Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 10

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quantas miserias, quanto abandono, quantos vexames pesam sobre os
habitantes das provincias, principalmente dos districtos ruraes, como o
vosso, que constituem a grande maioria do paiz. Vi com dor e tristeza
definhados e moribundos os restos das instituições municipaes que o
absolutismo nos deixara: vi com indignação essas solemnes mentiras a que
impiamente chamâmos a agricultura, a verdadeira industria de Portugal,
lidando inutilmente por desenvolver-se no meio da insufficiencia dos
seus recursos; vi, em resultado dos erros economicos que pullulam na
nossa legislação, a má organisação da propriedade territorial e a
desigualdade espantosa na distribuição das populações ruraes, procedida
da mesma origem, e dando-nos ao sul do reino uma imagem das solidões
sertanejas das America, e ao norte uma Irlanda em perspectiva: vi a
injusta repartição e a peior applicação dos tributos e encargos: vi a
falta de segurança pessoa e real, especialmente nos campos, onde o homem
é obrigado a confiar só em si e em Deus para a obter: vi um systema
administrativo máu por si e pessimo em relação a Portugal, com uma
jerarchia de funccionarios e uma distribuição de funcções que tornam
remotas, complicadas, gravosas, e até impossiveis, a administração e a
justiça para as classes populares, e incommodas e espoliadoras para as
altas classes: vi, sobretudo, a falta da vida pública, a concentração do
homem na vida individual e de familia, que é ao mesmo tempo causa e
effeito da decadencia dos povos que se dizem livres: vi todos esperarem
e temerem tudo do governo central; confiarem nelle, como se fosse a
Providencia; maldizerem-no, como se fosse o principio máu: idéas
completamente falsas, postoque bem desculpaveis num paiz de
centralisação; idéas que significam uma abdicação tremenda da
consciencia de cidadão, e da actividade humana, e que são o symptoma
infallivel de que os males públicos procedem, não da vontade deste ou
daquelle individuo, da indole particular desta ou daquella instituição,
mas sim do estado moral da sociedade e da indole em geral da sua
organisação.
E isto que vi perspicuamente, apesar de uma observação transitoria,
vêem-no todos os dias, palpam-no, e, o que mais é, padecem-no centenares
de homens honestos e intelligentes que vivem obscuramente por essas
villas e aldeias de Portugal. Como os seus vizinhos, elles são victimas
da nossa absurda organisação; disso a que por antiphrase chamamos
administração e governo. É entre taes homens que os circulos deveriam
escolher os seus representantes: é entre elles que os escolherão por
certo no dia em que comprehenderem que o direito eleitoral é uma espada
de dous gumes com que os cidadãos estão armados para se defenderem a si
e a seus filhos, mas com que tambem podem assassinar-se e assissiná-los.
Foi o que disse a todos aquelles, e não foram poucos, que durante a
minha peregrinação pareceram confiar, senão no valor das minhas
opiniões, ao menos na sinceridade d'ellas. Interrogado ácerca do
lenitivo que suppunha possivel para os males que presenciava, indiquei
sempre, não como remedio definitivo, mas como preparação para elle, como
instrumentos de uma reforma futura, a eleição exclusivamente local e os
esforços constantes para obter, contra o interesse das facções, dos
partidos e dos governos, a reducção dos grandes circulos a circulos de
eleição singular, que um dia possam servir á restauração da vida
municipal, da expressão verdadeira da vida publica do paiz, e de
garantia da descentralisação administrativa, como a descentralisação
administrativa é a garantia da liberdade real.
Fortes tendencias para a eleição da localidade se manifestam já por
muitas partes, e os governos e as parcialidades vêem-se constrangidos a
transigir com esse instincto salvador. Se não me é licito gloriar-me de
ter contribuido para elle se desenvolver, ser-me-ha licito, ao menos,
applaudi-lo. É o primeiro passo dado no caminho do verdadeiro progresso
social: cumpre não recuar.
Mas, pensando assim, como poderia eu, sem desmentir a minha consciencia
e as minhas palavras; sem trahir a verdade, sem vos trahir a vós
proprios, acceitar em silencio o vosso mandato? É honroso merecer a
confiança dos nossos concidadãos, mas é mais honroso viver e morrer
honrado.
Não haverá no meio de vós um proprietario, um lavrador, um advogado, um
commerciante, qualquer individuo, que, ligado comvosco por interesses e
padecimentos communs, tenha pensado na solução das questões sociaes,
administrativas e economicas que vos importam; um homem de cuja
probidade e bom juizo o tracto de muitos annos vos tenha certificado?
Ha, sem dùvida. Porque, pois, não haveis de escolhê-lo para vosso
mandatario?
Os que não vêem como eu nesta idéa da representação exclusivamente local
o primeiro élo de uma cadeia de transformações, que serão ao mesmo tempo
administrativas e politicas, podem, sem desdouro, não só acceitar, mas
até sollicitar os vossos votos. Ninguem deve afferir os seus actos
livres senão pelas proprias opiniões, pelas doutrinas que tem
propugnado. Afferir pelas minhas idéas o meu proceder é o que unicamente
faço.
Recusando o vosso favor, nem por isso vo-lo agradeço menos; e a prova é
que vo-lo retribuo com estes conselhos, que não serão bons, mas que
evidentemente são desinteressados. Da confiança que mostrastes ter em
mim deriva o meu direito a dar-vo-los.
Aconselho-vos, como acabaes de ver, uma cousa para a qual os estadistas
de profissão olham com supremo desprezo, a eleição de campanario, só a
eleição de campanario, a eleição de campanario, permitti-me a expressão,
até a ferocidade.
Não sei se podereis soffrer o affrontoso ridiculo que anda associado á
doutrina que vos inculco. Eu posso. Em mim este alto esforço é o habito
que resulta do longo tracto. A aguda e graciosa invectiva de deputado de
campanario tem cãs veneraveis. Conheço-a ha muitos annos. Além dos
Pyrenéos andava já em serviço dos ambiciosos, dos officiaes de politica
ha bem meio seculo. Os nossos politicos encartados traduziram-na para
seu uso. É que, assim como traduzem leis, traduzem o mais, postoque, se
me é licito dizê-lo, o façam mal, muito mal, de ordinario.
Indubitavelmente este paiz trasborda de homens grandes, de profundos
estadistas. Aqui o estadista nasce, como nasce o poeta: precede a
escóla: dispensa-a, até. Sou o primeiro em confessá-lo. E a paixão dos
homens grandes, dos profundos estadistas, é a salvação da patria: é a
sua vocação, o seu destino, a sua suprema felicidade. Esses varões
illustres pertencem, porém, ao paiz: é do paiz que devem ser deputados.
Entendem-no elles assim, e parece-me que entendem bem. Em tal caso,
eleja-os o paiz. Quando algum vos mendigar de porta em porta, e com o
chapéu na mão, os vossos votos, respondei-lhe, como os eleitores dos
diversos circulos do reino lhe responderiam, se o são juizo fosse uma
cousa desmesuradamente vulgar:
«Somos uma pobre gente, que apenas conhecêmos as nossas necessidades, e
querêmos por mandatario quem tambem as conheça e que n'ellas tenha
parte; quem seja verdadeiro interprete dos nossos desejos, das nossas
esperanças, dos nossos aggravos. Se os deputados dos outros circulos
procederem de uma escolha analoga, entendemos que as opiniões
triumphantes no parlamento representarão a satisfação dos desejos, o
complemento das esperanças, a reparação dos aggravos da verdadeira
maioria nacional, sem que isto obste a que se attenda aos interesses da
minoria, que ahi se acharão representados e defendidos como se
representa e defende uma causa propria. Na vulgaridade da nossa
intelligencia, custa-nos a abandonar as superstições do nossos páes:
cremos ainda na arithmetica, e que o paiz não é senão a somma das
localidades. Homem do absoluto, das vastas concepções, se a vossa
abnegação chega ao ponto de sollicitar a deputação do campanario, fazei
com que vos elejam aquelles que vos conhecem de perto, que podem
apreciar as vossas virtudes, o vosso caracter. Certamente vós habitaes
n'alguma parte. Se não quereis abater-vos tanto, arredae-vos da sombra
do nosso presbyterio, que offusca o brilho do vosso grande nome. Sêde,
como é razão que sejaes, deputado do paiz. Não temos para vos dar senão
um mandato de campanario.»
A resposta dos eleitores aos estadistas parece-me que deveria ser esta.
A eleição de campanario é o symptoma e o preambulo de uma reacção
descentralisadora, a descentralisação é a condição impreterivel da
administração do paiz pelo paiz, e a administração do paiz pelo paiz é a
realisação material, palpavel, effectiva da liberdade na sua plenitude,
sem anarchia, sem revoluções, de que não vem quasi nunca senão mal. Para
obter este resultado, é necessario começar pelo principio; é necessario
que a vida pública renasça.
Na verdade, a doutrina de que o excesso de acção administrativa, hoje
acumulada, deve derivar em grande parte do centro para a circumferencia
repugna aos partidos, e irrita-os. Sei isso, e sei porque. Os partidos,
sejam quaes forem as suas opiniões ou seus interesses, ganham sempre com
a centralisação. Se não lhes dá maior numero de probabilidades de
vencimento nas luctas do poder, concentra-as n'um ponto, simplifica-as,
e obtido o poder, a centralisação é o grande meio de o conservarem.
Nunca esperem dos partidos essas tendencias. Sería o suicidio. D'ahi vem
a sua incompetencia, a nenhuma auctoridade do seu voto n'esta materia. É
preciso que o paiz da realidade, o paiz dos casaes, das aldeias, das
villas, das cidades, das provincias acabe com o paiz nominal, inventado
nas secretarías, nos quarteis, nos clubs, nos jornaes, e constituido
pelas diversas camadas do funccionalismo que é, e do funccionalismo que
quer e que ha de ser.
A centralisação tem ido até as saturnaes. A jerarchia administrativa
chegou já, por exemplo, a arrogar-se o direito de declarar suspensas ou
em vigor as leis civís e criminaes do reino e a acção dos tribunaes.
Lêde o artigo 357.^o do codigo administrativo e estudae a sua
jurisprudencia, que haveis de ficar edificados. Vêde se algum governo,
se algum grande estadista, saído de qualquer parte, propôs a sua
revogação. Não o espereis jámais.
O poder que pela immunidade do funccionario criminoso, que pelo
monopolio na distribuição de todas as funcções retribuidas, que pela
monstruosa invenção do contencioso administrativo, que pelas mais ou
menos disfarçadas dictaduras, cuja necessidade elle mesmo cria, que por
mil concessões arrancadas á fraqueza ou á condescendencia parlamentar,
acha grandes facilidades para penetrar na esphera dos outros poderes,
deve ir longe na propria esphera. E vai.
Quereis encontrar o governo central? Do berço á cova encontrae-lo por
todas as phases da vossa vida, raramente para vos proteger, de continuo
para vos incommodar. Nada, a bem dizer, se mover na vida collectiva do
povo, que não venha de cima o impulso, ou que pelo menos o governo se
não associe a esse impulso. Entrae, por exemplo, no presbyterio da
primeira aldeia que topardes. Vereis ahi um homem enchendo a pia da agua
benta, apagando ou accendendo as vélas, arrumando os cereaes. É o
governo central. O sacristão, exornado com o titulo pomposo de
thesoureiro, é seu funccionario; é a mão delle estendida até o gavetão
das vestimentas. Esse personagem tem carta pela secretaria de estado.
Isto é impossivel que seja racional, sensato. Essa immensa tutela de
milhões de homens por seis ou sete homens é forçosamente absurda. Deve
haver um dia em que a sociedade, como os individuos, chegue á
maioridade.
Não receeis que a descentralisação seja a disgregação. O governo central
ha de e deve ter sempre uma acção poderosa na administração pública; ha
de e deve cingi-la; mas cumpre restringir-lhe a esphera dentro de justos
limites, e os seus justos limites são aquelles em que a razão pública e
as demonstrações da experiencia provarem que a sua acção é inevitavel. O
ambito desta não deve dilatar-se mais.
A centralisação, na cópia portuguesa, como hoje existe e como a
soffremos, é o fidei-commisso legado pelo absolutismo aos governos
representativos, mas enriquecido, exaggerado; é, desculpae-me a phrase,
o absolutismo liberal. A differença está nisto: d'antes os fructos que
dá o predominio da centalisação suppunha-se colhê-los um homem chamado
rei: hoje colhem-nos seis ou sete homens chamados ministros. D'antes os
cortezãos repartiam entre si esses fructos, e diziam ao rei que tudo era
d'elle e para elle: hoje os ministros reservam-nos para si ou
distribuem-nos pelos que lhes servem de voz, de braços, de mãos; pelo
partido que os defende, e dizem depois que tudo é do paiz, pelo paiz, e
para o paiz. E não mentem. O paiz de que falam é o seu paiz nominal; é a
sua clientella, o seu funccionalismo; é o proprio governo; é a traducção
moderna da phrase de Luiz XIV _l'état c'est moi_, menos a sinceridade.
Não accuso alguem em particular; descrevo um facto geral; não sirvo, nem
combato nenhum partido: pago-vos com a franqueza um pouco rude da minha
linguagem a vossa benevolencia. Se accusasse, accusava-me tambem a mim,
e talvez a vós. Ninguem está acima das paixões, dos preconceitos, das
fórmulas, da indole da sua épocha. Nem sequer, e muito é, os estadistas
o estão, se me é concedido avaliar essas altas capacidades. A carne é
fraca. Sejam quaes forem as nossas aspirações, as nossas theorias, e se
quizerem, os nossos sonhos quanto ao futuro, vivemos no presente, e
quando não nos abstemos da politica, enfileiramo-nos nos partidos, ás
vezes, até, sem o querermos, sem o sabermos. Como tive a honra de vos
fazer notar, a questão da liberdade na sua plenitude e na sua existencia
real está fóra, ou antes, acima dos partidos. Se, conforme creio, a
eleição na qual quizestes que eu tivesse uma parte honorifica manifesta
as vossas propensões para manter o ministerio actual, não se deduz do
que vos digo a necessidade de mostrar propensões contrarias. Por ora não
se tracta senão de adoptar um principio, uma regra, cujas consequencias
verdadeiramente importantes virão mais tarde. Não importa, em relação a
essas consequencias, que escolhaes n'este ou n'aquelle partido: o que
importa é que escolhaes d'entre vós; o que importa é que os circulos
ruraes não obriguem algum homem grande a consummir dez minutos em
procurar no mappa do reino a situação relativa do districto que
representa, e muitas horas em soletrar os nomes romanos, gothicos,
mouriscos, barbaros, que n'esse mappa designam rios, montes, logarejos,
aldeias, freguezias, concelhos, em que nunca ouviu falar. Pelos recostos
das vossas pintorescas montanhas, pelos vossos valles frondosos, pelas
quintas e granjas mais remotas, no campo ou nas povoações, deve habitar
algum amigo de ministerio que mereça os vossos votos. Dae-lh'os, se
entendeis que os homens que estão no poder são menos máus do que os seus
adversarios.
Não me consentindo a brevidade do tempo e a urgencia de outras
occupações expôr-vos todos os motivos por que dou tanta importancia á
doutrina eleitoral que submetto á vossa consideração, não tenho direito
a insistir em que a sigaes com a inabalavel firmeza com que intimamente
creio que a deverieis seguir. N'essa hypothese, se vos apresentarem
candidaturas de individuos extranhos ao vosso circulo, cujo caracter não
possaes avaliar por vós mesmos, consenti em que vos lembre um arbitrio
para não serdes ludibriados. Consultae aquelles que pessoalmente os
conhecerem, mas só aquelles, que, pagando tributos, e não
disfructando-os, viverem no meio de vós ha longos annos do producto do
seu trabalho ou da sua propriedade, e que gosarem de solida reputação de
intelligencia e de probidade. Como homens de bem, e como tendo
interesses analogos aos vossos e confundidos com os vossos, elles não
podem enganar-vos. Escolhei o que elles escolherem; regeitae o que elles
regeitarem. Vença qual partido vencer, tereis ao menos um procurador
honesto; porque todos os partidos tem no seu seio gente honrada.
Escusado é dizer-vos o que n'isso haveis de ganhar.
Depois, quando alguem, que accidentalmente se ache no meio de vós, sem
casa, sem bens, sem familia, sem industria destinada a augmentar com
vantagem propria a riqueza commum, e só porque o seu talher na mesa do
tributo ficou posto para esse lado, se mostrar demasiado sollicito em
nobilitar o vosso voto pela escolha de algum celebre estadista, em que
nunca talvez ouvistes falar, ou em livrar-vos de elegerdes algum máu
cidadão, cujas malfeitorias escutaes da sua bôca pela primeira vez,
voltae-lhe as costas. Padre, militar, magistrado, funccionario civil,
seja quem for, esse homem que tanto se agita, afflicto pela vossa honra
eleitoral, pelos vossos acertos ou desacertos politicos, póde ser um
partidario ardente e desinteressado; mas é mais provavel que seja um
hypocrita, um miseravel, que já tenha na algibeira o preço do vosso
ludibrio, ou que, por serviços abjectos, espere obter, ou dos que são
governo, ou dos que querem fazer o immenso sacrificio de o serem, a
realisação de ambições que a consciencia lhe não legitima, e ácerca das
quaes só podeis saber uma cousa: é que as haveis de pagar.
Permitti-me, senhores eleitores, que termine esta carta, já demasiado
extensa, reiterando-vos os protestos da minha gratidão pela vossa
bondade para comigo, e assegurando-vos que, se me fallece ambição para
acceitar os vossos votos contradizendo as minhas opiniões, sobeja-me
avareza para buscar não perder jámais um ceitil da vossa estima.


MANIFESTO DA ASSOCIAÇÃO POPULAR PROMOTORA DA EDUCAÇÃO DO SEXO FEMININO
AO PARTIDO LIBERAL PORTUGUÊS
1858


Muitos cidadãos de Lisboa pertencentes ás diversas fracções do partido
liberal, movidos por um sentimento de perigo commum, tendo-se congregado
para deliberarem sobre o modo de obviar a esse perigo, que reputam mais
ou menos grave, mais ou menos imminente, mas indubitavel, resolveram
constituir uma associação, que, crescendo e dilatando-se pelo reino,
possa combatê-lo com vantagem. O laço principal d'esta associação
consiste na unidade de idéas, e na unidade de esforços para annullar,
sem sair da estricta legalidade, as tentativas de reacção anti-liberal,
cuja manifestação mais importante é o empenho de transviar a educação
popular, entregando-a a congregações religiosas, não só estrangeiras,
mas tambem regidas por principios oppostos às instituições do estado.
A Associação, desejando firmar bem a sua bandeira, e habilitar o paiz
para a favorecer, ou para a condemnar, ordenou que em seu nome se
publicasse o presente escripto, onde amplamente se exposessem os motivos
da sua existencia e o alvo em que põe a mira.
Os acontecimentos de 1848, que agitaram a Europa, deram origem a
exaggerações e desconcertos, que, ferindo não só os interesses ligados á
manutenção do passado, o que pouco importava, mas tambem, o que era mais
grave, os interesses das numerosissimas classes que unicamente vêem o
progresso no lento e prudente desenvolvimento das idéas e das
instituições representativas, produziram temores que, podendo
justificar-se a principio, não tardaram a ultrapassar os limites do
justo e a precipitar-se n'um systema de reacção, que se confundiu com o
dos partidos anterior e absolutamente adversos á liberdade legitima e
honesta, procedimento não menos absurdo que o d'aquelles que se haviam
declarado inimigos da sociedade.
No meio do estampido das revoluções, das peripecias dos thronos e das
gentes, das luctas e das desgraças publicas, algumas nações, ancoradas
no porto das instituições liberaes, e forcejando pacificamente por
obterem o progresso pelos meios que subministra o governo parlamentar,
haviam-se abstido de se associarem ao movimento revolucionario da
Europa, visto que disso não careciam para assegurar os seus destinos
futuros. Tal fora a Inglaterra, a civilisadora do mundo, esse paiz
modelo, essa terra da nobre raça anglo-saxonia, defensora natural dos
povos livres menos poderosos: taes haviam sido Portugal e a Belgica.
Outras, por um accordo generoso entre o soberano e os subditos, souberam
tirar da grande agitação europêa só as consequencias justas, e vieram
associar-se, emfim, pacificamente ao gremio das sociedades livres. Tal
foi o Piemonte, tão moderado nos dias prosperos, como tinha sido nobre
nos da adversidade, e que a Providencia collocou nos pendores dos Alpes
e dos Apeninos como pharol e ultima esperança da Italia.
Ha annos que estas nações respondem triumphantemente com a eloquencia
dos factos ás accusações da reacção contra a liberdade: ha annos que
apontam a povos que se reputavam mais allumiados do que ellas, e que só
sabemos terem sido ou mais imprudentes ou mais infelizes, a lei moral do
futuro, as condições impreteriveis de vitalidade para as instituições
representativas; isto é, a moderação e a firmeza. Foragidos de todos os
paizes, que no seio dellas tem vindo reclinar a cabeça e respirar a
atmosphera da liberdade, voltando algum dia á patria não esquecerão as
salutares licções que receberam, e amestrarão os menos experientes para
não confundirem o desacato do direito com o direito, a revolta com a
resistencia legitima, a licença com a liberdade.
Protesto vivo contra a reacção, a fórma da existencia politica d'estas
nações devia ser profundamente odiosa aos que sonham na restauração do
passado. Absorvê-las, affeiçoá-las pelo proprio pensamento, desmentir a
sua muda linguagem, era para a reacção um postulado importante. Na
Grã-Bretanha a empreza seria impossivel. Do mar das Hebridas a canal da
Mancha, a luz da liberdade que fulgura no céu da Inglaterra é demasiado
intensa. A reacção ficaria deslumbrada passando além da penumbra do
continente. Mas a Grã-Bretanha, physicamente insulada, podia sê-lo
moralmente, se lhe destruissem as affinidades continentaes que ainda
conserva.
No Piemonte a reacção apresentou-se audaz, e a lucta foi renhida; mas a
firmeza moderada dos poderes constitucionaes tem bastado para a
reprimir. Não evitou a Belgica ser convertida em campo de batalha,
postoque o partido liberal alevantasse energicamente a luva que se lhe
atirava ás faces. A prudencia, porém, de um monarcha verdadeiramente
constitucional, grande pelos dotes da intelligencia, mas ainda maior
pela sabedoria que dá a longa experiencia, impediu até agora que o fogo,
nem sempre latente, se convertesse em assolador incendio.
Portugal não podia fugir á sorte commum. Ha annos que os annuncios da
procella assomavam nos horisontes; que nuvens fugitivas offuscavam os
ares. Não faltou quem o advertisse; mas a advertencia passou
despercebida. Debalde em publicações assás conhecidas se chamou a
attenção do paiz para certas tendencias que se manifestavam: debalde a
imprensa periodica mais de uma vez as assignalou tambem. Foi necessario
para o espirito publico despertar, que essas tendencias assustadoras se
convertessem em actos demasiado positivos e palpaveis, e que, com o
pretexto de se crearem os meios de dirigir melhor a educação publica, se
fizesse uma grave injustiça á moralidade e á intelligencia nacionaes,
introduzindo-se em Portugal mestras estrangeiras, pertencentes a uma
corporação do sexo feminino, que, conservando a sua organisação actual,
é incompativel com as leis e instituições do paiz.
Deste despertar da attenção publica nasceu esta Associação. Não foi o
pensamento de um ou de alguns homens que a creou. Foi uma idéa que
brotara ao mesmo tempo no commum dos espiritos; uma destas illuminações
subitas que o povo tem ás vezes na hora dos grandes perigos. O que se
chama de ordinario o instincto do povo não é senão um raciocinio; mas
raciocinio obvio, simples, claro, accessivel a todos os entendimentos, e
irresistivel para a consciencia de todos. A reacção ameaçava a
liberdade, não só no presente, mas tambem no futuro; dava um dos passos
mais importantes para a conquista, senão da sociedade que é, ao menos da
sociedade que ha de ser. E o partido liberal uniu-se e marchou ao
encontro do inimigo no terreno em que elle lhe apresentava o combate.
De certo que nem todas as pessoas envolvidas nesta deploravel
manifestação dos planos reaccionarios podem com justiça ser taxadas de
favorecerem de proposito deliberado os intentos da reacção. Não tendo
provavelmente estudado a historia dos progressos desta na Europa, dos
seus esforços e artificios, dos seus triumphos e dos seus desastres nos
ultimos trinta ou quarenta annos, deixaram-se embaír pela sua linguagem
devota, pelos seus ademanes modestos, pelo seu apparente zêlo da moral e
da ordem publica. Ignoravam quantas vezes ella tem soltado rugidos de
colera e de ameaça; quantas vezes se tem trahido a si propria, e
revelado o seu intimo pensamento: ignoravam como certos homens, cujo
caracter religioso e austero, e cuja moderação de opiniões politicas
estão acima de qualquer suspeita, tem julgado o partido cujas tendencias
esta Associação é destinada a combater, e que por toda a parte se
manifestam principalmente no desvelado affinco com que esse partido
procura apoderar-se dos animos feminis e de affeiçoar aos seus intuitos
as gerações novas. Cremos que eram nobres e puras as intenções das
pessoas sinceramente liberaes que, sem o saberem, sem o quererem,
ampararam com o seu nome, com a sua bolsa, e com a sua influencia o
pensamento da reacção, ou della se tornaram instrumentos. Mas nem a
respeitabilidade do seu caracter as tornaria infalliveis, ainda em
materias nas quaes fossem mais competentes, nem essa respeitabilidade
póde obrigar-nos a submetter-lhes o nosso alvedrio, a nossa
intelligencia e a livre manifestação das proprias convicções. O nosso
unico dever para com ellas é uma justiça indulgente; é não accusar as
suas intenções, que não o merecem, nem reputar irremissivel o seu erro.
A essas pessoas só pediriamos, quando certos resentimentos infundados
chegassem a acalmar, que reflectissem n'um phenomeno que tem diante dos
olhos; que, digamos assim, as rodeia por todos os lados, e que é de uma
significação indubitabel e immensa. Depois de terem reflectido,
pedir-lhes-hiamos sómente que seguissem, não o que lhes dictasse o peior
dos conselheiros, o amor proprio offendido, mas a voz intima de uma
honesta consciencia.
Existe em Portugal um partido numeroso, dirigido por homens
intelligentes, que ha vinte e cinco annos está organisado e
disciplinado; partido moralmente tão legitimo como o partido liberal,
mas que professa francamente o seu amor exclusivo ao passado, e cujos
escriptores, usando dos fóros de cidadãos de um paiz livre, affirmam ha
vinte e cinco annos perante Deus e o mundo o direito de o não serem, ou,
para melhor dizer, o direito de não se lhes tolerar que o sejam. Na
grande questão agita o paiz, e que nós cremos importar uma grave
manifestação do pensamento reaccionario, ninguem mais do que esse
partido tem mostrado zêlo ardente pela educação peregrina, e por tanto
lançado com mais violencia o stygma de incapacidade moral e intellectual
sobre as pessoas do sexo feminino nascidas nesta terra que possam
dedicar-se ao magisterio. No symbolo daquelle partido, uma adoração
supersticiosa da nacionalidade figurara entre os seus artigos
fundamentaes por vinte e cinco annos; e quando, não esta ou aquella
mulher, mas a mulher portuguesa, em geral, é vilipendiada, amaldicçoada,
condemnada na sua capacidade moral e intellectual de mãe (porque a
educadora é verdadeira mãe da infancia que lhe é confiada), esse partido
apaga aquelle artigo fundamental do velho symbolo, e saúda a invasão
estrangeira! E não a saúda só; declara-a a táboa de salvação das novas
gerações. Não acha que apoderarem-se de orphãos adoptados pela patria
seis mulheres e dous ou tres frades estrangeiros seja um facto
insignificante ou indifferente. É que os homens eminentes desse partido
tem estudado a historia. No seio delle não ha uma voz que se alevante
para protestar contra a suppressão da mais exaggerada sentença do seu
credo; não ha quem não marche alegremente ao combate. No meio das
profundas fileiras do lazarismo, ou do jesuitismo, ou do
ultramontanismo, ou como quizerem chamar-lhe, os vultos liberaes apenas
raramente se descortinam, perdidos entre a multidão dos combatentes que
detestam a liberdade. Sería o partido que sempre se mostrou tão leal,
tão francamente e, não duvidamos dizê-lo, tão nobremente reaccionario,
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