Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 06

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No opusculo repete-se o argumento que por diversas maneiras se tem feito
cem vezes, e que parece impossivel ainda se repita: «Ha--diz-se ahi--no
direito do auctor, as condições essenciaes de qualquer propriedade, a
extensão relativa e a extensão absoluta. Que differença se dá entre o
creador de uma casa e o creador de um livro?»--A resposta é simples e
facil.--«Nenhuma.»--Não tem o auctor do livro o mesmo direito que tem o
da casa de dispor da sua obra?»--A resposta nem é mais difficil, nem
mais complexa.--«De certo.»
Paremos aqui.
Quer o direito de propriedade se realise unicamente, como creio, nos
productos do trabalho intelligente do homem, quer se funde na faculdade
que elle tem de apoderar-se dos objectos capazes de servirem á
realisação dos seus fins racionaes, é certo que a propriedade presuppõe
sempre dous elementos, ou antes dous factores, materia e espirito,
objecto actuado e intelligencia actuando, indispensaveis para a sua
manifestação no mundo real. Esta condição é necessariamente commum a
toda a especie de propriedade: ao livro, como á casa; á alfaia, como á
terra individualisada; ao artefacto, como ao instrumento que ajudou a
fabricá-lo. Para que a sociedade a proteja e os individuos a respeitem,
cumpre que exista no positivo; que os sentidos possam transmittir a sua
existencia ás consciencias para que estas guardem com relação a ella as
respectivas noções do dever. Os direitos em abstractos, puros, existem
no ideal, subjectivamente: em concreto, realisados, só podem existir no
real, objectivamente. A propriedade é a realisação de um direito: só
póde dar-se no concreto, no existente, e não no possivel, no ideal.
Os defensores da propriedade litteraria assentam a machina dos seus
discursos n'uma ambiguidade. Esperem-na sempre quando elles figuram
hypotheses; quando instituem comparações. A confusão do sentido natural
com o metaphorico encerra toda a philosophia juridica da propriedade
litteraria. Ás perguntas, intencionalmente fulminantes, que se fazem aos
incredulos do direito divino dos escriptores, ficam dadas respostas tão
simples como completas. Entre o creador de uma casa e o de um livro
(dizem) não ha differença: um e outro tem igual direito a dispor da sua
obra. Quem o duvida? Mas o que é um livro no mesmo sentido natural em
que empregaes a palavra _casa_, que aliás tambem tem significações
metaphoricas? Um _livro_ é uma porção de parallelogrammos de papel
dobrados e cozidos de certo modo, formando folhas e paginas que
mechanicamente se cobrem de palavras escriptas. A operação, tambem
puramente mechanica, pela qual se repetem, em mil ou duas mil porções
iguaes de parallelogrammos identicos e identicamente unidos, as mesmas
palavras escriptas, constitue o que chamamos uma edição, que é o
complexo de mil ou dois mil _livros_. A propriedade do _livro_ tem todos
os caracteres da outra propriedade. O dono póde dispor dos exemplares a
seu talante, como o ourives póde dispor de cem ou mil colheres de prata
de certo feitio. O direito commum protege-a do mesmo modo; os tribunaes
punem o roubo della como outro qualquer roubo. Os productores de
_livros_ estão perfeitamente equiparados aos demais productores.
A propriedade litteraria é isto? Não, por certo. Se o fosse, a expressão
seria uma tautologia pueril. É cousa mais alta, mysteriosa, que se
bamboleia no possivel, que não habita na terra, e que só desce a ella
para auferir alguns lucros. Pura condescendencia com as fraquezas
humanas. Busquemo-la, a ver se a encontramos entre os mortaes.
É preciso não esquecer nunca o principio de que na constituição da
propriedade intervem sempre, em grau maior ou menor, a intelligencia.
Supposta a theoria da apropriação, não me aproprio de qualquer cousa sem
ter achado pelo raciocinio aquillo para que serve, sem lhe dar pela
vontade um _destino e alma_, na phrase de Hegel[3]. Na theoria
economica, a propriedade nasce sempre do trabalho associado á
intelligencia para produzir um valor, quer a intelligencia e o trabalho
sejam de um individuo, quer sejam de diversos; quer o valor seja de
utilidade quer de troca. Assim, toda a propriedade contém em si um ou
mais actos do espirito que vem incorporar-se, manifestar-se no
objectivo, no real.
Que ha n'um escripto impresso, nisso a que chamamos _livro_ sem figura
de rherica, que não entre nesta regra commum; que tenha alguma cousa
acima ou além della?
Na edição de um escripto ha a idea e a materia, como em todas as obras
humanas: ha multiplicação do objecto livro, como nos productos de uma
fabrica de tecidos ha a multiplicidade das peças de fazenda do mesmo
padrão.
Escuso de repetir o que disse na precedente carta. Não sou eu que
rebaixo as inspirações do genio á altura dos productos da industria: são
aquelles que as medem pela bitola da cousa mais positiva, mais vulgar,
mais vezes apreciada pelo seu valor venal, a propriedade.
Acceitemos a comparação feita pelo auctor do opusculo entre os edificios
e os livros. Nos edificios, como nos livros, ha a concepção geral e as
concepções das particularidades, que vem do espirito, e ha a
incorporação na materia, que vem do trabalho material. Estabelecer
comparações entre o edificio, manisfestação complexa da acção de dous
factores, e o livro, quando se dá a esta palavra um sentido metaphorico
para representar só um dos factores, isto é, as ideas concebidas por
certa ordem e com certas fórmas subjectivas, traduzidas depois, por um
acto material, no objectivo, é a meu ver um triste paralogismo. O que
corresponderia ao exclusivo, a esta especie de estanco, de monopolio de
idéas formuladas no entendimento e depois estampadas no papel, a que se
chama propriedade litteraria, seria, no edificio, o estanco, o monopolio
das linhas e proporções do propecto, da combinação entre a distribuição
das janellas e portas e a dos aposentos, da collocação dos corredores e
escadas, do tamanho e communicações das quadras, dos pés direitos dos
andares, das inclinações dos tectos, das mil combinações, em summa, com
que o trabalo da intelligencia deu _alma e destino_ á pedra, ao ferro,
ao cimento, ás madeiras e aos demais elementos exigidos para a
construcção de um edificio. Equiparado ao homem de letras, o que teria a
reivindicar o edificador da casa sería o exclusivo, o monopolio sobre a
combinação das suas ideas; teria o direito de obstar a que alguem
fizesse outro predio urbano inteiramente irmão do seu, em toda a
superficie do territorio que a lei de propriedade intellectual
abrangesse.
O auctor do opusculo illude-se a si proprio applicando a factos
identicos vocabulos diversos para assim parecerem factos distinctos. «A
differença que ha--diz elle--entre as duas propriedades (a da casa e a
do livro) é que uma _representa_ um objecto unico e _palpavel_; ao passo
que a outra _se manifesta ao publico_ por milhares de exemplares. Porque
_representa_ uma, e _manifesta_ a outra? A verdade é que ambas
_constituem_ propriedade _palpavel_. A que proposito vem ser a casa uma
e os _livros_ mil? Mil peças de chita irman saidas de uma estamparia são
tanto do fabricante, como os mil volumes de uma edição do editor ou
auctor, como a casa do edificador. O dono dos volumes, como o do
edificio, póde doá-los, trocá-los, vendê-los, legá-los, destrui-los;
como o das peças de chita póde ajuntá-las n'um cubo ou n'um fardo, e
alheiá-las, como se alheia um predio urbano ou rural, por qualquer
especie de contracto. A lei reconhece e legitíma todos esses actos de
igual modo. A propriedade movel e a de raiz distinguem-se nos seus
effeitos economicos e portanto no seu modo de ser civil, mas, na
essencia, e em relação ao direito absoluto de propriedade, ha entre
ambas identidade perfeita.
Quanto mais cavamos nas profundezas da propriedade litteraria, mais a
noção della, desse _quid divinum_, escapa á nossa comprehensão.
Apertemos ainda a analyse dos factos; sigamos o escripto impresso nas
suas ultimas evoluções. Commummente o producto producto total da venda
de uma edição distribue-se em tres quotas proporcionaes, uma para as
despesas da publicação, outra para recompensar o trabalho do editor, o
juro do seu capital e do risco, as commissões que paga, etc., outra
finalmente para o auctor. Que vendeu este? Alguma cousa que era producto
do trabalho material dirigido pela intelligencia, como o era o trabalho
do compositor, do impressor, do fabricante do papel, do fabricante de
typos, em que e com que se imprimiu a obra. Supponhamos a edição
esgotada, e o seu valor liquidado e distribuido. Todos os interessados
houveram o producto do seu tabalho; mais ou menos. Questão de mercado,
questão de concorrecia. Parece que a propriedade do producto
desappareceu para todos, porque todos o venderam integralmente. Pois não
é assim. O auctor, em cujo dominio, bem como no dos seus collaboradores,
não resta o minimo vestigio dos mil, dos dous mil volumes completamente
alienados; o auctor que vendeu o que ahi tinha, e o que tinha era o
trabalho de escrever palavras e phrases, dispostas e ordenadas com certo
e determinado intuito, conservou ainda, em virtude da sua propriedade
litteraria, um dominio extrahido da cousa alienada. Não é o _jus in re_;
não é o _jus in rem_; mas é um _jus_ qualquer. Não se manifesta aos
sentidos; não está em parte nenhuma na terra. É um fumosinho que se
elevou do escripto impresso, que se adelgaçou, que se esvaiu no
contingente, no possivel, no ideal, e que está lá.
C'était l'ombre d'un cocher
Avec l'ombre d'une brosse,
Brossant l'ombre d'un carrosse.
Não é de espantar que nós os iconoclastas, os bagaudas da propriedade
litteraria não possamos topar com ella neste mundo sublunar. Os seus
defensores tambem não parecem muito adiantados sobre o assumpto. O
auctor do opusculo fluctua a cada passo: a propriedade litteraria ora
consiste na idéa formulada, ora só na fórma da idéa. Independentemente
da noção da propriedade, que presuppõe sempre a acção do espirito sobre
a materia, do ideal sobre o real, não como possivel, mas como existente,
admittamo-la no subjectivo; supponhamo-la incorporea; supponhamos que o
seu objecto não-objecto é a concepção complexa das idéas antes e depois
de manifestada, e de vendida a sua manifestação feita sobre o papel.
Essa concepção formulou-se n'uma serie de vocabulos e phrases pensados e
não escriptos. Cada vocabulo e cada phrase é o molde, a fórma de uma
idéa simples ou complexa. A concepção disso a que metaphoricamente se
chama uma obra, um escripto, um livro, nada mais é, pois, do que a
juxtaposição, em tal ou tal ordem, das idéas revestidas das suas fórmas
particulares que estão catalogadas no diccionario da lingua para uso
commum. Ainda á luz da mais exaggerada doutrina da subjectividade, e
admittindo que seja applicavel ás fórmas das idéas a theoria de Kant de
que o direito de propriedade é o direito ao _uso exclusivo_
(_Privatgebrauch_) de qualquer cousa que originariamente era do dominio
commum, é evidente que para se ter esse direito á totalidade, quer das
idéas formuladas, quer só das respectivas formulas, é necessario que se
tenha igualmente direito a cada uma dellas. Donde se deduz que qualquer
individuo que usar do termo ou da phrase que outrem já empregou rouba a
propriedade alheia. Levar-se-ha até os apices da subtileza a defensão
desta propriedade inaccessivel e inconcebivel, que vamos seguinte por
entre os nevoeiros do ideal? Deixemo-la ir até lá. Supponhamos que ella
consiste só no acto de ajunctar _successivamente_ (o espirito não póde
operar de outro modo) as idéas formuladas, e cujas formulas (palavras ou
phrases) se acham colligidas no diccionario da lingua. A difficuldade
continua a subsistir e só muda de logar. Dez mil actos desses que serão
necessarios para coordenar o _livro_ (sentido metaphorico) não
constituirão melhor direito do que tres ou quatro. O direito não é
questão de algarismos, nem se mede aos palmos. Quem sobre o papel
repetir tres ou quatro phrases que succedam umas ás outras n'um livro, é
um salteador de estrada. Taes são os absurdos a que a logica nos arrasta
quando vamos collocar a propriedade na abstracção, no ideal.
O auctor do opusculo diz-nos que ficaram para sempre celebres certas
palavras de Lamartine, que transcreve. Triste celebridade. Quanto melhor
fora que o altissimo poeta em vez de se entreter com estas questões, se
dedicasse a illustrar ainda mais o seu nome, dando á França um novo
Jocelyn!--«Ha homens que trabalham com as mãos--diz Lamartine--e ha
homens que trabalham com o espirito. São differentes os resultados, mas
é igual o jus de uns e de outros... Gasta certo individuo as forças em
fecundar um campo: firmaes-lhe a posse delle para todo o sempre...
Consome outro a vida inteira, descuidoso de si e dos seus, para
opulentar o genero humano com alguma obra prima, ou com algum pensamento
que vá transformar o mundo. Nasceu a obra prima: surgiu a idéa;
apoderam-se delias as intelligencias; aproveita-as a industria;
negoceia-as o commercio; convertem-se em riqueza... todos tem jus a
ellas, menos o seu creador... Isto não tem defesa.»
O que não tem defesa é que em tão poucas phrases se accumulem tantos
desacertos. Em que obra humana que tenha um fim racional, e portanto um
valor de utilidade ou de troca, se dá essa distincção completa do
trabalho da intelligencia e do trabalho physico? Preponderará um ou
outro; mas separá-los e omittir um delles, eis o que é impossivel. O que
será facil é determinar as dóses, digamos assim, que a obra ha de conter
de cada um. Para fazer um livro (sentido metaphorico) ou hei de
escrevê-lo, ou hei de dictá-lo. No mundo real é que elle não entra sem o
exercicio dos meus orgãos. Por outro lado, o trabalho physico sem a
direcção da intelligencia não é trabalho: chama-se movimento. O rolar da
pedra pela ladeira, o correr do regato, a agitação desordensada do
febricitante, o estorcer do epileptico, o andar e murmurar do
somnambulo, nada disso é trabalho.--Gasta as forças o individuo que
fecunda o campo--pondera o poeta francês. Mas quaes forças? As mesmas
que gasta o que faz o livro; as do corpo e as do espirito. A charneca ou
o paul não se convertem em vinha, em olival, em folhas de semeadura, em
prados, sem a direcção intelligente do arroteador. Qual custaria a
Matheus de Dombasle mais vigilias, mais cogitações, mais dispendio de
forças intellectuaes; converter o solo ingrato de Roville em modelo
admiravel de boa cultura, ou escrever os Annaes daquella granja
exemplar? Porque não havia de ser exclusivo de Dombasle e dos seus
herdeiros o applicar o systema de transformação e cultura de Roville a
outro qualquer solo? Nada ha mais obviamente inexacto do que affirmar
que o auctor da obra prima litteraria é o unico que não tem direito a
ella. Pois não vende a edição quando a publica; não a reimprimirá
quantas vezes quizer? Não tem a vantagem de poder fazer nova edição
melhorada que mate as edições chamadas contrafacções? Onde e como é elle
excluido do direito de reimpressão? Agora pelo que toca a esse escriptor
que consumiu a vida, esquecido de si e dos seus, só com o intuito de
augmentar o thesouro commum do espirito humano, isso é poesia. Seria uma
entidade capaz de nos subministrar um Jocelyn das letras: no mundo real
é que duvido muito que exista. E se existe, o maior favor que lhe podem
fazer é reproduzir-lhe o escripto. Mais depressa se realisarão os seus
intuitos; os fins da sua incomparavel abnegação; do seu immenso
sacrificio.
Confundir a evolução economica da propriedade movel com as condições da
immovel, e depois argumentar desta para aquella e daquella para esta, é
um dos eternos paralogismos dos defensores da propriedade litteraria. Na
propriedade do campo que o individuo fecundou ha um capital incorporado,
capital de trabalho intellectual e physico, que, associado com a terra e
com a renovação annual do trabalho, ajuda este e as forças naturaes e
gratuitas da terra e da atmosphera a serem productivos. A renda
representa a quota proporcional que no producto corresponde ao capital
incorporado, e não a differença da qualidade da terra, como o pretende
certa eschola de economistas ingleses. Os volumes, porém, de uma edição
de qualquer obra são um producto completamente, forçadamente, movel e
venal: não é possivel convertê-lo em capital immovel sem o transformar.
Vendido o ultimo volume, o auctor póde inverter o preço da edição, no
todo ou em parte, n'uma cousa immovel ou immobiliaria. É o que succede
com outro qualquer producto que constitua uma propriedade movel. Mas o
fabricante principal do livro (sentido natural) não se contenta com
isto; quer gastar até o ultimo ceitil a sua quota do producto, e que
todavia fique uma abstracção, a possibilidade de um acto; a reproducção
contingente do livro (sentido figurado) constituindo uma propriedade
analoga ao capital incorporado no baldio reduzido a solo productivo.
Dizer isto será socialismo? É possivel que eu tenha estado a fazer
socialismo, como mr. Jourdain fazia prosa, sem o saber. O auctor do
opusculo lança a suspeita dessa heresia politica sobre todos os que
combatem com vigor o phantasma de uma propriedade que se reputa capaz de
preço fóra da esphera da apreciação, fóra do mundo real, onde, e só
onde, se movem e actuam os direitos e os valores. Dir-se-hia que
combater o absurdo era cousa defesa antes de surgir o socialismo, e que
foi este que inventou a logica e a severa exposição dos factos. Não
conheço o livro _Majorats Littéraires_ de Proudhon, citado no opusculo,
mas se este combateu ahi a propriedade litteraria, não será por isso que
o senso commum o condemne ás gemonias. Não se me afigura que chamar
socialista a quem discute, que impor um labéu mais ou menos affrontoso
desfaça um argumento, nem que seja demonstração concludente e
irresistivel o affirmar que taes ou taes theorias são más porque são
socialistas, e que o socialismo é mau porque propaga essas theorias. As
escholas socialistas (nem eu sei já quantas são hoje) tem doutrinas
positivas e critica negativa. As doutrinas positivas parecem-me longos
rosarios de despropositos: a critica negativa, embora frequentemente
exaggerada, é a meu ver uma cousa séria. Ha ahi indicações de males
profundos e dolorosos no corpo social, que fazem estremecer as
consciencias; que fazem cogitar tristemente os espiritos liberaes e
sinceros. Não são desses males, por certo, as leis de propriedade
litteraria: são apenas uma fraqueza; são a subserviencia dos poderes
publicos a uma classe preponderante, mas em cujo gremio não é rara a
pobreza, e ainda menos rara a necessidade de se rodeiar de gosos e
esplendores, que muitas vezes accendem a imaginação e inspiram os
arrojos do engenho. Entretanto os damnos que provêm ao mundo da doutrina
da propriedade litteraria, não deixam de ter certa gravidade. O maior
mal é que os livros frivolos, corruptores ou que representam pouco e
facil trabalho são os que ella mais favoneia: o menor é o inconveniente
moral de associar a uma cousa séria, ao complexo de direitos originarios
do homem, uma esperteza sophistica. É por isso que me não permitte a
consciencia, apesar do consenso dos legisladores, ver no réu de
contrafacção um criminoso. Ha, todavia, na sua especulação o que quer
que seja que repugna. Os sentimentos delicados não entram na esphera
juridica, mas tem na sociedade seu preço e valia, e quem os menospreza
faz mal. A usura não é hoje um delicto, porque os interesses legitimos
do capital não se podem determinar _à priori_. A lei justa e sensata
substituiu nesta parte a lei irreflectida. Mas, que homem digno e
honrado deixaria de receber como offensa a qualificação de usurario?
Dos defensores de propriedade litteraria só conheço um que soubesse
evitar a confusão do ideal com o real. Foi Tommaseo[4]. O que pede para
os escriptores é a immunidade, o _privilegio_ de só elles poderem
reimprimir as proprias obras. Eis o que é admissível. Funda-se em razões
de equidade, de conveniencia social, de merecida benevolencia. Se nem
sempre os seus argumentos são concludentes, a maior parte delles são
dignos de attenção.--«Não distingo--diz Tommaseo quasi no começo do seu
opusculo--o pensamento da fórma que o reveste para affirmar que um é
venal, outro não. A fórma é parte viva do pensamento em si; não é cousa
commercial.»--Destroe assim pela base a philosophia jurídica da
propriedade litteraria. Pouco depois prosegue:--«Por certo que se o paiz
podesse recompensar com justiça os escriptos de merito por via de
moderados estipendios, deixando livres para todos as reimpressões, sería
esta a applicação mais nobre dos tributos. Mas onde ha dinheiro para
isso? Onde se acharão os juizes? Para discernir os grandes dos mediocres
(escriptores) seria preciso um congresso dos grandes, e que fossem, além
disso, desapaixonados; um congresso de deuses.»
A doutrina verdadeira é a que Tommaseo indica, e que eu indiquei na
precedente carta; é a recompensa nacional dada ao escriptor que com um
bom livro foi por qualquer modo util á patria. Mas o obice practico
posto pelo critico italiano á realisação da doutrina é igualmente
verdadeiro. Os homens de letras teriam de aquilatar as obras uns dos
outros, e o excesso de indulgencia, ou os excessos de severidade seriam
inevitaveis. Em todos os paizes a classe dos homens de letras está
sujeita, como as outras, talvez mais do que as outras, á violenta das
paixões. As malevolencias que muitas vezes gera a lucta das idéas, os
resentimentos que deixam enraizados no coração as feridas do amor
proprio, a mutua hostilidade das escholas e dos corrilhos, as invejas
roedoras; tudo, emfim, quanto póde viciar as apreciações humanas
actuaria na apreciação do livro. O indefinido progresso da civilisação
trará porventura um estado de cousas em que se torne possivel a
applicação da theoria. Por emquanto, sou o primeiro em reconhecer que
ella é inexequivel.
Entretanto, se nem a recompensa publica é realisavel, nem a invenção de
um direito absoluto e originario de propriedade litteraria é admissivel,
ninguem, por certo, nega a utilidade de favorecer o trabalho litterario
e scientifico, principal elemento do progresso social. Busquem-se os
meios de o fazer. Outros lembrarão melhores alvitres, mas seja-me
permittido propor o que me occorre.
Na minha opinião, o livro deve descer á categoria dos inventos. É esta a
justiça, porque é a igualdade civil. Nessa categoria não ha o direito
absoluto. A propriedade é ahi apenas legal, porque deriva do privilegio,
da lei de excepção (_privata lex_), e portanto existe com as condições e
limites que ella lhe impõe. Nas doutrinas liberaes geralmente recebidas
o privilegio só é legitimo quando se estriba na utilidade publica. É
pois necessario que na propriedade creada pelo privilegio se dê essa
caracteristica. Eis a condição impreterivel de todas as leis que
declararem propriedade privada os inventos, as obras de arte e os
livros. A apreciação para distinguir os uteis dos inuteis, os engenhosos
dos insignificantes, os beneficos dos nocivos, é portanto inevitavel, e
todavia, é justamente neste ponto que surge a mais grave difficuldade.
Como resolvê-la?
O supposto direito de propriedade litteraria domina em todos os paizes
_civilisados_; quer dizer, em todos os paizes onde os que escrevem e
imprimem constituem um poder irresistivel. Esse poder tem actuado nas
relações internacionaes, como nas legislações. Os tractados sobre o
assumpto prosperam a olhos vistos. Nós proprios não podemos esquivar-nos
a celebrar um que pela natureza das cousas era a negação completa da
reciprocidade que nelle se ostentava. Creio tê-lo demonstrado na carta a
que estas ponderações servem de appendice. Quizera eu, porém, que este
accesso de febre diplomatica se aproveitasse para fazer em favor dos
homens de sciencia e de letras alguma cousa mais sensata e sobretudo
mais moral do que uma imaginaria propriedade, que por via de regra dá
maior favor ao livro nocivo ou, pelo menos, frivolo, que ao livro util e
grave.
Na peninsula hispanica habitam duas nações irmans que falam duas linguas
irmans. Navegadoras ambas, descobriram out'ora a America e
colonisaram-na em grande parte. As colonias portuguesas vieram a
transformar-se no vasto e opulento imperio do Brazil; as hespanholas nas
varias e turbulentas republicas que medeiam entre o Brazil e os Estados
Unidos. Como as indoles, a religião, os costumes e as tradições
juridicas das duas nações peninsulares se transmittiram ás suas colonias
de outr'ora, assim as duas linguas são as linguas faladas e escriptas
dessas amplas regiões, onde uma população, já numerosa, cresce
rapidamente. Na Peninsula o português mediocremente instruido lê o livro
castelhano sem sentir mais vezes a necessidade de um diccionario
bilingue do que sente a de consultar o do proprio idioma para conhecer a
accepção de alguns vocabulos ou phrases dos escriptores vernaculos. Por
muito tempo se reputou entre nós luxo litterario escusado um diccionario
da lingua castelhana. Quantos não lêem jornaes e livros dos nossos
vizinhos sem delles se aproveitarem, e ignorando até a sua existencia? O
mesmo succede em Hespanha com a publicações portuguesas. Um hespanhol e
um português, ambos com certo grau de educação, conversam horas
inteiras, falando cada qual no proprio idioma, sem se desentenderem. Os
mesmos phenomenos se reproduzem necessariamente na America. Podem
fazer-se longas e eruditas dissertações sobre a indole diversa das duas
linguas, sobre os elementos varios que intervieram na respectiva
formação e desenvolvimento, sobre as suas distinctas primazias; mas os
factos actuaes, positivos, practicos, observados por todos são estes.
Uma convenção entre os diversos estados onde domina qualquer das duas
linguas resolveria a grande difficuldade e serviria para favorecer as
manifestações superiores da intelligencia, quer nas letras e na sciencia
pura, quer nas boas artes, quer nos inventos. Para isto fora necessario
que em todos elles se considerasse o exclusivo da reproducção como um
direito positivo, instituido a favor do homem de letras, do artista, do
inventor, mas tendo por principal motivo o progresso intellectual, moral
e material da sociedade. A concessão do privilegio representaria então
uma conveniencia social, que lhe daria solidos fundamentos. Em virtude
do tractado, todo aquelle que obtivesse tal concessão na maioria dos
paizes ligados por essa convenção, exceptuado o seu, teria direito de
exigir immediatamente do seu governo o diploma que lhe assegurasse o
respectivo privilegio.
Logo que o auctor ou inventor fizesse reconhecer pelo governo do proprio
paiz o direito exclusivo de reproducção ou a propriedade legal do seu
livro ou invento, em virtude das concessões obtidas, ella deveria ser
mantida no resto dos estados contractantes, embora extranhos á
concessão. As demais provisões do tractado, como por exemplo, o gratuito
das concessões, o encargo imposto aos consules geraes de sollicitarem
_ex officio_ a expedição dos negocios desta especie em que interessassem
os seus concidadãos, dando-se assim a esses negocios um caracter
publico; tudo, em summa, que tendesse a torná-lo de facil e segura
execução seria mais ou menos importante; mas as bases do convenio
consistiriam necessariamente naquellas disposições fundamentaes.
Com esta confederação, com esta especie de amaphyctionia consagrada a
manter a religião do progresso, obter-se-hiam tres grandes resultados em
relação ás letras: 1.^o, tornar quasi impossiveis as apreciações
apaixonadas e injustas, aliás quasi certas no systema das recompensas
nacionaes; 2.^o, deixar neste assumpto á legislação de cada paiz
confederado o seu caracter autonomo; porque, repudiado o principio do
direito absoluto de propriedade, e adoptado o da propriedade legal, a
duração e extensão do privilegio, a escolha dos corpos scientificos e
litterarios ou a instituição de jurys, incumbidos de resolver os
negocios de semelhante ordem ou de propor a sua resolução, as
solemnidades necessarias para se obter a concessão, os meios de se
realisar o exclusivo da reproducção, tudo ficaria a arbitrio dos
legisladores de cada estado; 3.^o, os livros frivolos ou deleterios, que
o direito absoluto de propriedade protege tanto como os bons e uteis e
uteis, e que infelizmente o mercado protege sem comparação mais,
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