Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 13

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bens proprios. Era uma casa regular no rigor do termo. Esta congregação
desappareceu. Nem a auctoridade civil nem a ecclesiastica podiam
aboli-la. Só a lei o podia, e não a aboliu. Dissolveu-se, extinguiu-se
por si? Então a fazenda nacional deve ter tomado posse da casa da rua de
Santa Martha e dos poucos bens a ella annexos. Não aconteceu nada disso.
Foi só que transformaram a congregação portuguesa em congregação
francesa, e incorporaram aquellas pobres mulheres com as recem-vindas.
Commetteram simplesmente um crime[15]. Que é o fizeram, que é o que
constituiram, senão uma casa regular? É ou não é essa casa sujeita ao
geral dos lazaristas franceses? A lei qualifica de rebellião o acto de
se reconhecer em qualquer corporação religiosa um prelado maior que não
seja o bispo diocesano, e impõe aos contraventores a pena da sua
rebeldia.
O crime é aqui aggravado pela circumstancia de ser esse prelado um
estrangeiro. A reacção amotinou-se contra as leis; estamos em plena
revolução. A èpocha de 1832 a 1834 foi condemnada, e amaldicçoado o nome
do grande principe que a fez surgir. Velhos soldados do duque de
Bragança, sois já poucos para defender as suas cinzas; sois ainda
sobejos para morrer ao pé dellas. Soldados de Mindelo rodeiae o tumulo
do imperador!
A capital deste paiz, remido para a liberdade ha vinte e cinco annos á
custa de torrentes de sangue, presenciou com assombro um espectaculo
digno dos bons tempos da tyrannia. Quando em carruagens esplendidas
passavam, commodamente reclinados, os confrades daquelles que, no
extremo Oriente, andam occupados em apagar os vestigios dos nossos
martyres; quando, ao lado delles, se viam essas pobres mulheres enviadas
de Paris para instrumentos dos planos de ultramontanismo, o lodo das
ruas espadanando debaixo das suas carruagens ia salpicar a estamenha
monastica, o grosseiro crucifixo de metal de outras mulheres que
perpassavam com a fronte inclinada para o chão, com as faces retinctas
na pallidez que ahi tinha imprimido o longo padecer de longas miserias.
Eram as irmãs de caridade portuguesas, declaradas schismaticas pelo
synedrio da rua de S. Lazaro em Paris, como a sua patria era declarada
schismatica pela congregação da Propaganda, não sabemos de que rua de
Roma. As irmãs portuguesas estavam irregulares: tinham obedecido aos
bispos instituidos apenas por Christo, e não ao geral dos lazaristas
creado por ninguem menos do que por Urbano VIII: tinham apenas seguido à
risca por trinta ou quarenta annos os preceitos da caridade evangelica;
mas não tinham chegado a comprehender todos os aperfeiçoamentos do
evangelho, que as cartas patentes de Luiz XIV haviam em 1658 revelado à
França[16]. Vacillavam quasi á borda do atheismo. Era por isto que o
zelo com que haviam sido instituidas esfriara em quasi todos os animos
devotos: era por isto que, á porta dos palacios sumptuosos, raramente o
lacaio grosseiro lhes atirava ao regaço alguma esmola mesquinha. As
economias da devoção era necessario enthesourá-las para tornar commodas
as carruagens que tinham de servir aos verdadeiros agentes da exaltação
da fé. Vinha a ser o mesmo que enthesourá-las no céu.
O povo soltou um gemido de dor e de indignação olhando para suas irmãs;
porque as mulheres macilentas que passavam a pé, ao lado das carruagens
dos lazaristas, eram irmãs do povo. Do alto da tribuna respondeu-lhe a
injuria. Houve quem receiasse que o gemer se convertesse em rugido.
Enganavam-se. O povo é paciente, porque é christão, e porque tem a
força. Calumniaram-no então. Affirmaram que elle insultara as mulheres
estrangeiras. A regra de S. Vicente de Paulo diz: «Se a congregação ou
qualquer das pessoas a ella sujeitas for perseguida ou calumniada,
abster-nos-hemos cuidadosamente de tirar disso a menor vingança, de
maldizermos o offensor, e até do minimo queixume.» Conseguintemente o
lazarismo foi a casa da policia, denunciou intenções, e pediu vingança.
A policia saiu, correu, espreitou, inquiriu e veio, desconsolada e
triste, declarar ao lazarismo que mentia. A policia tornava-se
evidentemente impia. Era deploravel. Os adeptos consolaram-se com um
grande e honrado triumpho que haviam entretanto obtido. A auctoridade
ecclesiastica descera ao humilde retiro das mulheres macilentas, e com
gesto severo imposera-lhes o dever de vestirem o novo trajo que chegara
de França. Era a salvação. Obedeceram caladas. Aquelle escapulario, que
bebera tantas vezes o suor da agonia na fronte do moribundo encostada ao
peito da mulher do evangelho; aquella vestidura, cuja fimbria tinham
regado tantas lagrymas de creancinhas abraçadas aos joelhos da mulher
macilenta, ao pé da enxerga da mãe expirante; aquella estamenha,
thesouro das pobres enfermeiras dos desvalidos, porque lhes era
esperança no ceu e mortalha na terra, disseram-lhes que a despissem,
porque sem certos trajos franceses não havia irmãs de caridade. Trinta
ou quarenta annos de privações, de insomnias, de abnegação, de preces,
de lagrymas, tudo isso fora vão e mentido diante de Deus. Não sabemos se
aquelles velhos habitos se venderam vantajosamente para a congregação.
Sabemos só que o homem do povo, quando os for encontrar no mercado dos
andrajos, deve salvá-los, guardando-os como uma memoria sancta entre as
memorias dos seus, sob pena de ser ingrato.
As pobres mulheres do evangelho tinham tido o seu pretorio, a sua
chlamyde coccinea e a sua corôa de espinhos. Ignoramos se, antes disso,
lhes haviam apontado para as carruagens esplendidas do lazarismo, e
repetido em voz baixa as palavras de um livro chamado a Biblia, de que é
possivel terem noticia certos defensores da religião: _Haec omnia tibi
dabo, si cadens adoraveris me_.
As leis, os poderes publicos, a auctoridade administrativa, tudo curva a
cabeça, tudo se esconde para deixar desembaraçado o caminho á reacção,
que no seu impeto revolucionario passa radiosa. Vilipendiado o direito
canonico recebido nestes reinos, em que se estriba a jurisdicção
immediata dos prelados diocesanos nas respectivas dioceses, violadas as
leis que mantem esse direito e punem como criminosos d'estado os seus
infractores, abrogadas pela vontade privada as condições legaes com que
as irmãs de caridade existiam entre nós como corporação reconhecida,
restava escarnecer das leis, que regem a educação publica, e que não
são, na sua essencia, senão a expressão das doutrinas dominantes nas
leis analogas de uma grande parte dos paizes civilisados. As leis e
regulamentos de instrucção publica exigem habilitação para o magisterio,
tanto publico como livre, e fixam as condições, as fórmas dessa
habilitação. Os governos relaxados que ha muito dirigem os negocios do
paiz haviam tolerado abusos na educação privada, que, sem deixarem de
ser perniciosos, não tinham, todavia, inconvenientes politicos. No
relatorio dos fins de 1856 o commissario geral dos estudos em Lisboa
assignalava esses abusos, e pedia a sua repressão: «Os mestres e mestras
das casas de asylo da infancia desvalida--dizia elle--exercem alli o
magisterio sem prévio exame feito perante esta commissão. Quem os póde
exemptar dessa obrigação? Ninguem: a lei é clara e terminante. E não
virá daqui em grande parte o nenhum progresso de taes escholas? Creio
que sim.» Inquieto com as manifestações do desgosto publico, o governo
ordenava em setembro de 1858 áquelle zeloso funccionario que visitasse
as escholas do asylo dos orphãos da Ajuda, dos asylos da infancia
desvalida[17] e do hospicio de Sancta Martha, e que posesse ahi em vigor
as leis e regulamentos d'instrucção publica. Devia terminar o exame, que
aliás era obrigação do seu cargo, por um relatorio, em que proposesse as
providencias que excedessem a sua alçada, e fossem precisas para se
verificar o exacto cumprimento da lei. Fez-se o exame: os abusos
existiam; o relatorio não podia deixar de ser accorde com as instantes
representações feitas pelo commissario dous annos antes. Se o mal era
profundo até ahi por falta de sufficientes habilitações litterarias nos
mestres e mestras das casas de asylo, os inconvenientes actuaes, ainda
abstrahindo de todas as considerações politicas, eram sem comparação
maiores. As irmãs de caridade não só careciam de habilitações legaes,
mas tinham, até, sido exemptas de concurso. Chegavam de Paris para
ensinar a ler e escrever português: vinham explicar á infancia as
verdades fundamentaes da religião n'uma lingua que lhes era extranha,
quando é sabido que na doutrina catholica uma palavra trocada, uma
phrase inexactamente empregada podem converter um dogma n'uma heresia.
No excesso do abuso associava-se o perigoso ao ridiculo, o illegal ao
inconveniente. O relatorio do habil funccionario fez de certo sentir ao
governo toda a extensão do mal. O commissario dos estudos sería indigno
das funcções que exercitava, trahiria ignobilmente a sua consciencia,
se, pondo de parte as doutrinas de legalidade que invocava dous annos
antes, não ordenasse, dentro da esphera das sua attribuições, remedio a
tantos desconcertos, e não sollicitasse do governo as providencias que
ultrapassavam a sua jurisdicção. Por certo ordenou: por certo pediu. E
todavia a situação monstruosa e illegal dos estabelecimentos da Ajuda e
de Sancta Martha não mudou. Os preceitos do commissario dos estudos não
foram respeitados, a lei não se cumpriu, e o governo, que a mandara
executar rigorosamente, abaixou a cabeça em profundo silencio. Como
explicar phenomenos taes, senão pela vontade energica da reacção,
preponderante já, postoque occulta, na esphera dos poderes politicos?
É diante dos factos que temos ponderado; é diante de signaes tão
evidentes, de manifestações tão positivas de uma vasta conspiração
contra a liberdade; e quando as descargas cerradas da reacção fuzilam na
imprensa periodica, nos livros, nas associações, nas secretarias, na
tribuna, nas regiões diplomaticas, nas alturas da jerarchia civil e da
jerarchia ecclesiastica, nos pulpitos das aldeias e nas escholas da
infancia, que a insipiencia e a perfidia nos accusam de combater contra
seis mulheres e dous frades! Quando apontamos para as leis rasgadas,
para os principios postergados, para os canones e para as liberdades da
igreja nacional vilipendiados, para a mulher portuguesa insultada e
calumniada, accusam-nos de rancorosos e de violentos! A violencia está
da nossa parte. A Europa indigna-se, porque o fanatismo rouba um filho a
seu pae para o educar n'uma religião, embora verdadeira, em que este não
crê. A nós não nos é permittida a indignação quando aos que dormem
debaixo da terra, feridos pelo flagello de Deus, se lhes entregam os
filhos, que elles não podem defender, a que affeiçoe aquelles espiritos
innocentes aos intuitos da reacção ultramontana e absolutista; aos
intuitos desses mesmos homens, cuja audacia fanatica a Europa
solemnemente acaba de condemnar. Não nos é licito oppormo-nos a que as
novas gerações se eduquem no odio dos principios que regem a terra
patria, e pelos quaes a geração presente padeceu e combateu longamente.
Não valerão, proventura, nada os principios, quando se tracta da
innocencia desamparada, depois que sobre os labios frios dos seus
naturaes defensores se estampou o sello da morte?
No meio de tantos delirios, uma das cousas que repugnam mais á razão, á
consciencia e á verdadeira piedade, é a blasphemia que se encobre
debaixo do diluvio de phrases com que se exaltam, sobre as ruinas da
jerarchia ecclesiastica e da divina missão dos pastores, essas
congregações religiosas de ambos os sexos nascidas ha dous dias,
jesuitas, lazaristas, irmãs de caridade, e não sabemos que mais
invenções modernas do ultramontanismo, desconhecidas durante quinze
seculos da igreja. O bispo, o parocho, aquelles que o Salvador instituiu
para ensinarem a lei e a salvação; aquelles que o Divino Mestre julgou
sufficientes para manterem a pureza da fé, para serem o sal da terra e a
luz do mundo, são declarados inhabeis ou insuficientes para exercerem as
funcções que exclusivamente lhes foram commettidas, e muitos delles não
hesitam em subscrever ao pensamento impio, escondido como o aspide nos
morraçaes da algaravia devota. A congregação tende irresistivelmente a
supprimir o episcopado e a ordem inferior dos pastores, como uma
inutilidade. Do mesmo modo que dimitte a historia, a reacção dimitte a
igreja. Se escapa aquelle que nós todos reconhecemos como o primeiro
entre os seus irmãos, como o metropolita dos metropolitas, como o chefe
espiritual do catholicismo, é para o converterem n'um despota; para
precipitarem o reino Deus das alturas do céu no abysmo da terra; para
collocarem a thiara, nas relações temporaes, acima do poder civil; para,
emfim, resolverem de modo definitivo o tremendo problema proposto por
Gregorio VII á sociedade christã.
A estes intuitos a existencia ou, pelo menos, a auctoridade da ordem
superior e da ordem inferior do clero legitimo há-de ser sempre um
obstaculo, senão insuperavel, ao menos altamente incommodo. Sempre ha-de
haver uma parte delle que saiba a sua origem, que creia na sua missão
divina, e que ouse protestar contra o despotismo da curia romana. Se a
influencia dos chefes das congregações sobrepujar a dos prelados, não
resta a estes senão uma energica e legitima resistencia, a não quererem
a desauctoração do proprio caracter e a dissolução da igreja. Aquelles
chefes, porém, cujos subditos devem ser diante delles como o cadaver,
como o baculo na mão do cego, como a lima na mão do obreiro, e cujo
despotismo, não podendo estribar-se no céu, foi buscar sanctificação em
Roma; esses, de certo, nunca hão-de protestar contra a applicação á
sociedade christã e á sociedade civil de um principio que é a essencia
do proprio poder.
O antigo monachato, na singeleza da sua origem, nem era um perigo para
as instituições sociaes, nem seria uma ameaça para a liberdade. O
monachato, como elle nos apparece nos primeiros seculos christãos,
representava os profundos desenganos, o cansaço e o tedio do viver
civil. O monge desposando a solidão firmava um acto de divorcio com a
sociedade. Esta não seria nem tolerante nem justa se perguntasse ao que
se collocava além della, que nada lhe pedia, nem impunha, nem offerecia,
nem acceitava, qual era a norma da sua existencia. O mosteiro nos
desvios selvaticos devia ser uma sanctuario talvez ainda mais immune que
a familia. Nesses tempos, nem sequer existia nexo entre cenobio e
cenobio, embora ente elles houvesse uma regra commum. Para adquirir o
alimento pelo trabalho e o céu pelo sacrificio não era preciso
transportar para o deserto o mechanismo de uma organisação complicada,
nem vestir a cogulla ao despotismo. Um chefe electivo mantinha em cada
gremio a disciplina indispensavel para a quietação de todos. Nas
relações puramente espirituaes, esses homens pios nem sequer imaginavam
que o sacerdocio devesse associar-se como o ermo, e se abandonavam a
sociedade civil, não deixavam por isso de acceitar e reconhecer a
igreja. Nunca se persuadiram de que a instituição divina dos pastores
fosse insufficiente para apascentar o rebanho. Na sinceridade do seu
coração não suspeitavam, sequer, que viriam tempos, em que os homens
achassem incompleto o christianismo, e quizessem aperfeiçoar a jerarchia
e o governo da igreja, immutaveis na essencia, como a sua doutrina.
Os institutos monasticos dilataram-se, prosperaram, degeneraram
regressando ao mundo social, decahiram e pereceram, ou vejetam apenas
n'um triste crepusculo. O liberalismo olha-os com suspeitas que os
factos justificam. Entretanto a sua condemnação completa não se escreveu
ainda. Talvez um dia, quando a liberdade for por toda a parte uma
condição impreterivel da civilisação e da existencia das nações
christãs, o monachato resurja na sua primitiva pureza. Ha dores para as
quaes a vida civil não tem balsamo, desalentos para que não tem
conforto, desesperanças para que não tem illusões, amarguras que não
cabem nella. Além das suas fronteiras, dos seus asylos para os
infortunios vulgares, porque se não deixará construir um refugio de
preces e de lagrymas para as miserias moraes incuraveis, e para as
situações insoluveis e extremas?
Mas que ha commum entre isto e as congregações modernas, que se
organisam pelo ideal do despotismo, e que, regidas por esse principio,
tão odioso e brutal como energico, penetram no amago da sociedade como o
ferro do machado no cerne do roble? Quando ellas pedirem ao povo o
coração da mulher para o dirigir, e a debil intelligencia da infancia
para a affeiçoar, o povo, se não for insensato, há-de forçosamente
replicar-lhes:--«Para que pedis isso? Vindes do despotismo: não podeis
senão arrastá-los para o despotismo; para o despotismo na igreja, e para
o despotismo no estado.»
A introducção das irmãs de caridade francesas não é senão o prodromo do
restabelecimento das congregações, que, longe de buscarem os ermos, só
tem em mira apoderar-se da sociedade. A reacção sabe que ás vezes é
melhor ir de roda para chegar mais depressa.
N'um documento official allegaram-se os serviços das irmãs de caridade
francesas no Oriente, principalmente nos arraiaes da Criméa, para
legitimar a admissão daquelle instituto no reino, quando o principal fim
ostensivo dessa admissão era o gravissimo negocio de educação da
infancia. Vinha a ser a melhor allegação, sendo pessima. Naquelle
documento dimittia-se a logica; e convertia-se a enfermaria em eschola
normal. A reacção, tão astuta de ordinario, tem suas puerilidades. A
capacidade das irmãs de caridade francesas para o magisterio talvez
ainda venha a inserir-se como dogma no catecismo. Por emquanto está
sujeito á discussão. A regra de S. Vicente de Paulo não encerra em si a
demonstração de tal capacidade, e os factos ainda tambem não a
demonstraram. Ensinar não é synonimo de ensinar bem. Permittam-nos,
pois, que entretanto duvidemos da virtude pedagogica dessa regra,
virtude que seria mais um milagre dos officiaes deste genero de
producto, porque não resulta de nenhuma das sua disposições positivas. A
caridade poderá, talvez, só por si fazer uma boa enfermeira; o que de
certo não faz é uma boa mestra.
O instituto das irmãs de caridade cerca-se de uma auréola facticia,
porque é um instrumento de reacção. Admitti que a dedicação, aliás
louvavel, dessas mulheres seja um titulo que suppra a sciencia, que
inutilise a intervenção do estado na educação, e diante do qual devam
ceder os principios, as leis, os regulamentos, e achar-vos-heis em breve
nas regiões do jesuitismo. Que vale a historia, mais ou menos
exaggerada, dos sacrificios, do zelo, da constancia das irmãs de
caridade ao lado dos sacrificios, do zelo, da constancia dos jesuitas,
não neste ou naquelle paiz da Europa, mas no mundo conhecido? Depois, o
jesuitismo tem titulos de sciencia bem diversos do que podem invocar as
irmãs de caridade e a ordem que as dirige. Entregae, portanto, a
educação e a instrucção, não só da puericia, mas tambem da mocidade, á
companhia de Jesus.
Lá chegaremos, se não estivermos precavidos contra os sophistas.
O furor dimissorio da reacção não pára, nem na historia, nem na
jerarchia christã, nem nos canones da logica: vai até a Providencia e
até o Evangelho. Que ha particular e exclusivo na regra de S. Vicente de
Paulo para produzir os resultados beneficos daquella associação como
está constituida em França? A força impulsiva da vontade absoluta de um
só homem é na verdade um elemento efficaz, postoque vulgar. O despotismo
produz ás vezes o bem, aindaque em regra só produza males. Mas os
effeitos dessa organisação, innegavelmente poderosa, acabam ahi. O resto
operam-no a indole da mulher e a luz immortal do Evangelho. Quem ha que
não visse, ao menos alguma vez, na obscuridade da vida domestica, uma
irmã de caridade assentada á beira do leito da dor ou da ultima agonia?
Onde está a mulher está a irmã de caridade. O seu espirito adeja em
volta do padecer humano, para se precipitar nelle, como a mariposa á
roda da luz. É o seu instincto, a sua indole, o seu destino. O amor, a
amizade, a affeição filial ou fraterna, a maternidade escondem aos olhos
dos outros e a seus proprios olhos as tendencias irresistiveis que a
arrastam para levar um affecto aonde quer que sôa um gemido. Acima de
todos os votos que se lhe podem ou pedir ou impor em nome do céu, ella
tem dous, escriptos lá dentro, que a seguem do berço ao tumulo, a
piedade e a paixão do sacrificio. Impellidas pelo sentimento religioso,
essas tendencias vão até o sublime da abnegação: vão mais longe do que a
irmã de caridade; vão até a mulher que se precipita na fogueira dos
funeraes do Indostão. Essa mulher, como a irmã de caridade na Europa,
representa a suprema devoção pelo sacrificio. A differença, porém, não
está na regra de S. Vicente de Paulo: está em que na Europa a mulher
educa-se á luz esplendida do Evangelho; no Indostão ao crepusculo triste
dos Védas.
Sem a sujeição aos lazaristas, o que a regra de S. Vicente de Paulo póde
fazer é dar unidade e ordem aos admiraveis instinctos da mulher
sanctificados pela religião; é estender o que ha mais bello no mundo, as
consolações do affecto domestico juncto de um leito de dores, aos que
não tem familia que lhas possa dar, ou aos que a miseria e a doença
entregaram á caridade official. Mas attribuir á virtude do instituto o
que principalmente provém da natureza e da religião, é depôr a
Providencia e o Christianismo para enthronisar um homem: é suppor que a
sua obra vale mais que a obra de Deus: é a blasphemia da superstição.
Com o predominio, porém, do lazarismo; com uma obediencia cega a
individuos que abnegam, diante de um chefe supremo, a vontade, a razão e
a consciencia, as irmãs de caridade não são senão mais um perigo para a
sociedade debaixo de apparencias illusorias. O bem que ainda assim fazem
nem remotamente compensa os males que podem produzir. Instrumentos,
provavelmente inscientes, do ultramontanismo, são como os maus actores,
que se limitam a estudar o respectivo papel, sem conhecerem nem o
enredo, nem os effeitos do drama.
Os serviços feitos á humanidade na guerra do Oriente pelas irmãs de
caridade francesas, texto fecundo das pareneses da imprensa
reaccionaria, e que tão pouco a proposito figuram em documentos que
deveriam ser graves, tem acaso o valor e a significação que se lhes
attribue? A guerra do Oriente foi emprehendida por duas das mais
poderosas nações, uma d'ellas a mais opulenta e illustrada da Europa. As
miserias e desgraças ordinarias da guerra são faceis de prever, e os
governos dessas nações tinham-nas previsto: tínham-se preparado para
ellas. Facultativos, hospitaes, enfermeiros, remedios, os confortos, em
summa, que são compativeis com a dura e aventurada vida do soldado, não
tinham sido predispostos com mão avara. Aquelles para quem esses
immensos soccorros se destinavam eram homens no vigor da existencia,
educados para affrontar virilmente as privações, a dor e a morte. As
calamidades imprevistas não foram, nem podiam ser combatidas com menor
energia. As inspirações da simples humanidade eram avivadas pelo
interesse de manter a força material e moral dos exercitos, n'uma
campanha onde se decidia o duello entre as sociedades do Occidente e os
netos de Attila. Quanto a sciencia, a industria, a riqueza e a
actividade administrativa podiam suggerir e applicar para allivio dos
males inseparaveis da guerra, tudo se achava ao lado do homem robusto
que padecia nos arraiaes da Criméa. Imaginar que cincoenta ou cem
mulheres distribuidas pela vastidão dos hospitaes militares, suppriam,
modificavam sequer as privações e os incommodos nascidos da falta
accidental de recursos, ou das desordens imprevistas da natureza, é um
paradoxo, que pedimos licença para não acreditar, embora tenha a seu
favor o testemunho _insuspeito_ de generaes que haviam metralhado a
liberdade por conta da reacção, e que se ufanavam com a intimidade dos
chefes do jesuitismo; embora se estribe nos elogios gratuitos de
funccionarios collocados n'uma situação elevada, mas dependente desses
pios generaes, e que nada perdiam em exaggerar, á vontade delles, os
serviços dos jesuitas, dos lazaristas, das irmãs de caridade, ou de
outras quaesquer corporações, que elles pretendessem exaltar.
Os pomposos relatorios das maravilhas practicadas pelas irmãs de
caridade no Oriente o que provam de modo peremptorio é que a reacção é
hábil. Sabeis o que se passava então no paiz que ellas abandonavam para
supprir as insufficiencias dos governos da Inglaterra, da França, da
Sardenha e da Turquia? Dir-vo-lo-hemos. Em França, dos doze milhões de
desgraçados cuja alimentação consiste apenas em centeio, batatas e agua,
e que em grande parte vivem em casebres infectos[18], morriam de fome e
de miseria oitenta mil pessoas, só no decurso de 1855! É uma auctoridade
insuspeita, o chefe actual da repartição de estatistica em França, que
no-lo assegura[19]. Onde era o posto da irmã de caridade francesa no
meio de tantos infortunios? Era na patria, ou nos acampamentos do
Oriente? Era ao pé do soldado, ferido ou doente, mas de constituição
robusta e de animo féro, vigiado, acariciado pela previdencia sollicita
dos poderes publicos, ou na aldeia, no casal solitario, na agua furtada
do operario fabril, ao pé da enxerga do velho, da mulher, do infante,
nús, esfaimados, esquecidos do mundo, abandonados pela caridade publica,
e enviando, talvez, no ultimo alento um grito de maldicção á sociedade?
Se, educadas antes de se descobrir em França, que toda a mulher deve
aprender nos primeiros annos a executar os artefactos proprios do seu
sexo, não podiam trabalhar de noite e dia para ministrar aos extenuados
e quasi moribundos, não confortos, não carinhos, não suavidades, mas
simplesmente um bocado de pão negro que devorassem assentados no atrio
da morte, podiam ao menos forcejar para que o ultimo suspiro delles não
fosse um grito de desespero, mas um murmurio de resignação; podiam ir
pelas portas do palacios sumptuosos implorar a piedade dos ricos; pelas
moradas da devoção opulenta pedir-lhe que fechasse por minutos o _Mez de
Maria_, para ler algumas paginas d'um livro plebeu chamado o Evangelho,
que bastou para inspirar todas as virtudes, todos os heroismos do mais
ardente amor do proximo nos seculos primitivos do christianismo. Os
preceitos do livro plebeu podiam cumprir-se em França. Não sabemos se
foram cumpridos no Oriente.
O que sabemos é que a piedade com o infortunio, exercida obscuramente,
no casebre, na mansarda, nos recèssos onde se occultam as grandes
miserias, vê-a sómente Deus. A Criméa, Athenas, Varna, Gallipoli eram
proscenios diante quaes se assentava espectadora a Europa, e a reacção
sabe o que valem as artes scenicas. O theatro tentava! Se não servia
excessivamente a humanidade enviando as irmãs de caridade ao Oriente, o
lazarismo escrevia um magnifico thema para as pareneses dos seus
missionarios, quando tractasse de as introduzir e de se introduzir, á
sombra dellas, em qualquer paiz, onde a reacção carecesse do seu
auxilio.
Aggredida, não só desde o primeiro dia da sua existencia, mas, até,
ainda antes de se constituir, a Associação Popular Promotora da Educação
do Sexo Feminino precisava de mostrar a sua opportunidade, a sua indole
e os seus fins. Para isto cumpria traçar rapidamente a historia da
reacção nos ultimos dez annos. Essa historia revela o progresso
constante da idéa reaccionaria, a sua pertinacia e as suas victorias. Os
factos provam que o partido liberal necessita, emfim, de acordar do seu
longo torpor, e essa necessidade justifica a existencia desta
Associação. Os anteriores triumphos dos sectarios de toda a especie de
despotismo tem sido daquelles que um governo firme e esclarecido póde
facilmente inutilisar em qualquer tempo. A perversão, porém, das
gerações novas, sobretudo a perversão do espirito das mulheres, produz
consequencias fataes, duradouras, e difficeis de extirpar. No homem, a
instrucção superior e a experiencia do mundo corrigem às vezes as idéas
falsas, as más tendencias da primeira educação. Á mulher faltam de
ordinario esses dous auxilios. Vehiculo seguro da peçonha que lhe
instilou no entendimento a maldade, vai, sem o saber nem o querer,
propiná-la no seio da familia aos que entranhavelmente ama. Persuadida
uma vez de que as abusões e os actos mais contrarios à indole grave e
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