Frei Luiz de Sousa - 3

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tenho nada, espôso da minha alma, todo o meu mal era susto; era terror
de te perder.
*Manuel*. Querida Magdalena!
*Magdalena*. Agora estou boa: Telmo ja me disse tudo, e curou-me com a
boa nova.--Maria, Deus lembrou-se de nós: ouviu as tuas orações, filha,
que as minhas... (_Vai a recahir na sua tristeza_.)
*Jorge*. Ora pois, mana, ora pois!... Louvado seja Elle por tudo. E haja
alegria! Que era sermos desagradecidos para com o Senhor, que nos valeu,
mostrar-se hoje alguem triste n'esta casa.
*Magdalena*, _fazendo por se alegrar_. Triste porquê? As tristezas
acabaram. (_Para Manuel de Sousa_) Tu ficas aqui ja de vez. Não me
deixas mais, não sais d'aopé de mim?--Agora, olha, estes primeiros dias
ao menos, hasde-me aturar, hasde-me fazer companhia. Preciso muito,
querido.
*Manuel*. Pois sim, Magdalena, sim; farei quanto quizeres.
*Magdalena*. É que eu estou boa... boa de todo; mas tenho uma...
*Manuel*. Uma imaginação que te atormenta. Havemos de castigá-la, ainda
que não seja senão para dar exemplo a certa donzella que nos está
ouvindo e que precisa... precisa muito.--Pois olha: hoje é
sexta-feira...
*Magdalena*. Sexta-feira! (_aterrada_) ai que é sexta-feira!
*Manuel*. Para mim tem sido sempre o dia mais bem estreado de toda a
semana.
*Magdalena*. Sim!
*Manuel*. É o dia da paixão de Christo, Magdalena.
*Magdalena*, _cahindo em si_. Tens razão.
*Manuel*. É hoje sexta-feira: e d'aqui a oito... vamos--d'aqui a quinze
dias bem contados, não saio de casa. Estás contente?
*Magdalena*. Meu espôso, meu marido, meu querido Manuel!
*Manuel*. E tu, Maria?
*Maria*, _amuada_. Eu não.
*Manuel*, _para Magdalena_. Queres tu saber por que é aquelle amúo? É
que eu precisava de ir hoje a Lisboa...
*Magdalena*. A Lisboa... hoje!
*Manuel*. Sim: e não posso deixar de ir. Sabes que por fins d'esta minha
pendencia com os governadores, eu fiquei em dívida--quem sabe se da
vida? Miguel de Moura e esses meus degenerados parentes eram capazes de
tudo!--Mas o certo é que fiquei em muita dívida ao arcebispo. Elle volta
hoje aqui para o convento; e meu irmão, que vai com outros religiosos
para o acompanharem, intende que eu tambem devo ir. Bem ves que não ha
remedio.
*Magdalena*. Logo hoje!... Este dia de hoje é o peior... se fosse
ámanhan, se fosse passado hoje!... E quando estarás de volta?
*Jorge*. Estamos aqui sem falta á bôcca da noite.
*Magdalena*, _fazendo por se resignar_. Paciencia: ao menos valha-nos
isso. Não me deixam aqui so outra noite... ésta noite, particularmente,
não fico so...
*Manuel*. Não, socega, não; estou aqui ao anoitecer. E nunca mais saio
d'aopé de ti. E não serão quinze dias; vinte, os que tu quizeres.
*Maria*. Então vou, meu pae, vou?--Minha mãe dá licença, dá?
*Magdalena*. Vais aonde, filha? que dizes tu?
*Maria*. Com meu pae que tem de ir ao Sacramento, de caminho.--E bem
sabeis, querida mãe, o que eu ando ha tanto tempo para ir áquelle
convento para conhecer a tia D. Joanna...
*Jorge*. Soror Joanna: assim é que se chama agora.
*Maria*. É verdade. E andam-me a prometter, ha um anno, que me hãode
levar lá... D'esta vez hãode-m'o cumprir... não é assim, minha mãe?
(_acarinhando-a_) minha querida mãesinha!--Sim, sim, dizei ja que sim.
*Magdalena*, _abraçada com a filha_. Oh Maria, Maria... tambem tu me
queres deixar!--tambem tu me desamparas... e hoje!
*Maria*. Venho logo, minha mãe, venho logo.--Olhae: e não tenhaes
cuidado commigo: vai meu pae, vai o tio Jorge,--levo a minha aia, a
Dorothea... E, é verdade, o meu fiel escudeiro hade ir tambem, o meu
Telmo.
*Magdalena*. E tua mãe, filha, deixa-la aqui so, a morrer de tristeza?
(_áparte_) e de medo!
*Manuel*. Tua mãe tem razão: não hade ser assim, hoje não póde ser.
(_Maria fica triste e desconsolada_.)
*Jorge*.--Ora pois; eu ja disse que não queria ver hoje ninguem triste
n'esta casa.--Venha ca a minha donzella dolorida, (_pegando-lhe pela
mão_) e faça aqui muitas festas ao tio frade, que eu fico a fazer
companhia a sua mãe. E vá, vá satisfazer essa louvavel curiosidade que
tem de ir ver aquella sancta freirinha que tanto deixou para deixar o
mundo e se ir interrar n'um claustro. Vá, e venha... melhor de coração,
não póde ser--que tu es boa como as que são boas, minha Maria--Mas
quero-te mais fria de cabeça: ouves?
*Maria*, _áparte_. Fria!... quando ella estiver ôca!--_(Alto)_ Vou-me
apromptar, minha mãe?
*Magdalena*, _sem vontade_. Se teu pae quer...
*Manuel*. Dou licença: vai. (_Maria sái a correr_.)

SCENA VI
MANUEL DE SOUSA, MAGDALENA, JORGE

*Manuel*. É preciso deixá-la espairecer, mudar de logar, distrahir-se:
aquelle sangue está em chammas, arde sôbre si e consomme-se, a não o
deixarem correr á vontade.--Hade vir melhor: verás.
*Magdalena*. Deus o queira!--Telmo que vá com ella; não o quero ca.
*Manuel*. Porquê?
*Magdalena*. Porque... Maria... Maria não está bem sem elle--e elle
tambem... em estando sem Maria--que é a sua segunda vida, diz o pobre do
velho,--sabes? Ja treslê muito... já está muito... e entra-me com
scismas que...
*Manuel*. Está, está muito velho, coitado! Pois que vá: melhor é.

SCENA VII
MANUEL DE SOUSA, MAGDALENA, JORGE; MARIA _entrando com_ TELMO e DOROTHEA

*Maria*. Então vamos, meu pae.
*Manuel*. Pois vamos.
*Jorge*. E são horas; vão. Á Ribeira é um pedaço de rio; e até ás sette,
o mais, tu precisas de estar de volta á porta da Oira, que é onde irão
ter os nossos padres á espera do arcebispo.--Eu ca me desculparei com o
prior. Vão.
_Maria_. Minha mãe! (_abraçando-a_) Então, se choraes assim, não vou.
*Manuel*. Nem eu, Magdalena. Ora pois! Eu nunca te vi assim.
*Magdalena*. Porque nunca assim estive...--Vão, vão... adeus!--Adeus,
espôso do meu coração!--Maria, minha filha, toma sentido no ar, não te
resfries. E o sol... não sáias debaixo do tôldo no bergantim. Telmo, não
te tires d'aopé d'ella.--Dá-me outro abraço, filha.--Dorothea, levaes
tudo? (_Examina uma bolsa grande de damasco que Dorothea leva no braço_)
Póde haver qualquer coisa, molhar-se, ter frio para a tarde... (_tendo
examinado a bolsa_) Vai tudo: bem!--(_Baixo a Dorothea_) Não me apartes
os olhos d'ella, Dorothea. Ouve. (_Falla baixo a Dorothea, que lhe
responde baixo tambem; depois diz alto_) Está bom.
*Manuel*. Não tenhas cuidado; vamos todos com ella. (_Abraçam-se outra
vez; Maria sái appressadamente, e para a mãe não ver que vai suffocada
com chôro_.)

SCENA VIII
MANUEL DE SOUSA, MAGDALENA, JORGE

*Magdalena*, _seguindo com os olhos a filha e respondendo a Manuel de
Sousa_. Cuidados!... eu não tenho ja cuidados. Tenho este medo, este
horror de ficar so... de vir a achar-me so no mundo...
*Manuel*. Magdalena!
*Magdalena*. Que queres? não está na minha mão.--Mas tu tens razão de te
infadar com as minhas impertinencias. Não fallêmos mais n'isso. Vai.
Adeus!--Outro abraço. Adeus!
*Manuel*. Oh querida mulher minha, parece que vou eu agora imbarcar n'um
galeão para a India... Ora vamos: ao anoitecer, antes da noite, aqui
estou.--E Jesus!... Olha a condessa de Vimioso, ésta Joanna de Castro
que a nossa Maria tanto deseja conhecer... olha se ella faria esses
prantos quando disse o último adeus ao marido...
*Magdalena*. Bemditta ella seja! Deu-lhe Deus muita fôrça, muita
virtude. Mas não lh'a invejo, não sou capaz de chegar a essas
perfeições.
*Jorge*. É perfeição verdadeira; é a do Evangelho: Deixa tudo e
segue-me.
*Magdalena*. Vivos ambos... sem offensa um do outro, querendo-se,
estimando-se... e separar-se cada um para sua cova! Verem-se com a
mortalha ja vestida--e... vivos, sãos... depois de tantos annos de
amor... e convivencia... condemnarem-se a morrer longe um do outro--sos,
sos!--E quem sabe se n'essa tremenda hora... arrependidos!
*Jorge*. Não o permittirá Deus assim... oh, não. Que horrivel coisa
seria!
*Manuel*. Não permitte, não.--Mas não pensêmos mais n'elles: estão
intregues a Deus... (_pausa_) E que temos nós com isso? A nossa situação
é tam differente... (_pausa_) Em todas nos póde Elle abençoar.--Adeus,
Magdalena, adeus! até logo. Maria ja lá vai no caes a ésta hora...
adeus! Jorge, não a deixes. (_Abraçam-se; Magdalena vai até fóra da
porta com elle_.)

SCENA IX
JORGE _so_

Eu faço por estar alegre, e queria vê-los contentes a elles... mas não
sei ja que diga do estado em que vejo minha cunhada, a filha... até meu
irmão o desconheço! A todos parece que o coração lhes adivinha
desgraça... E eu quasi que tambem ja se me péga o mal. Deus seja
comnosco!

SCENA X
JORGE, MAGDALENA

*Magdalena*, _fallando ao bastidor_. Vai, ouves, Miranda? Vai e deixa-te
lá estar até veres chegar o bergantim; e quando desimbarcarem, vem-me
dizer para eu ficar descançada. (_Vem para a scena_) Não ha vento, e o
dia está lindo. Ao menos não tenho sustos com a viagem. Mas a volta...
quem sabe? o tempo muda tam depressa...
*Jorge*. Não, hoje não tem perigo.
*Magdalena*. Hoje... hoje! Pois hoje é o dia da minha vida que mais
tenho receado... que ainda temo que não acabe sem muito grande
desgraça... É um dia fatal para mim: faz hoje annos que... que casei a
primeira vez--faz annos que se perdeu elrei D. Sebastião--e faz annos
tambem que... vi pela primeira vez a Manuel de Sousa.
*Jorge*. Pois contaes essa entre as infelicidades da vossa vida?
*Magdalena*. Conto. Este amor--que hoje está sanctificado e bemditto no
ceu, porque Manuel de Sousa é meu marido--começou com um crime, porque
eu amei-o assim que o vi... e quando o vi--hoje, hoje... foi em tal dia
como hoje!--D. João de Portugal ainda era vivo. O peccado estava-me no
coração; a bôcca não o disse... os olhos não sei o que fizeram: mas
dentro d'alma eu ja não tinha outra imagem senão a do amante... ja não
guardava a meu marido, a meu bom... a meu generoso marido... senão a
grosseira fidelidade que uma mulher bem nascida quasi que mais deve a si
do que ao espôso. Permittiu Deus... quem sabe se para me tentar?... que
n'aquella funesta batalha de Alcacer, entre tantos, ficásse tambem D.
João...

SCENA XI
MAGDALENA, JORGE, MIRANDA

*Miranda*, _appressado_. Senhora... minha senhora!
*Magdalena*, _sobresaltada_. Quem vos chamou, que quereis?--Ah! es tu,
Miranda. Como assim! ja chegaram?... Não póde ser.
*Miranda*. Não, minha senhora: ainda agora irão passando o pontal. Mas
não é isso...
*Magdalena*. Então que é? Não vos disse eu que não viesseis d'alli antes
de os ver chegar?
*Miranda*. Para lá torno já, minha senhora: ha tempo de sobejo.--Mas
venho trazer-vos recado... um estranho recado, por minha fe.
*Magdalena*. Dizei ja, que me estaes a assustar.
*Miranda*. Para tanto não é; nem coisa séria, antes quasi para rir. É um
pobre velho peregrino, um d'estes romeiros que aqui estão sempre a
passar, que veem das bandas d'Hespanha...
*Magdalena*. Um captivo... um remido?
*Miranda*. Não, senhora, não trás a cruz, nem é: é um romeiro--algum
d'estes que vão a Sant'Iago: mas diz elle que vem de Roma e dos
Sanctos-Logares.
*Magdalena*. Pois, coitado! virá. Agasalhae-o; e deem-lhe o que
precisar.
*Miranda*. É que elle diz que vem da Terra-Sancta, e...
*Magdalena*. E porque não virá?--Ide, ide, e fazei-o accommodar ja.--É
velho?
*Miranda*. Muito velho e com umas barbas!... Nunca vi tam formosas
barbas de velho, e tam alvas.--Mas, senhora, diz elle que vem da
Palestina e que vos trás recado...
*Magdalena*. A mim!
*Miranda*. A vós; e que por fôrça vos hade ver e fallar.
*Magdalena*. Ide vê-lo, Frei Jorge. Ingano hade ser: mas ide ver o pobre
do velho.
*Miranda*. É escusado, minha senhora: o recado que trás, diz que a
outrem o não dará senão a vós, e que muito vos importa sabê-lo.
*Jorge*. Eu sei o que é: alguma reliquia dos Sanctos-Logares--se elle
comeffeito de lá vem!--que o bom do velho vos quer dar... como taes
coisas se dão a pessoas da vossa qualidade... a trôco de uma esmolla
avultada. É o que elle hade querer; é o costume.
*Magdalena*. Pois venha embora o romeiro! E trazei-m'o aqui, trazei.

SCENA XII
MAGDALENA, JORGE

*Jorge*. Que é precisa muita cautella com estes peregrinos! A vieira no
chapeu e o bordão na mão, ás vezes não são mais que negaças para armar á
charidade dos fieis. E n'estes tempos revoltos...

SCENA XIII
MAGDALENA, JORGE e MIRANDA _que volta com o_ ROMEIRO

*Miranda*, _da porta_. Aqui está o romeiro.
*Magdalena*. Que entre. E vós, Miranda, tornae para onde vos mandei; ide
ja, e fazei como vos disse.
*Jorge*, _chegando á porta da direita_. Entrae, irmão, entrae. (_O
romeiro entra de vagar_.) Ésta é a senhora D. Magdalena de Vilhena.--E'
ésta a fidalga a quem desejaes fallar?
*Romeiro*. A mesma.
(A um signal de Frei Jorge, Miranda retíra-se.)

SCENA XIV
MAGDALENA, JORGE, ROMEIRO

*Jorge*. Sois portuguez?
*Romeiro*. Como os melhores, espero em Deus.
*Jorge*. E vindes?...
*Romeiro*. Do Sancto-Sepulchro de Jesus Christo.
*Jorge*. E visitastes todos os Sanctos-Logares?
*Romeiro*. Não os visitei; morei lá vinte annos cumpridos.
*Magdalena*. Sancta vida levastes, bom romeiro.
*Romeiro*. Oxalá!--Padeci muita fome, e não soffri com paciencia:
deram-me muitos trattos, e nem sempre os levei com os olhos n'Aquelle
que alli tinha padecido tanto por mim... Queria rezar, e meditar os
mysterios da Sagrada Paixão que alli se obrou... e as paixões mundanas,
e as lembranças dos que se chamavam meus segundo a carne, travavam-me do
coração e do espirito, que os não deixava estar com Deus, nem n'aquella
terra que é toda sua.--Oh! eu não merecia estar onde estive: bem vêdes
que não soube morrer lá.
*Jorge*. Pois bem: Deus quiz trazer-vos á terra de vossos paes; e quando
for sua vontade, ireis morrer socegado nos braços de vossos filhos.
*Romeiro*. Eu não tenho filhos, padre.
*Jorge*. No seio da vossa familia...
*Romeiro*. A minha familia... Já não tenho familia.
*Magdalena*. Sempre ha parentes, amigos...
*Romeiro*. Parentes!... Os mais chegados, os que eu me importava
achar... contaram com a minha morte, fizeram a sua felicidade com ella;
hão de jurar que me não conhecem.
*Magdalena*. Haverá tam má gente... e tam vil que tal faça?
*Romeiro*. Necessidade póde muito.--Deus lh'o perdoará se podér!
*Magdalena*. Não façaes juizos temerarios, bom romeiro.
*Romeiro*. Não faço.--De parentes, ja sei mais do que queria: amigos,
tenho um; com esse, conto.
*Jorge*. Ja não sois tam infeliz.
*Magdalena*. E o que eu podér fazer-vos, todo o amparo e gasalhado que
podér dar-vos, contae commigo, bom velho, e com meu marido, que hade
folgar de vos proteger...
*Romeiro*. Eu ja vos pedi alguma coisa, senhora?
*Magdalena*. Pois perdoae, se vos offendi, amigo.
*Romeiro*. Não ha offensa verdadeira senão as que se fazem a
Deus.--Pedi-lhe vós perdão a Elle, que vos não faltará de quê.
*Magdalena*. Não, irmão, não decerto. E Elle terá compaixão de mim.
*Romeiro*. Terá...
*Jorge*, _cortando a conversação_. Bom velho, dissestes trazer um recado
a ésta dama: dae-lh'o ja, que havereis mister de ir descançar...
*Romeiro*, _surrindo amargamente_. Quereis lembrar-me que estou abusando
da paciencia com que me teem ouvido? Fizestes bem, padre: eu ia-me
esquecendo... talvez me esquecesse de todo da mensagem a que vim...
estou tam velho e mudado do que fui!
*Magdalena*. Deixae, deixae, não importa; eu folgo de vos ouvir:
dir-me-heis vosso recado quando quizerdes... logo, ámanhan...
*Romeiro*. Hoje hade ser. Ha tres dias que não durmo nem descanço, nem
pousei ésta cabeça, nem pararam estes pés dia nem noite, para chegar
aqui hoje, para vos dar meu recado... e morrer depois... ainda que
morrêsse depois; porque jurei... faz hoje um anno... quando me
libertaram, dei juramento sôbre a pedra sancta do Sepulchro de
Christo...
*Magdalena*. Pois ereis captivo em Jerusalem?
*Romeiro*. Era: não vos disse que vivi lá vinte annos?
*Magdalena*. Sim, mas...
*Romeiro*. Mas o juramento que dei foi que, antes de um anno cumprido,
estaria deante de vós e vos diria da parte de quem me mandou...
*Magdalena*, _aterrada_. E quem vos mandou, homem?
*Romeiro*. Um homem foi,--e um honrado homem... a quem unicamente devi a
liberdade... a _ninguem_ mais. Jurei fazer-lhe a vontade, e vim.
*Magdalena*. Como se chama?
*Romeiro*. O seu nome nem o da sua gente nunca o disse a ninguem no
captiveiro.
*Magdalena*. Mas emfim, dizei vós...
*Romeiro*. As suas palavras, trago-as escriptas no coração com as
lagrymas de sangue que lhe vi chorar, que muitas vezes me cahiram
n'estas mãos, que me correram por éstas faces. Ninguem o consolava senão
eu... e Deus! Vêde se me esqueceriam as suas palavras.
*Jorge*. Homem, acabae.
*Romeiro*. Agora acabo; soffrei, que elle tambem soffreu muito.--Aqui
estão as suas palavras: «Ide a D. Magdalena de Vilhena, e dizei-lhe que
um homem que muito bem lhe quiz... aqui está vivo... por seu mal... e
d'aqui não pôde sahir nem mandar-lhe novas suas de ha vinte annos que o
trouxeram captivo.»
*Magdalena*, _na maior anciedade_. Deus tenha misericordia de mim!--E
esse homem, esse homem... Jesus! esse homem era... esse homem tinha
sido... levaram-n'o ahi de donde!... de Africa?
*Romeiro*. Levaram.
*Magdalena*. Captivo?...
*Romeiro*. Sim.
*Magdalena*. Portuguez?... captivo da batalha de?...
*Romeiro*. De Alcacer-Kebir.
*Magdalena*, _espavorida_. Meu Deus, meu Deus! Que se não abre a terra
debaixo dos meus pés?... que não cahem éstas paredes, que me não
sepultam ja aqui?...
*Jorge*. Callae-vos, D. Magdalena: a misericordia de Deus é infinita;
esperae. Eu duvido, eu não creio... éstas não são coisas para se crerem
de leve. (_Reflecte, e logo como por uma idea que lhe acccudiu
derepente_) Oh! inspiração divina... (_Chegando ao romeiro_) Conheceis
bem esse homem, romeiro: não é assim?
*Romeiro*. Como a mim mesmo.
*Jorge*. Se o vireis... ainda que fôra n'outros trajes... com menos
annos--pintado, digamos--conhece-lo-heis?
*Romeiro*. Como se me visse a mim mesmo n'um espelho.
*Jorge*. Procurae n'estes retrattos, e dizei-me se algum d'elles póde
ser.
*Romeiro*, _sem procurar, e apontando logo para o retratto de D. João_.
É aquelle.
*Magdalena*, _com um grito espantoso_. Minha filha, minha filha, minha
filha!... (_em tom cavo e profundo_) Estou... estás... perdidas,
deshonradas... infames! (_Com outro grito do coração_) Oh minha filha,
minha filha!... (_Foge espavorida e n'este gritar_.)

SCENA XV
JORGE e o ROMEIRO, que seguiu Magdalena com os olhos, e está alçado no
meio da casa com aspecto severo e tremendo.

*Jorge*. Romeiro, romeiro! quem es tu?
*Romeiro*, _apontando com o bordão para o retratto de D. João de
Portugal_. Ninguem.
(Frei Jorge cái prostrado no chão, com os braços estendidos, deante da
tribuna. O panno desce lentamente.)


ACTO TERCEIRO

_Parte baixa ao palacio de D. João de Portugal, communicando, pela porta
á esquerda do espectador, com a capella da Senhora-da-Piedade na egreja
de San'Paulo dos Dominicos d'Almada: é um casarão vasto sem ornato
algum. Arrumadas ás paredes, em diversos pontos, escadas, tocheiras,
cruzes, ciriaes e outras alfaias e guizamentos d'egreja de uso
conhecido. A um lado um esquife dos que usam as confrarias; do outro uma
grande cruz negra de tábua com o letreiro J. N. R. J., e toalha
pendente, como se usa nas cerimonias da semana-sancta. Mais para a scena
uma banca velha com dois ou tres tamboretes; a um lado uma tocheira
baixa com tocha accesa e ja bastante gasta; sôbre a mesa um castiçal de
chumbo, de credencia, baixo e com vela accesa tambem,--e um hábito
completo de religioso dominico, tunica, escapulario, rosario, cinto,
etc. No fundo, porta que dá para as officinas e aposentos que occupam o
resto dos baixos do palacio.--É alta noite_.

SCENA I
MANUEL DE SOUSA, _sentado n'um tamborete, aopé da mesa, o rosto
inclinado sôbre o peito, os braços cahidos e em completa prostração
d'espirito e de corpo; n'um tamborete do outro lado_ JORGE, _meio
incostado para a mesa, com as mãos postas, e os olhos pregados no
irmão_.
*Manuel*. Oh minha filha, minha filha! (_Silencio longo_) Desgraçada
filha, que ficas orphan!... orphan de pae e mãe... (_pausa_)... e de
familia e de nome, que tudo perdêste hoje... (_Levânta-se com violenta
afflição_) A desgraçada nunca os teve!--Oh Jorge, que ésta lembrança é
que me matta, que me desespera! (_Appertando a mão do irmão, que se
levantou após d'elle e o está consolando do gesto_.) É o castigo
terrivel do meu êrro... se foi êrro... crime sei que não foi. E sabe-o
Deus, Jorge, e castigou-me assim, meu irmão!
*Jorge*. Paciencia, paciencia: os seus juizos são imperscrutaveis.
(_Acalma e faz sentar o irmão: tornam a ficar ambos como estavam_.)
*Manuel*. Mas eu em que mereci ser feito o homem mais infeliz da terra,
pôsto de alvo á irrisão e ao discursar do vulgo?... Manuel de
Sousa-Coutinho, o filho de Lopo de Sousa-Coutinho, o filho do nosso pae,
Jorge!
*Jorge*. Tu chámas-te o homem mais infeliz da terra... Ja te esquecêste
que ainda está vivo aquelle...
*Manuel*, _cahindo em si_. É verdade. (_Pausa; e depois como quem se
desdiz_) Mas não é, nem tanto: padeceu mais, padeceu mais longamente, e
bebeu até ás fezes o calix das amarguras humanas... (_Levantando a voz_)
Mas fui eu, eu que lh'o preparei, eu que lh'o dei a beber, pelas mãos...
innocentes mãos!... d'essa infeliz que arrastei na minha quéda, que
lancei n'esse abysmo de vergonha, a quem cobri as faces--as faces puras,
e que não tinham córado d'outro pejo senão do da virtude e do recato...
cobri-lh'as de um veo d'infamia que nem a morte hade levantar, porque
lhe fica, perpétuo e para sempre, lançado sôbre o tumulo a cobrir-lhe a
memória de sombras... de manchas que se não lavam!--Fui eu o auctor de
tudo isto, o auctor da minha desgraça e da sua deshonra d'elles...
Sei-o, conheço-o; e não sou mais infeliz que nenhum?
*Jorge*. Ve a palavra que disseste: «deshonra»: lembra-te d'ella e de
ti, e considera, se podes pleitear miserias com esse homem a quem Deus
não quiz accudir com a morte antes de conhecer ess'outra agonia
maior.--Elle não tem...
*Manuel*. Elle não tem uma filha como eu, desgraçado... (_pausa_)--uma
filha bella, pura, adorada, sôbre cuja cabeça--oh! porque não é na
minha!--vai cahir toda essa deshonra, toda a ignominia, todo o opprobrio
que a injustiça do mundo, não sei porquê, me não quer lançar no rosto a
mim, para pôr tudo na testa branca e pura de um anjo que não tem outra
culpa senão a da origem que eu lhe dei.
*Jorge*. Não é assim, meu irmão; não te cegues com a dor, não te faças
mais infeliz do que es. Ja não es pouco, meu pobre Manuel, meu querido
irmão! e Deus hade levar em conta essas amarguras. Ja que te não póde
apartar o calix dos beiços, o que tu padeces, hade ser descontado
n'ella, hade resgatar a culpa...
*Manuel*. Resgate! sim, para o ceu: n'esse confio eu... mas o mundo?...
*Jorge*. Deixa o mundo e as suas vaidades.
*Manuel*. Estão deixadas todas. Mas este coração é de carne.
*Jorge*. Deus, Deus será o pae de tua filha.
*Manuel*. Olha, Jorge: queres que te diga o que sei decerto, e que devia
ser consolação... mas não é, que eu sou homem, não sou anjo, meu
irmão--devia ser consolação, e é desespêro, é a coroa d'espinhos de toda
ésta paixão que estou passando... é que a minha filha... Maria... a
filha do meu amor--a filha do meu peccado, se Deus quer que seja
peccado--não vive, não resiste, não sobrevive a ésta affronta.
(Desata a soluçar, cái com os cotovelos fixos na mesa e as mãos
appertadas no rosto: fica n'esta posição por longo tempo. Ouve-se de
quando em quando um soluço comprimido. Frei Jorge está em pé, detrás
d'elle, amparando-o com seu corpo, e os olhos postos no ceu.)
*Jorge*, _chamando timidamente_. Manuel!
*Manuel*. Que me queres, irmão?
*Jorge*, _animando-o_. Ella não está tam mal; já lá estive hoje...
*Manuel*. Estiveste?... oh! conta-me, conta-me; eu não tenho... não tive
ainda ânimo de a ir ver.
*Jorge*. Haverá duas horas que entrei na sua camera, e estive aopé do
leito. Dormia, e mais socegada da respiração. O accesso de febre, que a
tomou quando chegámos de Lisboa e que viu a mãe n'aquelle
estado,--parecia declinar... quebrar-se mais alguma coisa. Dorothea, e
Telmo... pobre velho coitado!... estavam aopé d'ella, cada um de seu
lado... disseram-me que não tinha tornado a... a...
*Manuel*. A lançar sangue?... Se ella deitou o do coração!... não tem
mais. N'aquelle corpo tam franzino, tam delgado, que mais sangue hade
haver?--Quando hontem a arranquei d'aopé da mãe e a levava nos braços,
não m'o lançou todo ás golfadas aqui no peito? (_Mostra um lenço branco
todo manchado de sangue_) Não o tenho aqui... o sangue... o sangue da
minha víctima?... que é o sangue das minhas veias... que é o sangue da
minha alma--é o sangue da minha querida filha! (_Beija o lenço muitas
vezes_) Oh meu Deus, meu Deus! eu queria pedir-te que a levasses ja... e
não tenho ânimo. Eu devia acceitar por mercê de tuas misericordias que
chamasses aquelle anjo para junto dos teus, antes que o mundo, este
mundo infame e sem commiseração, lhe cuspisse na cara com a desgraça do
seu nascimento.--Devia, devia... e não posso, não quero, não sei, não
tenho ânimo, não tenho coração. Peço-te vida, meu Deus (_ajoelha e põe
as mãos_) peço-te vida, vida, vida... para ella, vida para a minha
filha!... saude, vida para a minha querida filha!... e morra eu de
vergonha, se é preciso; cubra-me o escarneo do mundo, deshonre-me o
opprobrio dos homens, tape-me a sepultura uma loisa de ignominia, um
epitaphio que fique a bradar por essas eras deshonra e infamia sôbre
mim!... Oh meu Deus, meu Deus! (_Cái de bruços no chão... Passado algum
tempo, Frei Jorge se chega para elle, levanta-o quasi a pêso, e o torna
a assentar_.)
*Jorge*. Manuel, meu bom Manuel, Deus sabe melhor o que nos convem a
todos: põe nas suas mãos esse pobre coração, põe-n'o resignado e
contricto, meu irmão, e Elle fará o que em sua misericordia sabe que é
melhor.
*Manuel*, _com vehemencia e medo_. Então desinganas-me... desinganas-me
ja?... é isso que queres dizer? Falla, homem: não ha que esperar?... não
ha que esperar d'alli, não é assim? dize: morre, morre?...
(_desanimado_) Tambem fico sem filha!
*Jorge*. Não disse tal. Por charidade comtigo, meu irmão, não imagines
tal. Eu disse-te a verdade: Maria pareceu-me menos opprimida; dormia...
*Manuel*, _variando_. Se Deus quizera que não acordásse!
*Jorge*. Valha-me Deus!
*Manuel*. Para mim aqui está ésta mortalha: (_tocando no hábito_) morri
hoje... vou amortalhar-me logo; e adeus tudo o que era mundo para mim!
Mas minha filha não era do mundo... não era, Jorge; tu bem sabes que não
era: foi um anjo que veiu do ceu para me acompanhar na peregrinação da
terra, e que me apontava sempre, a cada passo da vida, para a eterna
pousada d'onde viera e onde me conduzia... Separou-nos o archanjo das
desgraças, o ministro das iras do Senhor que derramou sôbre mim o vaso
cheio das lagrymas, e a taça rasa das amarguras ardentes de sua
cholera... (_Cahindo de tom_) Vou com ésta mortalha para a sepultura...
e, viva ou morta, ca deixo a minha filha no meio dos homens que a não
conheceram, que a não hãode conhecer nunca, porque ella não era d'este
mundo nem para elle... (_Pausa_)--Torna lá, Jorge, vai vê-la outra vez,
vai e vem-me dizer; que eu ainda não posso... mas heide ir, oh! heide ir
vê-la e beijá-la antes de descer á cova... Tu não queres, não podes
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