Os Lusíadas - 08

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Por metade das agoas Eritreas:
Tu que liuraſte Paulo & defendeſte
Das Syrtes arenoſas & ondas feas,
E guardaste cos filhos o ſegundo
Pouoador do alagado & vacuo mundo.
Se tenho nouos medos perigoſos
Doutra Scylla & Caribdis ja paſſados,
Outras Syrtes, & baxos arenoſos,
Outros Acroceraunios infamados,
No fim de tantos caſos trabalhoſos,
Por que ſomos de ti deſemparados,
Se eſte noſſo trabalho não te offende,
Mas antes teu ſeruiço ſo pretende?
O ditoſos aquelles que puderão
Entre as agudas lanças Affricanas
Morrer, em quanto fortes ſostiuerão
A ſancta Fe, nas terras Mauritanas:
De quem feitos illuſtres ſe ſouberão,
De quem ſicão memorias ſoberanas,
De quem ſe ganha a vida com perdella,
Doce fazendo a morte as honras della.
Aſsi dizendo os ventos que lutauão,
Como touros indomitos bramando,
Mais & mais a tormenta acrecentauão,
Pella miuda enxarcia aſſuuiando.
Relampados medonhos não ceſſauão,
Feros trouoẽs que vem repreſentando
Cair o ceo dos exos ſobre a terra,
Cenſigo os elementos terem guerra.
Mas ja a amoroſa ſtrela ſcintilaua
Diante do Sol claro, no Orizonte
Menſageira do dia, & viſitaua
A terra, & o largo mar, com leda fronte:
A deoſa que nos ceos a gouernaua,
De quem foge o enſiſero Orionte,
Tanto que o mar, & a chara armada vira,
Tocada junto foy de medo, & de ira.
Estas obras de Baco ſam por certo,
Diſſe, mas não ſerâ, que auante leue
Tão danada tenção, que deſcuberto
Me ſera ſempre o mal a que ſe atreue,
Iſto dizendo, dece ao mar aberto,
No caminho gaſtando eſpaço breue,
Em quanto manda as nimphas amoroſas
Grinaldas nas cabeças por de roſas.
Grinaldas manda por de varias cores
Sobre cabellos louros a porfia,
Quem não dirâ, que nacem roxas flores
Sobre ouro natural, que amor infia:
Abrandar determina por amores
Dos ventos a nojoſa companhia,
Moſtrandolhe as amadas Nimphas bellas,
Que mais fermoſas vinhão que as eſtrellas.
Aſsi foy, porque tanto que chegarão
A viſta dellas, logo lhe falecem
As forças com que dantes pellejarão,
E ja como rendidos lhe obedecem.
Os pês & mãos, parece, que lhe atarão
Os cabellos que os rayos eſcurecem,
A Boreas, que do peito mais queria,
Aſsi diſſe a belliſsima Oritia.
Não creas, fero Boreas, que te creyo
Que me tiueſte nunca amor constante,
Que brandura he de amor mais certo arreyo,
E não conuem furor a firme amante:
Se ja não poẽs a tanta inſania freyo,
Não eſperes de mi daqui em diante,
Que poſſa mais amarte, mas temerte,
Que amor contigo, em medo ſe conuerte.
Aſsi meſmo a fermoſa Galatea
Dizia ao fero Noto, que bem ſabe
Que dias ha que em vella ſe recrea,
E bem crê que com elle tudo acabe,
Não ſabe o brauo tanto bem ſe o crea,
Que o coração no peito lhe não cabe,
De contente de ver que a dama o manda,
Pouco cuida que faz ſe logo abranda.
Deſta maneira as outras amanſauão
Subitamente os outros amadores,
E logo aa linda Venus ſe entregauão,
Amanſadas as iras & os furores,
Ella lhe prometeo vendo que amauão.
Sempiterno fauor em ſeus amores,
Nas bellas mãos tomandelhe omenagem
De lhe ſerem leais eſta viagem.
Ia a menham clara daua nos outeiros,
Por onde o Ganges murmurando ſoa,
Quando da celſa gauea os marinheiros
Enxergarão terra alta pella proa,
Ia fora de tormenta, & dos primeiros
Mares, o temor vão do peito voa,
Diſſe alegre o Piloto Melindano,
Teria he de Calccu, ſe não me engano.
Eſta he por certo a terra que buſcais
Da verdadeira India, que aparece
E ſe do mundo mais não deſejais,
Voſſo trabalho longo aqui fenece:
Soſſrer aqui não pode o Gama mais,
De ledo em ver que a terra ſe conhece,
Os geolhos no chão, as mãos ao ceo
A merce grande a Deos agardeceo.
As graças a Deos daua, & razão tinha
Que não ſomente a terra lhe moſtraua,
Que com tanto temor buſcando vinha
Por quem tanto trabalho eſprimentaua,
Mas via ſe liurado tão aſinha
Da morte, que no mar lhe aparelhaua
O vento duro, feruido, & medonho,
Como quem deſpertou de horrendo ſonho.
Por meyo deſtes horridos parigos
Deſtes trabalhos graues & temores,
Alcanção os que ſam de fama amigos
As honras immortais, & graos mayores:
Não encoſtados ſempre nos antigos
Troncos nobres de ſeus anteceſſores,
Não nos leitos dourados, entre os finos
Animais de Moſcouia Zebellinos.
Não cos manjares nouos & exquiſitos,
Não cos paſſeos molles & oucioſos,
Não cos varios deleites & infinitos
Que afeminão os peitos generoſos:
Não cos nunca vencidos apetitos
Que a Fortuna tem ſempre tão mimoſos,
Que não ſoffre a nenhum que o paſſo mude
Pera algũa obra heroica de virtude.
Mas com buſcar co ſeu forçoſo braço
As honras, que elle chame proprias ſuas,
Vigiando, & veſtindo o forjado aço
Soffrendo tempeſtades & ondas cruas:
Vencendo os torpes frios no regaço
Do Sul, & regioẽs de abrigo nuas,
Engulindo o corrupto mantimento
Temperado com hum arduo ſofrimento.
E com forçar o rosto que ſe enfia,
A parecer ſeguro, ledo, inteiro,
Pera o pilouro ardente, que aſſouia
E leua a perna, ou braço ao companheiro:
Destarte o peito hum calo honroſo cria
Deſprezador das honras, & dinheiro,
Das honras, & dinheiro, que a venntura
Forjou, & não vertude juſta, & dura.
Deſtarte ſe eſclarece o entendimento,
Que experiencias fazem repouſado,
E fica vendo, como de alto aſſento,
O baxo tracto humano embaraçado,
Eſte onde tiuer força o regimento
Direito, & nam de affeitos occupado,
Subirà (como deue) a illuſtre mando,
Contra vontade ſua, & não rogando.
FIM.

❧ Canto Septimo.
Ia ſe viã chegados
junto aa terra,
Que deſejada ja de tantos fora,
Que entre as correntes Indicas ſe
encerra,
E o Ganges, que no çeo terreno mora:
Ora ſus gente forte que na guerra
Quereis leuar a palma vencedora,
Ia ſois chegados, ja tendes diante
A terra de riquezas abundante.
A vos, ô geraçam de Luſo digo,
Que tam pequena parte ſois no mundo:
Não digo inda no mundo, mas no amigo
Curral de quem gouerna o çeo rotundo:
Vos, a quem não ſomente algum perigo
Eſtorua conquiſtar o pouo inmundo:
Mas nem cobiça, ou pouca obediencia
Da Madre, que nos çeos eſtâ em eſſencia.
Vos Portugueſes poucos, quanto fortes,
Que o fraco poder voſſo não peſais,
Vos que aa cuſta de voſſas varias mortes
A lei da vida eterna dilatais:
Aſsi do çeo deitadas ſam as ſortes,
Que vos por muito poucos que ſejais,
Muito façais na ſancta Chriſtandade:
Que tanto, ô Chriſto exaltas a humildade.
Vedelos Alemães, ſoberbo gado,
Que por tam largos campos ſe apacenta,
Do ſucceſſor de Pedro rebelado,
Nouo paſtor, & noua ceita inuenta:
Vedelo em feas guerras occupado,
Que inda co cego error ſe nam contenta,
Não contra o ſuperbiſsimo Otomano:
Mas por ſair do jugo ſoberano.
Vedelo duro Ingles, que ſe nomea
Rei da velha & ſanctiſsima cidade,
Que o torpe Iſmaelita ſenhorea,
(Quem via honra tam longe da verdade)
Entre as Boreais neues ſe recrea,
Noua maneira faz de Chriſtandade,
Pera os de Christo tem a eſpada nua,
Nem por tomar a terra que era ſua.
Guardalhe por entanto hum falſo Rei,
A cidade Hieroſolima terreste,
Em quanto elle não guarda a ſancta lei,
Da cidade Hieroſolima celeſte:
Pois de ti Gallo indigno que direy?
Que o nome Christianiſsimo quiſeste,
Nem pera defendelo, nem guardalo,
Mas para ſer contra elle, & derribalo.
Achas que tẽs direito em ſenhorios
De Chriſtãos, ſendo o teu tam largo & tãto.
E nam contra o Cynifio & Nilo rios
Inimigos do antigo nome ſancto,
Ali ſe ande prouar da eſpada os fios,
Em quem quer reprouar da Ygreja o canto,
De Carlos, de Luis, o nome & a terra
Erdaſte, & as cauſas nam da justa guerra?
Pois que direy daquelles que em delicias,
Que o vil ocio no mundo traz conſigo,
Gastão as vidas, logrão as diuicias,
Eſquecidos de ſeu valor antigo:
Naſcem da tyrania inimicicias,
Que o pouo forte tem de ſi inimigo,
Contigo Italia fallo, ja ſumerſa
Em vicios mil, & de ti meſma aduerſa.
O miſeros Chriſtãos, pola ventura
Sois os dentes de Cadmo deſparzidos,
Que hũs aos outros ſe dão aa morte dura,
Sendo todos de hum ventre produzidos?
Nem vedes a diuina ſepultura
Poſſuida de cães, que ſempre vnidos
Vos vem tomar a voſſa antiga terra,
Fazendo ſe famoſas pela guerra?
Vedes que tem por vſo & por decreto,
Do qual ſam tão inteiros obſeruantes,
Ajuntarem o exercito inquieto,
Contra os pouos, que ſam de Chriſto amantes.
Entre vos nunca deixa a fera Aleto
De ſamear cizanias repugnantes,
Olhay ſeſtais ſeguros de perigos,
Que elles & vos, ſois voſſos inimigos.
Se cobiça de grandes ſenhorios
Vos faz yr conquiſtar terras alheas,
Nam vedes que Pactolo & Hermo rios,
Ambos voluem auriferas areas,
Em Lidia, Aſsiria laurão de ouro os fios,
Affrica eſconde em ſi luzentes veas,
Mouauos ja ſe quer riqueza tanta,
Pois mouer vos não pode a caſa Sancta.
Aquellas inuenções feras & nouas,
De instrumentos mortais da artelharia,
Ia deuem de fazeras duras prouas,
Nos muros de Bizancio, & de Turquia:
Fazei que torne la aas ſilueſtres couas,
Dos Caspios montes, & da Citia fria,
A Turca geração, que multiplica
Na policia da voſſa Europa rica.
Gregos, Traces, Armenios, Georgianos
Bradando vos eſtão, que o pouo bruto
Lhe obriga os caros filhos aos profanos
Preceptos do alcorão (duro tributo)
Em caſtigar.os feitos inhumanos
Vos gloriay de peito forte, & aſtuto,
E não queirais louuores arrogantes,
De ſerdes contra os voſſos muy poſſantes.
Mas em tanto que cegos, & ſedentos
Andais de voſſo ſangue, o gente inſana,
Não faltarão Christãos atreuimentos,
Neſta pequena caſa Luſitana
De Affrica tem maritimos aſſentos,
He na Aſia mais que todas ſoberana,
Na quarta parte noua os campos ara,
E ſe mais mundo ouuera la chegâra.
E vejamos em tanto que aconteçe
Aaquelles tam famoſos nauegantes,
Deſpois que a branda Venus enfraqueçe
O furor vão dos ventos repugnantes:
Deſpois que a larga terra lhe apareçe,
Fim de ſuas perfias tam conſtantes,
Onde vẽ ſamear de Christo a ley,
E dar nouo coſtume, & nouo Rei.
Tanto que aa noua terra ſe chegârão,
Leues embarcações de peſcadores
Acharão, que o caminho lhe moſtrârão
De Calecu onde eram moradores:
Pera la logo as proas ſe inclinarão,
Porque esta era a cidade das milhores
Do Malabar milhor, onde viuia
O Rei que a terra toda poſſuia.
Alem do Indo jaz, & âquem do Gange,
Hum terreno muy grande, & aſſaz famoſo
Que pela parte Auſtralo mar abrange,
E pera o Norte o Emodio cauernoſo.
Iugo de Reis diuerſos o conſtrange
A varias leis: algũs o vicioſo
Mahoma, algũs os Idolos adorão,
Algũs os animais, que entre elles morão.
La bem no grande monte, que cortando
Tam larga terra, toda Aſia diſcorre,
Que nomes tam diuerſos vai tomando,
Segundo as regiões por onde corre,
As fontes ſaem, donde vem manando
Os rios, cuja gram corrente morre
No mar Indico, & cercão todo o peſo
Do terreno, fazendo o Cherſoneſo.
Entre hum & o outro rio, em grande eſpaço
Say da larga terra hũa longa ponta
Quaſi piramidal , que no regaço
Do mar com Ceilão inſula confronta,
E junto donde naſce o largo braço
Gangetico, o rumor antigo conta.
Que os vizinhos da terra moradores
Do cheiro ſe mantem das finas flores.
Mas agora de nomes, & de vſança,
Nouos & varios ſam os habitantes:
Os Delijs, os Patanes, que em poſſança
De terra, & gente, ſam mais abundantes,
Decanis, Oriâs, que a eſperança
Tem de ſua ſaluação nas reſonantes
Agoas do Gange, & a terra de Bengala
Fertil de ſorte que outra não lhe igoala.
O Reino de Cambaia bellicoſo
(Dizem que foy de Poro Rei potente)
O Reino de Narſinga poderoſo,
Mais de ouro & pedras, que de forte gente:
Aqui ſe enxerga la do mar vndoſo
Hum monte alto, que corre longamente,
Seruindo ao Malabar de forte muro,
Com que do Canarâ viue ſeguro.
Da terra os naturais lhe chamão Gate,
Do pê do qual pequena quantidade
Se eſtende hũa ſralda eſtreita, que combate
Do mar a natural ferocidade:
Aqui de outras cidades ſem debate,
Calecu tem a illuſtre dignidade,
De cabeça de Imperio rica, & bella,
Samorim ſe intitula o ſenhor della.
Chegada a frota ao rico ſenhorio,
Hum Portugues mandado logo parte,
A fazer ſabedar o Rei gentio
Da vinda ſua a tam remota parte:
Entrando o menſageiro pelo Rio,
Que ali nas ondas entra, a não viſta arte
A cor, o geſto estranho, o trajo nouo
Fez concorrer a vello todo o pouo.
Entre a gente que a vello concorria,
Se chega hum Mahometa, que naſcido
Fora na região da Berberia,
La onde fora Anteo obedecido.
Ou pela vezinhança ja teria
O Reino Luſitano conhecido,
Ou foy ja aſsinalado de ſeu ferro,
Fortuna o trouxe a tam longo desterro.
Em vendo o menſageiro com jocundo
Roſto, como quem ſabe a lingoa Hiſpana
Lhe diſſe, quem te trouxe a eſtoutro mundo,
Tam longe da tua patria Luſitana?
Abrindo lhe reſponde o mar profundo,
Por onde nunca veio gente humana,
Vimos buſcar do Indo o grão corrente,
Por onde a Lei diuina ſe acrecente.
Eſpantado ficou da gram viajem,
O mouro qne Monçaide ſe chamaua,
Ouuindo as opreſſoẽs que na paſſajem
Do mar, o Luſitano lhe contaua,
Mas vendo em fim, que a força da menſajem
So pera o Rei da terra releuaua,
Lhe diz que eſtaua fora da cidade.
Mas de caminho pauca quantidade.
E que em tanto que a noua lhe chegeſſe
De ſua estranha vinda, ſe queria
Na ſua pobre caſa repouſaſſe,
E do manjar da terra comeria:
E deſpois que ſe hum pouco recreaſſe,
Coelle pera a armada tornaria,
Que alegria não pode ſer tamanha,
Que achar gente vezinha em terra eſtranha.
O Portuegues aceita de vontade
O que o ledo Monçaide lhe offerece
Como ſe longa fora ja a amizade,
Coelle come & bebe, & lhe obedeçe:
Ambos ſe tornão logo da cidade,
Pera a frota, que o Mouro bem conheçe,
Sobem aa Capitaina, & toda a gente
Monçaide recebeo benignamente.
O Capitão o abraça em cabo ledo,
Ouuindo clara a lingoa de Caſtella,
Iunto de ſi o aſſenta, & prompto & quedo
Pela terra pergunta, & couſas della:
Qual ſe ajuntaua em Rodope o aruoredo,
So por ouuir o amante da donzella
Euridiçe, tocando a lira de ouro,
Tal a gente ſe ajunta a ouuir o Mouro.
Elle começa, o gente que a natura
Vizinha fez de meu paterno ninho,
Que deſtino tam grande, ou que ventura
Vos trouxe a cometerdes tal caminho:
Nam he ſem cauſa não occulta, & eſcura
Vir do longinco Tejo, & ignoto Minho,
Por mares nunca doutro lenho arados,
A Reinos tam remotos & apartados.
Deos por certo vos traz, porque pretende
Algum ſeruiço ſeu por vos obrado:
Por iſſo ſo vos guia, & vos defende
Dos imigos do mar, do vento yrado:
Sabey que estais na India, onde ſe estende
Diuerſo pouo, rico & proſperado,
De ouro luzente, & fina pedraria,
Cheiro ſuaue, ardente eſpeciaria.
Eſta prouincia, cujo porto agora
Tomado tendes, Malabar ſe chama,
Do culto antigo os Ydolos adora,
Que ca por estas partes ſe derrama:
De diuerſos Reis he, mas dum ſo fora
Noutro tempo, ſegundo a antiga fama,
Saramâ Perimal foy derradeiro
Rei, que este Reino teue vnido & inteiro.
Porem como a eſta terra entam vieſſem,
De la do ſeyo Arabico outras gentes,
Que o culto Mahometico trouxeſſem,
No qual me inſtituirão meus parentes,
Succedeo que pregando conuerteſſem
O Perimal, de ſabios & elloquentes,
Fazem lhe a ley tomar com feruor tanto,
Que proſupos de nella morrer ſancto.
Naos arma, & nellas mete curioſo
Mercadoria que offereça rica,
Pera yr nellas a ſer religioſo,
Onde o prepheta jaz, que a ley pubrica:
Antes que parta, o Reino poderoſo
Cos ſeus reparte, porque não lhe fica
Erdeiro proprio, faz os mais aceitos,
Ricos de pobres, liures de ſojeitos.
A hum Cochim, & a outro Cananor,
A qual Chale, a qual a ilha da pimenta,
A qual Coulão, a qual dâ Cranganor
E os mais, a quem o mais ſerue & contenta
Hum ſo moço, a quem tinha muito amor,
Deſpois que tudo deu, ſe lhe apreſenta,
Pera este Calecu ſomente fica,
Cidade ja por tracto nobre & rica.
Eſta lhe dâ co titulo excellente
De Emperador, que ſobre os outros mande,
Iſto feito ſe parte diligente,
Pera onde em ſancta vida acabe, & ande,
E daqui fica o nome de potente
Camorî, mais que todos digno, & grande
Ao moço & deſcendentes, donde vem
Eſte, que agora o Imperio manda & tem.
A ley da gente toda rica & pobre,
De fabulas compoſta ſe imagina:
Andão nûs, & ſomente hum pano cobre
As partes, que a cubrir natura inſina:
Dous modos ha de gente, porque a nobre
Naires chamados ſam, & a menos digna
Poleâs tem por nome, a quem obriga
A ley não mesturar a casta antiga
Porque os q̃vſaram ſempre hum mesmo officio,
De outro nam podẽ receber conſorte,
Nem os filhos teram outro exercicio,
Senão o de ſeus paſſados ate morte,
Pera os Neires he certo grande viçio
Deſtes ſerem tocados de tal ſorte,
Que quando algum ſe toca por ventura,
Com ceremonias mil ſe alimpa & apura.
Deſta ſorte o Iudaico pouo antigo
Nem tocaua na gente de Samaria,
Mais eſtranhezas inda das que digo
Neſta terra vereis de vſança varia,
Os Naires ſos ſam dados ao perigo
Das armas, ſos defendem da contraria
Banda o ſeu Rei, trazendo ſempre vſada
Na ezquerda a adarga, e na dereita a eſpada:
Bramenes ſam os ſeus religioſos,
Nome antigo, & de grande preminencia,
Obſeruão os preceitos tam famoſos
Dhum, que primeiro pos nome aa ciencia:
Nem matão couſa viua, & temeroſos
Das carnes tem grandiſsima abstinencia,
Somente no venereo ajuntamento
Tem mais licença, & menos regimento.
Gerais ſam as molheres: mas ſomente
Pera os da geração de ſeus maridos:
Ditoſa condiçam, ditoſa gente,
Que nam ſam de ciumes offendidos.
Eſtes & outros costumes variamente
Sam pelos Malabares admitidos,
A terra he groſſa em trato, em tudo aquilo
Que as ondas podem dar da China ao Nilo.
Aſsi contaua o Mouro: mas vagando
Andaua a fama ja pela cidade,
Da vinda deſta gente estranha, guando
O Rei ſaber mandaua da verdade,
Ia vinham pelas ruas caminhando,
Rodeados de todo ſexo, & idade,
Os principaes que o Rei buſcar mandâra,
O Capitão da armada que chegâra.
Mas elle, que do Rei ja tem licença
Pera deſembarcar, acompanhado
Dos nobres Portugueſes ſem detença
Parte de ricos panos adornado:
Das cores a fermoſa diferença
A viſta alegra ao pouo aluoroçado,
O remo compaſſado fere frio
Agora o mar, despois o freſco rio.
Na praia hum regedor do Reino eſtaua,
Que na ſua lingoa Catual ſe chama,
Rodeado de Naires, que eſperaua
Com deſuſada feſta o nobre Gama:
Ia na terra nos braços o leuaua,
E num partatil leito hũa rica cama
Lhe offereçe em que va, costume vſado,
Que nos hombros dos homẽs he leuado.
Desta arte o Malabar, deſtarte o Luſo,
Caminhão la pera onde o Rei o eſpera:
Os outros Portagueſes vão ao vſo
Que infantaria ſegne eſquadra fera:
O pouo que concorre vay confuſo
De ver a gente estranha, & bem quiſera
Perguntar: mas no tempo ja paſſado
Na torre de Babel lhe foi vedado.
O Gama, & o Catual hião fallando
Nas couſas que lhe o tempo offerecia,
Monçaide entrelles vay interpretando
As palauras que de ambos entendia:
Aſsi pela cidade caminhando,
Onde hũa rica fabrica ſe erguia
De hum ſumptuoſo templo ja chegauão,
Pelas portas do qual juntos entrauão.
Ali estam das deidades as figuras
Eſculpidas em pao, & em pedra fria,
Varias degeſtos, varias de pinturas,
A ſegundo o Demonio lhe fingia.
Vem ſe as abominaueis eſculturas,
Qual a Chimêra em membros ſe varia,
Os Chriſtãos olhos a ver Deos vſados
Em forma humana eſtam marauilhados.
Hum na cabeça cornos eſculpidos,
Qual Iupiter Amon em Lybia estaua,
Outro num corpo roſtos tinha vnidos,
Bem como o antigo Iano ſe pintaua:
Outro com muitos braços diuididos
A Briareo pareçe que imitaua:
Outro fronte Canina tem de fora,
Qual Anubis Menfitico ſe adora.
Aqui feita do barbaro gentio
A ſupersticioſa adoração,
Direitos vão ſem outro algum deſuio,
Pera onde eſtaua o Rei do pouo vão:
Engroſſando ſe vay da gente o fio,
Cos que vem ver o eſtranho Capitão,
Eſtão pelos telhados & janellas
Velhos & moços, donas & donzellas.
Ia chegão perto, & não paſſos lentos,
Dos jardins odoriferos fermoſos,
Que em ſi eſcondem os regios apouſentos,
Altos de torres não, mas ſumptuoſos,
Edificão ſe os nobres ſeus aſſentos,
Por entre os aruoredos deleitoſos,
Aſsi viuem os Reis daquella gente,
No campo & na cidade juntamente.
Pelos partais da cerca a ſutileza
Se enxerga da Dedalea facultade,
Em figuras mostrando por nobreza
Da India a mais remota antiguidade:
Affiguradas vão com tal viueza
As hiſtorias daquella antiga idade,
Que quem dellas tiuer noticia inteira,
Pela ſombra conheçe a verdadeira.
Eſtaua hum grande exercito que piſa
A terra Oriental, que o Idaſpe laua,
Rege o hum capitam de fronte liſa,
Que com frondentes Tirſos palejaua,
Por elle edificada eſtaua Niſa
Nas ribeiras do rio, que manaua,
Tão proprio, que ſe ali estiuer Semelle,
Dirâ por certo, que he ſeu filho aquelle.
Mais auante bebendo ſeca o rio,
Mui grande multidão da Aſsiria gente,
Sujeita a feminino ſenhorio,
De hũa tam bella, como incontinente:
Ali tem junto ao lado nunca frio,
Eſculpido o feroz ginete ardente,
Com quem teria o filho competencia,
Amor nefando, bruta incontinencia.
Daqui mais apartadas tremolauão
As bandeiras de Grecia glorioſas,
Terceira Monarchia, & ſojugauão,
Ate as agoas Gargeticas vndoſas:
Dum capitão mancebo ſe guiauão
De palmas rodeado valeroſas,
Que ja não de Filipo, mas ſem falta
De progenie de Iupiter ſe exalta.
Os Portugueſes vendo eſtas memorias,
Dizia o Catual ao Capitão,
Tempo cedo virà que outras victorias,
Estas que agora olhais abaterão:
Aqui ſe eſcreuerão nouas hiſtorias,
Por gentes eſtrangeiras que virão
Que os noſſos ſabios magos o alcançârão,
Quando o tempo futuro eſpeculârão.
E dizlhe mais a magica ſciencia,
Que pera ſe euitar força tamanha,
Não valerâ dos homẽs reſiſtencia,
Que contra o Ceo não val da gente manha:
Mas tambem diz que a bellica excellencia
Nas armas, & na paz, da gente eſtranha
Sera tal, que ſera no mundo ouuido
O vencedor, por gloria do vencido.
Aſsi fallando entrauão ja na ſala,
Onde aquelle potente Emperador
Nũa camilha jaz, que nam ſe igoala
De outra algũa no preço & no lauor:
No recoſtado geſto ſe aſsinala
Hum venerando & prospero ſenhor,
Hum pano de ouro cinge, & na cabeça
De precioſas gemas ſe adereça.
Bem junto delle hum velho reuerente,
Cos giolhos no chão, de quando em quando
Lhe daua a verde folha da erua ardente
Que a ſeu coſtume eſtaua ruminando:
Hum Bramene, peſſoa preminente,
Pera o Gama vem com paſſo brando,
Pera que ao grande Principe o apreſente,
Que diante lhe acena que ſe aſſente.
Sentado o Gama junto ao rico leito,
Os ſeus mais afaſtados, prompto em viſta
Estaua o Samori no trajo & geito
Da gente, nunca de antes delle viſta:
Lançando a graue voz do ſabio peito,
Que grande authoridade logo aquiſta
Na opinião do Rei, & do pouo todo
O Capitão lhe falla deſte modo.
Hum grande Rei, de la das partes, onde
O ceo volubil com perpetua roda
Da terra a luz ſolar coa terra eſconde,
Tingindo a que deixou de eſcura noda,
Ouuindo do rumor que la responde
O eco, como em ti da India toda
O principado eſtâ, & a mageſtade,
Vinculo quer contigo de amizade.
E por longos rodeos a ti manda,
Por te fazer ſaber que tudo aquillo
Que ſobre o mar, que ſobre as terras anda
De riquezas, de lâ do Tejo ao Nilo:
E desda fria plaga de Gelanda,
Ate bem donde o Sol nam muda o eſtilo
Nos dias, ſobre a gente de Ethiopia,
Tudo tem no ſeu Reino em grande copia.
E ſe queres com pactos, & lianças
De paz, & de amizade ſacra, & nua,
Comerçio conſentir das abundanças
Das fazendas da terra ſua, & tua,
Porque creção as rendas, & abaſtanças,
Por quem a gente mais trabalha & ſua,
De voſſos Reinos, ſera certamente
De ti proueito, & delle gloria ingente.
E ſendo aſsi que o nô deſta amizade,
Entre vos firmemente permaneça,
Estara prompto a toda aduerſidade,
Que por guerra a teu Reino ſe offereça:
Com gente, armas, & naos de qualidade
Que por yrmão te tenha, & te conheça,
E da vontade em ti ſobriſto poſta
Me des a my certiſsima reposta.
Tal embaxada daua o Capitão,
A quem o Rei gentio reſpondia,
Que em ver embaxadores de nação
Tam remota, gram gloria recebia:
Mas neſte caſo a vltima tençam
Com os de ſeu conſelho tomaria,
Informando ſe certo de quem era
O Rei, & a gente, & terra que diſſera.
E que em tanto podia do trabalho
Paſſado yr repouſar, & em tempo breue
Daria a ſeu deſpacho hum juſto talho,
Com que a ſeu Rei repoſta alegre leue:
Ia niſto punha a noite o vſado atalho
Aas humanas canſeiras, porque ceue
De doçe ſono os membros trabalhados,
Os olhos ocupando ao ocio dados.
Agaſalhados foram juntamente,
O Gama, & Portugueſes no apouſento
Do nobre Regedor da Indica gente,
Com festas & geral contentamento:
O Catual no cargo diligente
De ſeu Rei, tinha ja por regimento
Saber da gente eſtranha donde vinha
Que costumes, que lei, que terra tinha.
Tanto que os igneos carros do fermoſo
Mancebo Delio vio, que a luz renoua,
Manda chamar Monçaide, deſejoſo
De poder ſe informar da gente noua:
Ia lhe pergunta prompto & curioſo,
Se tem noticia inteira, & certa proua,
Dos eſtranhos quem ſam, que ouuido tinha
Que he gente de ſua patria muy vizinha.
Que particularmente ali lhe deſſe
Informação muy larga, pois fazia
Niſſo ſeruiço ao Rei, porque ſoubeſſe
O que neste negocio ſe faria:
Mançaide torna, poſto que eu quiſeſſe
Dizerte disto mais nam ſaberia,
Somente ſey que he gente la de Hespanha
Onde o meu ninho, & o Sol no mar ſe banha.
Tem a ley dum Propheta, que gerado
Foi ſem fazer na carne detrimento
Da mãy, tal que por bafo estâ aprouado
Do Deos, que tem do mundo o regimento:
O que entre meus antigos he julgado
Delles, he que o valor ſanguinolento
Das armas, no ſeu braço reſplandeçe,
O que em noſſos paſſados ſe pareçe.
Porque elles com virtude ſobre humana,
Os deitarão dos campos abundoſos
Do rico Tejo, & freſca Goadiana,
Com feitos memoraueis, & famoſos:
E não contentes inda, & na Affricana
Parte, cortando os mares proceloſos
Nos não querem deixar viuer ſeguros,
Tomando nos cidades, & altos muros.
Nam menos tem moſtrado esforço, & manha,
Em quaesquer outras guerras que acõteção,
Ou das gentes beligeras da Eſpanha,
Ou la dalgũs que do Pirene deção.
Aſsi que nunca em fim com lança eſtranha
Se tem, que por vencidos ſe conheção,
Nem ſe ſabe inda não, te afirmo & aſſello
Pera estes Anibais nenhum Marcello.
E ſeſta informação nam for inteira
Tanto quanto conuem, delles pretende
Informarte, que he gente verdadeira,
A quem mais falſidade enoja & offende:
Vay verlhe a frota, as armas, & a maneira
Do fundido metal, que tudo rende,
E folgaras de veres a policia
Portugueſa na paz, & na milicia.
Ia com deſejos o Idolatra ardia,
De ver iſto, que o Mouro lhe contaua,
Manda eſquipar bateis, que yr ver queria
Os lenhos em que o Gama nauegaua.
Ambos partem da praia, a quem ſeguia
A Naira geraçam, que o mar coalhaua,
Aa Capitaina ſobem forte & bella,
Onde Paulo os recebe a bordo della.
Purpureos ſam os toldos, & as bandeiras
Do rico fio ſam, que o bicho gera,
Nellas eſtam pintadas as guerreiras
Obras, que o forte braço ja fizera:
Batalhas tem campais auentureiras,
Deſafios crueis, pintura fera,
Que tanto que ao Gentio ſe apreſenta,
A tento nella os ollos apacenta.
Pelo que ve pergunta: mas o Gama
Lhe pedia primeiro que ſe aſſente,
E que aquelle deleite que tanto ama
A ceita Epicurea, eſperimente:
Dos eſpumantes vaſos ſe derrama
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