Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 04

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cuidadosamente cultivados, só geram espinhos, e as gredas inferteis
produzem messes opulentas, sem nenhum cultivo?
Permitta-me, sr. visconde, que eu duvide da inteireza da sua fé na
doutrina da propriedade litteraria. V. ex.^a cedeu antes a um generoso e
nobre impeto de coração do que a reflectidas convicções. N'uma situação
elevada, v. ex.^a não esqueceu os seus antigos companheiros nesta rude
peregrinação das letras, em que o seu glorioso exemplo foi incitamento a
nós todos. Não se envergonhou de nos estender a mão aos que pouco
podemos e valemos diante dos grandes do mundo. Pensou que uma lei de
propriedade litteraria nos seria grandemente util; util, sobretudo
áquelles que, desvalidos e pobres, vem no verdor dos annos associar-se a
nós os que já podemos chamar-nos os veteranos da imprensa. V. ex.^a não
previu todos os inconvenientes de ordem moral e litteraria que do novo
direito introduzido no paiz podem provir. Mas sejam quaes forem os
tristes desenganos que elle nos traga, nem eu me queixo, nem creio que
ninguem deva queixar-se das intenções de v. ex.^a; dôo-me só, devemos
doer-nos todos de que em materia tão grave falhasse uma tão bella
intelligencia.
O direito de propriedade litteraria, sr. visconde, já existia
virtualmente entre nós nos tempos da censura e da inquisição; já viveu
largos annos nessas más companhias. Aquelle direito vigorava de certo
modo em resultado dos nossos usos administrativos. No seculo XVI ou XVII
os _privilegios de impressão_ creavarn os mesmos factos juridicos que
resultam da lei aconselhada por v. ex.^a A differença estava em ser uma
jurisprudencia que assentava em praxes administrativas e não em lei
geral. Dava-se ao auctor ou editor auctorisação exclusiva para publicar
uma edição de qualquer livro: esgotada a edição, repetia-se igual
concessão, e os que não a tinham ficavam inhibidos de o reproduzir.
Fazia-se mais: almotaçava-se o genero; taxava-se o preço de cada
exemplar. Applicavam-se-lhe as idéas economicas d'então sobre as
transacções do mercado. Já se vê que a theoria de propriedade
litteraria, do industrialismo applicado á missão elevada e pura do
escriptor, não é nova. Succede-lhe o que succede a muitas das
providencias legaes, que, com rotulos trocados, nos andam ahi a carrear
de Londres e de Paris, sirvam ou não para cá.
Foi debaixo desse regimen do _privilegio de impressão_, que um genio a
quem Portugal deve em gloria quanto uma nação póde dever a um homem; foi
com duas edições dos Lusiadas feitas dentro do mesmo anno, e defendidas
pela garantia de obra grossa chamada privilegio, ou propriedade
litteraria, que Luiz de Camões foi morrer entre as angustias da miseria
e do abandono na pobre enxerga d'um hospital. Pouco depois os jesuitas,
imprimindo aos milhares em diversos formatos e typos as _Cartas do
Japão_, lisonjeiando o gosto popular com as narrativas dos próprios
milagres no oriente, mettiam nos cofres de S. Ignacio bons cruzados
extorquidos á credulidade, e, especulando na superstição, faziam as
vezes dos Balzacs e de Kocks, que especulam nas paixões más e viciosas
de sociedades corrompidas e gastas.
Porém--dir-se-há--se essa mesma recompensa, que retribue na razão
inversa do merito, se tirasse ao cultor da sciencia, reduzido a receber
o preço do seu trabalho como simples obreiro; se as concepções uteis e
civilisadoras do espirito; se as grandes e nobres idéas, que encerram os
elementos do progresso futuro, não tivessem premio condigno, as fontes
desse progresso estancar-se-hiam na sua origem; e o homem d'engenho
preferiria o trabalho braçal, que fortifica os membros e prolonga a
vida, ás contensões do espirito que a devoram. D'accordo. Mas, em logar
de estabelecer recompensas, identicas na essencia, na fórma, nas
condições para esforços perfeitamente heterogeneos, que se movem em
espheras absolutamente distinctas, eu concebo e desejo retribuições
diversas para os diversos casos. Pague o mercado o trabalho material;
mas retribua a sociedade a obra do espirito, que não é destinada ao
commodo d'um ou d'outro individuo, mas sim á utilidade commum.
E ella retribue; ha de retribui-la sempre, com leis de propriedade
literaria ou sem ellas; com o poder publico ou apesar delle. Que é a
gloria? Que são a consideração, os respeitos, as distincções com que a
sociedade tracta o homem que perante o seu tribunal deu provas
indubitaveis de talento ou de genio; que collocou algumas pedras no
immenso e interminavel edificio da civilisação? Que é essa voz da
opinião publica, que esmaga tantas invejas, que faz calar tantos odios,
e que os pune com a irrisão, quando ousam manifestar-se; que vos cria
amigos nos logares onde nunca estivestes, entre individuos que nunca vos
viram; que transpõe os mares; que se dilata por toda a parte, em que o
vosso livro fez bater um coração, ou saciou um espirito sedento de
sciencia? Quanto dariam ás vezes os ricos e os felizes e os poderosos
para comprarem ou imporem essas affeições mysteriosas que o escriptor
pobre e desvalido vai despertar, por uma acção invisivel, no seio das
multidões? A consciencia, que vos assegura que tendes tudo isso em grau
mais ou menos subido, recompensa-vos dos vossos esforços intellectuaes.
Vaidade ou orgulho legitimo, essa persuasão é um goso, e o goso é a
causa final de todas as ambições, de todo o trabalho humano. São na
verdade diversas as utilidades que provém da riqueza das que provém do
engenho. Predominam naquellas os commodos materiaes, nestas a satisfação
interior; mas por isso mesmo; tanto n'umas como n'outras, ha a
homogeneidade, a harmonia entre os esforços e as recompensas.
Se v. ex.^a, interrogando a propria consciencia, volver os olhos para a
sua carreira litteraria, ha de forçosamente convir na exacção destas
observações. Quando, por exemplo, um dos dramas, a que não faltou senão
a fortuna de ser escripto em alguma das duas linguas principaes da
Europa, o francês ou o allemão, para ser um dos mais notaveis monumentos
litterarios da nossa epocha; quando _Fr. Luiz de Sousa_ fazia correr as
mudas lagrymas de um auditorio extasiado, ou lhe arrancava ruidosos
applausos d'enthusiasmo, pensava acaso v. ex.^a nas edições legitimas ou
contrafeitas, no honorarios da representação, nas provisões da lei de
propriedade litteraria? Atrevo-me a protestar que não: atrevo-me a jurar
que v. ex.^a se reputava sobejamente pago com sentir-se grande, com
fazer vibrar as cordas da dor e da piedade em tantas almas; com essas
manifestações ardentes que respondiam ao verbo de seu genio, digamos
assim, incarnado n'um espectaculo scenico.
Mas--arguir-se-ha novo--se o trabalho do escriptor é duplo e
heterogeneo, tambem a sua existencia o é. Se a mente o eleva acima do
vulgo; se o illumina mais do que ao vulgo um raio da intelligencia
divina, os seus pés rasgam-se tambem, como os delle, nos abrolhos da
vida. A dor, as privações, todos os males humanos, todas as necessidades
pesam do mesmo modo sobre o engenho. A virtude da abnegação, o animo
para luctar com a miseria e ainda para viver na estreiteza não são mais
communs no homem de letras do que nos outros homens. Limitados a uma
retribuição de ordem moral pelo lavor litterario, e equiparados ao
operario pelo trabalho material, muitos abandonariam o seu ingrato
mister, com detrimento do progresso e civilisação do paiz, e da propria
sciencia. Torno a repetir que concordo plenamente nessa parte. O
remedio, porém, para taes inconvenientes não está na lei de propriedade
litteraria. Creio tê-lo provado. A civilisação de qualquer povo não é um
negocio d'individuos, é uma questão da sociedade, de que depende o seu
futuro: é uma religião que tem ministros, e estes ministros são os
homens de letras ou de sciencia. Se estabeleceis distincções,
privilegios, subvenções para o sacerdocio do culto externo, porque não
haveis de subministrar os commodos da vida, as recompensas, reguladas
pela jerarchia intellectual, para o sacerdocio da imprensa? É por este
arbitrio que as retribuições materiaes se tornam possiveis, não pela
falsa medida da procura commercial. A sociedade, creando uma existencia
aprazivel áquelle que lhe util, não estabelece equações impossiveis
entre as idéas e os cruzados novos; mas proporciona os gosos do
individuo aos gosos que elle lhe deu. Em vez da anarchia deleteria e
repugnante que o regimen da propriedade litteraria produz, e em que o
homem de talento, mas immoral, envenena as multidões para se locupletar,
emquanto o genio de sciencia e consciencia morre de fome, um systema de
recompensas publicas prudentemente organisado traria a ordem e a
justiça, e substituiria o verdadeiro progresso ás orgias intellectuaes,
á veniaga da corrupção moral, resultado infallivel da conversão das
idéas em capital productivo.
O direito de propriedade litteraria! Que aproveita esse direito ao
mancebo desconhecido, em cuja alma se eleva a sancta aspiração da arte
ou da sciencia, e para quem, no berço, a fortuna se mostrou avara? Como
entrará elle nesse mercado do espirito, onde a marca de um nome illustre
é necessaria para se tentarem com vantagem as luctas da concorrencia?
Esse direito, que se diz protector do talento e das fadigas do espirito,
como é que protege os neophytos das letras, aquelles que mais carecem de
protecção? Suppre elle alguma das instituições que realmente fazem
progredir a cultura do espirito humano?
Uma lei de recompensas nacionaes seria a verdadeira lei protectora dos
tabalhos da intelligencia. Nos paizes onde existe a jurisprudencia
introduzida agora em Portugal existem ao lado della fundações
poderosissimas, que são as que suscitam os livros realmente uteis. Em
França o premio Monthyon e os outros analogos, as pensões academicas, as
empresas litterarias ou scientificas do governo, o professorado, os
provimentos de certos cargos destinados, inventados talvez, unicamente
para dar pão aos homens de letras, tem sido os incitamentos mais
efficazes para se escreverem as obras graves e civilisadoras. A lei de
propriedade litteraria, ou antes a lei d'envilecimento, que pendura a
idea no mercado entre o barril da manteiga e a sacca de algodão, essa o
que produz em regra é os taes livros absurdos, frivolos, prejudiciaes,
que, na opinião de v. ex.^a, são quasi os unicos cujas contrafacções nos
subministra a Belgica.
Quando, ex.^{mo} sr., o direito creado neste paiz pelo decreto de 8 de
julho não tivesse contra si as precedentes considerações, e outras que
omitto para não fazer um livro em vez de uma carta, bastaria um facto
para condemnar esse decreto, e conseguintemente a convenção com França,
que, embora anterior, se estriba no pensamento daquelle decreto e fica
sendo um corollario delle. Toda a lei inutil é má, e esta é
inutilissima. Desejaria que se me apontasse uma contrafacção, uma unica,
feita entre nós; um exemplo desses delictos que as provisões do decreto
tendem a cohibir. Se existe, é tão obscuro que não chegou á minha
noticia.
Examinada a pouca solidez de alicerce em que assenta a convenção
litteraria com França, consinta-me v. ex.^a que eu passe a fazer algumas
ponderações ácerca dessa mesma convenção. Não sei se as razões que me
obrigam a considerá-la como um acto diplomatico deploravel tem algum
valor, ou se me condemnam a entrar na categoria dos sophistas, contra os
quaes v. ex.^a quiz prevenir de antemão a Soberana no papel que lhe
dirigiu. Seja v. ex.^a o meu juiz.
Já tomei a liberdade, sr. visconde, de dizer que duvidava da inteireza
da sua fé no direito de propriedade litteraria. Agora começarei por
dizer que não acredito na dos homens d'estado da França, que mandam
sollicitar nos paizes pequenos e atrazados convenções em que seja
sanctificado esse mais que controverso direito. Ha nisto, a meu ver, a
arte vulpina de quem quer fazer triumphar uma idéa em cuja energia e
legitimidade não crê. Se a França estivesse convencida da justiça e
moralidade do principio que pretende introduzir no direito publico da
Europa, não vinha tractar comnosco, nem com o Piemonte: dirigia-se aos
dous grandes focos da imprensa; aos dous paizes seus rivaes na sciencia,
e tambem no industrialismo litterario, a Allemanha e a Inglaterra. Era
caminhar direito ao alvo; era provar uma convicção sincera.
A falta desta convicção deduz-se tambem do exame dos motivos immediatos
do convenio. O que fere sobretudo os interesses da França é a
contrafacção belga: e esse convenio é uma phase da guerra declarada ao
industrialismo litterario da Belgica pelo industrialismo litterario da
França. Os franceses poseram-nos nas mãos, a nós e aos piemonteses, os
riffles dos seus arsenaes, e lançam-nos em atiradores para a frente do
inimigo. Se os homens de estado daquelle paiz estivessem persuadidos de
que a propriedade litteraria é a mais inquestionavel de todas as
propriedades, como a v. ex.^a apraz chamar-lhe, não procederiam assim;
porque o seu procedimento sería indigno de uma grande nação. Segundo a
nova doutrina, centenares, talvez milhares de franceses estão sendo
roubados pelos belgas no mais legitimos e sagrados dos seus haveres.
Bruxellas é o Alger do mundo litterario. Supponhamos agora que este
facto escandaloso se verificava em haveres menos sagrados; que, durante
annos e annos, Lamartine, Dumas, Sue, Thiers, e cem, e mil outros
personagens influentes e respeitados, passando por aquella Achem da
Europa, por aquella horrenda _spelunca latronum_, eram constantemente
desvalijados á porta das hospedarias por grupos dos chananeos
bruxellenses, sem que os magistrados ou a força publica interviessem a
favor dos espoliados estangeiros. Crê v. ex.^a que nesta hypothese a
França nos viria pedir que não comprassemos a matalotagem daquellas
illustres victimas; que fechassemos os nossos portos aos adellos das
margens do Senne? Não. Reclamações instantes, ameaçadoras e violentas
partiriam de Paris para Bruxellas, e fariam entrar o gabinete e a nação
belgas no caminho da moralidade e da justiça. Se essas reclamações
fossem desattendidas, veriamos as esquadras de Rochefort e de Brest
navegarem para a foz do Scalda, e as brigadas francesas passarem a
fronteira. Porque não succede isto n'um caso que se diz mais grave? É
porque os que proclamam em França a sanctidade do industrialismo
litterario não acreditam na validade moral das proprias theorias. O
governo francês, actuado pelas poderosas influencias da imprensa,
desejoso de conciliar a benevolencia dos fabricantes do genero
litteratura, protege pelos meios que póde uma industria importante: e
faz bem. Nós é que não sei se o fazemos, ajudando-o nesse empenho com
prejuizo proprio.
Se á convenção de 12 de abril falta a base moral em que se quis fundar,
falta-lhe ainda mais a base racional e de conveniencia; porque, se á
primeira se pôde dar certa plausibilidade com pretextos e phrases, que
não admira illudam as comprehensões vulgares, quando, até, illudiram a
alta intelligencia de v. ex.^a, não vejo necessidade, circumstancia,
utilidade, ou consideração alguma que favoreça a segunda. Por esta parte
a convenção, sem nos trazer um unico bem, acarreta-nos muitos males,
sobre os quaes, com permissão de v. ex.^a, offerecerei aqui varias
ponderações, além daquellas que já expús no jornal _O Paiz_. As
principaes que então expendi foram, em resumo, que, ainda admittindo que
á fabricação dos livros contrafeitos se associasse um acto immoral,
seria cousa inaudita que uma nação prohibisse a entrada de qualquer
objecto industrial só porque no acto da sua producção concorresse alguma
circumstancia menos conforme com as regras da ethica e do direito; que,
se tal principio se houvesse de estabelecer, sería necessario ordenar um
inquerito moral sobre a industria e o commercio estrangeiros, e fechar
depois os nosses portos a tudo aquillo em que achassemos esse vicio de
origem; que, não se contrafazendo em França os nossos escriptos, nem
comprando aquelle paiz senão por excepção algum livro português
contrafeito ou não contrafeito, não póde haver neste caso reciprocidade
entre Portugal e França; e de feito, n'um commercio puramente passivo,
todo e qualquer tractado, que não seja para o ligar com outro commercio
activo, será sempre inconveniente; que, creando embaraços á diffusão da
leitura em Portugal, a convenção contrariava poderosamente os progressos
da civilisação entre nós; que, pelas condições actuaes do nosso trafico
de livros com o Brazil, para cujo movimento não contribuem só as
publicações portuguesas, mas tambem as reexportações de livros
estrangeiros; o tractado, tornando estas geralmente inexequiveis, longe
de favorecer os auctores portugueses, os privaria em boa parte dos
beneficios da concorrencia no mercado brazileiro; que o sello ordenado
no artigo 13.^o da convenção para legitimar a posse das contrafacções,
não só era injusto, punindo quem comprou na boa fé do direito existente,
mas tambem involvia a imposição de um tributo, que, embora se
considerasse válido como acto da dictadura, traria o absurdo de não
poder ser annullado pelo parlamento, visto achar-se estatuito n'um
convenio feito com um paiz estrangeiro; que, finalmente, esse imposto do
sello era exigido antes de se verificar, pelos meios que a propria
convenção assignala, quaes são os livros contrafeitos, o que o torna
inexequivel. Taes foram as objecções que me occorreram ao escrever o
artigo do _Paiz_, e que não são talvez metade das que poderiam fazer-se
áquelle infeliz tractado, se o comportassem os breves limites das
columnas d'um jornal politico, mas que me pareceram só por si
sufficientes para pensarmos desde logo em remediar um tal erro, apenas
expire o praso durante o qual somos forçados a respeitar a convenção
litteraria.
Entretanto não leve v. ex.^a a mal que n'uma publicação avulsa eu aponte
varias outras provisões dessa convenção que reputo inconvenientes ou
injustas. Move-me a fazê-lo o desejo de não passar aos olhos de v. ex.^a
por um daquelles sophistas contra que v. ex.^a invectiva no papel em que
se congratula com o Chefe do Estado pela conclusão de um negocio, que a
meus olhos é o mais deploravel que ha muitos annos temos concluido com
um paiz estrangeiro, embora a nossa historia diplomatica não seja a mais
gloriosa do mundo.
Considerados em geral os ajustes celebrados entre v. ex.^a e mr. Barrot,
affigura-se-me a mim que v. ex.^a cahiu n'uma singular illusão. A sua
mente era, se não me engano, que esta convenção, ao passo que consagrava
os principios da moral e do direito, fosse favorecer aquelles--«que
trabalham no silencio do gabinete, rodeiados da penuria e da fome tantas
vezes, victimas da sciencia, martyres da civilisação, que não poucas o
tem pago com a vida, que pela maior parte sacrificam fortuna, saude, o
futuro de seus filhos á gloria das letras, do seu paiz, e da especie
humana».--Eis-aqui os que v. ex.^a queria que fossem protegidos por um
tractado que vai ferir os contrafactores, e sobretudo os contrafactores
belgas. Isto dizia v. ex.^a á soberana: dizia-o sinceramente, na minha
opinião, arrastado por um nobre e generoso, embora inexacto, pensamento.
Mas que dizia tambem v. ex.^a ao ministro do reino no seu officio de 28
de maio ácerca deste mesmo assumpto?--«As nossas quasi unicas
importações da livraria belga são de maus livros, de romances absurdos,
de quanto ha mais frivolo e prejudicial na litteratura francesa
contemporanea; pois todos os outros livros, os bons, os uteis, os
civilisadores, directamente os havemos de França, e os lemos nas edições
legitimas, sem prejuizo de seus proprietarios».
Se, porém, v. ex.^a supunha que isto era assim, como é possivel que
associasse o seu illustre nome áquella fatal convenção? Para os
escriptores franceses de livros bons, uteis, civilisadores, é ella
perfeitamente inutil. A sua propriedade, na opinião de v. ex.^a, está
segura e defendida no estado actual das cousas. A quem pois favorece o
tractado? Que propriedade vai elle garantir, admittindo tal propriedade?
A dos maus livros, a dos romances absurdos, a de quanto ha mais frivolo
e prejudicial na litteratura francesa contemporanea. Que triste illusão
foi esta, sr. visconde, que levou v. ex.^a a convencionar favores
exclusivos para a insensatez, para a corrupção e para a immoralidade?
Felizmente por um lado e infelizmente por outro, o presupposto de v.
ex.^a, quanto ás contrafacções da Belgica, não é todavia exacto. Se v.
ex.^a verificasse quaes tem sido no ultimo decennio as importações dos
livros belgas; se examinasse os catalogos dos livreiros de Lisboa, Porto
e Coimbra, comparando-os com os catalogos dos diversos estabelecimentos
typographicos de Bruxellas, convencer-se-hia de que não compramos só
livros maus á Belgica; de que nem sempre o trabalho da imprensa é alli
apllicado ás obras de simples distracção, e de que não raro os prelos
belgas reproduzem os escriptos graves e uteis, postoque, na verdade, em
proporção inferior, e provavelmente mais de uma vez com perda. Mas a
superioridade numerica dos livros inuteis e insignificantes encontra do
mesmo modo nas publicações _legitimas_ de todos os paizes, e é o
resultado, não da contrafacção, mas sim do industrialismo litterario,
industrialismo que as doutrinas da propriedade, mal applicadas ao
pensamento, não fazem senão promover. Ao redor de mim, no momento e no
logar onde escrevo, tenho muitos volumes datados de Bruxellas, que não
me parecem nem insignificantes nem inuteis, e estou certo de que v.
ex.^a me faz a justiça de acreditar que não me entretenho demasiado com
leituras frivolas. Estes livros de edição belga (que por signal não
estou inclinado a mandar sellar, collocando-me assim em manifesta
rebellião) preferi-os por serem mais baratos, circumstancia attendivel
para mim, que não sou abastado, e muito mais attendivel para os que,
menos felizes do que eu, _rodeiados de penuria, victimas da sciencia, e
martyres da civilisação_ tem de cortar pelo necessario á vida physica
para comprarem o alimento da vida immaterial. Para estes quizera eu, não
convenções litterarias que, accrescentando afflicções ao afflicto, lhes
tolham satisfazer a primeira necessidade do homem de letras, a dos
livros, mas instituições que os amparassem na aspera peregrinação em que
vão consumindo a existencia. Quando mancebos desta geração que vem após
nós, e que confio em Deus será a todos os respeitos melhor do que a
nossa, desprezados, esquecidos, e tanto mais desprezados e esquecidos,
quanto mais um nobre orgulho os conserva arredados do grande receptaculo
de corrupções chamado o poder, luctam debalde com a pobreza para crearem
pelos esforços da intelligencia uma situação no mundo! Como eu, v. ex.^a
não ignora quantas vezes essas almas predestinadas, e que annunciam a
este paiz a aurora de melhor futuro, se vêem constrangidas a ir vender
por vil preço ao minotauro da imprensa periodica escriptos imperfeitos,
na lingua, no estylo, no desenho, no pensamento, mas onde centelham as
faiscas do genio. E nós, nós que fazemos tractados, cujo resultado, se
fosse possivel tê-lo, seria grangeiar para os romancistas, para os
poetas, para os especuladores litterarios da França mais uma noite de
orgias, ou os meios de dar mais uma vez por anno verniz nas suas
carruagens, sorrimo-nos das faltas grammaticaes, das incorrecções
d'estylo, dos erros de sciencia dos pobres desvalidos, que nasceram como
nós nesta terra, sem nos lembrarmos de que no seu balbuciar litterario
lhes serve frequentemente de musa a urgente necessidade, quando não a
miseria! Nós, os homens feitos, que temos centenares de contos de réis
para construir theatros, que sejam ao mesmo tempo aleijões artisticos e
escandalos administrativos, e que não temos vinte contos, dez contos,
cinco contos para dar pão aos talentos desafortunados, vamos em troco
d'isso privá-los dos meios d'instrucção; vamos privá-los de livros!
E não exaggero quando assim me exprimo. Prouvera a Deus que exaggerasse!
A convenção litteraria, pelas provisões que encerra, tende a combater,
não em especial o commercio das contrafacções, isto é, dos livros
baratos, mas sim em geral o commercio dos livros. Qual será o livreiro
que não trema das provisões dos artigos 9.^o e 10.^o, e que ouse fazer
encommendas para essa mesma França, que, em vez de prégar sermões aos
belgas, nos manda converter á moral pelo orgam de mr. Barrot? Conforme a
doutrina daquelles artigos, a contrafacção fica equiparada ao
contrabando, e, como meio de verificar e punir o delicto, estatue-se que
quaesquer remessas de livros sejam acompanhadas de um attestado passado
em França pelo prefeito ou sub-prefeito da localidade d'onde se faz a
remessa. Essa attestado deve especificar o titulo, volumes e exemplares
de cada obra. Se na alfandega se achar que uma dellas não vem descripta
no attestado será confiscada, e o livreiro que fez o despacho multado em
oitenta mil réis, afóra as perdas e damnos a que possa ser condemnado
por demanda que sobre isso lhe movam. Estas disposições são
inqualificaveis. Nada mais facil do que escapar ao magistrado francês o
mencionar um dos artigos da remessa no attestado; nada mais facil do que
haver erro na nota dada pelo livreiro francês ao mesmo magistrado; nada
mais facil do que mão inimiga aqui, em França, ou no transito,
introduzir na caixa que contiver a remessa um livro não incluido no
attestado: tudo póde ser, menos ter culpa de contrabando o que tem de
ser multado, espoliado, demandado por contrabandista, que é o livreiro
de Portugal. As minhas idéas de justiça, sr. visconde, ficam
inteiramente baralhadas á vista de taes disposições, na verdade
incomprehensiveis para intelligencias fracas.
Mas o que, sobretudo, me espanta é a severidade de taes providencias
sobre remessas feitas directamente de França. A convenção leva-nos a
rondar os proprios _boulevards_ de Paris para guardarmos a propriedade
litteraria contra os communistas belgas. O objecto do tractado é
exclusivamente manter o chamado direito dos auctores franceses e obstar
aos contrafactores das suas obras: que, portanto, se exigissem na
alfandega facturas que provassem vir a remessa integralmente de França,
e que não se désse despacho aos livros não contidos na factura, ainda se
entende; mas sujeitar o livreiro português a severo castigo, porque
daquelle paiz lhe veio um livro ácerca do qual se não cumpriram lá
certas formalidades, faz crer que também ahi ha belgas. Seria por isso
prudente que o governo francês, antes de guerreiar fóra os
contrafactores, os expulsasse de casa.
O segundo membro do artigo 10.^o não é para mim menos incomprehensivel.
Podem, á vista delle, vir de qualquer paiz a Portugal livros escriptos
em francês. Hão-de, porém, diz a convenção, ser acompanhados de
attestados analogos das _auctoridades competentes_ do paiz d'onde
provém, declarando que são todos publicação original do dicto paiz, ou
de qualquer outro onde as mesmas obras foram impressas e publicadas.
Se a mentira e a fraude podessem ser remedio para alguma cousa, esta
disposição deixaria o caminho aberto para se remediarem em boa parte os
inconvenientes da convenção. Pelo artigo 11.^o a admissão nas alfandegas
depende unicamente do preenchimento das formalidades do artigo 10.^o Só
a contravenção dellas importa o delicto de contrabando, e ao que não fôr
contrabando ha-de dar-se despacho. Se os contrafactores belgas, por
exemplo, se accordassem com as _auctoridades competentes_ do seu paiz,
sejam quaes forem, para os favorecerem, e imitando em tudo as edições
originaes francesas, remettessem para aqui exemplares contrafeitos,
acompanhados do respectivo attestado, dar-lhes-hiam, ou não, despacho?
Mais: embora o auctor francês houvesse preenchido as formalidades dos
artigos 2.^o e 3.^o para garantir a sua chamada propriedade, poderia
elle fazer demandar nunca o livreiro português, ou os agentes da
alfandega, por terem introduzido em Portugal uma contrafacção? Depois,
quem são essas auctoridades competentes para passar attestados na
Belgica ou na Inglaterra, na Italia ou na Allemanha? São todas, ou não é
nenhuma. A competencia vem das funcções atrribuidas pela lei ao
funccionario; e a convenção que estabelece um ponto de direito
internacional unicamente entre a França e Portugal, não dá nem tira
funcções aos magistrados de outra qualquer nação que não interveio nesse
pacto. Como hão-de os nossos agentes fiscaes verificar se o attestado é
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