Frei Luiz de Sousa - 2

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«peccavi» ao nosso bom prior.--Miranda, vinde ca. (_Vai com elle á porta
da esquerda, depois ás do eirado, e dá-lhe algumas ordens baixo_.)
*Magdalena*. Que tens tu? nunca entraste em casa assim. Tens coisa que
te dá cuidado... e não m'o dizes? O que é?
*Manuel*. É que... Senta-te, Magdalena; aqui aopé de mim, Maria; Jorge,
sentemo'-nos que estou cançado. (_Sentam-se todos_) Pois agora sabei as
novidades, que seriam extranhas se não fosse o tempo em que vivêmos.
(_Pausa_) É preciso sahir ja d'esta casa, Magdalena.
*Maria*. Ah! inda bem, meu pae!
*Manuel*. Inda mal! mas não ha outro remedio. Sahiremos ésta noite
mesma. Ja dei ordens a toda a familia: Teimo foi avisar as tuas aias do
que haviam de fazer, e lá anda pelas cameras velando n'esse cuidado.
Sempre é bom que vas dar um relance d'olhos ao que por lá se faz: eu
tambem irei por minha parte.--Mas temos tempo: isto são oito horas, á
meia noite vão quatro; d'aqui lá o pouco que me importa salvar estará
salvo... e elles não virão antes da manhan.
*Magdalena*. Então sempre é verdade que Luiz de Moura e os outros
governadores?...
*Manuel*. Luiz de Moura é um villão ruim, faz como quem é: o arcebispo
é... o que os outros querem que elle seja. Mas o conde de Sabugal, o
conde de Sancta-Cruz, que deviam olhar por quem são, e que tomaram este
incargo odioso... e vil, de opprimir os seus naturaes em nome de um rei
extrangeiro!... Oh que gente, que fidalgos portuguezes!... Heide-lhes
dar uma licção, a elles, e a este escravo d'este povo que os soffre,
como não levam tyrannos ha muito tempo n'esta terra.
*Maria*. O meu nobre pae! Oh, o meu querido pae! Sim, sim, mostrae-lhes
quem sois e o que vale um portuguez dos verdadeiros.
*Magdalena*. Meu adorado espôso, não te deites a perder, não te
arrebates. Que farás tu contra esses poderosos? Elles ja te querem tam
mal pelo mais que tu vales que elles, pelo teu saber--que esses grandes
fingem que desprezam... mas não é assim, o que elles teem é inveja!--O
que fará, se lhes deres pretexto para se vingarem da affronta em que os
traz a superioridade do teu merito!--Manuel, meu espôso, Manuel de
Sousa, pelo nosso amor...
*Jorge*. Tua mulher tem razão. Prudencia, e lembra-te de tua filha.
*Manuel*. Lembro-me de tudo, deixa estar.--Não te inquietes, Magdalena:
elles querem vir para aqui ámanhan de manhan; e nós forçosamente havemos
de sahir antes d'elles entrarem. Por isso é preciso ja.
*Magdalena*. Mas para onde iremos nós, derepente, a éstas horas?
*Manuel*. Para a unica parte para onde podêmos ir: a casa não é minha...
mas é tua, Magdalena.
*Magdalena*. Qual?... a que foi?... a que péga com San'Paulo?... Jesus
me valha!
*Jorge*. E fazem muito bem: a casa é larga e está em bom reparo, tem
ainda quasi tudo de trastes e paramentos necessarios: pouco tereis que
levar comvosco.--E então para mim, para os nossos padres todos que
alegria! Ficâmos quasi debaixo dos mesmos telhados.--Sabeis que tendes
alli tribuna para a capella da Senhora da Piedade, que é a mais devota e
a mais bella de toda a egreja... Ficâmos como vivendo junctos.
*Maria*. Tomára-me eu ja lá. (_Levânta-se pulando_.)
*Manuel*. E são horas, vamos a isto. (_Levantando-se_.)
*Magdalena*, _vindo para elle_. Ouve, escuta, que tenho que te dizer;
por quem es, ouve: não haverá algum outro modo?
*Manuel*. Qual, senhora, e que lhe heide eu fazer? Lembrae vós, vêde se
achaes.
*Magdalena*. Aquella casa... eu não tenho ânimo... Olhae: eu preciso de
fallar a sos comvosco.--Frei Jorge, ide com Maria ahi para dentro; tenho
que dizer a vosso irmão.
*Maria*. Tio, venha, quero ver se me accommodam os meus livrinhos;
(_confidencialmente_) e os meus papeis, que eu tambem tenho papeis:
deixae que lá na outra casa vos heide mostrar... Mas segrêdo?
*Jorge*. Tontinha!

SCENA VIII
MANUEL DE SOUSA, MAGDALENA

*Manuel*. _passeia agitado de um lado para o outro da scena, com as mãos
cruzadas detrás das costas, e parando derepente_: Hade saber-se no mundo
que ainda ha um portuguez em Portugal.
*Magdalena*. Que tens tu, dize, que tens tu?
*Manuel*. Tenho que não heide soffrer ésta affronta... e que é preciso
sahir d'esta casa, senhora.
*Magdalena*. Pois sahiremos, sim: eu nunca me oppuz ao teu querer, nunca
soube que coisa era ter outra vontade differente da tua; estou prompta a
obedecer-te sempre, cegamente, em tudo. Mas, oh! espôso da minha alma...
para aquella casa não, não me leves para aquella casa. (_Deitando-lhe os
braços ao pescoço_.)
*Manuel*. Ora tu não eras costumada a ter caprichos! Não temos outra
para onde ir: e a éstas horas, n'este appêrto... Mudaremos depois, se
quizeres... mas não lhe vejo remedio agora.--E a casa que tem? Porque
foi de teu primeiro marido! é por mim que tens essa repugnancia? Eu
estimei e respeitei sempre a D. João de Portugal; honro a sua memória,
por ti, por elle e por mim; e não tenho na consciencia por que receie
abrigar-me debaixo dos mesmos tectos que o cobriram.--Viveste alli com
elle? Eu não tenho ciumes de um passado que me não pertencia. E o
presente, esse é meu, meu so, todo meu, querida Magdalena... Não
fallêmos mais n'isso; é preciso partir, e ja.
*Magdalena*. Mas é que tu não sabes... eu não sou melindrosa nem de
invenções: em tudo o mais sou mulher, e muito mulher, querido; n'isso
não... mas tu não sabes a violencia, o constrangimento d'alma, o terror
com que eu penso em ter de entrar n'aquella casa. Parece-me que é voltar
ao podêr d'elle, que é tirar-me dos teus braços, que o vou incontrar
alli...--oh perdoa, perdoa-me, não me sái ésta idea da cabeça...--que
vou achar alli a sombra despeitosa de D. João que me está ameaçando com
uma espada de dous gumes... que a atravessa no meio de nós, entre mim e
ti e a nossa filha, que nos vai separar para sempre...--Que queres...?
bem sei que é loucura; mas a idea de tornar a morar alli, de viver alli
comtigo e com Maria, não posso com ella. Sei de certo que vou ser
infeliz, que vou morrer n'aquella casa funesta, que não estou alli tres
dias, tres horas sem que todas as calamidades do mundo venham sôbre
nós.--Meu esposo, Manuel, marido da minha alma, pelo nosso amor t'o
peço, pela nossa filha... vamos seja para onde for, para a cabana de
algum pobre pescador d'esses contornos, mas para alli não, oh! não.
*Manuel*. Em verdade nunca te vi assim; nunca pensei que tivesses a
fraqueza de accreditar em agouros. Não ha senão um temor justo,
Magdalena, é o temor de Deus; não ha espectros que nos possam apparecer
senão os das más acções que fazemos. Que tens tu na consciencia que t'os
faça temer? O teu coração e as tuas mãos estão puras: para os que andam
deante de Deus, a terra não tem sustos, nem o inferno pavores que se
lhes attrevam. Rezaremos por alma de D. João de Portugal n'essa devota
capella que é parte da sua casa; e não hajas mêdo que nos venha
perseguir n'este mundo aquella sancta alma que está no ceu, e que em tam
sancta batalha, pelejando por seu Deus e por seu rei, acabou martyr ás
mãos dos infieis.--Vamos, D. Magdalena de Vilhena, lembrae-vos de quem
sois e de quem vindes, senhora... e não me tires, querida mulher, com
vans chymeras de crianças, a tranquillidade do espirito e a fôrça do
coração, que as preciso inteiras n'esta hora.
*Magdalena*. Pois que vais tu fazer?
*Manuel*. Vou, ja te disse, vou dar uma licção aos nossos tyrannos que
lhes hade lembrar, vou dar um exemplo a este povo que o hade allumiar...

SCENA IX
MANUEL DE SOUSA, MAGDALENA, TELMO, MIRANDA e outros criados, _entrando
apressadamente_.

*Telmo*. Senhor, desimbarcaram agora grande comitiva de fidalgos,
escudeiros e soldados que veem de Lisboa e sobem a incosta para a villa.
O arcebispo não é decerto, ja ca está ha muito no convento: diz-se por
ahi...
*Manuel*. Que são os governadores? (_Telmo faz um signal affirmativo_.)
Quizeram-me inganar, e appressam-se a vir hoje... parece que
adivinharam... Mas não me colheram desapercebido. (_Chama á porta da
esquerda_) Jorge, Maria! (_Volta para a scena_) Magdalena, ja, ja sem
mais demora.

SCENA X
MANUEL DE SOUSA, MAGDALENA, TELMO, MIRANDA e os outros criados; JORGE e
MARIA _entrando_.

*Manuel*. Jorge, acompanha éstas damas. Telmo, ide, ide com
ellas.--(_Para os outros criados_) Partiu ja tudo, as arcas, os meus
cavallos, armas e tudo o mais?
*Miranda*. Quasi tudo foi ja; o pouco que falta está prompto e sahirá
n'um instante... pela porta detrás, se quereis.
*Manuel*. Bom; que sáia. (_A um signal de Miranda sahem dois criados_.)
Magdalena, Maria, não vos quero ver aqui mais. Ja, ide; serei comvosco
em pouco tempo.

SCENA XI
MANUEL DE SOUSA, MIRANDA e os outros criados.

*Manuel*. Meu pae morreu desastrosamente cahindo sôbre a sua propria
espada; quem sabe se eu morrerei nas chammas ateadas por minhas mãos?
Seja. Mas fique-se aprendendo em Portugal como um homem de honra e
coração, por mais poderosa que seja a tyrannia, sempre lhe póde
resistir, em perdendo o amor a coisas tam vis e precarias como são esses
haveres que duas faiscas destroem n'um momento... como é ésta vida
miseravel que um sôpro póde apagar em menos tempo ainda! (_Arrebata duas
tochas das mãos dos criados, corre á porta da esquerda, atira com uma
para dentro: e ve-se atear logo uma lavareda immensa. Vai ao fundo,
atira a outra tocha; e succede o mesmo. Ouve-se alarido de fóra_.)

SCENA XII
MANUEL-DE-SOUSA e criados: MAGDALENA, MARIA, TELMO E JORGE _accudindo_.

*Magdalena*. Que fazes?... que fizeste?--Que é isto, oh meu Deus!
*Manuel*, _tranquillamente_. Illumino a minha casa para receber os muito
poderosos e excelentes senhores governadores d'estes reinos. Suas
excellencias podem vir quando quizerem.
*Magdalena*. Meu Deus, meu Deus!... Ai, e o retratto de meu marido!...
Salvem-me aquelle retratto.
(_Miranda e outro criado vão para tirar o painel; uma columna de fogo
salta nas tapeçarias e os afugenta_.)
*Manuel*. Parti, parti. As materias inflammaveis que eu tinha disposto
vão-se ateando com espantosa velocidade. Fugi.
*Magdadena*, _cingindo-se ao braço do marido_. Sim, sim, fujamos.
*Maria*, _tomando-o do outro braço_. Meu pae, nós não fugimos sem vós.
(_Redobram os gritos de fóra, ouve-se rebate de sinos; cai o panno_.)


ACTO SEGUNDO

_É no palacio que fôra de D. João de Portugal, em Almada: salão antigo
de gôsto melancholico e pesado, com grandes retrattos de familia, muitos
de corpo inteiro, bispos, donnas, cavalleiros, monges; estão em logar
mais conspicuo, no fundo, o d'elrei D, Sebastião, o de Camões e o de D.
João de Portugal. Portas do lado direito para o exterior, do esquerdo
para o interior, cobertas de reposteiros com as armas dos condes de
Vimioso. São as antigas da casa de Bragança, uma aspa vermelha sôbre
campo de prata com cinco escudos do reino, um no meio e os quatro nos
quatros extremos da aspa; em cada braço e entre os dois escudos uma cruz
floreteada, tudo do modo que trazem actualmente os duques de Cadaval;
sôbre o escudo coroa de conde. No fundo um reposteiro muito maior e com
as mesmas armas cobre as portadas da tribuna que deita sôbre a capella
da Senhora da Piedade na egreja de San'Paulo dos dominicos d'Almada_.

SCENA I
MARIA e TELMO

*Maria*, _sahindo pela porta da esquerda e trazendo pela mão a Telmo,
que parece vir de pouca vontade_. Vinde, não façaes bulha, que minha mãe
ainda dorme. Aqui, aqui n'esta sala é que quero conversar. E não teimes,
Telmo, que fiz tenção e acabou-se.
*Telmo*. Menina!...
*Maria*. «Menina e môça me levaram de casa de meu pae:» é o principio
d'aquelle livro tam bonito que minha mãe diz que não intende: intendo-o
eu.--Mas aqui não ha menina nem môça; e vós, senhor Telmo-Paes, meu fiel
escudeiro, «faredes o que mandado vos é.»--E não me repliques, que então
altercâmos, faz-se bulha, e acorda minha mãe, que é o que eu não quero.
Coitada! Ha oito dias que aqui estamos n'esta casa, e é a primeira noite
que dorme com socêgo. Aquelle palacio a arder, aquelle povo a gritar, o
rebate dos sinos, aquella scena toda... oh! tam grandiosa e sublime, que
a mim me encheu de maravilha, que foi um espectaculo como nunca vi outro
de egual majestade!... á minha pobre mãe atterrou-a, não se lhe tira dos
olhos: vai a fechá-los para dormir, e diz que ve aquellas chammas
innoveladas em fummo a rodear-lhe a casa, a crescer para o ar, e a
devorar tudo com furia infernal... O retratto de meu pae, aquelle do
quarto de lavor tam seu favorito, em que elle estava tam gentil homem,
vestido de cavalleiro de Malta com a sua cruz branca no peito--aquelle
retratto não se póde consolar de que lh'o não salvassem, que se
queimásse alli. Ves tu? ella que não cria em agouros, que sempre me
estava a reprehender pelas minhas scismas, agora não lhe sái da cabeça
que a perda do retratto é prognostico fatal de outra perda maior que
está perto, de alguma desgraça inesperada, mas certa, que a tem de
separar de meu pae.--E eu agora é que faço de forte e assizada, que
zombo de agouros e de sinnas... para a animar, coitada!... que aqui
entre nós, Telmo, nunca tive tanta fe n'elles. Creio, oh se creio! que
são avisos que Deus nos manda para nos preparar.--E ha... oh! ha grande
desgraça a cahir sôbre meu pae... decerto! e sôbre minha mãe tambem, que
é o mesmo.
*Telmo*, _disfarçando o terror de que está tomado_. Não digaes isso...
Deus hade fazê-lo por melhor, que lh'o merecem ambos. (_Cobrando ânimo e
exaltando-se_) Vosso pae, D. Maria, é um portuguez ás direitas. Eu
sempre o tive em boa conta; mas agora, depois que lhe vi fazer aquella
acção,--que o vi, com aquella alma de portuguez velho, deitar a mão ás
tochas, e lançar elle mesmo o fogo á sua propria casa; queimar e
destruir n'uma hora tanto do seu haver, tanta coisa de seu gôsto, para
dar um exemplo de liberdade, uma licção tremenda a estes nossos
tyrannos... oh minha querida filha, aquillo é um homem. A minha vida que
elle queira é sua. E a minha pena, toda a minha pena é que o não
conheci, que o não estimei sempre no que elle valia.
*Maria*, _com as lagrymas nos olhos, e tomando-lhe as mãos_. Meu Telmo,
meu bom Telmo!... É uma glória ser filha de tal pae: não é? dize.
*Telmo*. Sim é: Deus o defenda!
*Maria*. Deus o defenda! amen.--E elles, os tyrannos governadores ainda
estarão muito contra meu pae? Ja soubeste hoje alguma coisa, das
diligências do tio Frei Jorge?
*Telmo*. Ja, sim. Vão-se desvanecendo--ainda bem!--os agouros de vossa
mãe... hãode sahir falsos de todo. O arcebispo, o conde de Sabugal, e os
outros, ja vosso tio os trouxe á razão, ja os moderou. Miguel de Moura é
que ainda está renitente; mas hade-lhe passar. Por estes dias fica tudo
socegado. Ja o estava se elle quizesse dizer que o fogo tinha pegado por
acaso. Mas ainda bem que o não quiz fazer; era desculpar com a villania
de uma mentira o generoso crime por que o perseguem.
*Maria*. Meu nobre pae!--Mas quando hade elle sahir d'aquelle omizio?
Passar os dias retirado n'essa quinta tam triste d'além do Alfeite, e
não podêr vir aqui senão de noite, por instantes, e Deus sabe com que
perigo!
*Telmo*. Perigo nenhum; todos o sabem e fecham os olhos. Agora é so
conservar as apparencias ahi mais uns dias, e depois fica tudo como
d'antes.
*Maria*. Ficará, póde ser, Deus queira que seja!--Mas tenho ca uma coisa
que me diz que aquella tristeza de minha mãe, aquelle susto, aquelle
terror em que está--e que ella disfarça com tanto trabalho na presença
de meu pae (tambem a mim m'o queria incobrir, mas agora ja não póde,
coitada!) aquillo é presentimento de desgraça grande...--Oh! mas é
verdade... vinde ca: (_Leva-o deante dos tres retrattos que estão no
fundo; e apontando para o de D. João_) de quem é este retratto aqui,
Telmo?
*Telmo*, _olha, e víra a cara de repente_. Esse é... hade ser... é um da
familia, d'estes senhores da casa de Vimioso que aqui estão tantos.
*Maria*, _ameaçando-o com o dedo_. Tu não dizes a verdade, Telmo.
*Telmo*, _quasi offendido_. Eu nunca menti, senhora D. Maria de Noronha.
*Maria*. Mas não diz a verdade toda o senhor Telmo-Paes; que é quasi o
mesmo.
*Telmo*. O mesmo!... Disse-vos o que sei, e o que é verdade; é um
cavalleiro da familia de meu outro amo que Deus... que Deus tenha em bom
logar.
*Maria*. E não tem nome o cavalleiro?
*Telmo*, _imbaraçado_. Hade ter: mas eu é que...
*Maria*, _como quem lhe vai tapar a bôcca_. Agora é que tu ias mentir de
todo... cala-te.--Não sei para que são estes mysterios: cuidam que eu
heide ser sempre criança!--Na noite que viemos para ésta casa, no meio
de toda aquella desordem, eu e minha mãe entrámos por aqui dentro sos e
viemos ter a ésta sala. Estava alli um brandão acceso, incostado a uma
d'essas cadeiras que tinham pôsto no meio da casa; dava todo o clarão da
luz n'aquelle retratto... Minha mãe, que me trazia pela mão, põe
derepente os olhos n'elle, e dá um grito, oh meu Deus!... ficou tam
perdida de susto, ou não sei de quê, que me ia cahindo em cima.
Pergunto-lhe o que é; não me respondeu: arrebata da tocha, e leva-me com
uma fôrça... com uma pressa a correr por essas casas, que parecia que
vinha alguma coisa má atrás de nós.--Ficou n'aquelle estado em que a
temos visto ha oito dias, e não lhe quiz fallar mais em tal. Mas este
retratto que ella não nomeia nunca de quem é, e so diz assim ás vezes:
«O outro, o outro...» este retratto, e o de meu pae que se queimou, são
duas imagens que lhe não sahem do pensamento.
*Telmo*, _com anciedade_. E ésta noite ainda lidou muito n'isso?
*Maria*. Não; desde hontem pela tarde, que ca esteve o tio Frei Jorge e
a animou com muitas palavras de consolação e de esperança em Deus, e que
lhe disse do que contava abrandar os governadores, minha mãe ficou
outra; passou-lhe de todo, ao menos até agora.--Mas então, vamos, tu não
me dizes do retratto? Olha: (_designando o d'elrei D. Sebastião_)
aquelle do meio, bem sabes se o conhecerei: é o do meu querido e amado
rei D. Sebastião. Que majestade! que testa aquella tam austera, mesmo
d'um rei môço e sincero ainda, leal, verdadeiro, que tomou ao serio o
cargo de reinar, e jurou que hade ingrandecer e cobrir de glória o seu
reino! Elle alli está... E pensar que havia de morrer ás mãos de mouros,
no meio de um deserto, que n'uma hora se havia de apagar toda a ousadia
reflectida que está n'aquelles olhos rasgados, no apertar d'aquella
bôcca!... Não póde ser, não póde ser. Deus não podia consentir em tal.
*Telmo*. Que Deus te ouvisse, anjo do ceu!
*Maria*. Pois não ha prophecias que o dizem? Ha, e eu creio n'ellas. E
tambem creio n'aquell'outro que alli está; (_indica o retratto de
Camões_) aquelle teu amigo com quem tu andáste lá pela India, n'essa
terra de prodigios e bizarrias, por onde elle ia... como é? ah, sim...
«N[~u]a mão sempre a espada e n'outra a penna...»
*Telmo*. Oh! o meu Luiz, coitado! bem lh'o pagaram. Era um rapaz, mais
moço do que eu, muito mais... e quando o vi a última vez... foi no
alpendre de San'Domingos em Lisboa--parece-me que o estou a ver--tam mal
trajado, tam incolhido... elle que era tam desimbaraçado e galan... e
então velho! velho alquebrado,--com aquelle ôlho que valia por dois, mas
tam summido e incovado ja, que eu disse commigo: «Ruim terra te comerá
cedo, corpo da maior alma que deitou Portugal!»--E dei-lhe um abraço...
foi o último... Elle pareceu ouvir o que me estava dizendo o pensamento
ca por dentro, e disse-me: «Adeus, Telmo! San'Telmo seja commigo n'este
cabo da navegação... que ja vejo terra, amigo»--e apontou para uma cova
que alli se estava a abrir.--Os frades resavam o officio dos mortos na
egreja... Elle entrou para lá, e eu fui-me embora. D'ahi a um mez,
vieram-me aqui dizer: «Lá foi Luiz de Camões n'um lençol para
Sant'Anna.» E ninguem mais fallou n'elle.
*Maria*. Ninguem mais!... Pois não tem aquelle livro que é para dar
memória aos mais esquecidos?
*Telmo*. O livro sim: acceitaram-n'o como o tributo de um escravo. Estes
riccos, estes grandes, opprimem e desprezam tudo o que não são as suas
vaidades, tomaram o livro como uma coisa que lhes fizesse um servo seu e
para honra d'elles. O servo, acabada a obra, deixaram-n'o morrer ao
desamparo sem lhe importar com isso... Quem sabe se folgaram? podia
pedir-lhes uma esmolla--escusavam de se incommodar a dizer que não.
*Maria*, _com enthusiasmo_. Está no ceu.--Que o ceu fez-se para os bons
e para os infelizes, para os que ja ca da terra o adivinharam!--Este lia
nos mysterios de Deus; as suas palavras são de propheta. Não te lembras
o que lá diz do nosso rei D. Sebastião?... como havia de elle então
morrer? Não morreu. (_Mudando de tom_) Mas o outro, o outro... quem é
est'outro, Telmo? Aquelle aspecto tam triste, aquella expressão de
melancholia tam profunda... aquellas barbas tam negras e cerradas... e
aquella mão que descança na espada como quem não tem outro arrimo, nem
outro amor n'esta vida...
*Telmo*, _deixando-se surprehender_. Pois tinha, oh se tinha...
(Maria olha para Telmo, como quem comprehendeu, depois torna a fixar a
vista no retratto; e ambos ficam deante d'elle como fascinados. No
entretanto e ás últimas palavras de Maria, um homem imbuçado com o
chapeu sôbre os olhos levanta o reposteiro da direita e vem, pé ante pé,
approximando-se dos dois que o não sentem.)

SCENA II
MARIA, TELMO e MANUEL DE SOUSA

*Manuel*. Aquelle era D. João de Portugal, um honrado fidalgo, e um
valente cavalleiro.
*Maria*, _respondendo sem observar quem lhe falla_. Bem m'o dizia o
coração!
*Manuel*, _desimbuçando-se e tirando o chapeu com muito affecto_. Que te
dizia o coração, minha filha?
*Maria*, _reconhecendo-o_. Oh meu pae, meu querido pae! ja me não diz
mais nada o coração senão isto. (_Lânça-se-lhe nos braços e beija-o na
face muitas vezes_.)--Ainda bem que viestes.--Mas de dia!... não tendes
receio, não ha perigo ja?
*Manuel*. Perigo, pouco. Hontem á noite não pude vir; e hoje não tive
paciencia para aguardar todo o dia: vim bem coberto com ésta capa...
*Telmo*. Não ha perigo nenhum, meu senhor; podeis estar á vontade e sem
receio. Ésta madrugada muito cedo estive no convento, e sei pelo senhor
Frei Jorge que está, se póde dizer, tudo concluido.
*Manuel*. Pois ainda bem, Maria. E tua mãe, tua mãe, filha?
*Maria*. Desde hontem está outra...
*Manuel*, _em acção de partir_. Vamos a vê-la.
*Maria*, _retendo-o_. Não, que dorme ainda.
*Manuel*. Dorme? Oh, então melhor.--Sentêmo'-nos aqui filha, e
conversêmos. (_Toma-lhe as mãos; sentam-se_) Tens as mãos tam quentes!
(_Beija-a na testa_) E ésta testa, ésta testa!... escalda.--Se isto está
sempre a ferver! Valha-te Deus, Maria! Eu não quero que tu penses.
*Maria*. Então que heide eu fazer?
*Manuel*. Folgar, rir, brincar, tanger na harpa, correr nos campos,
apanhar as flores...--E Telmo que te não conte mais histórias, que te
não insine mais trovas e soláos. Poetas e trovadores padecem todos da
cabeça... e é um mal que se péga.
*Maria*. Então para que fazeis vós como elles?... eu bem sei que fazeis.
*Manuel*, _surrindo_. Se tu sabes tudo! Maria, minha Maria.
(_Amimando-a_) Mas não sabías ainda agora de quem era aquelle
retratto...
*Maria*. Sabía.
*Manuel*. Ah! você sabía e estava fingindo?
*Maria*, _gravemente_. Fingir não, meu pae. A verdade... é que eu sabía
de um saber ca de dentro; ninguem m'o tinha ditto; e eu queria ficar
certa.
*Manuel*. Então adivinhas, feiticeira. (_Beija-a na testa_)--Telmo, ide
ver se chamaes meu irmão: dizei-lhe que estou aqui.

SCENA III
MANUEL DE SOUSA e MARIA

*Manuel*. Ora ouve ca, filha. Tu tens uma grande propensão para achar
maravilhas e mysterios nas coisas mais naturaes e singellas. E Deus
intregou tudo á nossa razão, menos os segredos de sua natureza
ineffavel, os de seu amor, e de sua justiça e misericordia para
comnosco. Esses são os pontos sublimes e incomprehensiveis da nossa fe!
Esses creem-se: tudo o mais examína-se.--Mas vamos: (_surrindo_) não
dirão que sou da Ordem dos Prégadores? Hade ser d'estas paredes, é
uncção da casa: que isto é quasi um convento aqui, Maria... Para frades
de San'Domingos não nos falta senão o hábito...
*Maria*. Que não faz o monge...
*Manuel*. Assim é, querida filha! Sem hábito, sem escapulario nem
corrêa, por baixo do setim e do velludo, o cilicio póde andar tam
appertado sôbre as carnes, o coração tam contricto no peito... a
morte--e a vida que vem depois d'ella--tam deante dos olhos sempre, como
na cella mais estreita e com o burel mais grosseiro cingido. Mas emfim,
chega-te aos bons... sempre é meio caminho andado. Eu estou
contentissimo de virmos para ésta casa--quasi que nem ja me pêza da
outra. Tenho aqui meu irmão Jorge e todos estes bons padres de
San'Domingos como de portas a dentro.--Ainda não viste d'aqui a egreja?
(_Levanta o reposteiro do fundo, e chegam ambos á tribuna_) É uma devota
capella ésta. E todo o templo tam grave! dá consolação vê-lo. Deus nos
deixe gosar em paz de tam boa visinhança. (_Tornam para o meio da
casa_.)
*Maria*, _que parou deante do retratto de D. João de Portugal, vólta-se
derepente para o pae_. Meu pae, este retratto é parecido?
*Manuel*. Muito; é raro ver tam perfeita similhança: o ar, os ademanes,
tudo. O pintor copiou fielmente quanto viu. Mas não podia ver, nem lhe
cabiam na télla, as nobres qualidades d'alma, a grandeza e valentia de
coração,--e a fortaleza d'aquella vontade serena mais indomavel, que
nunca foi vista mudar. Tua mãe ainda hoje estremece so de o ouvir
nomear; era um respeito... era quasi um temor sancto que lhe tinha.
*Maria*. E lá ficou n'aquella fatal batalha!...
*Manuel*. Ficou.--Tens muita pena, Maria?
*Maria*. Tenho.
*Manuel*. Mas se elle vivêsse... não existias tu agora, não te tinha eu
aqui nos meus braços.
*Maria*, _escondendo a cabeça no seio de seu pae_. Ai meu pae!

SCENA IV
MARIA, MANUEL DE SOUSA, JORGE

*Jorge*. Ora alviçaras, minha dona sobrinha! venha-me ja abraçar,
senhora D. Maria. (_Maria beija-lhe o escapulario; e depois abraçam-se_)
Inda bem que vieste, meu irmão! Está tudo feito: os governadores deixam
cahir o caso em esquecimento; Miguel de Moura ja cedeu.--O arcebispo foi
hontem a Lisboa e volta ésta tarde. Vamos eu e mais quatro religiosos
nossos buscá-lo para o acompanhar, e tu hasde vir comnosco para lhe
agradecer; que não teve parte no aggravo que te fizeram, e foi quem
acabou com os outros que se não resentissem da offensa ou do que lhes
prouve tomar como tal... deixêmos isso. Volta para o convento e quasi
que vem ser teu hóspede: é preciso fazer-lhe cumprimento, que no-lo
merece.
*Manuel*. Se elle vem so, sem os outros...
*Jorge*. So, so: os outros estão por essas quintas d'áquem do Tejo. E
nós não chegâmos aqui senão lá por noite.
*Manuel*. Se intendes que posso ir...
*Jorge*. Pódes e deves.
*Manuel*. Vou decerto.--E até eu preciso de ir a Lisboa: tenho negócio
de importancia no Sacramento, no vosso convento novo de freiras abaixo
de San'Vicente; necessito fallar com a abbadessa.
*Maria*. Oh meu pae, meu querido pae, levae-me, por quem sois, comvosco.
Eu queria ver a tia Joanna de Castro; é o maior gôsto que posso ter
n'esta vida. Quero ver aquelle rosto... De mim não se hade tapar...
*Manuel*. E tua mãe?
*Maria*. Minha mãe dá licença, dá. Ella ja está boa... oh, e em vos
vendo fica boa de todo, e eu vou.
*Manuel*. E os ares maus de Lisboa?
*Jorge*. Isso ja acabou de todo: nem signal de peste.--Mas emfim a
prudencia...
*Maria*. A mim não se me péga nada.--Meu querido pae, vamos, vamos.
*Manuel*. Veremos o que diz tua mãe, e como ella está.

SCENA V
MARIA, MANUEL DE SOUSA, JORGE; MAGDALENA _entrando_

*Magdalena*, _correndo a abraçar Manuel de Sousa_. Estou boa ja, não
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