Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 05

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de uma auctoridade competente?
Eu já alludi n'outra parte á inexequibilidade do artigo 13.^o, e á
flagrante injustiça que nelle se estatue; mas consinta-me v. ex.^a que
diga ainda algumas palavras ácerca desse deploravel artigo. A
retroactividade das suas disposições é manifesta. A entidade
_contrafacção_ não existia legalmente para nós antes da promulgação do
convenio: os livros franceses reimpressos na Belgica eram o mesmo que os
legitimos: eram o mesmo que os livros italianos, allemães, hespanhoes,
ou ingleses, impressos em Paris pelos summos sacerdotes da religião da
propriedade litteraria. As nossas alfandegas despachavam-n'os como
outros quaesquer: vendiam-se publicamente: compravam-n'os os magistrados
judiciaes e administrativos, os agentes fiscaes, os membros do
parlamento, os ministros da corôa. E todavia, ao exarar-se o tractado,
assevera-se que existiam já detentores de uma cousa que não existia.
Detentores?! Mas esta palavra significa _o que retem o alheio_, e eu que
comprei os meus livros n'um logar publico, á luz do meio dia, perante a
policia, os tribunaes e o governo, sem offender lei alguma, sou um
detentor do alheio? Sou, e não o sou impunemente: a convenção
castiga-me; a convenção impõem-me uma multa a titulo de sello, para me
ensinar o respeito das leis futuras e contingentes. Se possuir mil
volumes belgas, cuja propriedade original se haja justificado como
francesa, custar-me-ha o _delicto_ quarenta mil réis. Isto, sr.
visconde, affigura-se-me que não tem defesa possivel.
Supponhamos que o homem de letras, apesar da escaceza dos seus recursos,
e por causa dessa mesma escaceza, colligiu, á custa de sacrificios e de
tempo, uma collecção de livros uteis, mas baratos, mas dessa
contrafacção que legalmente não existia: supponhamos que não pôde ou não
quis sujeitar-se dentro do praso fatal dos tres meses marcados no artigo
13.^o a estender a bolsa para pagar um tributo que nenhum parlamento
votou: supponhamos mais que a necessidade ou a miseria, que tão
frequentemente visitam o talento e a sciencia n'esta terra, Babylonia do
desterro para o engenho, obriga daqui a seis meses a converter os seus
livros em pão? Não póde fazê-lo. Veda-lh'o a convenção; veda-lh'o a lei
que protege a propriedade das idéas em França, e destroe em Portugal a
propriedade material do pobre homem de letras. Nem se diga que as
disposições do artigo 13.^o se referem exclusivamente aos mercadores de
livros: não é isso que importa o texto, e semelhante interpretação só
serviria para ajuntar a iniquidade á injustiça e á violencia.
O artigo 3.^o relativo ás traducções, ao passo que revela até que ponto
de absurdo se póde levar o principio de propriedade litteraria, é, a meu
ver, sr. visconde, profundamente illogico. Estatue-se ahi a prohibição
de traduzirmos as obras francesas dentro do anno immediato á sua
publicação e ao cumprimento das formalidades que se exigem do auctor
para se lhe garantir o seu chamado direito. Se, passado um anno, elle
não tiver publicado a traducção em português, qualquer a póde fazer. Mas
perguntarei uma cousa: o auctor tem a propriedade do livro: obteve o
titulo legal de posse e dominio: o facto tornou-se indubitavel; e essa
propriedade é sacratissima, quando a outra é apenas sagrada. No fim do
anno acabou o direito? Anniquilou-se a propriedade? Sorveu-a a terra? Em
virtude de que maxima juridica ou moral é auctorisado o traductor
português a assenhoreiar-se do alheio? É porque o auctor nega a Portugal
a utilidade das suas idéas? Mas é alguém, póde alguém ser obrigado a ir
vender o producto do seu trabalho, a sua propriedade, no mercado de um
paiz estrangeiro? Se em Portugal escaceiassem as victualhas durante um
anno, convencionaria a França comnosco que os nossos armadores fossem
aos depositos de cereaes, de legumes, de batatas das suas cidades
maritimas, expirado esse anno, e que, carregando a bordo dos proprios
navios o que lhes conviesse, o vendessem nos mercados portugueses,
tomando para si o lucro? Passe, porém, esta violencia contra a
propriedade sacratissima das idéas, que, na material e profana, sería
intoleravel, impossivel. Recorrer-se-ha ao subterfugio da expropriação
por utilidade publica, e á união hypostatica de portugueses e franceses,
para fazerem bolo commum de progresso e civilisação? Mas, nesta
hypothese, cumpre indemnisar o expropriado: cumpre dar-lhe o equivalente
do que lhe havia de valer a versão do seu livro: é assim que se practíca
ácêrca da propriedade material, onde quer que ella se respeite.
Depois, o ultimo paragrapho deste artigo, deficiente e muitas vezes
inexequivel, manifesta claramente o espirito de industrialismo grosseiro
applicado ás obras da intelligencia, que predomina em toda a convenção.
Previu-se ahi a publicação das obras extensas que se imprimirem
gradualmente aos volumes, ou por fasciculos, para se contar o _anno de
morto_ desde o cumprimento das formalidades legaes ácerca de cada um
desses volumes ou fasciculos. Não se previu, porém, a publicação feita
por uma vez das obras volumosas, e cuja traducção não se poderia
concluir n'um anno. Quanto a estas, o serviço da guarda municipal de
Lisboa não se estende até as ruas de Paris. Não se attendeu, sobretudo,
aos livros de sciencia, entre os quaes ha, não digo obras vastas, mas
simples volumes, mas resumidos compendios, cuja versão daria tanto
trabalho como deu o escrevê-los, e para a qual um anno sería
insufficiente. Não se attendeu, sequer, aos nobres filhos da musas.
Concluir-se-hia n'um anno uma traducção, digna do original, do _Jocelyn_
de Lamartine, ou do _Camões_ de v. ex.^a? O que estão revelando
provisões desta ordem? Que ao exarar-se o tractado se pensava só nesses
escriptos inuteis, frivolos, ephemeros, contra os quaes v. ex.^a com
tanta razão declama; que se pensava só no ignobil industrialismo
litterario que devora a intelligencia e os costumes da França; que se
pensava só nas fabricas parisienses de novellas, dramas, viagens,
comedias, romances, folhetins, physiologias moraes ou immoraes, e não
sei de que outros productos; nas fabricas de Balzac, Sue, Sand, Dumas,
Scribe, Arlincourt e C.^a.
Eis, sr. visconde, as consequencias de um principio falso: cada phase da
sua applicação trahe a vaidade delle. É o industrialismo litterario
português, ainda felizmente balbuciante e debil, atirado para debaixo
das rodas do opulento industrialismo litterario da França. É este o
espirito, a intenção do convenio (não digo a intenção de v. ex.^a, que
se deixou illudir pelo seu amor ás letras); o espirito, e a intenção,
repito; porque o resultado real delle ha-de ser o entorpecimento das
nossas relações litterarias com a Europa, a difficultação da leitura e
do estudo, e os embaraços ao progresso intellectual, e, portanto, á
civilisação do paiz.
Não terminarei, ex.^{mo} sr., sem accrescentar algumas palavras
relativas aos dous documentos publicados no _Diario_ de 7 de novembro
ultimo, a que já me referi, isto é, ao officio de v. ex.^a de 28 de
maio, e á representação de 29 de junho, documentos que se podem
considerar como um commentario á convenção. Ha ahi cousas sobre que eu
desejaria chamar a attenção de v. ex.^a Publicando uma nota official da
alfandega ácerca das importações de livros da França e da Belgica,
affirma v. ex.^a que, á vista della, se conhece ser _insignificante_ o
nosso commercio de livros com este ultimo paiz, excedendo-o _no dobro_ a
importancia do que fazemos com aquell'outro. Mas essa nota diz-nos que a
importação de livros belgas foi em 1849 de 4:267$400 réis, e em 1850 de
4:739$900 réis, o que produz nos dous annos a somma total de 9:027$300
réis. A duplicação desta verba, que deve, segundo a affirmativa de v.
ex.^a, representar a nossa importação de França, é de 18:054$600 réis.
Ora, por essa mesma nota sabemos que a importação do ultimo paiz foi
1849 de 4:878$600 réis, e em 1850 de 6:741$100 réis, o que perfaz um
total de réis 11:619$700. Já se vê, pois, que a opinião de v. ex.^a está
um pouco longe de ser exacta. Lamenta v. ex.^a que as especies
subministradas pela alfandega não sejam de um estatisfica mais
individuada; tambem eu o lamento, mas lamento ainda mais, que v. ex.^a
não quizesse applicar a estes factos a natural perspicacia do seu alto
engenho. É, na verdade, triste que, tractando-se de uma questão
commercial assás grave, se não buscasse averiguar quaes foram as
importações dos ultimos oito ou dez annos. D'ahi se poderia tirar um
termo medio seguro; mas as de tres annos eram rigorosamente
indispensaveis para o calculo ainda mais imperfeito. Os algarismos
relativos a 1849 provam que as importações dos dous paizes são quasi
iguaes, e os relativos a 1850 que as de França excedem quasi um terço as
da Belgica: dos dous factos um tende a mostrar igualdade, outro excesso.
Era, portanto, indispensavel que, pelo menos, um terceiro facto, o facto
do terceiro anno, viesse dar razão a um delles. Mas a questão deve ser
considerada sob um aspecto muito mais importante, que esqueceu a v.
ex.^a Aquelles algarismos representam o dinheiro que démos, e não os
livros que recebemos; representam o nosso passivo e não o nosso activo.
A questão no caso presente é que porções de volumes entraram em Portugal
nesses annos, e não que dinheiro saiu delle. Todos sabem que as
reimpressões belgas custam metade do que custam as edições francesas, e
por isso que, se a Belgica nos levou quatro contos de réis por seis mil
volumes, a França levou-nos oito pelo mesmo numero delles. Á vista do
mappa da alfandega e destas considerações, qual commercio de livros será
mais importante para Portugal, o da França ou o da Belgica?
Se v. ex.^a foi menos exacto na apreciação comparativa do nosso
commercio de livros com esses dous paizes, tambem me parece que,
declarando insignificante o que fazemos com o ultimo, não avaliou
devidamente esta especie de trafico. Transacções de vinte ou trinta
contos de réis sobre algodões fabricados, ou sobre cereaes seriam
insignificantes; sobre gutta-percha ou sobre rhuibarbo seriam não só
importantes, mas tambem excessivas. A importancia de qualquer ramo de
commercio não depende só do valor absolutos das mercadorias. N'um paiz
pequeno, pouco povoado, e onde a instrucção e os habitos de leitura não
se acham diffundidos, a introducção de perto de seis mil volumes
annualmente, que tanto representará o termo medio de 4:500$000 réis que
damos à Belgica em troca de livros, tem alguma significação. Quero que
destes seis mil volumes seja um terço para reexportar, e que dos que
ficam metade pertençam á categoria das obras frivolas e absurdas, o que
talvez seja a avaliação mais justa. Restam dous mil volumes uteis, que
cada anno se espalham no paiz, e que n'um decennio subirão a vinte mil.
Por cinco pessoas que, termo medio, leiam cada um desses volumes no
mesmo decennio, imagine v. ex.^a que somma d'ideas uteis, civilisadoras,
progressivas terão no fim delle entrado em circulação! Será este facto
insignificante? Será indifferente um acto que o destroe, ao passo que
longe de facilitar a importação das edições francesas, a difficulta?
Calcular a importancia de uma mercadoria que se usa sem se consummir,
como se calcularia a sacca de arroz ou a caixa de assucar, é, na minha
opinião, pelo menos uma singular leveza!
V. ex.^a, lançando immerecidamente o desfavor sobre uma parte dos
commerciantes de livros em Portugal, aos quaes nenhum acto criminoso se
póde attribuir, salvo se é culpa negoceiar em objectos cuja importação
até agora nenhuma lei vedava, suppõe, todavia, que ainda haverá nesta
terra _livreiros_ que representem as tradições dos _impressores_
celebres dos tempos passados, como os Craesbecks, os Estevams, os
Elzevirios, os Didots. Não me parece que elles devam apreciar demasiado
essas comparações. V. ex.^a havia de ter algum trabalho em demonstrar,
por exemplo, a moralidade dos Elzevirios, de cujos prelos sahiram tantos
livros ignobeis, e que essas nitidas reimpressões dos escriptores
franceses do seculo de Luiz XIV, feitas _jouxte l'édition de Paris_,
eram padrões levantados por aquelles celebres typographos á sua creança
ardente na religião da propriedade litteraria.
Ha, finalmente, no papel dirigido á Soberana por v. ex.^a uma
circumstancia que, se não fosse a epocha em que v. ex.^a o escreveu
muito anterior á data do meu artigo publicado no _Paiz_, pareceria uma
reprehensão indirecta contra a rudeza (a que sou na verdade propenso)
com que falei do assumpto. Se não fosse o obstaculo da chronologia, eu
imaginara que v. ex.^a me oppunha, como accusação muda contra a rustica
sinceridade com que tractei a questão, o nome illustre do senador
piemontês Cibrario--«cuja reputação liberal e scientifica é, diz v.
ex.^a, tão geralmente reconhecida e confessada entre os nossos
mesmos»--, e que fui encarregado de estipular uma convenção analoga
entre o Piemonte e a França. Na hypothese (que se não dá) de v. ex.^a
oppôr ás minhas phrases rudes e severas a auctoridade d'um nome por mim
venerado, eu diria a v. ex.^a, que se o caracter um pouco intractavel
que Deus me deu me consentisse medir as palavras quando falo de offensas
feitas aos interesses legitimos do meu paiz, não precisaria do peso de
altas reputações estrangeiras para guardar silencio neste caso, quando
tinha em Portugal um nome ante o qual com mais gosto me curvaria--o nome
de v. ex.^a Unem-me a Luiz Cibrario a amizade pessoal, e a
confraternidade de historiadores da mesma eschola, e de membros d'um
mesmo corpo litterario, a Academia das Sciencias de Turin. Reputo-o um
dos grandes escriptores de Italia, e respeito-o como um nobre caracter.
Liga-nos, até, a identidade das ideas fundamentaes das nossas crenças
politicas; a convicção que ambos temos de que a liberdade verdadeira, o
regimen do paiz pelo paiz, sem democracia, sem socialismo, sem repetir
inuteis e tormentosas experiencias, só se realisará pela
descentralisação administrativa e por uma forte organisação municipal;
utopia horrenda para todos aquelles que sabem achar na concentração do
poder, quando lhes cai nas mãos, incognitas doçuras, bem diversas dos
martyrios de que certos utopistas suppoem esse poder rodeiado. Apesar,
porém, de tantas affinidades e sympathias que deve haver e ha entre mim
e o historiador do Piemonte e da Economia Politica da Idade-Media, se a
situação da Sardenha em relação ao commercio de livros era analoga á de
Portugal; se as condições do convenio negociado por Cibrario foram as
mesmas e assentaram sobre os mesmos principios de industrialismo
litterario que caracterisam a convenção de 12 de abril, só me resta
accrescentar que foram dous homens eminentes, em logar d'um só, que no
anno do Senhor de 1851 fizeram, não obstante as mais puras intenções, um
altissimo desserviço ás suas respectivas patrias.
Digo-o, porque estou intimamente convencido de que digo uma grande
verdade.


APPENDICE

Dez annos depois de escripta e publicada a precedente carta, pertencia
eu á commissão encarregada de rever e corrigir o projecto de codigo
civil, que o governo intentava submetter á approvação do parlamente.
Achava-se consagrada nesse projecto a doutrina da propriedade
litteraria, e a commissão acceitou-a sem hesitar, modificando apenas uma
ou outra das disposições tendentes a reduzir a theoria á praxe. Pela
minha parte, abstive-me absolutamente de intervir na discussão, e
limitei-me a declarar que votava pela suppressão completa de todos os
artigos relativos ao assumpto. Esta abstenção era aconselhada pela
prudencia. A unidade de pensamento ente tantos e tão distinctos
jurisconsultos e publicistas fazia-me, na verdade, duvidar da solidez da
propria opinião. O debate sobre o principio que rege no codigo esta
materia poderia ter-me esclarecido, e até convertido, talvez; mas
entendi que se conciliava mal com o meu dever suscitar tal debate. Não
tinha probabilidade alguma de reduzir as intelligencias superiores dos
meus collegas a admittirem como orthodoxa a heresia da mais fraca de
todas as que alli concorriam, e a minha conversão era de tão pouco
momento para o paiz, que não valia a pena de protrahir por causa della o
longo e difficil trabalho da commissão. Continuei, pois, na heterodoxia.
No meu modo de ver, a propriedade litteraria, emquanto reside nas
regiões da theoria, é um paradoxo bom para se bordarem nelle periodos
scientillantes de imagens phantasionas; paradoxo inoffensivo, como o é,
absolutamente falando, um milagre da Virgem de Lourdes ou da Senhora da
Rocha. Mas, bem como o milagre, que só se inventa para fins mundanos, o
paradoxo não deixa de ter inconvenientes se transfundem no positivo, se
o incorporam nas leis. Em tal caso, passam ambos, um a ser negocio dos
sacerdotes do altar, outro a ser negocio dos sacerdotes da imprensa.
Negociar, porém, com milagres ou com doutrinas é sempre mau. Como texto
de orações _pro domu sua_, que incessantemente se reproduzem na
republica das letras com variadas fórmas e côres variegadas, a
propriedade litteraria tem certo valor: como dogma vale pouco mais ou
menos o mesmo que os recentes dogmas do Vaticano. O que, porém, é certo
é que para defendê-lo não faltam, nem faltarão nunca os Ciceros. Achar
um unico Hortensio que o combata, eis o que parece difficil.
Entre os milagres que voltam a habitar entre nós e o novo dogma juridico
precursor dos novos dogmas theologicos ha, todavia, uma differença digna
de notar-se. É que o milagre sabe para onde vai. A propriedade
litteraria é que não sei se conhece para onde caminha. Conceber uma
especie de propriedade que, conforme veremos, escapa á apreciação dos
sentidos; pôr o objecto de um direito fóra do objectivo é attribuir ao
vocabulo--propriedade--um valor por tal modo indefinivel, associar-lhe
uma idéa tão nebulosa, que deixa atrás de si as nebulosidades da eschola
hegeliana. De feito, nem proprio Hegel concebe o direito de propriedade
senão como uma acção da vontade sobre qualquer cousa, que por esse facto
se torna minha, determinando-lhe a destinação substancial, ou que por
indole não tinha[1]. N'uma epocha em que os cortesãos das multidões
chamam como réus ao pretorio do cesarismo analphabeto e lutulento todos
os principios, todas as maximas fundamentaes da sociedade, é perigoso
introduzir na noção clara, precisa, inconcussa da propriedade um desses
gongorismos das idéas abstrusas de que vivem os seus adversarios; é
perigoso que das fendas da sepultura do antigo direito divino brote uma
nova e singular especie desse mesmo direito, e que ao _per me reges
regnant_, mal interpretado, succeda o _per me scriptores scribunt_.
Tinham passado outros dez annos sobre a minha impenitente incredulidade.
Quasi esquecera o debate que o convenio celebrado com França sobre este
assumpto suscitara na imprensa, debate em que a consciencia me fizera
acceitar um papel talvez odioso; o de adversario, não da causa das
letras, mas da causa da industria litteraria.
No fim, porém, de tão largo periodo, uma publicação recente feita em
Paris por um compatricio nosso[2], veio avivar-me a recordação dessa
lucta em que tive a honra de combater com uma das mais bellas e altas
intelligencias que Portugal ha gerado, Almeida Garrett. Li com avidez o
novo opusculo, que o auctor me enviara com expressões mais que
benevolas. Era possivel que ahi surgisse para mim a luz, que por
escrupulo, talvez execessivo, eu deixara ficar debaixo do meio alqueire
na commissão do codigo civil. Infelizmente, porém, o opusculo não
allumiou as trevas da minha impiedade.
Este escripto, vindo após tantos outros relativos ao assumpto, tende
principalmente a propugnar uma idéa que me parece indubitavel, supposta
a existencia de um direito originario de propriedade litteraria. É a
idéa da sua perpetuidade. Todas as legislações que consagram aquelle
singular direito restringem-no, recusando-lhe uma condição inherente a
qualquer propriedade absoluta. O auctor combate vantajosamente as razões
que de ordinario se allegam para tornar incompleta uma especie de
dominio que os seus defensores reputam o mais sagrado de todos. Não era
difficil a tarefa. Já na carta precedente havia eu feito notar tão
evidente absurdo. Indaga depois o auctor as causas por que os
legisladores em todos os paizes estatuem o dominio temporario em relação
á propriedade litteraria, e acha, como origem da contradicção, não sei
que preoccupações; não sei que concessões ao socialismo. Permitta-me o
auctor que substitua a sua hypothese por outra. Eu explicaria o facto
presuppondo que no espirito desses legisladores reinava a mesma
incredulidade que reina no meu. As leis relativas ao assumpto
affiguram-se-me leis de circumstancia ou de conveniencia. N'uma epocha
em que a imprensa exerce immensa influencia na opinião, igual ou
superior á que a opinião exerce em todos os corpos do estado, uma
doutrina, ou antes pretensão, a que, com raras excepções, subscrevem o
commum dos escriptores e que defendem com a energia do proprio
interesse, ha-de forçosamente influir, não direi na consciencia, mas nos
calculos e previsões dos homens publicos. Cede o legislador de mau
grado; mas, de certo, não é ao socialismo que cede. Nas restricções, o
que se revela é a sua repugnancia. Como que diz ao
escriptor:--«aproveita esta ficção de direito, e que a aproveitem os
teus herdeiros. Os herdeiros dos teus herdeiros, esses ser-te-hão
provavelmente desconhecidos e indifferentes: sê-lo-hão tambem para a lei
que te favorece. Toma lá isso, e cala-te.»--D'ahi nasce, a meu ver, a
antinomia; d'ahi o illogico; d'ahi a affirmação de um direito absoluto
para depois se affirmar o transitorio delle.
Achar a negação da propriedade litteraria nas mesmas leis que a
affirmam, e ver nisto uma transacção, uma condescendencia com o
socialismo é, de feito, absolutamente infundado. Ampliar a tal ponto a
noção de propriedade, levá-la para regiões onde ella não cabe, imaginar,
em summa, a realisação do direito no ideal, na abstracção, é que, sob
outro aspecto, póde dar vantagem ás doutrinas philosophicas do
socialismo. A generalisação, que não é senão uma formula do ideal, da
abstracção, é a sua grande arma e a fonte principal dos seus erros.
Porque não transigem com elle os legisladores ácerca de toda a outra
propriedade? É porque toda a outra propriedade é tangivel, real,
positiva, e por consequencia objecto possivel do direito de propriedade.
As leis de propriedade litteraria, consideradas correlativamente á
legislação sobre os novos inventos, longe de conterem o menor vestigio
das exaggerações do socialismo, não chegam sequer a respeitar um dos
dogmas fundamentaes da eschola liberal, a igualdade civil. A idéa
formulada, traduzida, representada no invento é manifestação
perfeitamente analoga á da idéa formulada, traduzida, representada no
livro. Para aproveitarem ao auctor e ao publico, a condição da
reproducção é identica n'um e n'outro. O invento póde ter até exigido
mais trabalho, mais energia intellectual, mais sciencia do que o livro;
e todavia, só por privilegio, isto é, por uma excepção do direito
commum, alcançará ser propriedade, o que radicalmente equivale a não o
ser. Se, porém, o invento é mais humilde; se é apenas o melhoramento
concebido pelo official mechanico em alfaia vulgar, a lei nem sequer o
conhece, nem por privilegio entra na categoria da propriedade. Tudo isto
faz lembrar o _desembargador ou fidalgo da minha casa_ da velha
Ordenação, em questões de adulterio. Propriedade completa na
intensidade, e só incompleta na duração, para os _fidalgos da minha
casa_ das letras e das boas artes; propriedade apenas legal, determinada
pela apreciação, ou o que vale o mesmo, pelo arbitrio do governo, para
uma especie de burguesia, para os homens que não escrevem, mas que fazem
servir as sciencias de applicação aos progressos da civilisação
material; absolutamente não propriedade para as modestas manifestações
dos entendimentos que dirigem e aperfeiçoam o trabalho vulgar e plebeu.
De certo leis de tal indole não são socialistas: não chegam sequer a ser
liberaes, não chegam sequer a ser mediocremente sensatas. Tem a sua
razão de ser na soberania do alphabeto; não a tem na natureza humana.
Até certo ponto o auctor do opusculo reconhece isto mesmo. Na serie das
consequencias inevitaveis que derivam de se attribuir á idéa formulada
ou á formula da idéa, em abstracto, a natureza objectiva de propriedade,
foi logicamente muito além d'aquella em que os legisladores pararam; mas
por fim parou tambem. E parou porque chegava a uma consequencia que
demonstrava por absurdo quanto é van a doutrina da propriedade
litteraria. Depois de reconhecer que o invento, em relação ao direito,
deve entrar ineluctavelmente na mesma categoria do livro, estabelece em
favor do invento addicional uma theoria que, no seu systema, seria o
privilegio da espoliação, embora tente palliá-lo. Desde que a idéa,
completa ou incompleta, realisada por fórma nova, se converta em
propriedade, ficará immovel ou quasi immovel o progresso da civilisação.
Parece isto obvio; mas o auctor do opusculo entende que não passa de um
conjuncto de palavras ôcas. Na sua opinião, o progresso nada padece com
a perpetuidade do dominio em qualquer invento. Basta que a propriedade
páre diante do melhoramento. O melhoramento póde invadi-la sem que o
direito seja offendido. Para isso ha uma condição extremamente simples.
É a de se aperfeiçoar, de se corrigir _sem se copiar_. A condição não
tem senão um defeito: o de ser theorica e practicamente impossivel.
Aperfeiçoar, corrigir, ou melhorar significa manter a substancia ou o
todo, e alterar o accidente ou a parte. Se a substancia e os accidentes
forem completamente substituidos; se as partes de que se compõe o todo
foram totalmente subrogadas, não ha melhoramento: ha uma cousa nova, um
invento novo. Melhorar e não copiar excluem-se invencivelmente. Quando,
para regularisar os movimentos differenciaes, Watt e Evans inventaram os
respectivos parallelogrammos, e applicaram a sua nova idéa ás machinas
de vapor, copiaram-nas como existiam em tudo aquillo que não interessava
a translação do movimento. A substituição do helice ás rodas, na
navegação a vapor, não alterou senão n'uma pequena parte a mais perfeita
construcção dos navios. Nestas, como em milhares de hypotheses analogas,
não se comprehende por que modo, intentado o melhoramento, se evitaria a
copia, isto é, a offensa da propriedade dos inventos.
Se isto é verdade; se é inevitavel que no aperfeiçoamento se reproduza o
que se não altera na cousa aperfeiçoada, a doutrina do opusculo ou
conduz á immobilidade no progresso, ou ha-de levar-nos a negar a
propriedade litteraria que o auctor confessa não ser de indole diversa
da propriedade dos inventos. Se, no livro, bem pensado e bem escripto,
achei uma subdivisão, um artigo qualquer delle a que faltem esses
predicados, não offendo direito algum em corrigi-lo e aprimorá-lo.
Removida, como impossivel, a condição com que se imaginou restringir-me
a liberdade de melhorar, é para mim acto licito reproduzi-lo, depois de
corrigida a parte defeituosa. Mas, em tal caso, onde ficou a propriedade
litteraria? Que se diria daquelle que, possuindo um pequeno mas fertil
campo contiguo a vasto predio rural em que andasse incorporada
improductiva charneca, declarasse que desaggregava esta do predio,
substituindo-a pelo seu campo, e que em virtude desse acto arbitrario,
exigisse uma quantia avultada na renda total da herdade? A logica
forçar-nos-hia a dar razão ao pretensor, se o direito de propriedade
real podesse assimilar-se ao supposto direito de propriedade litteraria.
O auctor começando a defesa deste singular direito parece extasiar-se
diante de uma phrase de Karr com aspirações a agudeza. Ha certa eschola
litteraria, vulgar sobretudo em França, que, se não faz grande consumo
de idéas, vive sempre com grande opulencia de phrases. Não são estes
escriptores os menos ciosos dos seus suppostos direitos. Eis a
phrase:--«É evidente que a propriedade litteraria é uma propriedade»--.
Em consciencia, a agudeza não tinha jus a grandes admirações. Nas aulas
de logica a uma agudeza destas chamam os rapazes _petição de principio_:
entre os homens feitos chama-se-lhe puerilidade. A phrase vale o mesmo
que valeria a seguinte:--«É evidente que a propriedade da quadratura do
circulo é uma propriedade.»
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