Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 11

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porque póde haver nobreza até no erro e no mal, seria esse partido assás
insensato para fazer sacrificios taes, se não estivesse empenhado nisso
o seu dogma supremo, a reacção? Valeria para elle a pena de se agitar,
colerico e impaciente, por causa de seis mulheres e dous frades, e de
combater com tanto azedume os que repellem essa importação estrangeira;
elles, os homens da nacionalidade exaggerada? Se tal facto não disser
nada aos transviados do campo liberal, então só nos resta deplorar a sua
irremediavel cegueira.
Ha tres seculos que tambem dous frades de um instituto novo, chamado a
Companhia de Jesus, entravam sósinhos em Portugal. Um delles abandonava
logo este paiz para atravessar o oceano e ir embrenhar-se entre as
gentilidades da Asia. Ficou o outro. Foi o que bastou para nucleo de uma
associação, que em breve dominou tudo. A mocidade é amiga de novidades.
Mancebos saídos do seio das mais nobres familias, outros nascidos entre
o povo e entre a burguesia correram a alistar-se no gremio nascente, ao
passo que os reforços estrangeiros chegavam pouco a pouco. Vinham,
dizia-se, moralisar o paiz e instrui-lo pela religião. Homens de estado
conspicuos, a universidade de Coimbra, a parte mais illustrada da
sociedade era-lhes adversa, e fazia sinistras predicções, que o tempo se
encarregou de justificar. O poder estava, porém, nas mãos do fanatismo,
da hypocrisia, e sobretudo da imbecilidade intellectual. A liberdade da
palavra, a liberdade do pensamento escripto, a liberdade de associação
não existiam. Ponderavam-se os fins tão uteis do sancto instituto, o bem
que tinha feito fóra do paiz, como por toda a parte o acolhiam. As
reluctancias, estereis porque sem nexo, esmoreceram e calaram-se. A
instituição estrangeira venceu, enraizou-se, dilatou-se e dominou. A
historia politica, social e litteraria do paiz durante duzentos annos
está ahi para responder aos que perguntarem quaes foram os resultados da
influencia incontrastada e incontrastavel dos jesuitas.
Este exemplo memoravel e de triste recordação domestica deve ser inutil
para nós? As apprehensões actuaes serão menos justificadas do que as dos
homens instruidos, sisudos e experientes do meiado do seculo XVI? Ha
quem diga que sim; ha quem pense que a historia serve só para pasto de
uma curiosidade van; quem supponha que as leis da humanidade não são
sempre as mesmas; que onde se derem causas identicas não se hão de
repetir os mesmos effeitos. Deploremos a intelligencia dos que assim
pensam. Dizem-nos que o espirito das congregações religiosas é diverso
do que foi; que ellas não exercerão a perniciosa influencia que
exerceram n'outras epochas, ao passo que podem ser grandemente uteis á
illustração e á moralidade. Affirmam-nos que é preciso retemperar os
antigos instrumentos de religiosidade para os oppor á irreligião do
indifferentismo que invadiu as sociedades, e para fortificar o elemento
christão, unico que póde combater com vantagem os delirios das novas
escholas que poem em questão a propriedade e a familia, principios
vitaes da existencia civil. A educação, dizem-nos, está fóra da esphera
dos partidos: educae e instrui só por educar e instruir, e não cureis de
saber qual será o destino politico das novas gerações. Ensinae-lhes os
elementos da instrucção geral, a religião e a moral, de modo que depois
se adaptem a todas as fórmas de governo, a todas as situações da
sociedade.
Diz-se isto, escreve-se, proclama-se. Os que assim falam são os
reaccionarios occultos, os transfugas do campo liberal, e tambem
aquelles que devemos considerar como suas victimas, os que se deixam
illudir pelos sophismas desses homens de trevas, que, não tendo a nobre
ousadia de declarar lealmente que abandonaram os seus estandartes,
calumniam a liberdade para a trahirem sem trahirem os proprios intuitos,
e sem sacrificarem os proventos que lhes resultam da sua supposta
permanencia na fileiras em que andavam alistados. Comparada com a
linguagem destes, a dos reaccionarios puros é nobre, porque é franca e
sincera. O mal, na sua opinião, não consiste nas aberrações do
liberalismo; consiste no proprio liberalismo. As doutrinas liberaes
conduzem logicamente, forçadamente, os povos aos desvarios anarchicos, á
negação absoluta da ordem social. É precioso restaurar o passado nas
fórmas mais absolutas, nas maximas extremas da igreja e do estado;
expungir todos os axiomas, todas as idéas de progresso civil e politico
dos ultimos dez ou doze lustros, todas as instituições d'ahi derivadas.
Os progressos materiaes deste seculo são acceitaveis: nada mais. O molde
social novo cumpre quebrá-lo, repondo as sociedades no antigo, unico em
que podem salvar-se.
Entre este partido e o nosso está dicto tudo. Somos radicalmente
adversarios. Podemos combater sem mutuamente nos desprezarmos; podemos
ser mais ou menos violentos na lucta, sem que, em regra, em principio,
nos accusemos de deslealdade. Não é esse partido, que nos obriga a
defender esta Associação, e a expôr na imprensa os motivos da sua
existencia, a sua indole, o pensamento que dirige todos os seus actos.
As accusações d'alli vindas serão o seu melhor titulo para grangeiar a
confiança do partido sinceramente liberal; porque os dous campos estão
estremados e circumscriptos. O que importa é precaver-nos contra o mal
que lavra nos proprios arraiaes; contra os inimigos que nos querem
introduzir nelles como alliados. O fim dos nossos esforços deve ser
repellir doutrinas que se vão pedir emprestadas ás theorias dos
adversarios para se nos darem como idéas progressivas; deve ser repellir
taes doutrinas principalmente nas suas applicações practicas.
Dizem-nos que estamos n'uma épocha de progresso, e não podemos
retrogradar; que a publicidade, a discussão, a liberdade bastam para
preservar a sociedade das aggressões da reacção. São phrases oucas, sem
valor, nem alcance na questão que deu origem a esta Associação, porque
não determinam nenhum facto especial. De certo que o genero humano
progride no seculo presente; porque o progresso é uma condição
impreterivel da sua existencia: progride neste seculo, como progrediu em
todos desde as mais remotas eras. Nem os tempos tormentosos das invasões
dos barbaros deixaram de ser uma épocha de progresso. Demonstra-o a
historia. Mas tem esse grande facto de genero-humano impedido que, n'um
ou n'outro paiz, domine a tyrannia depois da liberdade; que os fóros do
homem tenham sido desprezados; que as nações tenham sido individualmente
opprimidas, desmoralisadas, barbarisadas, dissolvidas, anniquiladas como
entidades politicas? Concluir do progresso constante da civilisação
geral que um povo não póde retrogradar, e que portanto não deve
premunir-se contra a reacção que o aggride, é aconselhar ao homem que se
não previna contra as causas ordinarias da morte, porque a raça humana
tem por condição a perpetuidade.
A liberdade do pensamento, a discussão, a publicidade, as garantias, em
summa, de um paiz livre bastam á defesa da sociedade. Mas então porque
se acha extranho que pensemos livremente, que discutamos, que nos
associemos, que usemos, dentro da estricta legalidade, d'esses meios que
as instituições facultam aos cidadãos, para affastarmos um perigo que
cremos sério e imminente? Porque a injuria, a colera, a calumnia?
Dir-se-hia, ao ver os sanctos furores que se alevatam em regiões mais
que suspeitas, que os nossos temores não são tão infundados, as nossas
prevenções tão inuteis como se affirma, e que o perigo é verdadeiro e
real.
A reacção não póde vencer-nos: cruzemos os braços! Como se julgaria o
homem, que n'uma praça sitiada, mas defendida por centenares de canhões
e por uma guarnição numerosa e aguerrida, clamasse aos soldados no
momento do ataque:--«Não assesteis a artilheria: não marcheis para as
muralhas; confiae na efficacia dos nossos recursos; cruzae os braços,
porque a praça é inexpugnavel.»--Este homem não chegaria a ser reputado
traidor: te-lo-hiam apenas por mentecapto.
Dizem-nos que a aggressão não existe; que a importação de um instituto
estrangeiro, repugnante pela sua indole, pela sua regra, ás instituições
do paiz, não é um symptoma, e mais do que um symptoma, um acto de
reacção organisada. Examinemos esse facto em si: procuremos a sua causa.
Uma calamidade publica determinou subitamente na capital do reino a
existencia de um grande numero de orphãos, que foram perfilhados pela
compaixão publica. Sem aquella calamidade, esses individuos teriam
recebido a educação no seio das suas familias, ou nos estabalecimentos
de educação já existentes, e a sociedade não teria visto n'isso um
grande mal. Eram os estabelecimentos publicos e privados, já instituidos
no reino, e destinados á educação da infancia e da puericia,
radicalmente incapazes de preencher o seu fim? Onde estão as provas?
Cumpria crear um estabelecimento de educação diversamente organisado? Se
assim era, as pessoas que tinham dirigido, mantido, protegido parte dos
já existentes, o parlamento e o governo que mantinham e dirigiam outra
parte, todos se haviam enganado, ou enganavam o paiz. Em perto de um
milhão de mulheres portuguesas, não havia cinco ou seis que se podessem
encarregar da sancta e nobre missão de serem as mães adoptivas dos
orphãos tutelados pela commiseração publica? A sciencia da educação
inspira-a Deus por metade ao coração da mulher, porque o destino
providencial desta é a maternidade: a outra metade dão-lh'a as tradições
domesticas, as recordações dos primeiros annos, o ensino dos livros e
dos mestres e a observação da sociedade. Tinha-se Deus esquecido de nós?
A mulher portuguesa ignorava, porventura, esses delicados affectos, essa
arte instinctiva, com que o espirito feminil attrahe para o bem a
infancia desprevenida, e lhe suavisa as asperezas inevitaveis do
primeiro ensino? Dir-se-hia, acaso, que o typo da mulher mãe e mestra
não existia em Portugal, ou existia em regiões tão elevadas, e por
excepção tão singular, que descobrir no paiz quem podesse desempenhar as
graves funcções de educadora seria um problema insoluvel? Se assim
fosse, a familia não existiria entre nós senão por excepção, porque, a
primeira e impreterivel qualidade da mãe de familia é possuir o
instincto e os dotes de educadora. Onde se não dá essa condição, a
familia não passa de uma juxta-posição de pessoas. Acreditar que esta
fosse a nossa situação; que poderia ser a situação de alguma povo, seria
presuppor um absurdo. Não se partiu, de certo, de semelhante hypothese
para a introducção em Portugal das irmãs de caridade francesas. E se
assim foi, digam-nos que meios empregaram para verificar a existencia de
tão monstruoso facto?
Foi essa introducção apenas um capricho, uma puerilidade? Capricho,
leveza pueril, poderia ter-se reputado, se a indignação, manifestada
desde logo pelo sentimento nacional ferido, houvera ensinado a
prudencia. Mas o sentimento publico só despertou coleras indiscretas e
declamações apaixonadas. Isto prova que o facto não nascera de
irreflexão; que fora calculado, discutido, apreciado, nos seus motivos e
nas suas consequencias. Buscava-se o bem ou o mal; mas buscava-se alguma
cousa importante. Podiam as pessoas que figuravam naquelle empenho não
medir o seu alcance; mas atraz dellas estava decerto quem o medisse, e
que talvez guardasse para si previsões e esperanças que não lhes
revelava.
Nasceria o facto do desejo de dar a conhecer ao paiz systemas e methodos
mais perfeitos de educação physica e intellectual? Cremos que se devem
estudar os systemas de educação estrangeira, e adoptar aquillo que
nelles for verdadeiramente util e applicavel a Portugal. Mas para isto
não bastam nem servem algumas irmãs de caridade francesas collocadas á
frente de um asylo-eschola. Suppondo que a França fosse o paiz classico
da pedagogia, o que é mais que duvidoso[5], seria das escholas normaes
de metras que alumnas nossas poderiam trazer a Portugal os
aperfeiçoamentos de que carecessemos, ou alumnas dessas escholas vir
introduzi-los, não n'um asylo-eschola, mas n'uma eschola normal.
A lei francesa de 15 de março de 1850, promulgada no meio do terror do
socialismo, lei organica do artigo constitucional que proclamava a
liberdade do ensino, permittiu ás congregações religiosas o magisterio
sem a habilitação das escholas publicas. Queria-se oppôr o ensino
clerical ao do professorado secular, que, na escala inferior, tendia,
conforme se affirmava, para as idéas socialistas.
O titulo de capacidade das irmãs de caridade francesas para o magisterio
está nas prescripções dessa lei de reacção fundada no medo, prescripções
que, aliás, qualificam do mesmo modo os individuos de ambos os sexos
pertencentes a quaesquer outras cengregações religiosas. Especialmente,
as irmãs de caridade não tem habilitação alguma official como
educadoras: tem apenas as provisões geraes da sua regra; mas nem essa
regra indica systema algum de ensino, nem temos meio nenhum de verificar
a bondade dos que seguem, se alguns seguem, a não ser a auctoridade da
congregação lazarista, e as vagas affirmativas dos partidarios da
educação clerical.
Que se póde esperar das congregações religiosas como instrumentos da
educação? A circular do ministro de instrucção publica em França, de 19
de agosto de 1850, diz:--«Pelo que respeita á creação de mestras, as
escholas normaes e os cursos normaes que existem tem feito serviços
assás positivos para não se poder duvidar de que os recursos para manter
essas escholas sejam facilmente votados»--e o commentador da lei de 15
de março. Rendu, accrescenta:--«A utilidade destas escholas normaes é
tanto mais apreciada quanto é certo que em quasi todos os departamentos
ha falta de mestras, falta provada pela experiencia diaria.»--O governo,
portanto, que procurou entregar quanto fosse possivel a educação ao
clero, appella especialmente para os antigos institutos seculares, e põe
nelles a sua esperança de poder subministrar á França mestras habeis, ao
passo que um dos homens mais competentes na materia nos revela que ellas
faltam em quasi todos os districtos administrativos do imperio. Mas que
fazem essas vinte ou trinta congregações a quem se tiram todas as
restricções no ensino, e que devem salvar as gerações futuras da impia
educação secular? A regra de S. Vicente de Paulo não excluiu o
patriotismo. Enviando a este paiz inhospito e barbaro seis irmãs de
caridade habilitadas para educadoras, o geral dos lazaristas privou a
França dos seus serviços e trahiu o próprio dever, senão para com Deus,
de certo para com a patria.
O que, porém, na realídade a circular do ministro e as palavras de Mr.
Rendu provam é que o progresso da educação em intensidade e em extensão
não ha de nem póde vir de se entregar o magisterio ás corporações
religiosas, cuja impotencia no meio da liberdade de ensino que se lhes
concedeu, sem garantias sequer para a sociedade, os factos estão
demonstrando. Póde e ha de vir de institutos seculares liberal e
fortemente organisados. A civilisação gradual e crescente das sociedades
pela educação popular é uma das primeiras questões de governo, e não uma
intriga de sacristia. Se ha paizes onde as paixões politicas a
reduzissem a essas dimensões, deploremos os seus destinos, mas
abstenhamo-nos de os imitar.
Assim, considerada pelo lado pedagogico, a introducção das irmãs de
caridade francesas não correspondeu a nenhuma idéa de progresso; não
satisfez a nenhuma necessidade da educação popular. Fugir-se-ha desta
questão suprema para a de simples caridade? Dir-se-ha que o
estabelecimento que serviu de pretexto á introducção desses frades e
dessas mulheres não é propriamente um instituto de ensino, mas de
beneficencia? Todos os absurdos se podem dizer quando se defende uma
ruim causa, mas, em tal caso, porque excluir a mulher portuguesa? Porque
reputá-la incapaz de carinho, de aceio, de religião, de moralidade? É
licito, porém, admittir-se que o asylo entregue ao lazarismo seja apenas
um abrigo para a indigencia material? As casas de asylo são
essencialmente instítutos de educação. O mais superficial exame da sua
indole o está provando. Se os homens da reacção ignoram até isso,
citar-lhes-hemos uma auctoridade insuspeita para elles, a do actual
governo francês. O decreto do imperador Napoleão de 21 de março de 1855
diz:--«As casas de asylo, quer publicas, quer livres, são institutos de
educação»,--e a circular de Mr. de Fortoul de 18 de maio do mesmo anno
declara-as--«casas de educação primeiro que tudo.»--De certo não seriam
nem o senso commum, nem a opinião que prevalece em França que
auctorisariam os fautores de educação lazarista a considerar o asylo
confiado ás irmãs de caridade como simples instituto de beneficencia.
Se accusar as mulheres de um paiz em peso de falta de capacidade natural
para a educação da infancia equivale a negar a possibilidade da
existencia da familia, e portanto da sociedade, proposição de tal modo
absurda que por si propria se refuta; se manifestações inequivocas nos
provam que a introducção das irmãs de caridade francesas não foi um acto
de capricho ou de inconsideração; se nem as doutrinas nem os factos
relativos a tão grave assumpto legitimam aquella importação estrangeira
no interesse do progresso do ensino, que resta para a explicar senão um
pensamento de reacção social, pensamento que se tem, em assumptos
analogos, manifestado na Belgica e no Piemonte, e que triumpha por
outras partes?
Mas o que quer esta reacção? Para onde caminha? Até onde vai? É o
sentimento christão que se pretende avivar, restaurando por elle a moral
positiva e practica? É a fé amortecida no animo das multidões, que por
um impulso sublime de caridade se lhes quer restituir em toda a sua
benefica energia, com guia, consolação e esperança, no meio das miserias
da vida? Não é nada d'isso. Se o fosse, esta Associação, justamente
porque é composta de liberaes sinceros, de homens de ordem, de justiça e
de paz, seria tambem reaccionaria. A reacção é o catholicismo posto ao
serviço dos interesses mundanos; é uma parte importante do clero que se
deixa assoldadar pelo absolutismo com a esperança de que fazendo
retroceder os povos até o estado social que precedeu a liberdade, poderá
um dia recuar ainda mais longe e restabelecer a supremacia clerical
sobre o poder civil. É, por outro lado, o absolutismo, que, servindo-se
dessa parte do clero, e da poderosa arma da religião, procura restaurar
o proprio predominio, persuadido de que, depois de obtido o triumpho,
conterá o seu perigoso alliado pelos mesmos meios que outr'ora empregou
para o domar, a resistencia energica ás suas pretenções, e a
participação generosa nos proventos dos abusos, violencias, espoliações
e vexames com que por seculos flagellou a humanidade. A reacção é o
abraço refalsado de dous poderes que se hostilisaram, que se
perseguiram, que alternadamente se esmagaram muitas vezes durante
seculos, e cuja paz nos ultimos tempos era apenas uma tregua que
tacitamente ajustara a corrupção. O direito divino da monarchia absoluta
e a supremacia do chefe da igreja sobre os monarchas são duas idéas que
repugnam entre si; que ainda hoje mutuamente se condemnam na região das
theorias, como durante sete seculos os seus representantes se tinham
amaldicçoado, injuriado, despedaçado mutuamente, em nome de dous
principios contradictorios, que se diziam ambos emanados do céu. O
absolutismo e o ultramontanismo, dando um abraço fraterno dimittiram a
historia. A desgraça aconselhava-lhes a união. Guardaram para tempos
mais prosperos os odios mutuos, filhos de mutuos aggravos, e no vacuo
que lhes deixava nos corações aquelle antigo sentimento ficou mais á
larga o rancor contra a liberdade. Na lucta gigante que emprehenderam,
para fazer retroceder a torrente impetuosa das gerações e das idéas,
empregam a arte e a dissimulação onde lhes falta a força; a força onde a
arte e a dissimulação se escusam. Onde e quando cumpre, o absolutismo
prostitue e compromette a monarchia em serviço do recente alliado; o
ultramontanismo prostitue e compromette a religião em vantagem do seu
implacavel adversario de outr'ora. Os defensores do throno absoluto
somem cuidadosamente debaixo dos degraus delle os processos, as
sentenças, as providencias, as leis, com que, unanimes, os tribunaes
catholicos e os soberanos da Europa fulminaram e anniquilaram a
sociedade dos jesuitas, como um gremio de homens corruptos e criminosos:
o jesuitismo esconde nos recéssos mais escusos das casas-professas as
vastas bibliothecas da litteratura do regicidio, os volumes
pulverulentos de Bellarmino, de Suares, d'Escobar, de Molina, de
Juvenci, de Busenbáum, de Lacroix, de Mazotta, e dos outros escriptores,
dos bons tempos da companhia de Jesus. A sancta alliança póde não ser
duradoura, porque as reservas casuisticas estão atraz della; mas é
intima e forte. Abonam-na os custosos sacrificios feitos pelos dous
alliados sobre o altar da concordia.
Um homem de estado dos maiores da Europa, o maior talvez do seu paiz,
cujos destinos dirigiu largos annos, tão probo e moderado como
escriptor, quanto o foi na vida publica, descreveu com rapidos traços,
n'um livro recentissimo, o caracter da reacção clerical e absolutista a
que impiamente foi sacrificado o sentimento religioso que renascia em
França. «O mal que ainda dura--diz Mr. Guizot-–apesar de tantas
procellas e de tanta luz vertida, é a guerra declarada por uma porção
consideravel da igreja catholica de França á sociedade francesa actual,
aos seus principios, à sua organisação plitica e civil, ás suas origens
e às suas vocações... Em nenhum tempo houve guerra de tal natureza mais
desarrazoada e inopportuna... O movimento que reconduzia a França para o
christianismo era sincero e mais grave do que parecia... Entregue a si,
e sustentado pela influencia de um clero que só se preoccupasse de
renovar a fé e a vida christã, aquelle movimento teria grandes
probabilidades de se propagar, e de restituir á religião o seu legitimo
imperio. Mas, em vez de se conservarem nesta alta esphera, muitos
membros do clero catholico e seus cegos partidarios desceram a questões
mundanas, e mostraram-se mais ardentes em repôr no antigo molde a
sociedade francesa, com o intuito de restituir á igreja a anterior
situação, do que em reformar e dirigir moralmente os espiritos[6].»
Esta sentença fulminada por uma altissima intelligencia, por um nobre
caracter, collocado por muitos annos n'uma posição sem igual para
ajuizar com segurança das tendencias e fins de todas as parcialidades do
seu paiz; esta affirmativa tremenda de um homem de bem assentado na
borda do tumulo, é tão verdadeira, como triste para nós os que, sem
intenções reservadas, amamos o catholicismo, como crença de nossos paes,
como religião unica na constancia e unidade de doutrina, e cujos dogmas,
precisos, indubitaveis, completos, se tem conservado immutaveis por mais
de dezoito seculos, desde os tempos apostolicos até agora, no meio das
heresias, das variações, das superstições, nascidas hoje para se
desmentirem, se alterarem ou desapparecerem ámanhã. O facto descripto
pelo grande historiador da civilisação repete-se em Portugal.
Perverteram-se aqui como lá as tendencias christãs, que se manifestaram
depois dos graves acontecimentos de 1833, para se ir tentando
gradualmente a restauração de certas formulas sociaes e politicas, de
certos abusos escandalosos condemnados e destruidos irrevogavelmente.
Faz-se guerra á sociedade portuguesa actual, aos seus principios, á sua
organisação politica e civil, ás suas origens e ás suas vocações. Faz-se
intervir a religião em questões mundanas, e pensa-se mais em repôr no
antigo molde a sociedade portuguesa do que em reformar e dirigir
moralmente os espiritos.
A corrupção de uma parte preponderante do clero, a sua participação nas
rapinas, nas violencias, nas extorsões fiscaes dos antigos tempos, a sua
devassidão, o seu luxo, e por fim os seus esforços insensatos a favor do
absolutismo, levados até a cooperação armada, fizeram com que elle se
achasse debaixo das ruinas do edificio que a liberdade desmoronou no dia
assignalado pela justiça de Deus. O partido liberal não desejava
encontrar lá o clero; mas tambem não perguntou quem tinha ido abrigar a
cabeça debaixo do tecto maldicto. Confundem facilmente os espiritos
vulgares a idéa com a manifestação, a doutrina com o homem. O povo
confundiu até certo ponto o altar com o ministro, e confundiu-o,
justamente, porque por muitos annos a porção corrupta do clero fizera
escudo do altar. O sentimento religioso esmorecera. A mocidade
intelligente ousou então pedir paz para o innocente, perdão para o
culpado, respeito para a cruz. Uma parte dos vencedores riram-se, e
todavia a supplica era justa. Suspeitosos de nós, os vencidos sorriram
tambem; e todavia a supplica era sincera. Ouviu-a Deus. No fim de tempos
o sentimento christão dominava no liberalismo. A litteratura de quinze
annos, e a imprensa periodica desta épocha ahi estão para responder por
nós quando o futuro tiver de julgar a reacção e a liberdade. Os
espiritos mais nobres e mais illustrados do partido do progresso social
comprehendiam, emfim, uma verdade simples, que as paixões haviam
offuscado; comprehendiam que o christianismo e a liberdade eram a
prolação do evangelho; eram dous irmãos que os maus tinham inimizado, e
que cumpria reconciliar. De todas as obras do pregresso, a mais grave, a
mais fecunda, a mais civilisadora era esta. Mas, incorrigivel aqui, como
em França, como por toda a parte, o velho partido da corrupção na
igreja, que fizera já uma vez paz com o absolutismo, porque o
absolutismo tinha ouro, tinha grandezas, tinha esplendores para o
saciar, apertou mais energicamente os laços que o ligavam a elle.
Aterrava-o a idéa de que a religião podesse erguer-se pura e illesa do
seio das revoluções sociaes. Rendia pouco uma religião assim. Correi as
publicações chamadas religiosas feitas n'este paiz ha vinte cinco annos;
vereis que as suas tendencias, as suas manifestações de sympathia são,
talvez sem excepção, para o ultramontanismo, isto é, para o despotismo
na igreja, e para a monarchia de direito divino, isto é, para o
despotismo na sociedade. Excluem-se os dous principios em theoria;
excluiram-se por seculos nos factos: mas que importa isso aos grandes
incredulos chamados os defensores da religião? Se gosarem dous dias
n'este mundo, que lhes importam os males futuros dos povos? Que lhes
importa que d'aqui a cem annos a thiara role no lodo aos pés do throno
dos reis, ou que as coroas se revolvam no pó aos pés do solio
pontifical?
D'ahi veio a guerra implacavel e tenaz feita á liberdade. Onde esta se
debilitou pelo excesso temporario de vida, até degenerar em licença e em
ameaça á sociedade, a reacção, que fora até então vencida, venceu a
final. E tão completamente venceu, que já nos horisontes apparecem, como
consequencias inevitaveis dessa victoria, os primeiros signaes da lucta
entre o sacerdocio e o imperio, ou antes entre os dous despotismos, que,
por força da propria indole, são obrigados a aggredir-se desde que se
equilibram. Nos paizes onde a liberdade é forte, porque é moderada, como
na Belgica, no Piemonte e em Portugal, o definitivo triumpho será mais
difficil para os reaccionarios, se o partido liberal, sejam quaes forem
as suas dissensões intestinas, não cahir nas exaggerações politicas, e
se conservar unido em frente da reacção.
Por muito tempo foi esta apreciada mal entre nós, porque as suas
manifestações eram desconnexas, intermittentes. Appareceram,
desappareceram, renovaram-se certas confrarias e associações do sexo
feminino, nas quaes um singular perfume de mysticismo se accommoda aos
habitos e costumes luxuarios que dá a opulencia. A devoção é ahi
diversão de certas classes, a quem o berço e a fortuna habilitaram para
se esquivarem á dura comminação do trabalho imposta no Génesis.
Publicações devotas e quasi romanticas, traduzidas do francês, e onde
nem, sempre a pureza severa da crença catholica é respeitada, feitas com
a elegancia typographica dos prelos franceses vieram expulsar do mercado
aristocratico o antigo livro de resas português, grosseiro na fórma,
rude no aspecto, singelo na phrase. A reacção civilisa-se. Alguns dos
verdadeiros amigos do altar e do throno, que, refugiados em Paris,
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