Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 03

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para ti já não ha salvação. Amanhan, nos teus lanços desconjunctados, no
teu cimento desfeito, nas tuas pedras estouradas, nos teus fundamentos
revoltos, estará escripto á ponta de picareta e de alavanca a palavra
fatal--«a terra!»--extrahida do calvario municipal.
Mas--dir-se-ha--que quereis que se faça ácerca dos monumentos? Que
queremos que se faça?! Que se deixem em paz. Não pedimos museus; porque
estes não são, digamos assim, senão necropoles, em relação á
architectura. Depois, em muitos casos, os monumentos não se transportam,
nem cabem lá. Os fragmentos de um edificio, tirados do seu logar, sem
destino, sem união, são mortos; são cinza e pó de cadaveres. Reunam-se
em bibliothecas e em galerias os livros e os quadros que não foram
roubados, estragados ou abandonados por ignorancia crassissima; mas as
pedras só pedem repouso. Que os representantes do paiz lhe salvem os
seus titulos mais nobres. Haja no seio do parlamento uma voz que se
alevante energica a favor do passado. Essa voz achará eccho em todos os
districtos do reino, porque em todos elles há homens sisudos e peitos
generosos. Appareça uma lei ácerca do assumpto, efficaz pela sancção do
castigo, já que, n'um seculo corrompido e de decadencia, as
palavras--pundonor e gloria--vão insensivelmente passando para o
glossario dos archaismos. Entenda-se, emfim, que nenhum monumento
historico pertence propriamente ao municipio em cujo ambito jaz, mas sim
á nação toda. Por via de regra, nem a mão poderosa que o ergueu regía só
esse municipio, nem as sommas que ahi se despenderam sairam delle só,
nem a historia que transforma o monumento em documento é a historia de
uma villa ou cidade, mas sim a de um povo inteiro. Se, por exemplo, aos
habitantes de Guimarães, de Coimbra, do Porto ou de Lisboa não importa
que desappareçam as mudas testemunhas dos factos que ahi se deram, dos
homens que ahi passaram; se não lhes importa que o viajante vá examinar
os monumentos que os livros dizem existir ahi, e que, achando-os
convertidos em pavimentos das ruas, fuja espavorido temendo alguma
fréchada ou azagaiada, suppondo-se, por illusão momentanea, nos sertões
invios da Cafraria; se não curam da propria reputação, consentindo que
os seus eleitos vão assentar praça posthuma nas extinctas legiões
d'Attila, e que o seu clero se filie na seita dos modernos iconoclastas,
ao menos que o governo e o parlamento não deem ao mundo documento de
igual ignorancia e barbaria, mas acudam ao que ainda resta. Que uma lei
salvadora aposente de vez os picões e alviões e alavancas que tantas
esculpturas tem roçado, tantas campas profanado, tantas columnas
quebrado e tantas torres, muros, ameías, campanarios, arcarias, galilés
derribado e desfeito.


DA PROPRIEDADE LITTERARIA E DA RECENTE CONVENÇÃO COM FRANÇA AO VISCONDE
D'ALMEIDA GARRETT
1851
APPENDICE
1872


Senhor Visconde.--Ha dias que no _Diario do Governo_ se publicaram
varios documentos assignados por v. ex.^a, entre os quaes um, cujo
verdadeiro nome e indole ignoro pela minha pouca noticia dos ritos
diplomaticos e formulas officiaes. Neste documento, no meio de graves
ponderações dirigidas á Soberana por v. ex.^a ácerca da convenção
recentemente celebrada com a republica francesa, vem citado o meu nome
em abono, se não daquella triste convenção, ao menos do decreto que
creou e legitimou em Portugal a propriedade litteraria. A honra que v.
ex.^a me faz citando o meu nome, e citando-o conjunctamente com o do
illustre Silvestre Pinheiro, exigiria da minha parte o mais vivo
reconhecimento, se eu podera acceitá-la. Infelizmente prohibe-m'o a
consciencia. Enganaria os meus conscidadãos; enganaria a v. ex.^a, se
com o silencio désse a minha fraca sancção á doutrina da propriedade
litteraria, a qual considero mais que disputavel, ou á convenção com
França, que, além de consagrar opiniões que reputo profundamente
inexactas, é prejudicialissima por diversos modos aos interesses da
nossa terra. E torna-se tanto mais indispensavel esta minha
manifestação, quanto é certo que, não só em conversações particulares,
mas tambem pela imprensa, desapprovei altamente a feitura desse ruinoso
convenio. N'um jornal, em que eu collaborava, appareceram varias
considerações, que supponho não serem de desprezar, contra os ajustes
celebrados com França a semelhante respeito. Essas considerações eram
minhas: adopto-as hoje, como então as exarei, sem lhes ajunctar a minha
assignatura, porque um nome não dá nem tira força a um raciocinio, e um
absurdo não fica mais ou menos absurdo quando é ou deixa de ser adoptado
por um engenho grande ou pequeno. Todos sabiam que o artigo do _Paiz_
contra a convenção litteraria era meu: foi, até, por isso,
accidentalmente me constou a publicação do papel dirigido por v. ex.^a a
S. M. a Rainha; foi por isso, e só por isso, visto que nunca leio o
_Diario_, e nomeiadamente a parte official, com temor de chegar a
esquecer a grammatica geral, e a indole e propriedade da nossa lingua.
Por alguem, que suppôs ver ahi uma refutação do que eu tinha escripto,
soube da existencia de tal papel, que, no entender dessa pessoa,
affectava com arte ser uma especie de prevenção contra objecções
futuras. Busquei o _Diario_, e desenganei-me de que haviam dado ao
documento uma interpretação inexacta e malevola. Lendo-o, convenci-me de
que a alta razão de v. ex.^a reluctava contra a obra fatal do convenio,
e de que a voz dos sophistas, que v. ex.^a suppunha ouvir do lado do
futuro, era a da propria intelligencia, que condemnava a illusão em que
se transviara. Tentando persuadir a Soberana, v. ex.^a, sem talvez o
saber, persuadia-se a si proprio. Era malevola e injusta, portanto, a
significação que se dava áquelle e aos outros documentos publicados no
_Diario_ a este proposito. Se v. ex.^a intentasse refutar as
considerações do _Paiz_, te-lo-hia feito directamente, francamente,
lealmente: sobejam-lhe para isso recursos. V. ex.^a teria apreciado as
razões dos que condemnam a convenção, e não se limitaria a qualificá-los
de sophistas, sem mostrar que o sophisma estava do lado delles. V. ex.^a
é uma intelligencia demasiado superior, para não recorrer a essa pobre
argumentação _ad odium_, de que contra mim mesmo a hypocrisia ignorante
e irritada ainda ha pouco tempo deu nesta terra tão deploraveis
exemplos. Só nas circumstancias em que v. ex.^a escrevia, quando a
imprensa não tinha interposto o seu voto sobre a materia, e quando v.
ex.^a estava provavelmente persuadido de que ás doutrinas em que se
funda o tractado e ás provisões delle se não opporiam senão sophismas;
só nessas circumstancias, digo, v. ex.^a poderia empregar as duras
phrases com que condemnou os adversarios possiveis da convenção
litteraria.
Persuadido de que isto era assim, e de que os termos geraes, em que v.
ex.^a se expressava, não destruiam na minima cousa as minhas posteriores
observações, eu teria evitado o para mim, por muitas razões,
ingratissimo trabalho de escrever a v. ex.^a sobre o assumpto, se v.
ex.^a me não houvera, até certo ponto, chamado á auctoria sobre a
doutrina que serve de fundamento tanto ao decreto de 8 de Julho, como á
convenção, que se reputa seu corollario. Mas, podendo concluir-se das
palavras com que v. ex.^a quiz honrar-me, que eu commungo nas suas idéas
sobre a propriedade litteraria, o que não sería exacto, devo rectificar
os factos a que v. ex.^a allude, e expôr depois as duvidas que tenho
contra a legitimidade das doutrinas de v. ex.^a nesta materia, bem como
os inconveniente que, na minha opinião, resultam para Portugal da
applicação de taes doutrinas á feitura do tractado ou convenção, em que
v. ex.^a foi um dos plenipotenciarios.
Diz v. ex.^a que eu e Silvestre Pinheiro tinhamos approvado e
aperfeiçoado o trabalho de v. ex.^a sobre o direito de propriedade
litteraria, o qual hoje se acha convertido em lei do reino. Pelo que me
toca, posso assegurar a v. ex.^a que de tal approvação e aperfeiçoamento
não conservo outra memoria que não seja a seguinte: estando eu e v.
ex.^a na camara dos deputados na legislatura de 1840, tinha v. ex.^a
apresentado um projecto de lei sobre aquella materia. Pertencia eu á
minoria da camara, e no seu zelo por fazer passar uma providencia, que,
sinceramente o creio, reputava util e justa, v. ex.^a teve a bondade de
falar comigo e com outros membros da opposição, para que não a
fizessemos a esse projecto sobre que ía deliberar-se. D'entre os
individuos com quem v. ex.^a tractou o assumpto, recordo-me de quatro,
dos srs. Soure, Ferrer, Marreca e Seabra, o ultimo dos quaes, conforme
minha lembrança, reluctou antes de acceder aos desejos de v. ex.^a Eis a
memoria que conservo de semelhante negocio. Se v. ex.^a me mostrou então
o seu projecto, e se eu lhe propús a alteração ou o accrescentamento de
algum artigo, nem o affirmo, nem o contesto. São cousas que
completamente me esqueceram. Mas, se o fiz, que se deduz d'ahi a favor
ou contra o pensamento da lei; a favor ou contra o direito de
propriedade litteraria? Esses additamentos ou observações podia
submettê-los á consideração de v. ex.^a, acceitando hypotheticamente a
doutrina, sem a fazer minha; podia propô-los em attenção ao
desenvolvimento logico do projecto, ou ás circumstancias externas que
devessem modificá-lo, sem adoptar a idéa geradora delle. Se, porém, v.
ex.^a quer que por esse facto eu mostrasse seguir então as idéas de v.
ex.^a, declaro que sou agora contrario a ellas, e demitto de mim
qualquer responsabilidade que de tal facto, se o foi, possa provir-me.
Dez annos não passam debalde para a intelligencia humana, e eu não me
envergonho de corrigir e mudar as minhas opiniões, porque não me
envergonho de raciocinar e aprender. O que me traria o rubor ás faces
seria alterar doutrinas e crenças para promover os meus interesses;
duvidaria, até, de o fazer, se tal mudança, por caso fortuito, se
ligasse com vantagens para mim. Mercê de Deus, nessa parte tenho sido
feliz. É desgraça que ainda me não succedeu.
Permitta-me v. ex.^a que, antes de lhe expôr as duvidas que tenho ácerca
da propriedade litteraria, eu invoque, para desculpar a minha descrença,
o scepticismo d'uma das primeiras intelligencias de Portugal neste
seculo, que é v. ex.^a mesmo. Parecendo sustentar como incontroversa a
doutrina que serviu de fundamento ao decreto e á convenção, affirmar que
a moral e o direito seriam offendido se essa doutrina não se reduzisse á
practica legal, equiparar a contrafacção á fraude, ao roubo e á
falsificação, considerar como blasphemos e sophistas os que duvidam da
legitimidade moral da sua theoria, v. ex.^a assevera, comtudo, que não
estipularia definitivamente o artigo 8.^o do convenio, que fere os
interesses provenientes da contrafacção, nem as mais provisões que delle
se deduzem, se não houvera verificado que era minima a somma das nossas
importações de livros da Belgica. V. ex.^a, consinta-me dizê-lo,
calumniar-se-hia a si proprio se houvessemos de dar a estas proposições
encontradas um valor absoluto. Se v. ex.^a estivesse perfeitamente
convencido das nequicias e immoralidades que lhe apraz atribuir á
contrafacção, e da legitimidade _sacratissima_ que presuppõe na
propriedade litteraria, v. ex.^a não poderia hesitar na estipulação do
artigo 8.^o, fossem quaes fossem os proveitos que tirassemos da sua
eliminação; porque nas doutrinas indisputaveis de moral e de justiça
quem é capaz, não digo de deixar de proceder em conformidade d'ellas,
mas sequer de hesitar, é tambem capaz de trahir o seu dever, e v. ex.^a
nunca por certo o seria. Se v. ex.^a, para resolver o negocio, julgou
opportuno examinar a questão d'interesse, para admittir ou repellir o
artigo 8.^o da convenção, cumpre-me acreditar que reputava duvidosa a
legitimidade da sua doutrina.
Examinemos a essencia dessa doutrina.
O que é o direito propriedade? É o direito transmissivel de possuir e
transformar um valor creado pelo trabalho do que o possue, ou
transforma. Esse direito complexo existe desde o momento em que o homem
applicou o trabalho intelligente á materia, e creou assim um valor. As
modificações, os limites que a sociedade lhe impõe vem da indole e das
necessidades della; não são inherentes ao mesmo direito.
A propriedade litteraria (abstrahindo das obras d'arte para simplificar
a questão) não póde ser senão o direito sobre um valor creado pelo
trabalho dos que o crearam; sobre a representação material da idéa;
porque esse valor está ligado a um objecto que se chama o _livro_, na
accepção vulgar e sensivel desta palavra.
O que é o livro? Um complexo de phrases unidas entre si para
representarem uma certa somma de idéas, fixadas no papel para se
transmittirem á intelligencia, e repetidas certo numero de vezes para
aproveitarem a muitos individuos; mas para aproveitarem ainda mais ao
auctor.
Como nasce o livro? Pelos esforços combinados do escriptor, do
capitalista que empregou o capital para a sua publicação, do fabricante
de papel, do compositor, do impressor, etc. São estes esforços junctos
que criam o valor do livro, valor que, antes ou depois de trocado, se
reparte pelos que trabalharam em creá-lo.
Qual é a parte que pertence ao auctor nesse complexo de esforços? A
correspondente ao seu trabalho, no sentido vulgar da palavra, porque só
o trabalho material, embora dirigido pela intelligencia, como todo o
trabalho productivo, póde crear verdadeiramente um valor de troca. Esta
quota, indeterminada em si, é fixada em cada um dos casos pelas
convenções espontaneas e livres entre os individuos que concorreram para
a existencia do valor venal que o livro representa.
Como se procede ordinariamente nessa operação economica? O editor, seja
o proprio auctor, seja pessoa diversa que subministre o capital,
retribue o trabalho de todos os outros individuos e realisa o valor da
mercadoria, conjunctamente com a renda do capital, por meio da venda.
Todos esses esforços e factos economicos que delles derivam foram
calculados, avaliados. A totalidade dos exemplares de qualquer
publicação representa a totalidade desses diversos valores; é
determinada por elles e determina-os ao mesmo tempo, porque ha uma
condição extranha que a restringe, a das probabilidades maiores ou
menores da procura no mercado.
Estas phases que se dão na industria dos livros, na sua fabricação e
commercio, são as mesmas que se dão n'outra qualquer industria. As leis
civis que a protegem devem, portanto, ser as mesmas que protegem as
outras. A igualdade civil não consente que sejam nem mais nem menos.
O direito de propriedade litteraria, como v. ex.^a o entende, cria,
porém, um valor ficticio para crear uma propriedade que não o é menos.
De feito, o que é que se transfere de uma edição para outra? Unicamente
as idéas, as phrases, as palavras, combinadas deste ou daquelle modo.
Pois isso póde ser propriedade de ninguem? Menos ainda, se é possivel,
que o ar, o calorico, a chuva, a luz do sol, a neve, ou o frio. Como
cada um destes phenomenos naturaes, essas idéas, essas phrases, essas
palavras podem ser uteis; mas a _utilidade_ não é o _valor_; porque nada
d'isso é susceptivel de uma apreciação de troca. O professor, por
exemplo, não vende as suas doutrinas e as formulas com que as exprime;
vende o tempo e o trabalho que emprega em ensiná-las; vende o tempo e o
trabalho que emprega em ensiná-las; vende o tempo e o trabalho que
consumiu em adquiri-las. O discipulo que as ouviu uma ou mais vezes, e
que as decorou, póde ir repeti-las, ensiná-las a outros, sem que ninguem
se lembre de o considerar como um contrafactor. Onde está a razão para
se darem naturezas diversas á concepção escripta e á concepção falada? A
lei, para ser logica, deve prohibir a repetição do discurso proferido
seja onde fôr, na cadeira, no pulpito, nas assembléas consultivas e
deliberantes, uma vez que o acto da repetição possa produzir lucro. Se a
idéa que se manifesta se torna pelo simples facto da manifestação uma
propriedade, é preciso que assim se verifique sempre e em todas as
hypotheses; porque a qualidade de escriptor não dá a ninguem melhor
direito do que ao resto dos cidadãos.
Permitta-me v. ex.^a que eu procure um exemplo onde se possa bem sentir
o diverso modo por que cada um de nós concebe a questão. Um individuo
quis edificar uma habitação mais ou menos sumptuosa, mais ou menos
commoda, para negociar o predio depois de acabado. Chamou um architecto
e ajustou com elle retribuir-lhe o desenho na proporção do lucro da
venda. O architecto delineou o edificio: o edificador reuniu o cimento,
a pedra, as madeiras e os outros materiaes para a edificação. Veio então
o mestre d'obras com os seus obreiros: lançaram-se os fundamentos;
altearam-se as paredes; travaram-se os madeiramentos; assentaram-se os
tectos; dividiram-se e adornaram-se os aposentos; pôs-se, emfim, remate
ao edificio. Vendeu-se este depois, e o architecto recebeu a retribuição
do seu trabalho. Em rigor que tinha elle feito? Manifestara o seu
pensamento; escrevera um livro, e imprimira-o n'um unico exemplar, para
haver uma quota, proporcional e livremente ajustada, do producto da
venda desse exemplar. Quanto a mim, recebida esta quota, a especie de
co-propriedade que elle tinha no predio cessou. O comprador podia fazer
reproduzir o edificio tal qual n'outra ou n'outras partes; podiam
reproduzi-lo todos que o vissem. Se, porém, fosse verdadeira a doutrina
de v. ex.^a era necessario que se chamasse o architecto a cada nova
edificação que se emprehendesse, e que de novo se lhe pagasse o desenho,
como lho pagara o primeiro emprezario. A theoria da propriedade
applicada ás manifestações da intelligencia para ser lógica comsigo
mesma tem de ir até o absurdo. E senão, imaginemos outras hypotheses.
Um marceneiro ideou uma cadeira elegante e commoda; deu depois
existencia e vulto á sua concepção, fabricando uma duzia ou um cento de
cadeiras, em que essa concepção se manifestou, e vendeu-as com um lucro
mais ou menos avultado. Os que crêem na propriedade das idéas devem
invocar o direito de propriedade para a concepção do marceneiro, porque
o marceneiro é tão cidadão como o escriptor: devem declarar contrafactor
outro qualquer individuo da mesma profissão, que, vendo a procura no
mercado daquella fórma de moveis, os imitou sem licença do inventor; sem
lhe pagar o preço da idéa, o preço da sua propriedade intellectual.
Um cultivador, á força de observações e de meditação, tendo unido ao
estudo da sciencia de agricultar o da natureza do solo e das condições
do clima em que habita, achou emfim um systema de rotação e um methodo
de cultura muito mais perfeito que o dos seus vizinhos. Esses methodo e
systema, applicados á terra, produziram-lhe, em vez de dez sementes,
vinte; em vez de uma colheita annual, duas. Os vizinhos, convencidos da
utilidade das idéas do cultivador, applicaram o novo systema de rotação,
o novo methodo de amanhos aos proprios campos: _contrafizeram_ o livro
do lavrador, escripto a ferro de charrua nas vastas paginas da terra.
Venha uma lei que véde este attentado contra a propriedade sacratissima
das idéas.
E essa lei protectora que se estenda a tudo quanto o espirito humano
póde conceber: prohiba-se a luz que o trabalho da intelligencia derrama
no meio da sociedade, e que se chama a civilisação; annulle-se a obra de
Deus que pôs no mundo os homens summos como apostolos da sua sabedoria
eterna, como instrumentos da sua providencia; neguem-se os destinos de
perpetuo progresso, que são os do genero humano, e cujo mais poderoso
mobil é a imitação, se essa luz, se essa civilisação, se esse progresso
não for comprado na praça publica; se não se respeitar o direito da
propriedade litteraria, que não é, que não póde ser senão o direito de
propriedade das idéas manifestadas, não importa com que formulas;
materialisadas, não importa por que meio, nos objectos sensiveis.
Todavia, dir-se-ha, o trabalho dos auctores com essa protecção dada ao
livro só como uma especie de manufactura para que elles contribuiram,
não fica dignamente retribuido. Depois, não é isso fazer descer o homem
de talento ao nivel do rude obreiro? Não é envilecer o nobre mister de
escriptor? Absurdo tudo isso! Desde que pondes a retribuição do engenho
á mercê da procura no mercado, é necessario que elle se submetta ás
condições do mercado. Quem o reduz unicamente à qualidade de fabricante
de livros sois vós com as vossas leis de propriedade. Se o quereis
recompensar como é recompensado o lavrador, o industrial, não exijaes
para elle um direito diverso. O auctor de um volume, que custou um anno
de trabalho, realisada a venda de mil exemplares que se imprimiram,
lucrou, supponhamos, 300$000 réis. Que meio tendes para verificar que o
seu trabalho não está pago? Que outra cousa, senão o mercado, regula o
valor dos serviços? Quem vos disse, que, attribuindo ao auctor o direito
exclusivo de reimprimir o livro, elle ou seus herdeiros, tantas vezes
quantas o exigir a procura, durante a sua vida e mais trinta annos
depois da sua morte, nem mais um mez, nem menos um mez, é que a
retribuição correspondeu ao lavor? Onde está a vossa balança, o vosso
metro? Respondei.
E cabe aqui repetir uma observação a que por parte dos defensores da
propriedade litteraria nunca se deu resposta que tivesse o senso commum.
Se as idéas e as phrases de um livro constituem uma propriedade, um
valor, um capital accumulado e fixo; se esta propriedade é sacratissima,
ou por outra, se é sagrada entre as mais sagradas, porque lhe recusaes a
vantagem que o direito assegura sem excepção a todo o outro capital
accumulado e activo, a perpetuidade? Porque espoliaes os herdeiros do
auctor no fim de trinta annos? O capital não se consummiu, porque o
livro ahi está. Em virtude de que principio moral ou juridico hão-de
elles ser privados de uma herança sacratissima? Em virtude da utilidade
publica? Mas as expropriações de outra qualquer propriedade menos
sagrada, em proveito commum, por mais remota que seja a origem desse
capital accumulado, pagam-se. A expropriação publica não é mais do que
uma troca regulada, como todos os valores, pelo preço do mercado.
O que me parece ineluctavel, sr. visconde, á vista destas ponderações, é
que o escriptor, ao mesmo tempo homem de trabalho e evangelisador da
civilisacão e do progresso, exerce na terra um duplicado mister. Na
feitura de um livro ha dous phenomenos distinctos: um material, outro
immaterial. O material é o lavor visivel que essa feitura custou. O
auctor consumiu horas e horas sobre os livros, emprehendeu viagens,
trabalhou nos laboratorios, revolveu bibliothecas e archivos, penetrou
nas minas e subterraneos, herborisou por valles e serras, observou os
ceus, sondou os mares, e depois, encerrado no seu gabinete, durante dias
inteiros, no ardor da canicula; durante longas noites nos rigores do
inverno, ennegreceu o papel com a traducção visivel das reflexões ou dos
factos que o seu espirito havia coordenado. Em todas estas occupações,
em todos estes phenomenos exteriores não houve da parte delle senão a
obediencia á lei commum do genero humano; a condição do trabalho imposta
a nossos primeiros paes. Exteriormente, a sua situação é a mesma do
official mechanico, que, depois de cinco annos de aprendizagem, obteve
meios de trabalhar de sol a sol para ganhar um salario. Nenhum principio
de moral, de justiça lhe dá melhor direito que ao operario que funde o
ferro, que acepilha a madeira, que ara a terra. Sob este aspecto, a
sociedade nada mais lhe deve do que as garantias da retribuição do seu
trabalho dentro das regras ordinarias de apreciação. Ao lado, porém, de
esforços grosseiros houve outros immateriaes e inapreciaveis pela
craveira commum. São os da cogitação, da inspiração, do genio; são os
que elevam o engenho acima do vulgo; são os que trazem á terra as
centelhas da infinita sciencia, da immensa sabedoria de Deus; são os que
attingem os mysterios, as harmonias do universo, que o escriptor vem
revelar; são aquelles com que aspiramos estas perennes emanações do
Verbo que se espargem sobre a humanidade, transfusas pela intelligencia,
e que se chamam a civilisação; são os que dão ao homem de letras uma
especie de sacerdocio, o sacerdocio da imprensa. Estes esforços
immateriaes não se apreciam, não se medem, não se recompensam como a
creação e o transporte ao mercado d'alguns saccos de trigo, ou como o
covado de chita produzido pelo tear do operario fabril.
Não! Se a imprensa é um sacerdocio, não confundamos o que ha nella
elevado e espiritual com o trabalho venal e externo; não instituamos a
simonia como um direito; não equiparemos a idéa pura, que vem de Deus ao
homem como os raios do sol que nos illuminam, como o ar que respirâmos,
como todas as utilidades gratuitas que a Providencia nos concede; não a
equiparemos ao ouro amoedado, á geira de terra; não meçamos a obra onde
predomina a inspiração pela bitola com que medimos aquella em que
predominam os esforços dos musculos.
Para os que não são capazes de apreciar _a priori_ as antinomias que ha
na applicação do direito de propriedade material aos trabalhos do
espirito será útil examinar os resultados practicos dessa applicação. A
propriedade material, o capital accumulado e activo produz uma renda:
esta renda é maior ou menor conforme a importancia desse capital. Se
1:000$000 réis em terras produz 50$000 réis, 20:000$000 réis hão-de
produzir 1:000$000 réis; se 200$000 réis empregados na agiotagem
produzem 40$000 réis, 600$000 réis hão-de produzir 120$000 réis: esta
lei é constante e uniforme, quando circumstancias accidentaes e
extranhas não a modificam. Nas letras succede exactamente o contrario.
Supponde que cogitações, que contensão d'espirito, que calculos, que
raciocinios, que observações custaram a Pedro Nunes, a Leibnitz, a
Newton, a Vico, a Brotero, a Kant os livros que nos deixaram. Que
thesouros accumulados, que capital d'estudo, ideas! E todavia,
protegidos pela lei da propriedade litteraria, esses homens summos,
esses homens cujos nomes são immortaes, teriam com ella morrido de fome;
porque os seus escriptos publicados, os seus meios de obter uma renda,
seriam lentos e insufficientes. Comparae agora com elles os romancistas
modernos, os Arlincourts, os de Kocks, os Balzacs, os Sues, os Dickens.
Estes homens, cujos estudos se reduzem a correr os theatros, os bailes,
as tabernas, os lupanares, a viajar commodamente de cidade para cidade,
de paiz para paiz, a gosar os deleites que cada um delles lhes offerece,
a adornar os vicios, a exaggerar as paixões, a trajar ridiculamente os
affectos mais puros, a corromper a mocidade e as mulheres; estes homens,
que só buscam produzir effeitos que subjuguem as multidões; que
espreitam as inclinações do povo para as lisonjeiarem, os seus gostos
depravados para os satisfazerem; a estes operarios da dissolução e não
da civilisação, a estes sim, aproveitam as doutrinas da propriedade
litteraria! Para elles a recompensa do mercado; para elles os grossos
proventos do industrialismo litterario, que ó o grande incitamento dos
seus infecundos trabalhos. A litteratura-mercadoria, a
litteratura-agiotagem, tem na verdade progredido espantosamente á sombra
de tão deploraveis doutrinas! Um dos nossos escriptores modernos, que
mais abusou do talento, e que mais proventos auferiu do systema ignobil
do industrialismo nas letras, o padre Macedo, disse, não me recordo em
que escripto, que a folhinha era e seria sempre a desesperação dos
auctores, porque nenhum livro tinha ou teria nunca tantas edições. Neste
dicto está resumida toda a critica do falso direito de propriedade
litteraria. Silvestre Pinheiro, o grande pensador português deste
seculo, com cujo nome v. ex.^a acaba de me fazer a honra de associar o
meu, e João Pedro Ribeiro, o restaurador dos estudos historicos em
Portugal, morreram n'uma situação vizinha da penuria. É como teriam
morrido sob o regimen da propriedade litteraria; porque para elles foi
como se esse regimen já existisse: ninguem lhes contrafez, ninguem lhes
contrafará os seus livros. Sabe v. ex.^a quem ganharia immensamente em
viver hoje? O auctor do Carlos-Magno. As edições daquelle celebre rol de
semsaborias e despropositos ainda não cessaram de repetir-se.
Que propriedade será esta, em que os terrenos de alluvião,
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