Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 02

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que os desprezam fazem o que faziam os lombardos, apoderando-se da
Italia, ás formosas obras da architectura greco-romana. Deixavam-nas
perecer; porém não as destruiam. Os que as arrasam ou mutilam são
adeptos de uma velha heresia que resurge; são iconoclastos redivivos.
Procurae hoje, por exemplo, em Lisboa as antiquissimas igrejas
parochiaes de Sancta Marinha e de S. Martinho: achareis os logares onde
estiveram, e achá-los-heis, porque aos hunos encapados em lemiste não é
dado supprimir um fragmento do orbe terraqueo. Os homens desta Lilliput
da intelligencia estão desentulhando aquelles terrenos para fazerem
casas. Onde haviam elles de morar, senão fizessem alli mais umas casas?
Sancta Marinha encerrava memorias anteriores á monarchia, e a parochia
de S. Martinho prendia-se com a historia da grande crise por que
Portugal passou nos fins do XIV seculo. Mas de que momento é essa
consideração, se attendermos a que lá, onde estiveram os dous templos
ricos de idade e de tradições, se podem construir duas moradas bem
pintadas, bem alvas exteriormente, com sua beirada vermelha e seu rodapé
amarello? Que importa que se dispersem os ossos do conde Andeiro ou se
desfaça a sepultura do conde de Alvor? As cinzas dos mortos podem jazer
tão tranquillas debaixo do balcão de uma taberna, como aos pés de um
altar, á sombra da eterna cruz. Bemdicta sejas tu, geração philosophica,
geração arrasadora, geração camartelladora! O futuro, está certa disso,
ha de fazer-te justiça.
Uma das mais notaveis obras do seculo XIV foi, sem duvida, a muralha com
que el-rei D. Fernando cingiu Lisboa. Todos julgavam impossivel a sua
edificação, dizem os chronistas, porque suppunham que levaria cem annos
a construir: aquelle principe soube, porém, acabá-la em dous. Os povos
foram chamados de grandes distancias a trabalhar nella, fazendo-se
aliás, todas as prevenções para suavisar aquella especie de anudúva
extraordinaria. A esta muralha deve hoje Portugal não ser uma provincia
d'Hespanha, porque salvou Lisboa de cahir nas mãos d'el-rei de Castella.
Se isto se tivesse realisado, o reino estava perdido. Considerada a
semelhante luz, a muralha de D. Fernando era, talvez, o nosso mais
importante monumento historico. O progressivo accrescimo da capital
tinha-a em grande parte destruido; mas restava ainda, além de outros, um
lanço importantissimo. Era o angulo que fechava a cidade pelo lado do
bairro dos judeus. Por este angulo, onde houvera uma porta e onde ainda
restavam os vestigios de uma torre que a defendia, a torre de Alvaro
Paes, se podia delinear quasi exactamente a direcção que seguiam os dous
lanços de norte e de oeste. Era, assim, uma especie de padrão que
indicava os limites septemtrionaes e occidentaes da povoação, e uma
reliquia que demonstrava a grossura e solidez da antiga muralha, mui
superior á de outras porteriormente construidas em epochas mais ricas e
mais civilisadas.
Este angulo, este fragmento, testemunha do periodo mais glorioso da
nossa historia, lá se está derribando para se fazer uma praça quanto
possivel ampla. Homens gigantes, como nós, não cabem onde couberam
nossos avós, pygmeus conquistadores da Africa e da India. Far-se-ha pois
uma praça, que, se não prestar para mais nada, poderá servir de mercado
de hortaliça. Uma pyramide de repolhos substituirá o adarve, por onde,
em noite sem lua, se viam a espaços scintillar as armaduras dos
escudeíros ou cavalleiros idos em sobrerolda a vigiar as roldas dos
besteiros do conto da cidade, quando pela terceira vez no reinado de D.
Fernando os castelhanos a accommettiam com grande poder. Alli, no sitio
daquella porta, por onde o, depois tão celebre, Nunalvares sairia muitas
vezes nessa conjuctura a espalhar o terror e a morte entre os homens de
armas inimigos, venha a lide incruenta sobre o preço da couve, sobre o
viçoso ou murcho das favas, substituir o grito clamoroso de S. Jorge,
que chamava nosso avós, os rudes burgueses do seculo XIV, aos combates
em defesa da patria.
O que estes netos de Attila, de collarinhos e peitilhos engommados, são,
sobretudo, é ridiculos.
Vergonha é confessá-lo: os estrangeiros tem mostrado maior veneração
pelas antiguidades do nosso paiz do que os portugueses. Um estrangeiro
salvou no convento dominicano de Bemfica a antiga capella de D. João de
Castro. Ha pouco ouvimos outro, em cujos olhos chammejava a indignação,
clamar altamente contra a barbaria com que se deixavam estragar no
mosteiro de Belem varios quadros magnificos de eschola portuguesa, nos
quaes os passaros, entrando pelas frestas mal reparadas do edificio, vão
amontoando as immundicies. Mas estes estrangeiros são homens que sabem
qual seja o valor dos monumentos da arte e da historia. Nós é que temos
perdido o sentimento e a intelligencia para apreciar essas cousas.
Se com a nossa incuria aggressiva e com a nossa raiva assoladora
desmentimos o passado, para darmos em tudo documento de insipiencia
desmentimos, até, essas mesmas opiniões e tendencias do presente, a que
recorremos para condemnar em nome do progresso, sem distincção nem
juizo, o mau e o bom de eras antigas. É a economia politica a sciencia
do nosso tempo: todos falam em capitaes, em industria, em riquezas
sociaes, em valores. Mas que serão os monumentos? Que serão essas
admiraveis aggregações de marmore ou de granito? São o resultado ou
_producto_ da concepção, da applicação e da execução: vem a ser,
portanto, uma riqueza social. E por quê e para quê annullaes vós essa
riqueza? Dado que representasse um capital improductivo, com que intuito
o deitaes fóra? Não o são, porém, na sua maxima parte, os monumentos.
Quando a arte ou os factos historicos os tornam recommendaveis,
convertem-se em capital productivo. Calculae quantos viajantes terão
atravessado Portugal neste seculo. De certo que não vieram cá para
correrem nas nossas commodas diligencias pelas nossas bellas estradas,
ou navegarem nos nossos rapidos vapores pelos nossos amplos canaes; de
certo que não vieram para aprenderem a agricultar com os nossos
agricultores, nem a fabricar com os nossos fabricantes; mas para
admirarem os mosteiros da Batalha, de Alcobaça e de Belem, a sé velha
Coimbra, a cathedral, a igreja de S. Francisco e o templo romano de
Evora, a matriz de Caminha e a collegiada de Guimarães, os castellos da
Feira e de Almourol, e emfim, tantas obras primas de architectura que
encerra este cantinho do mundo. Crêdes que esses romeiros da arte voltam
da romagem aos seus lares sem dispender muito ouro, e esqueceis que esse
ouro ficou por mãos portuguesas? E falaes de economia politica, e
anniquilaes o capital dos monumentos? Adoradores do camartello, por
qualquer lado que se observe a vossa obra, não se descobre senão o
absurdo.
Quizeramos que os homens deste paiz que tem coração português fizessem
uma associação, cujo trabalho de patriotismo ligasse os seus membros
dispersos por todo o reino; que os residentes em Lisboa constituissem
uma especie de juncta, á qual os das provincias, logo que á sua noticia
chegasse a demolição de algum monumento da historia ou da arte,
remettessem uma breve nota, individuando as circumstancias do edificio
destruido e o nome do arrasador, quer este fosse magistrado ou
funccionario publico ou municipal, quer fosse individuo particular.
Quizeramos depois que essa breve nota, sem reflexões, sem affrontas,
estampada em todos os jornaes, se legasse á posteridade. Nenhuma lei
prohibe que se narre, singelamente e sem o qualificar, um facto que o
seculo julga indifferente. Ninguem, por certo, teria a queixar-se de
semelhante publicação. Eram simplesmente factos que se transmittiam á
apreciação da posteridade; era apenas um trabalho historico.
«Mas isso provocava as maldicções dos vindouros.--E que importam as
maldicções dos vindouros ao que não cura nem da arte, nem do passado,
nem do futuro, nem da gloria nacional, nem da memoria de seus avós, nem
dos sepulchros, nem das tradições, nem sequer, emfim, dos interesses
materiaes que resultam e hão de resultar da conservação dos monumentos?
Que importa isso áquelles para quem os horisontes da vida são
exclusivamente os horisontes da terra? Nada. Ririam desse corpo de
delido de terrivel processo. Mas, talvez, seus filhos e netos não
rissem, vendo-se obrigados a renegar de um nome, no qual gerações mais
allumiadas e mais nobres haviam forçosamente de imprimir o ferrete de
perpetua deshonra.

III

Os xeques da tribu arabe de Bka estavam um dia, pela volta da tarde,
assentados juncto das columnas de um templo, na extremidade oriental da
acrópole de Balbek.
D'aqui, pondo a mão sobre os olhos para os resguardarem do sol que os
deslumbrava, os chefes da tribu de Bka alongavam a vista para a banda do
poente.
E o sol, que descia rapido, mandava a sua luz suave atravez daquellas
arcarias gigantes o immensas; daquellas columnas monolithas, a menor das
quaes os braços de dez mil árabes não valeriam a erguer.
A hora era de meditação e de melancholia, e os xeques olhavam com
aspecto carregado para a ossada grandiosa da erma cidade, que é como um
olhar de desdem com que o mundo antigo contempla o mundo moderno, e é ao
mesmo tempo demonstração solemne da vaidade disso a que se chama poderio
e gloria, cuja duração se confunde na eternidade com a duração de um
dia.
E por entre aquellas rumas de mármores e de syenites viam-se passar,
buscando as suas leves e moveis habitações, dispersas entre as ruinas,
os arabes do deserto, semelhantes aos gusanos que refervem no cadaver
meio apodrecido do elephante abandonado pelos caçadores nas margens
solitarias do Zambeze.
E depois de largo silencio, um dos xeques abaixou os olhos e, com voz
presa de furor intimo, disse para os companheiros:
«Porque consentiremos nós, os filhos do Propheta, que estes gigantes de
pedra estejam continuamente assoberbando a tenda humilde do arabe, que
passa livre no mundo?
Se a nossa vida é um instante, o homem não deve construir edificios
destinados a transpor seculos. É quasi blasphemia revestir o transitorio
com o trajo da eternidade. A eternidade não é da terra; é do paraiso.
Porque haviam de querer os que já não são immobilisar no deserto para os
seus ultimos netos esse arraial quasi interminavel de tendas de pedra?
Para que semeiaram as gerações passadas uma seara immensa de abysmos
pelos pendores do Ante-Libano, arrancando delle pedreiras macissas, como
se fossem os grãos de areia, com que ergue collinas movediças o sopro do
Simúm quando varre o deserto?
Que temos nós com os tempos que já passaram, para que elles venham
increpar-nos com a muda insolencia dos monumentos o nosso livre e solto
viver, e instituir parallelos offensivos entre a decadencia actual e o
esplendor das artes e a magnificencia laboriosa e incommoda daquellas
eras de grandeza e poderio?
Que importa que então saissem da Assyria os conquistadores da Asia e as
frotas que descobriam novos céus e novos mares, ou que os poetas de
então tivessem para cantar lendas de façanhas quasi incriveis?
Em vez das conquistas, a liberdade. Hoje não ha acto que seja defeso ao
arabe do deserto. Corremos livres por livres descampados. Embora o
reluzir do sabre de um spahi de Ibrahim faça fugir aterrados cem
cavalleiros nossos, e o frangue do occidente nos despreze como barbaros.
Saboreamos quietamente o pão esmolado ou arrebatado ao que o cultivou
para nós. Da bolsa do viandante o ouro cai-nos aos pés com seu dono. O
nosso trabalho é apenas erguer aquelle quando este cai. Depois de uma
vida sem sacrificio, sem amarguras, que nenhum monumento contará aos
vindouros, dormiremos na paz do esquecimento, porque não deixaremos
vestigios da nossa jazida. Não se revolvem os ossos dos mortos, quando o
seu ultimo abrigo é a amplidão do nosso oceano de areias, que não
consente nem lapides, nem inscripções, nem edificios na sua face
tristemente pallida.
Porque, pois, continuarão eternamente erguidos estes templos, estes
palacios, estas muralhas, reprehensão ou antes injuria perpetua ao nosso
viver?
Que se ajunctem os filhos das profundas solidões do deserto, e que, dia
a dia, vão esboroando uma parte, minima que seja, desses pannos de muros
de cem covados, formados de poucas pedras; dessas columnatas, sobre
cujos frizos e arestas pousa á noite o abutre, como costuma pousar sobre
a cumiada de longa serrania, a que essa obra de homens se assemelha.»
Callou-se o xeque. Os outros abaixaram as cabeças com lento meneio, como
quem approvava o dicto.
Se eu, se vós, chegassemos neste momento ao pé do velho templo de Balbek
e ouvissemos o discursar do beduino, o que diriamos no primeiro impeto
de justissima indignação?
Diriamos que o xeque era uma vibora, que, esmagada debaixo de vinte
seculos, queria voltar contra a historia os dentes envenenados, como se
a peçonha da sua colera podesse anniquilar a historia.
E antes que a nefanda obra que elle traçava e os demais applaudiam
começasse a ser executada, falariamos assim áquelles loucos:
«Vós outros quereis derribar a memoria das gerações que foram, porque a
magestade do passado pesa mais sobre a vossa consciencia do que pesam
sobre esse chão que parece acurvar-se e gemer debaixo de tantas
grandezas, os pylones macissos, as sphinges gigantes, as arcarias
profundas, as pedras de dez covados inseridas em muralhas
indestructiveis. Melhor fora que forcejasseis por ser tambem grandes,
convertendo-vos á virtude antiga, e que, em vez de constituir um bando
de miseraveis, vos tornasseis n'uma nação illustrada e forte, capaz de
legar á posteridade monumentos como estes, quando lhe chegasse a sua
ultima hora; porque a morte abrange todas as sociedades, todas as
civilisações, como abrange todos os individuos.
Credes que a luz do sol occidental, batendo nas columnas avermelhadas do
velho templo, vos reflecte nas faces envilecidas o rubor que as tinge?
Não sentis o sangue que estas palavras vos fazem subir do coração ao
gesto? É o sangue e não o marmore; é que, mau grado vosso, ellas foram
despertar uma voz que não podeis soffocar, a da consciencia, que vos
reprehende da actual decadencia. A vermelhidão que surgiu nessas faces
crestadas não reflecte da pedra lisa; reflecte-se das almas que se
rebellam contra si mesmas.»
Ouzariamos nós, em verdade, dizer isto aos beduinos, sem que tambem o
rubor viesse tingir-nos as faces?
Não; porque somos como elles; porque, bem como elles, nos persuadimos de
que, varrendo todos os vestigios do Portugal antigo, poderemos esconder
aos estranhos a nossa decadencia actual; porque, além disso, cremos que
para ser deste seculo, é preciso renegar dos antepassados.
Todavia, ainda ha quem deplore a destruição das memorias venerandas de
melhores tempos; ainda ha quem lucte contra a torrente de barbaria que
alaga este paiz tão rico de recordações, recordações que tantos animos
envilecidos pretendem fazer esquecer. Sabemos que os nossos brados de
indignação acham echo em muitos corações. Temos visto e recebido cartas
acerca deste assumpto escriptas com a eloquencia da convicção e de
profundo despeito. São protestos solemnes de que nem todos os filhos
desta terra venderam a alma ao demonio da devastação. Provam ellas que o
ruido dos alviões e picaretas não basta para afogar os brados da razão,
da consciencia e do amor patrio. Lendo-as, o sangue referve nas veias
contra essa idéa fatal que entrou na maioria dos espiritos, de que tudo
quanto é antigo é mau ou insignificante, quando a peior cousa que ha é
essa idéa, a mais insignificante a cabeça onde se aninha, a mais
destestavel a mão que a traduz em obras, estampando sobre a terra da sua
infancia a inscripção que o atheismo decreta para os sepulchros:--aqui é
a jazida do nada.
É singular, por exemplo, a historia das recentes vicissitudes por que
tem passado a collegiada de Sancta Maria da Oliveira em Guimarães.
Guimarães parece fadada para victima desta especie de escandalos. A
igreja da collegiada de Guimarães era um dos mais bellos monumentos de
architectura ogival. O seu tecto de grossas vigas primorosamente
lavradas constituia com o da sé do Funchal e poucas mais toda a riqueza
de Portugal neste genero, porque, durante a idade média, empregava-se
geralmente a abobada de pedra nas edificações sumptuosas. Além disso, as
bem proporcionadas arcarias, os capiteis adornados de esculpturas
variadas e subtis, as tres naves magestosas divididas por elegantes
columnas, inspiravam em subido grau aquelle respeito melancholico e
saudoso que é um segredo das igrejas chamadas gothicas. Os annos não
tinham deslisado em vão por cima do monumento: arruinado em partes,
carecia de reparos. O cabido ajunctou para isso grossas sommas.
Chamaram-se obreiros, e ha sete ou oito annos que estes lidam por apagar
todos os vestigios da antiga arte. Quebraram-se os lavores dos capiteis
e cornijas: substituiram-se com pedras lisas: estas pedras cubriram-se
de madeira: esta madeira dourou-se, pintou-se, caiou-se. O templo do
Mestre d'Aviz lá está alindado; lá está cuberto de arrebiques. Os que
deviam manter-lhe a magestade das cans; os que deviam dispender seus
thesouros accumulados, não em remoçá-lo, mas em conservar-lhe o
venerando aspecto e as rugas dos seculos, fizeram da casa do Senhor um
velha prostituta que esconde debaixo do caio e do carmim a flaccidez do
gesto. Blasphemaram de Deus, não com blasphemias de palavras, mas com a
blasphemia das obras. Deram emfim documento indubitavel de que não havia
alli quem soubesse a harmonia que existe entre a architectura e a
religião; que se lembrasse de que o livro da lei e o templo são dous
typos sensiveis, dous verbos que inspiram, um directamente ao espirito,
outro symbolicamente aos olhos, as relações entre o homem e Deus, e de
que não só é impiedade negar ouvidos ao verbo escripto, mas que tambem é
impio rasgar o livro de pedra.
E que disseram os habitantes de Guimarães durante oito annos em que os
vermes andaram a roer naquelle cadaver?
Louvaram o _bonito_ da obra. O longo tasquinhar do cabido
despertou-lhes, até, o appetite. Alguns lembram-se já de demolir as
muralhas da villa reconstruidas por D. Dinis. Talham ainda banquete mais
lauto. Tentam arrasar as paredes que restam dos paços do conde Henrique;
dos paços onde Affonso I nasceu. A gloria dos conegos de Santa Maria da
Oliveira, tão dispendiosamente conquistada, offuscar-se-hia, assim, por
pouco dinheiro, como a luz pallida da lua nos esplendores do surgir do
sol.
Arrasados, pois, os muros reconstruidos pelo rei lavrador, apagados os
ultimos vestigios dos paços dos nossos primeiros monarchas, raspado e
serapintado o interior da igreja de Santa Maria, Guimarães, em vez de
ficar antiga, ficará velha garrida. Unicamente, para a trahir, lhe
restará uma ruga na face: o frontispicio da collegiada. Mas se a
picareta do municipio pretender humilhar, como sacrilegamente se cogita,
o colherim, as tigellas de ochre e vermelhão e as broxas canonicaes,
vingue-se o illustrissimo cabido arranjando mais alguns vintens, e
mandando á custa delles picar e caiar aquelle frontispicio. Depois, para
esmagar de todo as audazes emulações burguesas, enfeite triumphantemente
a frontaria da sua igreja com um rodapé encarnado.
Mas haverá um governo que tolere tantos desvarios, tantas devastações
brutaes? Póde haver, e ha. Não seria difficil encontrar ministros e
administradores geraes, que, se não fora o defeito de lerem sem
soletrar, symptoma altamente suspeito para os eleitores, dariam
excellentes vereações aos concelhos desta terra, onde o sangue dos
conquistadores suevos parece ter ficado predominando nas veias dos seus
habitantes. Mais de um governo tem disputado ás camaras municipaes
primores de barbaridade. Já alludimos á igreja de S. Francisco do Porto
convertida em armazem da alfandega; ao claustro de Belem convertido em
dormitorio; ao abandono dos conventos de Thomar, da Batalha e de
Alcobaça. Ha, porém, mais. Vede essa igreja de S. Domingos de Santarem.
As suas velhas e grossas portas estão fechadas e o convento está vazio
dos seus antigos habitadores. Não é, todavia, provavel que o templo
mandado edificar pelo malfadado Sancho II e de cuja primitiva fabrica
ainda resta inteira a capella mor, ficasse deserto de culto, como o
convento ficou ermo de frade. A suppressão das ordens monasticas não foi
a abolição das solemnidades religiosas. Vede, pois, o templo, que, se
agora está fechado, não tardará a ecchoar com orações e psalmos.
Transportae-vos pela imaginação para o interior da igreja na hora em que
os canticos e o incenso se alevantam ante o altar; em que o orgam sólta
a sua voz melancholica; em que a nave está cheia de povo e o sacerdote
ora por elle e com elle; na hora em que o sol coado através das esguias
janellas reflecte pelas pedras que o tempo amarelleceu uma luz
suavemente pallida; imaginae essa hora, e vereis que, se o convento se
despovoou, nem por isso ficou despovoado o templo. A oração do
dominicano não é necessaria nas solemnidades da igreja. Não o abandonou
á soledade a pia sollicitude dos fieis. De noite, as lampadas,
penduradas ao longo da nave, ou brilhando na escuridão das capellas,
como estrellas engastadas em céu profundo, despedem frouxos raios que
vão quebrar-se por cima de campas onde se divisam, em caracteres
confusos e gastos nomes de varões illustres que alli vieram repousar das
lidas da vida á sombra da cruz. Lá estão os sepulchros de Gil e de
Martim d'Ocem, cuja voz exprimia a summa razão e a summa sciencia nos
conselhos dos reis; lá alveja o jazigo do infante D. Affonso, filho de
Affonso IV, e o de Fernando Sanches, a quem Fr. Luiz de Sousa chama
_bastardo querido_ de D. Dinis. Por ahi dormem muitos pobres frades,
cuja vida obscura, mas cuja morte foi invejada. Misturam-se alli os
ossos dos que foram grandes na terra com os dos que reputamos grandes no
céu; e uns e outros são como testemunhas que tornam mais solemne o
culto, esse laço que liga ao céu a terra. Mas as portas do edificio
sagrado rangem nos quicios de ferro, para se abrirem de par em par.
Ondas de povo vão precipitar-se pelo estreito ádito e espraiar-se até
juncto do altar. O sacerdote vai começar o sacrificio incruento, e o
orgam acompanhar as orações com as suas harmonias. Entremos.
Não! Refujamos! Orações, psalmos, harmonias, luzes, incenso, sacerdotes,
povo, nada disso ha ahi. Há só as trevas da nave pesando sobre as trevas
dos sepulchros. O velho templo é um palheiro do Commissariado...
E quem fez isso? Foi o vereador boçal de um concelho obscuro? Não. Foi o
governo de uma nação que se diz civilisada, ou que pelo menos toma
assento no convivio das nações da Europa.
Quasi contiguo á igreja palheiro existe outra, modelo em muitas cousas
da mais elegante architectura ogival. É a do extincto convento de S.
Francisco. Lá, na parte da nave sobposta ao côro, o tumulo da infanta D.
Constança, cujos lavores se vão diariamente quebrando e oblitterando,
serve de cabide a sellins e arreios de cavallaria. Applicação igual e
igual fim vai tendo o del-rei D. Fernando, que anteriormente os frades
tinham transferido da nave para o côro.
Com estes exemplos do governo não é de admirar que ahi mesmo em Santarem
se derribem as portas das velhas muralhas para calçar as ruas, ou que na
antiga villa da Torre-de-Moncorvo, hoje Moncorvo só, a antiquissima
torre que dera origem e nome á povoação, fosse deitada por terra com o
mesmo intuito; que, emfim, se tracte de dar ás muralhas da Guarda
identico destino. Aqui o vandalismo confunde-se com a demencia. Na
Guarda, ninho d'aguias, collocado no cimo de um cerro de granito, a
pedra vai calçar a pedra. D'antes, no inverno, o viver alli era bem
duro, quando os edificios estavam abrigados atraz da solida cerca.
Agora, o vento gelado que passa pelas cumiadas da serra da Estrella virá
precipitar-se rugindo por aquellas ruas meio desertas e tornar
inhabitavel a povoação. A Guarda, que em si propria é um monumento, e
que encerra uma cathedral magnifica, estará no decurso, talvez, de
poucas décadas convertida n'um covil de féras.
Dos males que os seculos passados legaram ao presente nenhum foi tal
fatal como a ignorancia em que deliberadamente se conservavam as
multidões. Essa ignorancia que ha de levar annos, talvez seculos, a
dissipar, era incomparavelmente menos nociva em epochas de servidão,
quando o poder absoluto, concentrado em poucas mãos, podia facilmente
reunir n'um foco as luzes intellectuaes do paiz e aproveitá-las
desassombradamente na solução das questões de administração. Hoje que o
vassalo se converteu em cidadão; hoje que os erros e preoccupações das
intelligencias incultas se despenham de todos os lados na torrente da
opinião publica e se confundem de modo inextricavel com as idéas
sensatas; hoje, finalmente, que é necessario não afrontar essa torrente,
nem querer fazê-la refluir á força, os resultados fataes da ignorancia
são incomparavelmente mais difficeis de evitar e remediar. Se as portas
dos ministerios estivessem fechadas para os arrasadores professos, e
fosse exigivel dos pretendentes a pastas uma justificação de que, nem
pelo lado paterno, nem pelo materno, descendiam de algum soldado de
Genserico, ainda assim, dada a competencia dos magistrados municipaes, e
o valor moral que resulta para os seus actos da sua origem electiva, um
governo illustrado, mas que não quizesse ultrapassar os limites da
propria auctoridade, não poderia talvez reduzir completamente ao
silencio o fragor das demolições que reboa por todos os angulos do
reino. O camartello é o enlevo, o bezerro d'ouro, o Moloch, o Baal da
nossa burguesia. Um camartellão deitado sobre uma ara de pedra em frente
dos paços do concelho deveria substituir os seculares pelourinhos
(tambem já, em parte, roidos ou despedaçados), como symbolo do poder
municipal.
Imaginemos, de feito, cinco, seis, ou mais figurões assentados ao redor
d'uma banca, falando sem juizo, ás vezes sem decencia, sempre sem
grammatica, sobre a administração do municipio, e ponderando os
proveitos e aformoseamentos que para este hão-de resultar da destruição
de um monumento da arte ou da historia. Lá pede a palavra um delles,
logista gordo, ensebado, vermelho, quasi-virtuoso, e cujas unhas e cuja
barba estão accusando a tesoura e a navalha de vergonhoso desleixo no
desempenho das respectivas funcções. É o Demosthenes do conciliabulo.
Aprendeu a ler pela Historia de Carlos Magno e dos Doze Pares, e é
assignante das traducções de Paul de Kock, para se exercitar. Um
palacio, um muro, uma igreja de eras remotas fazem-no estremecer de
horror. Ao lado de cada ameia do castello ermo lhe parece enxergar um
cavalleiro cuberto de armas ferrugentas; em cada torre crê ouvir soar as
badaladas da campa feudal. Escutam com assombro os outros cidadãos
vereadores o Mirabeau logista. Os animos commovem-se: os cabellos
arripiam-se. A sentença contra o monumento vai ser fulminada. Ha um
instante de terrivel silencio. O presidente pede votos.--«A terra»:--diz
o homem gordo.--«A terra»:--vão repetindo com voz solemne os outros
membros do sanhedrim. Então o secretario lavra o fatal accordam. Por
entre aquellas letras, logo á nascença amarellas, e escriptas com penna
de duvidosa classificação ornithologica, surge magestosa no meio de cada
palavra uma letra capital, como que protegendo as que a precedem e
seguem. Acabou-se emfim a magistral composição: o erudito secretario
estende o papel ao presidente, que, enlevado na voz melodiosa da
consciencia a asseverar-lhe que fez desmarcado serviço á patria, o
recebe ás avessas, e lhe lança no topo, com ademan desdenhoso, a cruz de
seu signal. Passa aos outros juizes a acta fulminante. O logista que,
por incessantes exercicios gymnasticos nas paginas de Paul de Kock, já
soletra com rapidez vertiginosa, e conhece n'um relance o erro do
presidente, cujo pundonor litterario não ousa, aliás, ferir advertindo-o
do lapso, escreve o proprio nome, em menos de dez minutos, no seu devido
logar, e debaixo da garatuja do Mirabeau burguês, os outros magistrados
municipaes vão plantando as respectivas cruzes n'um devoto calvario.
Emfim, o secretario assigna, e o crime está consummado.
Torre, muro, paço, ou o que quer que sejas, cuja ruina foi decretada,
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