Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 01

Total number of words is 4501
Total number of unique words is 1842
30.6 of words are in the 2000 most common words
45.0 of words are in the 5000 most common words
52.9 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.

*OPUSCULOS*
POR
A. HERCULANO

SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA
SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA
SOCIO CORRESPONDENTE DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID DO INSTITUTO
DE FRANÇA (ACADEMIA DAS INSCRIPÇÕES) DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE
TURIM DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC.

QUESTÕES PUBLICAS

*TOMO II*

LISBOA
EM CASA DA VIUVA BERTRANDA & C.^a--CHIADO, N.^o 73
M DCCC LXXIII


MONUMENTOS PATRIOS
1838


I

Diz-se que uma das mais bellas missões da imprensa é defender a boa
razão, a arte, e a honra e gloria da patria. Imagina-se ampla colheita
de renome, de bençãos, de vantagens de toda a especie para o escriptor
que alevanta a voz a favor do bom, do justo e do bello, se a voz do que
escreve é assás poderosa para se esperar que mova os animos dos seus
concidadãos. E com effeito, indicar a estes o recto caminho, quando
transviados; tentar affeiçoá-los a nobres e puros sentimentos; fazê-los
amar o solo natal; despertar-lhes affectos pelo que foi grande e nobre
na historia do paiz, parece que deveria produzir fructos de benção para
o escriptor que o tentasse. Não é, todavia, assim. Ha para isso um
obstaculo quasi insuperavel; a superstição pelas idéas e tendencias do
presente, mais cega que a superstição pelas crenças do passado. As
paixões são mais energicas do que as reminiscencias, as aspirações que
as saudades. Gloria, lucro, respeito, bençãos são para aquelle que afaga
com palavras mentidas as preoccupações populares; para aquelle que, sem
discrime, louva, adorna ou repete como echo as opiniões que ao redor
delle, talvez por cima delle, esmagando-lhe a consciencia, passam como
torrente. Tumultua o genero humano correndo ao longo dos seculos: o
louvador, ás vezes o promotor do tumulto, se a natureza lhe concedeu
imaginação e talento, vai adiante como capitão e guia da geração que
corre ebria: incita-a, arrasta-a, deslumbra-a. As corôas voam-lhe do
meio do tropel sobre a cabeça. Verdade é que ao cabo do tanto lidar elle
se despenhará com essa geração no abysmo do passado; verdade é que o
abysmo se fechará para elle com o sêllo da reprovação de cima, e que,
porventura, não tardará que o futuro passe por ahi a sorrir, ou se
afaste com tedio do sepulchro dealbado do erro ou da villania. Mais isso
que importa? O homem que vendeu ao seculo a consciencia e o engenho, que
Deus não lhe deu para mercadejar com elle, foi bemquisto e glorificado
emquanto vivo; foi antesignano do progresso, embora este seja avaliado
algum dia como progresso fatal!
Mas que póde esperar aquelle que, nessa longa e ampla estrada do tempo,
por onde o genero humano corre desordenado, quizer vir, do lado do
futuro e em nome do futuro, dizer á geração a que pertence:--parae lá--?
Embora a sua voz troveje: embora as suas palavras devam fazer vibrar
todas as cordas do coração e despertar todas as convicções da alma: não
espere ser ouvido. As multidões continuarão a passar desattentas.
Escarnecido, amaldicçoado talvez, dormirá esquecido na morte, e os
sabios e prudentes cultores de uma philosophia corrompida e egoista
dirão, com insultuosa compaixão, ao passar pelo que jaz no pó:--Pobre
louco, recebeste o premio de querer contrastar o seculo!
O que havemos dito é crua verdade; mas é a verdade. Ha nesta epocha dous
caminhos a seguir; um, estrada larga, batida, plana, sem precipicios,
mas que conduz á prostituição da intelligencia; outro, vereda estreita,
tortuosa, malgradada, mas que se dirige ao applauso da propria
consciencia. Aquelles cujas esperanças não vão além dos umbraes do
cemiterio e que ahi veem, não o termo da sua perigrinação na terra, mas
o remate da existencia, que sigam a facil estrada. Nós, porém, que
guardâmos para além da vida as nossas melhores esperanças, tomaremos o
bordão do romeiro e iremos rasgar os pés pela vereda d’espinhos.
Resignar-nos-hemos nos desprezes e, como os soldados do eremita Pedro,
que, pondo a cruz vermelha no hombro para irem morrer na Palestina,
clamavam--«Deus assim o quer! Deus assim o quer!»--diremos
tambem:--«soffrâmos o menoscabo e o vilipendio: soffrâmos que assim o
quer Deus.»
É contra a indole destruidora dos homens de hoje que a razão e a
consciencia nos forçam a erguer a voz e a chamar, como o antigo eremita,
todos os animos capazes de nobre esforço para nova cruzada. Ergueremos
um brado a favor dos monumentos da historia, da arte, da gloria
nacional, que todos os dias vemos desabar em ruinas. Esses que julgam
progresso apagar ou transfigurar os vestigios venerandos da antiguidade
que sorriam das nossas crenças supersticiosas; nós sorriremos tambem,
mas de lastima, e as gerações mais illustradas que hão de vir decidirão
qual destes sorrisos significava a ignorancia e a barbaridade, e se não
existe uma superstição do presente como ha a superstição do passado.
A mais recente quadra de destruição para os monumentos, tanto artisticos
como historicos, de Portugal, póde dividir-se em duas epochas bem
distinctas. Acabou uma: a outra é aquella em que vivemos.
A ultima metade do seculo XVIII e os annos já decorridos deste seculo
tem sido um periodo de reforma ou antes de revolução. A revolução não é
de hontem. Quasi sempre as manifestações ruidosas e, digamos assim,
externas das epochas de grandes transformações vem muito depois de
iniciadas estas. No seio da formula social que vai fenecer ha a gestação
da formula social que surge. Quando as labaredas rompem pelas janellas
do edificio, ha muito que o incendio lavra pelo interior dos aposentos.
Entre nós, as reformas começou-as um homem grande, mas que era homem do
seu tempo. Genio positivo e mui pouco especulativo, ministro de um rei
absoluto, e sabendo que, se não caminhasse depressa, ficaria no caminho,
o marquez de Pombal fez resurgir de salto sciencia, artes, industria e
administração. A maioria do paiz obedecia ás reformas, mas sem as
comprehender. O circulo dos individuos que alcançavam o valor dellas e o
influxo que deviam ter no futuro, era assás limitado. A iniciação estava
feita, mas o fogo tinha de lavrar muito tempo debaixo da cinzas.
Exteriormente, a maior parte das reformas, destoando de habitos
inveterados, repugnando não raro a opiniões vulgares, devendo ter
resultados remotos, que o commum dos espiritos não sabiam antever, nem
podiam apreciar, definharam-se ou morreram logo que se quebrou o braço
de ferro que as realisára e mantivera, sorte ordinaria de todos os
commettimentos sociaes que antecedem a diffusão das idéas que
representam. O conde de Oeiras, pondo os estudos ao nivel dos do resto
da Europa, fez acceitar o movimento scientifico desta; mas as
intelligencias reconduzidas de salto ao bom caminho, sem transições
graduaes, acceitaram mais as fórmas do que comprehenderam o espirito.
O que succedeu na sciencia succedeu na litteratura. Acabaram os
acrostichos, os restos do gongorismo, os sermões de antitheses e
argucias, os elogios e conferencias palavrosas e retumbantes da Academia
da Historia, onde o proprio reformador tambem peccara: ficámos, porém,
com a litteratura á Luiz XIV, cuja influencia em Portugal começara a
despontar no horisonte desde o começo daquelle seculo e que, depois, os
nossos innocentes Arcades acceitaram como emanação legitima da arte
grega e romana. Peior do que na sciencia, a regeneração litteraria,
desprovida de nacionalidade, alheia ás tradições portuguesas, nascia,
digamos assim, morta. O mau gosto desapparecera, mas em logar delle
ficava cousa que pouco mais valia; a inspiração pautada, o estro
convencional e a vacuidade da idéa escondida debaixo da opulencia da
fórma.
Se, em parte, as sciencias e a industria foram introduzidas, ou como
inventadas, no reinado do marquez de Pombal, as artes plasticas, e
principalmente a architectura, cuja historia, mais do que a de nenhuma
arte, neste momento nos importa, já anteriormente existiam. A epocha de
D. João V foi uma epocha de luxo e riqueza lançados sobre um paiz
miseravel, como alfombra preciosa em pavimento carunchoso e podre. Esse
luxo e riqueza, que brotavam das minas da America, foram favoraveis aos
artistas. As obras magnificas do nosso Luiz XIV, ou antes do simia de
Luiz XIV, e mais que tudo a edificação do fradesco palacio de Mafra
fizeram apparecer estatuarios, esculptores, architectos. Achou-os o
conde de Oeiras, e deu aos seus talentos nova applicação. Ao gosto
corrompido da architectura italiana, que era a seguida em Portugal, fez
substituir um gosto mais severo, mais util e mais mesquinho. Era o homem
politico, o homem da vida practica dirigindo as artes: eram as artes
reduzidas pura e simplesmente a um ramo de administração. Compare-se o
caracter geral do convento de Mafra com o das grandes obras do marquez
de Pombal, o plano da nova Lisboa, o Terreiro do Paço, a Alfandega, o
Arsenal da Marinha, a parte moderna dos edificios da Universidade de
Coimbra. Em Mafra, achar-se-hão a exageração de ornatos e os primores do
cinzel, mas nenhuma inspiração verdadeiramente nobre e grande;
achar-se-ha o desmesurado supprindo o sublime: nas obras do marquez, só
se encontram largas moles desadornadas, edificios monotonos, postoque
uteis ou necessarios, uma praça magnifica, onde campeiam monolithos
enormes e que seriam admiraveis se não estivessem cobertos de remendos e
parches, e cujas paredes se pintaram de ochre para poupar alguns palmos
de silharia, alguns palmos de marmore n'uma collina de marmore. O plano
de qualquer obra publica desta epocha dir-se-hia sempre traçado na mente
de um negociante hollandês. O despotismo ignorante e presumido estragara
a arte com a puerilidade; o despotismo illustrado estragou-a com a
razão. Mafra é um poema da Fenix-Renascida: a Lisboa do marquez de
Pombal um soneto de Diniz ou uma ode de Garção. A cidade depois do
convento é o Novo-methodo do padre Pereira expulsando das escholas
latinas a grammatica do padre Alvares.
Morreu D. José I, facto insignificante em si, mas grave pelas suas
consequencias. Com a morte desse homem desappareceu da scena politica o
forte espirito que reinara em vez delle. Portugal soçobrou então; apenas
sobre o seu vortice de perdição boiaram por algum tempo as letras e a
sciencia sustentadas ao de cima pelo braço do duque de Lafões. A
architectura, que n'um paiz pequeno e pobre, como o nosso, depende quasi
exclusivamente do governo para existir, não decahiu porque estava já
decadente: o que fez foi retroceder das fórmas mesquinhas, mas graves e
simples, que adoptara, para os fogaréus e burriés e repolhos e espiraes
e grinaldas da epocha anterior. Quereis saber o que ella foi d'ahi
ávante? Olhae para o mais notavel edificio do subsequente reinado, para
o convento do Coração de Jesus. Como o pensamento unico do governo era
desmentir o bom, o mau, o indifferente, tudo, em summa, quanto se fizera
no antecedente reinado, buscou-se restaurar a architectura de Mafra,
menos a vastidão, menos a opulencia. Caricatura de caricatura. Aquelles
portaes microscopicos, aquellas columnas disformes e deformes,
encostadas á portada da igreja, especie de polypos de pedra, guardados
alli para servirem de pilares em outro monumento que delles viesse a
carecer; aquelle atrio que recorda o _vomitorium_ dos amphitheatros
romanos; aquellas torres onde não se pouparam nem columnellos inuteis,
nem franjas e avellorios de marmore; tudo isso é amostra do gosto da
epocha, gosto que tem durado e que ainda campeia nas fachadas de varios
armazens ao divino construidos nos ultimos sessenta annos e baptisados
com a pomposa denominação de templos.
Tal foi em Portugal a architectura durante seculo e meio. O
renascimento, que condemnou em peso, como barbaras, as origens das
nações modernas e especialmente o que desdizia das diversas
manifestações da civilisação grega e romana, envolveu n'esta
condemnação, em muitos casos injusta ou inepta, os admiraveis monumentos
de arte que a idade media legara aos tempos modernos. As gerações
subsequentes, educadas n'uma adoração irreflexiva de tudo quanto viera
da Grecia e de Roma pagans, não podiam comprehender a sublime magestade
e, digamos assim, o espiritualismo da arte christan. Os paços, os
castellos, as pontes, os cruzeiros, as galilés das praças, as portas, as
torres, os pelourinhos das cidades e villas, construidos desde o XI até
o XV seculo quasi que desappareceram. Conservaram-se alguns mosteiros e
sanctuarios, algumas cathedraes e parochias, não por serem obras da
arte, mas por serem logares consagrados a instituições religiosas, e
talvez por terem faltado os recursos para os substituir por novas
edificações.
Ainda assim, restar-nos-hiam hoje em mosteiros, em cathedraes e em
outros edificios consagrados ao culto inestimaveis monumentos, se nesta
terra, desamparada de Deus e da arte, tivesse havido sequer um vislumbre
de gosto e de veneração pelo passado, e não fosse justamente entre o
clero, isto é, entre os guardadores naturaes desses mesmos monumentos,
que surgissem os seus mais funestos adversarios. Porém os bispos sabiam
theologia e direito canonico; os conegos e parochos, alguns sabiam
latim; os frades, pelo menos os membros das antigas ordens monachaes,
eram eruditos e homens de letras; mas nem os bispos, nem os conegos e
curas d'almas, nem os frades entendiam de architectura. Entregaram tudo
aos architectos e mestres de obras, que estragaram tudo. Quasi que
escaceiava a pedra para se converter em cal. Os batefolhas não tinham
mãos a medir. Columnas, capiteis, abobadas, torres, portaes, arcarias,
claustros, tudo foi caiado, dourado, enfeitado, estragado. Procurae na
maior parte das nossas sés, das nossas collegiadas, das nossas velhas
parochias, um desses pilares polystylos, desses capiteis e cimalhas
rendadas, desses bocetes e penduroes variados, dessas gargulas ás vezes
insolentes, ás vezes terrificas, ás vezes finamente epigrammaticas, e
nada achareis do que foi. Aquelles livros de pedra, complexos como os
poemas de cavallaria, ingenuos como os poemas do Cid ou dos Nibelungen,
converteram-se em palimpsestos donde se raspou a historia das crenças,
dos costumes, dos trajos, das alfaias de antigas eras; onde se apagaram
os vestigios de successos notaveis, de dramas populares, de lendas
poeticas, e até retratos unicos de varões singulares. Nesses livros
preciosos, em vez do seu primitivo conteúdo, só achareis as rasuras que
mãos ineptas ahi fizeram e os caracteres que sobre essas paginas,
outrora eloquentes, traçou a peior das barbarias, a barbaria pretenciosa
e civilisada. Passou por lá o picão do reformador, a colher do
estucador, o mordente do dourador. Paredes, pilares, capiteis, laçarias,
ogivas estão rebocados, alvos, polidos, dourados. A luz do sol já não
bate no pavimento do templo convertida em luz baça e saudosa pelos
vidros córados das frestas esguias, dos espelhos circulares: agora alaga
em torrentes essas paredes brancas e lisas, que fingem ás vezes
absurdamente pedras impossiveis estendidas pela colher do alveneu sobre
a face rugosa, mas secular e veneranda, da verdadeira pedra. O templo de
Deus é como a sala do baile, como a sala dos legisladores, como a sala
do theatro, como a praça publica, sem mysterios, sem tradições, sem
saudades.
Mas se a culta barbaria dos nossos avós e de nossos paes forcejou por
cobrir com remendado véu os monumentos dos primeiro seculos da
monarchia, deixou em muitos delles ao menos, os seus formosos e ideaes
perfis, as suas linhas architectonicas. O pensamento que inspirou essas
concepções grandiosas como que se alevanta d'entre as devastações
perpetradas pelo camartélo, pela picareta e pelos boiões de cal delida,
e apesar de se haverem dirigido sem tino, sem gosto, sem harmonia as
restaurações dos edificios que as injurias do tempo em parte haviam
arruinado, resta ainda muito que estudar e admirar nesses monstros. Até,
em alguns delles, é possivel supprimir, pela imaginação, o moderno e pôr
em logar deste o antigo. A poesia ainda não desamparou de todo o
mutilado monumento.
Mas durarão por muito tempo esses restos da mais formosa e magnifica de
todas as artes? Não o esperamos; mas lavraremos aqui, ao menos, um
protesto contra o vandalismo actual. Nossos paes destruiram por
ignorancia e ainda mais desleixo: destruiram, digamos assim,
negativamente: nós destruimos por idéas ou falsas ou exageradas;
destruimos activamente; destruimos, porque a destruição é uma vertigem
desta epocha. Feliz quem isto escreve, se podesse curar alguem da febre
demolidora; salvar uma pedra, só que fosse, das mãos dos modernos hunos!

II

Falámos da decadencia da architectura durante seculo e meio; porque as
manifestações dessa decadencia foram sempre as mesmas em tão largo
perido. Vê-se a arte na sua lenta agonia rodeiada de curandeiros que se
propõem sará-la, mas que a transfiguram, sem alcançarem qual é o achaque
intimo que a devora: vêmos acumular columnas a proposito e
desprositadamente: vêmos gesso, ouro e talha: vêmos converter os velhos
monumentos em monstros de Horacio; pôr ao lado da torre ou do curucheu
gothico zimborios á Buonaroti ou portadas á Barrozio; enxertar a capella
do seculo XVIII na parede de nave do seculo XIV semelhante a um viveiro
de cogumélos, nascidos por entre as fisgas humidas da pedraria, a favor
da meia obscuridade daquellas profundas arcadas: vêmos alteiar edificios
que representam o gosto architectonico do mercador de retalho, e erguer
templos cujo indecente e ridiculo elogio é o de serem _bonitos_: vêmos
as grandes praças de Lisboa, bem esquadriadas, bem symmetricas, bem
prosaicas: vêmos igrejas, como a da Encarnação ou a dos Martyres,
caiadas, pulidas, alindadas, onde não móra um só pensamento de Deus. A
arte entendeu-se assim por largos dias. Ao passo que se imprimia a
Poetica do padre Freire, que se coroava a Osmia, e que se publicavam por
ordem superior as poesias, assim chamadas, de Ribeiro dos Sanctos,
encostavam-se columnas disformes pelas paredes de um pio armazem,
conhecido vulgarmente pelo nome de igreja de S. Domingos, ladeiavam-se
com ellas os portaes dos edificios publicos e as frestas do atrio tyscio
do convento do Coração de Jesus. No meio daquellas semsaborias
architectonicas parecia sentir-se uma tendencia instinctiva para a
regeneração; mas essa tendencia, que buscava uma solução ao problema nas
tradições da arte romana ou antes grega, não podia lá encontrá-la. Fora
o renascimento; fora a admiração dessas tradições, até certo ponto
justa, mas exagerada depois, que dentro de pouco mais de cem annos
chegara, de modificação em modificação, até a architectura do seculo
XVII, á architectura da Sé nova de Coimbra, do Seminario de Santarem, á
architectura jesuita. Não só a regeneração litteraria e a politica, mas
tambem a da arte devia consistir em considerar o renascimento, não como
phase, mas como lacuna na vida das nações christans, das sociedades
novas; em descer logicamente do crer e sentir da sua idade viril. Embora
a arte seja uma só; embora seja sempre e em toda a parte a expressão
sensivel do ideal, tanto este como as suas manifestações é que são
diversos nas diversas epochas e em sociedades differentes. Naquelle
dilatado periodo de decadencia o que sobretudo faltava á architectura
era a luz, o horisonte, a atmosphera respiravel, em que podesse viver e
produzir.
A decadencia, porém, na epocha em que vivêmos é outra, e mais profunda.
Já não ha a corrupção do gosto, o inapplicavel das theorias, o erro do
entendimento. Agora é o instincto barbaro, a malevolencia selvagem, a
philosophia da brutalidade. Dura ha poucos annos; mas esses poucos annos
darão maior numero de paginas negras á historia da arte do que lhe deu
seculo e meio. O picão e o camartello só ha bem pouco tempo que podem
dizer--triumphámos. Até então escaliçavam-se paredes, roçavam-se
esculpturas, faziam-se embréchados; mas agora derribam-se curuchéus,
partem-se columnas, derrocam-se muralhas, quebram-se lousas de
sepulturas, e vão-se apagando todas as provas da historia. Faz-se o
palimpsesto do passado. Corre despeiado o vandalismo de um a outro
extremo do reino, desbaratando e assolando tudo. Comico perfeito,
desempenha todos os papeis, veste todos os trajos. Aqui é vereador, alli
administrador de concelho: ora é ministro, logo deputado: hoje é
escriptor, ámanhan funccionario. Corre na carruagem do fidalgo, faz
assentos de debito e credito no escriptorio do mercador, dá syllabadas
em latim de missaes, préga nos botequins sermões d'economia politica e
do direito publico, capitaneia soldados, vende bens nacionaes, ensina
sciencias; em summa, é tudo e mora por toda a parte. Attento ao menor
murmurio dos tempos que foram, indignado pela mais fugitiva lembrança
das gerações extinctas, irrita-se com tudo que possa significar uma
recordação. Assim excitado, argumenta, ora, esbraveja, esfalfa-se. O
eretismo dos nervos só póde affrouxar-lho, como as harmonias
melancholicas de harpa eolia, o ruido de algum monumento que desabe.
Apesar da ferocidade nervosa do vandalismo, não se creia, todavia, que
elle é desalinhado no vestuario, carrancudo na catadura, descomposto nos
meneios. Nada disso. O vandalismo é aprimorado no trajo, lhano e grave a
um tempo no porte, pontual na cortezia. Encontrá-lo-heis nas sallas
requebrando as damas, dançando, tomando chá; no theatro palmeiando com
luvas brancas os lances dramaticos. Entende francês e leu jà Voltaire,
Pigault-Lebrun e os melhores tractados do wisth: quasi que sabe ler e
escrever português. O vandalismo é culto, instruido, civil, affavel.
Tirem-lhe de diante os monumentos; será o epilogo de todos os dotes e
boas qualidades; será a mansidão incarnada.
Mas, infelizmente para elle, o velho Portugal estava cuberto de
recordações do passado. Cada facto historico tinha uma igreja, uma casa,
um mosteiro, um castello, uma muralha, um sepulchro, que eram os
documentos perennes desse facto e da existencia dos individuos que nelle
haviam intervindo. Encontrando tantas injurias mudas á decadencia
presente, o vandalismo irritou-se, ergueu-se e falou em feudos, em
dizimos, em corrupções fradescas, em maninhádegos, em servos de gleba,
em direitos de osas, em superstições; catou, em summa, todas as
vergonhas e deshonras do passado que pôde e soube, entresachando-as com
sentenças e logares communs do cathecismo politico de Ramon Salas e, por
uma logica incomprehensivel, por uma logica sua, chamou os homens do
alvião e da picareta e começou a derribar, victoriado pelo povo. Só
elle, immovel no meio da mobilidade do nosso tempo, no meio das opiniões
encontradas, das luctas, das commoções, tem apontado constante ao seu
alvo, a demolição indiscriminada do passado. Assim, pertence a todos os
bandos politicos, acceita todos os principios, curva-se a todos os
jugos, comtanto que o deixem roer os testemunhos da historia e da arte;
que o deixem fazer-nos esquecer da gloria nacional e de que somos um
povo de illustre ascendencia. Este pensamento é o seu pensamento unico,
perpetuo, inabalavel.
Ha pouco que que da villa de Peniche nos escreviam o seguinte: «Tendo
havido quem ousasse revolver e desfazer o tumulo em que jazia o cadaver
de D. Luiz de Athaide, na igreja do extincto convento do Bom-Jesus desta
villa, o facto excitou nos que concorreram a observar os despojos
mortaes daquelle heroe vivos desejos de ouvirem falar da sua vida e
feitos.» Não nos fallecem cartas em que se contenham noticias de
analogas profanações. De todos os angulos do reino se alevantam brados
de homens generosos, que lamentam a ruina dos velhos edificios, a
profanação das sepulturas, a destruição de todas as memorias da arte e
da historia. Quem hoje quizesse escrever as biographias dos nossos
homens illustres, talvez já não podesse dizer onde actualmente jazem os
restos da maior parte delles. O braço omnipotente do vandalismo
estendeu-se para os sepulchros; as campas estalaram e os ossos de nossos
avós lançaram-se aos cães e rolam pelo pó das estradas e pelas
immundicies das ruas. As inscripções lapidares vão-se enterrando por
alicerces e paredes, não á face destas, porque ahi alguem ainda poderia
lê-las; mas no fundo dos cavoucos ou no amago dos muros. Sem isso, não
nos vangloriariamos com inteira justiça de ter completamente renegado de
nossos maiores.
Referiu-nos um respeitavel viajante hespanhol que, entre os entulhos do
convento de S. Domingos de Lisboa, vira uma lagea onde se lia o
epitaphio de Fr. Luiz de Granada. Sollicitou dos demolidores que a
tirassem do meio das ruinas, porque essa pedra era valiosa memoria.
Provavelmente os economistas da alavanca, os philosophos da picareta
riram a bom rir do desvario daquelle hespanhol fanatico. A lapide
sepulchral de um dos homens mais sabios e eloquentes que a Peninsula
gerou lá jazerá a estas horas nos fundamentos de algum edificio, cujo
rendimento, abatidos decima e concertos, o vandalismo e o dono acharão
de certo preferivel á gloria de Fr. Luiz de Granada.
Oh, civilisação!
Levaram-nos a Coimbra em 1834 obrigações de serviço publico. Residiamos
ahi quando foi supprimido o mosteiro de Santa-Cruz. Correu então a
noticia de que se pretendia pedir ao governo que esse bello edificio
fosse doado ao municipio. Mas, para que? Para a camara o arrasar e fazer
uma praça. Não se realisou o nefando alvitre; mas os bons desejos não
faltaram. Uma praça no logar onde estivera Sancta-Cruz; uma praça
calçada com os fragmentos dos rendados umbraes do velho templo, com as
lageas quebradas dos tumulos de Affonso Henriques e de Sancho I e dos
demais varões illustres que alli repousam! Ha ahi, porventura, quem
avalie a sublimidade de tal pensamento e meça a incommensuravel
distancia que vai d'um edificio monumento, onde apenas ha historia,
arte, poesia, religião, a um terreiro amplo, bem amplo, onde a vadiagem
possa estirar-se regaladamente ao sol? Infelizmente; a cidade
litteraria, a _alma mater_, ficou privada deste documento ineluctavel da
sua illustração.
Pelas largas que tem tomado o vandalismo, podemos assegurar que dentro
deste seculo não haverá em Portugal um monumento. O Mexico ufanar-se-ha
do seu templo de Palenque, da sua pyramide de Tehuantepec; a India dos
subterraneos de Ellora e de Elephanta, e até, os habitantes barbaros da
Australia terão que mostrar aos estrangeiros os _moraes_ dos seus
antigos deuses. Só nós os portugueses não lhes poderemos dizer:--«eis os
testemunhos indubitaveis de que fomos uma nação antiga e gloriosa».
Correi as principaes cidades do reino; buscae os mais veneraveis
edificios. Ou jazem por terra ou foram applicados a usos que lhes estão
produzindo a ruina. A bella e grandiosa igreja de S. Francisco do Porto,
único monumento importante do seculo XV que possuia aquella cidade, foi
consagrada a armazem da alfandega. O mosteiro dos Jeronymos em Belem,
obra prima da architectura média entre ao néo-gothica e a da chamada do
renascimento, edificio magnifico de uma epocha de transição na arte,
como Sancta Sophia de Constantinopla o é de uma epocha analoga, foi
deturpada, não nos importa por quem, e o seu maravilhoso claustro
ludibriado com tapumes caiados e convertido em dormitorios forçamente
humidos e malsãos. A Batalha, Alcobaça, o convento da ordem de Christo
em Thomar cáhem em ruinas, e diz-se--«que importa?» Barbaros! Importa a
arte, as recordações, a memoria de nossos paes, a conservação de cousas
cuja perda é irremediavel, a gloria nacional, o passado e o futuro, as
obras mais admiraveis do engenho humano, a historia, a religião. Vós,
homens da destruição, dos alinhamentos, dos terreiros, da civilisação
vandalica, é que importaes bem pouco; porque, semelhantes a vermes,
roeis e não edificaes; porque não deixareis rasto no mundo depois de
apagar tantos vestigios alheios; porque nada valendo, menoscabaes os que
valeram muito; porque se um templo, um mosteiro, um castello duraram
seis ou oito seculos e durariam, sem vós, outros tantos, as vossas
picaretas, as vossas alavancas, os vossos camartellos estarão comidos de
ferrugem e informes antes de vinte annos, e são essas as unicas e
tristes memorias da vossa ominosa passagem na terra.
Desprezar os monumentos é brutal; persegui-los é impio e sacrilego. Os
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 02
  • Parts
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 01
    Total number of words is 4501
    Total number of unique words is 1842
    30.6 of words are in the 2000 most common words
    45.0 of words are in the 5000 most common words
    52.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 02
    Total number of words is 4587
    Total number of unique words is 1880
    31.0 of words are in the 2000 most common words
    45.7 of words are in the 5000 most common words
    52.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 03
    Total number of words is 4643
    Total number of unique words is 1617
    32.2 of words are in the 2000 most common words
    46.5 of words are in the 5000 most common words
    54.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 04
    Total number of words is 4544
    Total number of unique words is 1628
    32.7 of words are in the 2000 most common words
    47.2 of words are in the 5000 most common words
    55.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 05
    Total number of words is 4543
    Total number of unique words is 1603
    32.2 of words are in the 2000 most common words
    45.5 of words are in the 5000 most common words
    53.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 06
    Total number of words is 4594
    Total number of unique words is 1524
    29.8 of words are in the 2000 most common words
    44.8 of words are in the 5000 most common words
    52.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 07
    Total number of words is 4522
    Total number of unique words is 1894
    25.2 of words are in the 2000 most common words
    37.6 of words are in the 5000 most common words
    43.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 08
    Total number of words is 4631
    Total number of unique words is 1734
    3.5 of words are in the 2000 most common words
    4.8 of words are in the 5000 most common words
    5.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 09
    Total number of words is 4575
    Total number of unique words is 1808
    9.1 of words are in the 2000 most common words
    12.1 of words are in the 5000 most common words
    13.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 10
    Total number of words is 4484
    Total number of unique words is 1684
    32.0 of words are in the 2000 most common words
    47.2 of words are in the 5000 most common words
    53.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 11
    Total number of words is 4481
    Total number of unique words is 1650
    30.8 of words are in the 2000 most common words
    46.0 of words are in the 5000 most common words
    53.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 12
    Total number of words is 4447
    Total number of unique words is 1625
    32.5 of words are in the 2000 most common words
    46.6 of words are in the 5000 most common words
    54.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 13
    Total number of words is 4540
    Total number of unique words is 1722
    32.0 of words are in the 2000 most common words
    47.7 of words are in the 5000 most common words
    55.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 02 - 14
    Total number of words is 1956
    Total number of unique words is 854
    38.3 of words are in the 2000 most common words
    52.1 of words are in the 5000 most common words
    58.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.