Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 12

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vertiam ou architectavam, em lingua proximamente portuguesa, essas
maravilhas do mysticismo francês, já foram recompensados por prelados
nossos dos seus serviços á boa causa politica e á boa causa religiosa.
Aquelles varões apostolicos não recusaram o amplexo fraterno á igreja
lusitana arrependida. Esperemos que os mais colericos e pertinazes não
continuem a negar ao arrependimento o osculo de paz. O povo não esqueceu
á reacção: a caridade desta estende-se a todos e a tudo. Trovejando
contra a sociedade moderna, missionarios analphabetos sobem aos pulpitos
dos povoados e dos campos, e ora se occultam, ora resurgem como fogos
fatuos. Os milagres tinham militado no campo da reacção em França, na
Allemanha, e na Italia: não podiamos por isso dispensá-los. Os milagres,
porém, entre nós foram de máu gosto: os fabricantes eram inexpertos, e a
impiedade da sciencia inutilisou a obra[7]. Reconheceu-se que eram
soldados de pouco prestimo. Mas a agencia da associação francesa da
propagação da fé fazia alistamento de tropas mais solidas; e se
inferirmos da verba total da contribuição paga por Portugal áquelle
instituto, attendendo á exiguidade da quota, não se podem calcular os
seus adeptos neste paiz em menos de quatorze ou quinze mil
individuos[8]. O nexo apparente que une esta vasta associação é a
contribuição para as missões francesas e a leitura dos _Annaes da
Propagação da Fé_, tecido de embustes, já desmascarado por um
missionario, o padre Gabet, e por outros escriptores. Os _Annaes_,
especie de Carlos-Magno da reacção, servem para manter com patranhas a
confiança dos adeptos na influencia da associação, na grandeza dos seus
recursos, e no zêlo dos seus missionarios, mas ainda mais lhe devem
servir para calcular as forças de que póde dispor em cada paiz, e para
manter sem custo por toda a parte uma jerarchia de agentes, cujos
serviços utilize nas occasiões opportunas, como, por exemplo, em
grangeiar assignaturas a favor de alguma tentativa reaccionaria.
Estes meios, sem exceptuar os proprios milagres, e além delles outros,
taes como os trabalhos occultos da sociedade cujos gremios se denominam
_capellas_, especie de maçonaria ao divino, de ha muito organisada, ou
como as invectivas diarias de certa parte da imprensa ignobil e da
imprensa politica, dirigidas contra as instituições liberaes, e ainda
alguns desabafos, mais ou menos violentos, na imprensa litteraria, a
proposito deste seculo ferreo, que não desconjuncta no potro, não
pendura no patibulo, não esquarteja nem queima ninguem pelos erros ou
acertos da sua intelligencia; tudo isso eram e são manifestações da
reacção que vai lavrando; mas o partido liberal podia e devia
tolerá-las, embora nem sempre fossem alheias á sancção do codigo penal.
Era ao governo que pertencia submetter esses factos á apreciação dos
tribunaes; e todavia, não queremos invectivá-lo pelo seus desleixo ou
indolencia nesta parte. Se ha alguma circumstancia em que aos
magistrados se deva perdoar a frouxidão no cumprimento de leis, ás vezes
demasiado severas, é quando a applicação dessas leis póde comprometter
aos olhos da consciencia publica a doutrina evangelica e liberal da
tolerancia. Mas ao lado destas diversas manifestações ostensivamente
desconnexas, e mais ou menos particulares, appareceram outras de maior
gravidade, porque mostravam que o mal havia invadido tambem as regiões
officiaes. Uma das primeiras em data e em ponderação foi o convenio de
21 de outubro de 1848, monumento de subserviencia, onde o
plenipotenciario português tolerava que o ministro do governo papal
escrevesse a insolente qualificação de _odiosa_ em relação a uma lei
vigente do reino; onde se pactuava um compromisso vergonhoso ácerca do
arcebispo de Goa, que se houvera com valor repellindo as doutrinas
subversivas e as espoliações brutaes dos agentes da Propaganda na sua
provincia do oriente; onde a curia ousava fixar, não só congruas a
membros da jerarchia ecclesiastica da igreja portuguesa, mas, até, a
remuneração de simples funccionarios; onde se estatuia a manutenção de
corporações religiosas e a faculdade de novas profissões, em
contraposição ás leis do reino; onde, finalmente, se consentia que o
nuncio chamasse _escandalo_ a annunciar-se a venda dos bens nacionaes,
que tinham pertencido ás corporações de mão morta, acceitando-se a
validade das doutrinas ultramontanas a tal respeito, e conculcando-se a
auctoridade legitima do poder civil. Neste acto, porém, a reacção não
medira bem a extensão dos seus recursos. O governo viu-se constrangido a
enganar o parlamento, escondendo-lhe as condições mais repugnantes desta
deploravel negociação[9].
Entretanto a curia romana e com ella o partido reaccionario tinham dado
um grande passo; tinham feito amaldicçoar os principios que haviam
presidido á grande revolução social de 1834, por um governo cuja
legitimidade moral e, portanto, cuja força derivavam justamente do
predominio desses principios. Seguir com prudencia a victoria é de
general habil. O arcebispo de Goa foi compellido a condemnar perante o
papa tudo quanto dissera e fizera na India em defesa dos seus
irrefragaveis direitos metropoliticos, comprando por esse preço a
coadjutoria e futura successão da mitra de Braga. Estatuira-se que se
creasse uma delegação da nunciatura em todas as camaras ecclesiasticas,
e esta novidade realisou-se, ao menos em parte. Os proventos moraes da
bulla da cruzada, das dispensas de Roma, e de outras concessões
igualmente importantes cahiram como chuva benefica sobre o solo arido de
Portugal. Os proventos materiaes, esses cahiram cá e em Roma, mas com a
devida selecção de favorecidos. O ultramontanismo ganhara muito, e as
cousas ficavam encaminhadas para novos triumphos; mas era preciso contar
com um elemento indispensavel, o tempo. Era preciso deixar funccionar o
mysticismo francês, as confrarias romantico-religiosas, a imprensa
temente a Deus, os milagres, os padres emigrados, a associação da
propagação da fé: era preciso augmentar o producto bruto da bulla da
cruzada, e o producto liquido das sanações e dispensas; a reacção bem
sabia para que[10]. Era preciso, sobretudo, ir viciando, gangrenando
systematicamente o partido liberal, adquirindo nelle patronos e agentes
occultos, illudindo os bons e inexpertos com as esperanças da
restauração da moralidade, e comprando os ambiciosos, que estavam nesta
campo só porque não estavam no outro, com o prospecto de uma victoria
definitiva, que, restabelecendo os vexames e espoliações do povo, e as
sinecuras e esplendores que a revolução de 1833 tinha destruido, podesse
amplamente satísfazer tanto as grandes como as pequenas cubiças. Quando
todo este conjuncto de elementos deleterios tivesse produzido
sufficiente effeito, então poder-se-hia arrojar a mascara, e não se
passar, como em 1849, pela humilhação de calar diante do parlamento as
vantagens adquiridas.
Uma tentativa que por muito tempo ficou occulta, apesar do seu bom
resultado, deu á reacção, tempo depois, a medida dos progressos que
havia feito nas regiões officiaes. A audacia dessa tentativa, pura e
exclusivamente ultramontana, está indicando que era uma experiencia.
Acertando o golpe, a reacção clerical tirava d'ahi duas vantagens; obter
uma nova victoria, e obtê-la no mesmo terreno onde sempre fora repellida
pelo seu recente alliado, o absolutismo, quando o absolutismo era o
poder civil. Ficava assim este advertido de que no dia do commum
triumpho, se tal dia tivesse de raiar, lhe cumpria ser mais docil para
com as pretensões do ultramontranismo. Achava-se vaga a diocese de
Aveiro, não existia alli cabido, a nomeiação do vigario capitular
devolvia-se, por isso, ao metropolitano, o arcebispo de Braga. Appareceu
então uma bulla pontificia auctorisando o metropolita _como delegado da
sé apostolica_ para fazer aquella nomeiação. Uma tal bulla, que
constituia um attentado contra o direito canonico recebido no reino, que
offendia por mais de um modo as liberdades da igreja portuguesa, que
vilipendiava a primeira, a mais illustre metropole do reino, apresentada
ao governo na epocha do absolutismo, teria dado em resultado a saída do
nuncio de Lisboa dentro de quarenta e oito horas; no governo liberal
teve a confirmação regia, o _placet_. _Placet_ a derogação virtual do
direito ecclesiastico; _placet_ a quebra dos fóros da igreja portuguesa;
_placet_ a affronta do soberano protector e defensor dessa igreja;
_placet_ a confissão de que Roma triumphou emfim n'uma lucta de sete
seculos. Politicamente, o governo que sanccionou semelhante escandalo,
era responsavel por elle; moralmente não. Não ha responsabilidade desta
especie onde não existe a faculdade de apreciação.
Coincidindo com este facto, facto gravissimo, não tanto pelo seu objecto
como pela sua significação, caminhava-se nas trevas para se realisar
outro de igual significação, mas cuja importancia material era sem
comparação maior. Falamos da concordata sobre o nosso padroado do
Oriente. É um facto assás recente e assás estrondoso para estar na
memoria de todos. Na imprensa e no parlamento fez-se conhecer de modo
innegavel a monstruosidade dessa convenção desastrosa. Nunca o
ultramontanismo havia obtido mais decisivas vantagens. Repetir aqui as
ponderações que opportunamente se fizeram a este respeito fora escusado.
O que importa agora é notar com certa individuação o que nas discussões
que então se alevantaram e que induziram a camara dos deputados a
inutilisar a concordata, rejeitando algumas das suas provisões mais
escandalosas, não se fez sentir senão accidentalmente, isto é, a
influencia que tinha na politica geral da Europa aquella nova e mais
audaz tentativa da reacção ultramontana. O pensamento da concordata
reduzia-se, na sua expressão mais simples, a deixar subsistir na
incerteza o exercicio do nosso direito de padroado nas igrejas
catholicas da India, e a privar-nos desse direito nas regiões
transgangeticas, especialmente na China. Na India, as luctas do clero
português com o clero ultramontano perturbavam a paz publica no
territorio inglês, e as decisões dos tribunaes ingleses, quando questões
dessa ordem eram levadas perante elles, decididas sempre a nosso favor e
conforme a justiça, não podiam obstar á repetição das desordens, que a
associação da propagação da fé de Paris e Lyão e a Propaganda de Roma
indirectamente alimentavam e alimentam com toda a especie de auxilios
que enviam aos seus agentes naquellas partes. Na India, a conservação do
_statu quo_ era uma vantagem para a reacção, porque as turbulencias que
suscita a contenda tem tres resultados importantes: disfructar o partido
ultramontano, por pouco ou por muito tempo, os bens e rendimentos de
igrejas numerosas e em grande parte opulentas, incommodar uma nação
liberal e catholica no exercicio de um direito que com justiça se lhe
não póde disputar, e manter mais um elemento de desordem nos estados
indicos da Grã-Bretanha liberal e protestante. Na China, a questão
revestia-se de outras circumstancias, e tomava diversa fórma. Ahi era
necessario destruir a influencia moral dos nossos bispos e missionarios;
influencia antiga, radicada e até acceita na propria côrte de Pekin,
onde mais de uma vez esses bispos e missionarios tinham sido revestidos
de cargos importantes na jerarchia dos funccionarios civis. A nossa
influencia na China não podia de certo ser util ao anglicanismo; mas
era-o sem duvida aos interesses materiaes da Inglaterra. Nação pequena e
por consequencia inhabilitada para disputar preponderancia e
preferencias politicas naquella vasta e populosa região, que se acaba de
abrir ao commercio e ás combinações diplomaticas dos estados da Europa,
não podia a influencia moral que alli houvessemos de exercer por meio da
religião ser adversa aos intuitos commerciaes e politicos da Inglaterra.
A alliança sincera de Portugal com a patria de Nelson e de Wellington é
indestructivel, porque procede, não só das tradições historicas e da
analogia de instituições politicas, mas tambem da força das
circumstancias actuaes. A origem dessa intima alliança tem a data
escripta no mais grandioso monumento do paiz. A Batalha recorda-nos que
ha um pacto perpetuo asselado com sangue entre Portugal e a Inglaterra.
Quando o povo português deixar de ser o irmão e o amigo do povo inglês,
tem que derribar primeiro o templo de Sancta Maria da Victoria, e de lá,
de cima das suas ruinas, sobre os ossos de D. João I, o arauto da
discordia, tem a annunciar ao mundo que esse velho pacto expirou. Ha
perto de quatro seculos, nos campos de Aljubarrota e em frente dos
esquadrões franceses e castelhanos, a invencivel infanteria inglesa
jurava com os cavalleiros portugueses que esta terra seria livre, e uns
e outros cumpriam heroicamente o seu voto. Nesta épocha, porém, de
actividade, de industria, de trabalho ligam-nos aos alliados do mestre
d'Aviz, do rei mais nobre e mais português da nossa historia, não só as
reminiscencias do passado, mas tambem os interesses materiaes do
presente. A Inglaterra é a consumidora dos nossos productos; nós os
consumidores de uma pequena parte da immensa producção industrial
inglesa: nós levamos ao mercado de vinte e sete milhões de individuos a
melhor parte do que nos sobeja da nossa producção agricola; elles
entregam n'um mercado de quatro milhões de homens em productos da sua
industria ou em metaes preciosos o equivalente do que nos convem
vender-lhes. A nossa vida economica tem uma relação tão intima com a
vida economica da Grã-Bretanha, que não se comprehende sequer como se
poderiam hostilisar os interesses dos dous povos na extremidade da Asia,
ainda suppondo que coubesse nas nossas forças contrastar ali o poder
collossal da Inglaterra.
Assim a reacção sabia que as influencias religiosas, influencias mais
efficazes naquellas regiões remotas do que geralmente se cuida, não as
podia empregar em damno da Grã-Bretanha, da sua mortal inimiga, se o
nosso direito de padroado nas igrejas catholicas da China fosse
respeitado. Espoliava-nos, pois, desse direito, com a acquiescencia dos
seus adeptos em Portugal, emquanto centenares de lazaristas, de jesuitas
e não sabemos de que outras congregações italianas e francesas velejavam
para o oriente ao lado das esquadras britannicas que iam abrir aquelle
immenso mercado ás especulações da Europa. Se o governo de Inglaterra
não comprehendeu então o que significava a espoliação do padroado do
Oriente feita ao seu antigo alliado, o povo inglês ficará algum dia
sabendo á sua custa a connexão que esse negocio tinha com os seus
futuros interesses.
Taes foram os mais notaveis factos do que ha muito denunciavam a obra
reaccionaria nas regiões do poder. Estas tendencias ultramontanas e
anti-liberaes tem tal permanencia, constituem uma serie de actos tão
logicos e concatenados entre si, atravez de todas as modificações de
homens e de partidos proprias do governo representativo, que se torna
facil chegar a uma triste illação. É que esses factos não procederam das
diversas administrações que tem succedido umas às outras no decurso de
dez ou doze annos. A culpa real dos individuos a quem cabe a
responsabilidade politica de tantos erros e vergonhas é unicamente a de
terem ambicionado ou de terem acceitado funcções superiores á sua
capacidade. A idéa, o intuito inflexivel e fatal residia e reside
forçosamente em funccionarios menos elevados, porém mais permanentes, ou
em influencias occultas, que actuam constantemente na gerencia dos
negocios publicos, e que reproduzem ahi de modo mais serio as outras
manifestações, na apparencia irregulares e desconnexas, da reacção.
É d'estes precedentes que principalmente deriva a gravidade do facto da
introducção das irmãs de caridade francesas em Portugal, introducção
que, segundo já mostrámos e continuaremos a mostrar, não se póde reputar
alheia á conspiração organisada neste paiz contra a liberdade; que não
é, que não póde ser senão uma nova phase della. Nada mais logico da
parte dos reaccionarios do que, ao passo que aggrediam a sociedade
actual, começarem a preparar o terreno para futuras victorias
apoderando-se da educação. Havia tempos que se dera principio á empreza
inspirando a pessoas piedosas e collocadas em alta jerarchia o desejo de
sollicitarem do governo, não a permissão de augmentar e organisar melhor
o instituto português das irmãs de caridade, porque este apenas serviria
para satisfazer aos preceitos de utilidade practica da regra de S.
Vicente de Paulo, mas sim a admissão de irmãs de caridade francesas,
instrumentos cegos dos lazaristas, muitos dos quaes pouco depois se
dirigiam ao Oriente para recolher o fructo da expulsão do clero
português de uma parte das nossas igrejas da Asia. O mais difficultoso
do negocio era que essas pobres mulheres deviam, em conformidade com a
disciplina da ordem, ser acompanhadas de alguns daquelles membros da
congregação das missões que se não tinham reputado necessarios para
combater em regiões longinquas o nome português e os direitos da corôa
de Portugal, paiz que aliás a corte de Roma declarava officialmente
schismatico, n'uma especie de circular aos vigarios apostolicos da
India[11], na mesma conjunctura em que, por intervenção do seu nuncio em
Lisboa, negociava comnosco a famosa concordata que tinha por fim
principal hostilisar o predominio da Inglaterra na Asia. Diz-se que
houve resistencias á nova pretensão, mas cedeu-se por fim a poderosas
influencias, e as irmãs de caridade francesas, acompanhadas dos seus
mentores, não tardaram em chegar a Portugal, em parte para tomarem conta
do novo asylo de orphãos que se creara, em parte com o pretexto do
serviço dos hospitaes. A reacção ganhara outra victoria, na apparencia
mais obscura, mas a mais importante de todas nos seus resultados.
Temendo, todavia, a irritação publica, o partido ultramontano appellava
para a imprensa, não só para a imprensa ignobil e para a imprensa
politica, mas tambem para a litteraria. Apotheoses das irmãs de caridade
e dos lazaristas franceses precediam e acompanhavam a sua entrada no
reino, e essas apotheoses, espalhadas pelas columnas dos jornaes,
tomavam ás vezes a fórma de livro, e apresentavam-se ao mundo com
pretensões de estylo e de philosophia. Ahi o liberalismo, verberado
despiedadamente, era confundido e anniquilado. Ponderavam-se os serviços
das irmãs de caridade nos tumultos de Paris e nos arraiaes da Criméa, e
dessas premissas concluia-se, com logica admiravel, que ninguem era mais
apto do que ellas para educar a infancia e regenerar a mulher em
Portugal. Taes escriptos não passavam de um tecido de puerilidades; mas
provavam ao menos, pela data em que começaram a apparecer, e pela épocha
em que se espalharam debaixo de outra fórma, que, se á reacção faltavam
recursos intellectuaes para tornar plausiveis as suas doutrinas, não lhe
falleciam bons desejos de as inculcar.
Apesar de ter esse lado ridiculo, a questão não perdia nem a sua
importancia, nem a sua gravidade. Certas associações, compostas de
pessoas respeitaveis pela pureza das suas intenções, mas altamente
incompetentes para apreciarem o valor dos factos á luz dos grandes
interesses sociaes, tinham experimentado subitamente, synchronicamente,
e em logares do reino assás remotos entre si, um sentimento, uma
convicção profunda e irresistivel da urgentissima necessidade da
introducção do lazarismo em Portugal. Se não supposermos quasi um
milagre, como acreditar na espontaneidade desta inspiração simultanea?
Evidentemente na penumbra dessas diversas associações havia uma
entidade, uma idéa, um designio, que as illudia e as inspirava. E o que
podia ser, senão a reacção, já em tantas questões e por tantos modos
manifestada?
Não é a esta Associação que pertence accusar, nem pedir a
responsabilidade das diversas administrações que serviram de doceis
instrumentos ao partido ultramontano. Essa responsabilidade vem de
longe. Temos fé nas instituições. Incumbe ao parlamento manter a fiel
execução das leis do reino; pertence-lhe a manutenção dos principios
politicos que o regem. Não nos associámos para o substituir. O partido
liberal o que faz é preparar-se para uma lucta a que foi longamente
provocado, e que as instituições lhe permittem acceitar. Se os
parlamentos passados, se o parlamento presente tem até hoje julgado
opportuno oppôr apenas resistencia passiva ás entreprezas da reacção, é
possivel que ámanhã se erga tremendo e inexoravel para punir mais de um
culpado. Como cidadãos, os membros desta Associação são tambem juizes
dos representantes do paiz na imprensa e juncto da urna; mais como
corporação, os seus deveres e os seus direitos estão limitados,
circumscriptos pelos fins que se proposeram. A reacção está illudida, se
pensa, com os seus clamores, fazer-nos ultrapassar esta meta.
Entretanto a historia é do dominio commum, e os factos consummados são
do dominio da historia. As leis do reino e o instituto das irmãs de
caridade francesas são antinomicos, antinomicos na letra, e ainda mais
na espirito. Antes de deferir ás supplicas em que se pedia que as leis
fossem infringidas, o governo consultou alguns prelados. Era uma
exorbitancia. O governo não tinha que consultar senão o codigo dos seus
deveres, que imprudentemente rasgou á vista das informações dos bispos.
Deploramos o procedimento do poder executivo: não deploramos menos que
as consultas dos prelados fossem publicadas, porque nos doe que o clero
hierarchico, que os legitimos pastores possam subministrar á
malevolencia suspeitas de fraqueza diante de influencias mundanas.
Dizendo ao governo que as irmãs de caridade francesas não vinham
estabelecer um instituto regular, os prelados não previam que os factos
haviam em breve de desmenti-los. Affirmando que os membros da
congregação da missão, visto prestarem obediencia ao ordinario, e delle
receberem jurisdicção quanto aos actos externos do officio sacerdotal,
podiam ser admittidos neste paiz, ultrapassavam os limites da sua
competencia, invadiam as attribuições do procurador geral da corôa, e
enredavam-se a si e ao governo n'um sophisma cujas consequencias tambem
não previam. A questão não era se os lazaristas reconheciam a
auctoridade do diocesano. Fazem-no assim hoje, porque sempre o fizeram.
Impõe-lhes o cumprimento desse dever a propria regra[12]; e se tanto
bastasse, poderiam admittir-se no reino os jesuitas, cujo instituto
igualmente os obriga a reconhecer a jurisdicção diocesana[13]. A questão
era se a base dos estatutos dos lazaristas e da congregação do sexo
feminino, que elles dirigem, é ou não a obediencia cega, illimitada,
absoluta, a uma chefe para nós estrangeiro; se os individuos que
professam esses estatutos podem entender a sujeição aos diocesanos de
outro modo que não seja até o ponto em que ella se não ache em collisão
com a vontade, ou simplesmente com os intuitos do geral, que para elles
deve ser como um Deus na terra[14]. A questão era se a lei que aboliu em
Portugal os regulares, e entre elles a congregação da missão, não é
offendida quando se admittem neste paiz, para nelle permanecerem, homens
que publicamente se proclamam membros de uma sociedade abolida, que
publicamente usam dos trajos e de todos os signaes externos da sua
ordem, e que assim affirmam a existencia de uma sociedade que a lei
nega. O direito natural e a constituição do estado dizem que a
manifestação do pensamento é livre, livres todas as acções que não
penetram na esphera da livre acção dos outros, que a lei civil é
destinada a garantir; e a existencia dos lazaristas no meio de nós é uma
affirmação publica de que são licitos pactos de escravidão mental
contrarios ao direito natural e aos nossos principios constitutivos. O
estrangeiro que vem viver no meio desta sociedade tem jus á sua
protecção, mas tem tambem a obrigação de a reconhecer e de a respeitar.
No foro intimo, na vida domestica, estrangeiros e portugueses podem ser
jesuitas, mormons, lazaristas, ou o que bem lhes parecer: o foro intimo
e a vida domestica são sanctuarios onde os poderes publicos não
penetram. Mas essa condição fundamental da existencia de um povo livre
não auctorisa ninguem para saír á rua, proclamando com as suas
declarações officiaes, com os seus actos, e até com os seus trajos, que
o direito natural não é imprescriptivel, que a constituição e as leis
não tem validade moral. A providencia legislativa que supprimiu as
corporações regulares não aboliu só os gremios compostos de um certo
numero de individuos: aboliu a instituição, aboliu os estatutos, aboliu
as regras. Quem se accingir publicamente a esses estatutos, a essas
regras, seja um, sejam mil, está em contravenção com a lei.
Nem se diga que um ou muitos membros de congregações religiosas podem
ter necessidade de vir a este paiz sem que o poder publico haja de lhes
tolher a entrada, ou de os obrigar a sairem antes de concluirem os
negocios que os compelliram a habitar temporariamente entre nós. De
certo, nenhum governo de nação civilisada procederia de tal modo; mas o
primeiro cuidado desses individuos, se forem prudentes e honestos, será
absterem-se de contrastar por manifestações externas as leis e os
costumes da nação cujos hospedes são. Se procedessem de diversa maneira,
o executivo, que tem o dever e o direito de exercer vigilancia sobre a
ordem publica e sobre a execução das leis, teria o dever e o direito de
os cohibir ou de os expulsar do paiz.
Póde, porém, a existencia de lazaristas e de irmãs de caridade francesas
em Portugal considerar-se como um facto accidental e temporario? Os
prelados, nas consultas que dirigiam ao governo sobre este assumpto,
buscavam attenuar, sem effectivamente o conseguirem, os graves
inconvenientes da entrada simultanea dos lazaristas e das irmãs de
caridade, o que indica não julgarem possivel a separação dos dous
factos. E de feito, é geralmente sabido que essa entrada se negociou
primeiro com o geral dos lazaristas; que elle veio a este paiz tractar
do assumpto; que delle partiu a permissão da vinda daquellas mulheres.
Emfim, o prelado de Lisboa dizia expressamente na sua consulta, que as
irmãs de caridade francesas estão sujeitas ao geral da congregação da
missão. Os defensores do lazarismo asseveram, portanto, com fundamento,
que os dous institutos são inseparaveis. A existencia, a permanencia, a
perpetuidade dos lazaristas em Portugal são consectarios forçados da
existencia, da permanencia, da perpetuidade da congregação lazarista do
sexo feminino. Assim a questão simplifica-se. Reduz-se a uma
pergunta:--A admissão e a residencia em Portugal das irmãs de caridade
do instituto francês é accidental e temporaria, ou importa o
estabelecimento de um instituto permanente?
Se é uma residencia accidental e temporaria, onde estão as vossas
magnificas promessas de regeneração moral para esta terra, onde a
educação para a infancia, a conversão para a degenerada mulher
portuguesa, a luz para nós todos, povo de ignorantes, de impios, de
barbaros? É com seis mulheres que haveis de fazer essas maravilhas? Ou
quereis que o geral da congregação da missão despovoe successivamente a
França das irmãs de caridade e dos seus directores para nos restituir a
luz da fé, a pureza dos costumes, a educação christã, que, segundo
parece, os successores dos apostolos, os successores dos discipulos, os
representantes dos doutores primitivos, os pastores, em summa, de
instituição divina deixaram perder, e que são, conforme dizeis,
incapazes de restaurar? Não; vós não quereis collocar o chefe do
lazarismo na dura collisão de arriscar a patria a novas invasões de
impiedade, para dedicar os inexgotaveis thesouros do seu amor do proximo
a gente peregrina e rude, que talvez não lh'o agradeça. Não; vós quereis
plantar entre nós ao mesmo tempo ambos os institutos de S. Vicente de
Paulo; quereis edificar para os seculos. É a modestia que vos obriga a
envolver no mysterio os vossos generosos designios. A salvação das
gerações futuras merece-vos tanta sollicitude como a das gerações
presentes.
Um facto decisivo demonstra que isto é assim, e que os prelados
comprometteram a propria veracidade affirmando o contrario. Entre nós
existia uma congregação de irmãs de caridade sujeitas á auctoridade
diocesana e só a ella, em conformidade das leis do reino. O titulo da
sua instituição era legitimo, viviam em commum, tinham habito proprio,
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