
Outros ſubis telhados & paredes,
Mas eu creyo que deſte amor indino,
He mais culpa a da mãy, que a da minino.
Mas ja no verde prado o carro leue,
Punhão os brancos Ciſnes manſamente,
E Dione, que as roſas entre a neue
No rosto traz, decia diligente:
O frecheiro, que contra o çeo ſe atreue,
A recebella vem, ledo, & contente,
Vem todos os cupidos ſeruidores,
Beijar a mão aa Deoſa dos amores.
Ella porque não gaſte o tempo em vão,
Nos braços tendo o filho, confiada
Lhe diz, amado filho, em cuja mão
Toda minha potencia eſtà fundada:
Filho em quem minhas forças ſempre eſtão,
Tu que as armas Tifeas tẽs em nada,
A ſocorrer me a tua poteſtade,
Me traz eſpecial neceſsidade.
Bem ves as Luſitanicas fadigas,
Que eu ja de muito longe fauoreço,
Porque das Parcas ſey minhas amigas,
Que me ande venerar & ter em preço,
E porque tanto imitão as antigas
Obras de meus Romanos, me offereço
A lhe dar tanta ajuda em quanto poſſo,
A quanto ſe estender o poder noſſo.
E porque das inſidias do odioſo
Baco foram na India moleſtados,
E das injurias ſos do mar vndoſo,
Poderão mais ſer mortos, que canſados:
No mesmo mar, que ſempre temeroſo
Lhe foi, quero que ſejão repouſados,
Tomando aquelle premio, & doçe gloria
Do trabalho que faz clara a memoria.
E pera iſſo queria que feridas
As filhas de Nereo, no ponto fundo,
Da mor dos Luſitanos encendidas,
Que vem de deſcobrir o nouo mundo,
Todas nũa ilha juntas & ſubidas,
Ilha que nas entranhas do profundo
Oceano, terei aparelhada,
De dões de Flora, & Zefiro adornada.
Ali com mil refreſcos & manjares,
Com vinhos odoriferos, & roſas,
Em criſtalinos paços ſingulares,
Fermoſos leitos, & ellas mais fermoſas:
Em fim com mil deleites não vulgares,
Os eſperem as Nimphas amoroſas,
Damor feridas, pera lhe entregarem
Quanto dellas os olhos cobiçarem.
Quero que aja no reino Neptunino
Onde eu naſci, progenie forte & bella,
E tome exemplo o mundo vil, malino,
Que contra tua potencia ſe reuela,
Porque entendão que muro Adamantino,
Nem triste hypocreſia val contra ella:
Mal auerâ na terra quem ſe guarde,
Se teu fogo imortal nas agoas arde.
Aſsi Venus propos, & o filho inico
Pera lhe obedecer ja ſe apercebe,
Manda trazer o arco eburneo rico,
Onde as ſetas de ponta de ouro embebe:
Com geſto ledo a Cipria, & impudico,
Dentro no carro o filho ſeu recebe,
Ha redea larga aas aues, cujo canto
Ha Phaetontea morte chorou tanto.
Mas diz Cupido, que era neceſſaria
Hũa famoſa, & celebre terceyra,
Que poſto que mil vezes lhe he contraria,
Outras muytas ha tem por companheyra:
A Deoſa Gigantea temeraria,
Iactante, mintiroſa, & verdadeyra,
Que com cem olhos ve, & por onde voa
O que vè com mil bocas apregoa.
Vão a buſcar, & mandam a diante,
Que celebrando va com tuba clara,
Os louuores da gente nauegante,
Mais do que nunca os doutrem celebrara
Ia murmurando a fama penetrante
Pelas fundas cauernas ſe eſpalhàra,
Fala verdade, a vida por verdade,
Que junto a Deoſa traz Credulidade.
O louuor grande, o rumor excellente
No coração dos Deoſes, que indinados
Forão por Baco contra a illuſtre gente,
Mudando os fez hum pouco afeyçoados:
O peyto feminil, que leuemente
Muda quaeſquer propafitos tomados,
Ia julga por mao zelo, & por crueza
Deſejar mal a tanta fortaleza.
Deſpede niſto o fero moço as ſetas
Hũa apos outra, geme o mar cos tiros,
Dereitas pelas ondas inquietas,
Algũas vão, & algũas fazem giros:
Caem as Nimphas, lançam das ſecretas
Entranhas ardentiſsimos ſoſpiros,
Cae qualquer, ſem ver o vulto que ama,
Que tanto como a vista pode a fama.
Os cornos ajuntou da eburnea Lũa,
Com força o moço indomito exceſsiua,
Que Thetis quer ferir mais que nenhũa,
Porque mais que nenhũa lhe era eſquiua:
Ia não fica na aljaua ſeta algũa,
Nem nos equoreos campos Nimpha viua,
E ſe feridas inda eſtão viuendo,
Sera pera ſentir que vão morrendo.
Day lugar altas & ceruleas ondas,
Que vedes Venus traz a medicina,
Moſtrando as brancas vellas, & redondas,
Que vem por cima da agoa Neptunina:
Pera que tu reciproco reſpondas
Ardente Amor aa flama feminina,
He forçado que a pudicicia honesta
Faça quanto lhe Venus amoeſta.
Ia todo o bello coro ſe aparelha
Das Nereidas, & junto caminhaua
Em coreas gentis, vſança velha,
Pera a ilha, a que Venus as guiaua:
Ali a fermoſa Deoſa lhe aconſelha
O que ella fez mil vezes, quando amaua,
Ellas que vão do doçe amor vencidas,
Eſtão a ſeu conſelho offerecidas.
Cortando vão as naos a larga via
Do mar ingente, pera a patria amada,
Deſejando prouerſe de agoa fria,
Pera a grande viajem prolongada:
Quando juntas com ſubita alegria,
Ouuerão vista da ilha namorada,
Rompendo pelo çeo a mãi fermoſa
De Menonio, ſuaue & deleitoſa.
De longe a Ilha virão freſca, & bella,
Que Venus pelas ondas lha leuaua
(Bem como o vento leua branca vella)
Pera onde a forte armada ſe enxergaua,
Que porque não paſſaſſem, ſem que nella
Tomaſſem porto, como deſejaua,
Pera onde as naos nauegão a mouia
A Accidalia, que tudo em fim podia.
Mas firme a fez & imobil, como vio
Que era dos Nautas viſta, & demandada,
Qual ficou Delos, tanto que pario
Latona Phebo, & a Deoſa aa caça vſada
Pera la logo a proa o mar abrio,
Onde a coſta fazia hũa enſeada
Curua, & quieta, cuja branca area
Pintou de ruiuas conchas Cyterea.
Tres fermoſos outeiros ſe moſtrauão,
Erguidos com ſoberba gracioſa,
Que de gramineo eſmalte ſe adornauão,
Na fermoſa ilha alegre, & deleitoſa:
Claras fontes & limpidas manauão
Do cume, que a verdura tem viçoſa,
Por entre pedras aluas ſe diriua,
A ſonoroſa Limpha fugitiua.
Num valle ameno, que os outeiros fende,
Vinhão as claras agoas ajuntarſe,
Onde hũa meſa fazem, que ſe estende
Tam bella, quanto pode imaginarſe:
Aruoredo gentil ſobre ella pende,
Como que prompto estâ pera afeitarſe,
Vendoſe no cristal reſplandecente,
Que em ſi o eſtâ pintando propriamente:
Mil aruores eſtão ao çeo ſubindo,
Com pomos odoriferos & bellos,
A Laranjeira tem no fruito lindo
A cor, que tinha Daphne nos cabellos.
Encoſtaſe no chão, que eſtà caindo
A Cidreira cos peſos amarellos,
Os fermoſos limoẽs ali cheirando
Eſtam virgineas tetas imitando.
As aruores agreſtes, que os outeiros
Tem com frondente coma emnobrecidos
Alemos ſam de Alcides, & os Loureiros
Do louro Deos amados, & queridos:
Mirtos de Cyterea, cos Pinheiros
De Cybele por outro amor vencidos,
Estâ apontando o agudo Cipariſo
Pera onde he poſto o Etereo paraiſo.
Os dões que dâ Pomona, ali natura
Produze diferentes nos ſabores,
Sem ter neceſsidade de cultura,
Que ſem ella ſe dão muito milhores.
As Cereijas porpureas na pintura,
As Amoras, que o nome tem de amores,
O pomo, que da patria Perſia veio,
Milhor tornado no terreno alheio.
Abre a Romã, mostrando a rubicunda
Cor, com que tu Rubi teu preço perdes:
Entre os braços do Vlmeiro eſtâ a jocunda
Vide, cũs cachos roxos, & outros verdes:
E vos ſe na voſſa aruore fecunda
Peras pyramidais viuer quiſerdes,
Entregaiuos ao dano, que cos bicos,
Em vos fazem os paſſaros inicos.
Pois a tapeçaria bella & fina,
Com que ſe cobre a ruſtico terreno,
Faz ſer a de Achemenia menos dina:
Mas o ſombrio valle mais ameno:
Ali a cabeça o flor Cyfiſia inclina,
Sobollo tanque lucido & ſereno,
Floreçe o filho & neto de Cyniras,
Por quem tu Deoſa Paphia inda ſuspiras.
Pera julgar dificil couſa fora,
No çeo vendo, & na terra as meſmas cores,
Se daua aas flores cor a bella Aurora,
Ou ſe lha dam a ella as bellas flores:
Pintando eſtaua ali Zefiro, & Flora
As violas da cor dos amadores,
O Lirio roxo, a freſca Roſa bella,
Qual reluze nas faces da donzella.
A candida Cecêm das Matutinas
Lagrimas ruciada, & a Manjarona,
Venſe as letras nas flores Hyacintinas,
Vem queridas do filho de Latona:
Bem ſe enxerga nos pomos & boninas,
Que competia Cloris com Pomona:
Pois ſe as aues no ar cantando voão,
Alegres animais o chão pouoão.
A longo da agoa o niueo Ciſne canta,
Responde lhe do ramo Philomela,
Da ſombra de ſeus cornos nam ſe eſpanta
Acteon nagoa criſtalina & bella:
Aqui a fugace Lebre ſe leuanta
Da eſpeſſa mata, ou temida Gazella,
Ali no bico traz ao caro ninho,
O mantimento ô leue paſſarinho.
Neſta freſcura tal deſembarcauão
Ia das naos os ſegundos Argonautas,
Onde pela floresta ſe deixauão
Andar as bellas Deoſas como incautas,
Algũas doçes Cytaras tocauão,
Algũas arpas, & ſonoras frautas,
Outras cos arcos de ouro ſe fingião
Seguir os animais, que nam ſeguião.
Aſsi lho aconſelhàra a meſtra experta,
Que andaſſem pelos campos eſpalhadas,
Que vista dos barões a preſa incerta,
Se fizeſſem primeyro deſejadas
Algũas, que na forma deſcuberta
Do bello corpo eſtauão confiadas,
Poſta a artificioſa fermoſura,
nuas lauarſe deyxão na agoa pura.
Mas os fortes mancebos, que na praya
Punhão os pes de terra cubiçoſos,
Que não ha nenhum delles, que não ſaya
De acharem caça agreſte deſejoſos:
Não cuydão que ſem laço, ou redes caya
Caça naquelles montes deleytoſos
Tão ſuaue, domeſtica, & benina,
Qual ferida lha tinha ja Ericina.
Algũs que em eſpingardas, & nas beſtas
Pera ferir os Ceruos ſe fiauão,
Pelos ſombrios matos, & floreſtas
Determinadamente ſe lançauão:
Outros nas ſombras, que de as altas ſeſtas
Defendem a verdura, paſſeauão
Ao longo da agoa, que ſuaue, & queda
Por aluas pedras corre aa praya leda.
Começão de enxergar ſubitamente
Por entre verdes ramos varias cores,
Cores de quem a viſta julga, & ſente,
Que não erão das roſas, ou das flores,
Mas da lam fina, & ſeda diferente
Que mais incîta a força dos amores,
De que ſe vestem as humanas roſas,
Fazendoſe por arte mais fermoſas.
Da Veloſo eſpantado hum grande grito,
Senhores caça eſtranha diſſe he eſta,
Se inda durão o Gentio antigo rito,
A Deoſas he ſagrada esta floresta:
Mais deſcobrimos do que humano eſprito
Deſejou nunca, & bem ſe manifeſta
Que ſam grandes as couſas, & excellentes
Que o mundo encobre aos homẽs imprudẽtes.
Sigamos eſtas Deoſas, & vejamos,
Se fantasticas ſam, ſe verdadeiras,
Isto dito velloces mais que Gamos,
Selançam a correr pelas ribeiras:
Fugindo as Nimphas vão por entre os ramos,
Mas mais induſtrioſas que ligeiras,
Pouco & pouco ſurrindo, & gritos dando,
Se deixão yr dos Galgos alcançando.
De hũa os cabellos de ouro o vento leua
Correndo, & da outra as fraldas delicadas,
Acendeſe o deſejo que ſe ceua
Nas aluas carnes ſubito moſtradas,
Hũa de industria cae, & ja releua
Com moſtras mais maſias, que indinadas,
Que ſobre ella empecendo tambem caia
Quem a ſeguio pela arenoſa praia.
Outros por outra parte vão topar,
Com as Deoſas deſpidas, que ſe lauão,
Ellas começam ſubito a gritar,
Como que aſſalto tal nam eſperauão,
Hũas fingindo menos eſtimar
A vergonha, que a força, ſe lançauão
Nuas por entre o mato, aos olhos dando
O que aas mãos cobiçoſas vão negando.
Outra como acudindo mais de preſſa,
Aa vergonha da Deoſa caçadora,
Eſconde o corpo nagoa, outra ſe apreſſa
Por tomar os veſtidos, que tem fora:
Tal dos mancebos ha, que ſe arremeſſa
Veſtido aſsi & calçado (que co a mora
Deſſe deſpir, ha medo que inda tarde)
A matar na agoa o fogo que nelle arde.
Qual tão de caçador ſagaz, & ardido,
Vſado a tomar na agoa a aue ferida,
Vendo roſto o ferreo cano erguido,
Pera a Garcenha, ou Pata conhecida,
Antes que ſoe o eſtouro, mal ſofrido
Salta nagoa, & da preſa nam duuîda,
Nadando vay & latindo, aſsi o mancebo
Remete ha que nam era yrmaã de Phebo.
Lionardo ſoldado bem deſpoſto,
Manhoſo, caualleiro, & namorado,
A quem amor não dera hum ſo deſgoſto,
Mas ſempre fora delle mal tratado:
E tinha ja por firme proſuposto
Ser com amores mal afortunado,
Porem não que perdeſſe a eſperança,
De inda poder ſeu fado ter mudança.
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Os Lusíadas - 11
  • Parts
  • Os Lusíadas - 01
    Total number of words is 4505
    Total number of unique words is 1748
    27.4 of words are in the 2000 most common words
    40.6 of words are in the 5000 most common words
    46.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Os Lusíadas - 02
    Total number of words is 4527
    Total number of unique words is 1725
    25.8 of words are in the 2000 most common words
    38.0 of words are in the 5000 most common words
    45.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Os Lusíadas - 03
    Total number of words is 4578
    Total number of unique words is 1785
    27.6 of words are in the 2000 most common words
    40.2 of words are in the 5000 most common words
    46.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Os Lusíadas - 04
    Total number of words is 4504
    Total number of unique words is 1726
    28.9 of words are in the 2000 most common words
    41.0 of words are in the 5000 most common words
    46.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Os Lusíadas - 05
    Total number of words is 4479
    Total number of unique words is 1840
    27.8 of words are in the 2000 most common words
    39.1 of words are in the 5000 most common words
    45.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Os Lusíadas - 06
    Total number of words is 4555
    Total number of unique words is 1822
    27.0 of words are in the 2000 most common words
    39.6 of words are in the 5000 most common words
    46.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Os Lusíadas - 07
    Total number of words is 4574
    Total number of unique words is 1794
    28.5 of words are in the 2000 most common words
    40.1 of words are in the 5000 most common words
    46.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Os Lusíadas - 08
    Total number of words is 4557
    Total number of unique words is 1788
    27.4 of words are in the 2000 most common words
    41.0 of words are in the 5000 most common words
    46.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Os Lusíadas - 09
    Total number of words is 4528
    Total number of unique words is 1807
    27.5 of words are in the 2000 most common words
    40.8 of words are in the 5000 most common words
    47.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Os Lusíadas - 10
    Total number of words is 4496
    Total number of unique words is 1864
    26.1 of words are in the 2000 most common words
    38.3 of words are in the 5000 most common words
    45.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Os Lusíadas - 11
    Total number of words is 4518
    Total number of unique words is 1874
    26.0 of words are in the 2000 most common words
    38.8 of words are in the 5000 most common words
    45.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Os Lusíadas - 12
    Total number of words is 4144
    Total number of unique words is 1709
    26.9 of words are in the 2000 most common words
    39.4 of words are in the 5000 most common words
    45.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.