Frei Luiz de Sousa - 1

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ALMEIDA GARRETT
FREI LUIZ DE SOUSA
DRAMA
_Representado, a primeira vez, em Lisboa, por uma sociedade particular,
no theatro de quinta do Pinheiro em quatro de Julho de_ MDCCCXLIII

ESCRIPTORIO DE PUBLICAÇÕES DE FERREIRA DOS SANTOS
Rua de Santa Catharina, 231
PORTO


Imprensa Commercial--Rua da Conceição, 29 a 37


PESSOAS

MANUEL (FREI LUIZ) DE SOUSA
DONA MAGDALENA DE VILHENA
DONA MARIA DE NORONHA
FREI JORGE-COUTINHO
O ROMEIRO
TELMO-PAES
O PRIOR DE BEMFICA
O IRMÃO CONVERSO
MIRANDA
O ARCEBISPO DE LISBOA
DOROTHEA
CÔRO DE FRADES DE SAN'DOMINGOS
Clerigos do arcebispo, frades, criados, etc.
Logar da scena--Almada.


ACTO PRIMEIRO

_Camera antiga, ornada com todo o luxo e caprichosa elegancia portugueza
dos principios do seculo dezasette: porcelanas, xarões, sedas, flores,
etc. No fundo duas grandes janellas rasgadas, dando para um eirado que
olha sôbre o Tejo e de donde se ve toda Lisboa: entre as janellas o
retratto, em corpo inteiro, de um cavalleiro môço vestido de preto com a
cruz branca de noviço de S. João de Jerusalem.--Defronte e para a bôcca
da scena um bufete pequeno coberto de ricco panno de velludo verde
franjado de prata; sôbre o bufete alguns livros, obras de tapeçaria
meias-feitas, e um vaso da China de collo alto, com flores. Algumas
cadeiras antigas, tamboretes razos, contadores. Da direita do
espectador, porta de communicação para o interior da casa, outra da
esquerda para o exterior.--É no fim da tarde_.

SCENA I
MAGDALENA so, sentada junto á banca, os pés sôbre uma grande almofada,
um livro aberto no regaço, e as mãos cruzadas sôbre elle, como quem
descahiu da leitura na meditação.

*Magdalena*, _repettindo machinalmente e de vagar o que acaba de ler_.
«N'aquelle ingano d'alma ledo e cego
Que a fortuna não deixa durar muito...»
Com paz e alegria d'alma... um ingano, um ingano de poucos instantes que
seja... deve de ser a felicidade suprema n'este mundo.--E que importa
que o não deixe durar muito a fortuna? Viveu-se, póde-se morrer. Mas
eu!... (_pausa_) Oh! que o não saiba elle ao menos, que não suspeite o
estado em que eu vivo... este medo, estes continuos terrores que ainda
me não deixaram gozar um so momento de toda a immensa felicidade que me
dava o seu amor.--Oh que amor, que felicidade... que desgraça a minha!
(_Torna a descahir em profunda meditação: silencio breve_.)

SCENA II
MAGDALENA, TELMO-PAES

*Telmo*, _chegando aopé de Magdalena que o não sentiu entrar_. A minha
senhora está a ler?...
*Magdalena*, _despertando_. Ah! sois vós, Telmo... Não, ja não leio: ha
pouca luz de dia ja; confundia-me a vista.--E é um bonito livro este! o
teu valido, aquelle nosso livro, Telmo.
*Telmo*, _deitando-lhe os olhos_. Oh, oh! Livro para damas--e para
cavalleiros... e para todos: um livro que serve para todos; como não ha
outro, tirante o respeito devido ao da Palavra de Deus! Mas esse não
tenho eu a consolação de ler, que não sei latim como meu senhor... quero
dizer, como o senhor Manuel de Sousa-Coutinho--que lá isso!... acabado
escholar é elle. E assim foi seu pae antes d'elle, que muito bem o
conheci: grande homem! Muitas lettras e de muito galante prática--e não
somenos as outras partes de cavalleiro: uma gravidade!... Ja não ha
d'aquella gente.--Mas, minha senhora, isto de a Palavra de Deus estar
assim n'outra lingua, n'uma lingua que a gente... que toda a gente não
intende!... confesso-vos que aquelle mercador inglez da rua-Nova, que
aqui vem ás vezes, tem-me ditto suas cousas que me quadram... E Deus me
perdoe! que eu creio que o homem é hereje d'esta seita nova d'Allemanha
ou d'Inglaterra. Será?
*Magdalena*. Olhae, Telmo; eu não vos quero dar conselhos: bem sabeis
que desde o tempo que... que...
*Telmo*. Que ja lá vai, que era outro tempo.
*Magdalena*. Pois sim... (_suspira_) Eu era uma criança; pouco maior era
que Maria.
*Telmo*. Não, a senhora D. Maria ja é mais alta.
*Magdalena*. É verdade, tem crescido de mais, e derepente n'estes dois
mezes ultimos...
*Telmo*. Então! Tem treze annos feitos, é quasi uma senhora, está uma
senhora... (_áparte_) Uma senhora aquella... pobre menina!
*Magdalena*, _com as lagrymas nos olhos_. Es muito amigo d'ella, Telmo?
*Telmo*. Se sou! Um anjo como aquelle... uma viveza, um espirito!... e
então que coração!
*Magdalena*. Filha da minha alma! (_pausa:--mudando de tom_) Mas olha,
meu Telmo, tórno a dizer-t'o: eu não sei como heide fazer para te dar
conselhos. Conheci-te de tam criança, de quando casei a... a... a
primeira vez--costumei-me a olhar para ti com tal respeito: ja então
eras o que hoje es, o escudeiro valido, o familiar quasi parente, o
amigo velho e provado de teus amos.
*Telmo*, _internecido_. Não digaes mais, senhora, não me lembreis de
tudo o que eu era.
*Magdalena*, _quasi offendida_. Porquê? não es hoje o mesmo, ou mais
ainda, se é possivel? Quitaram-te alguma coisa da confiança, do
respeito--do amor e carinho a que estava costumado o aio fiel de meu
senhor D. João de Portugal, que Deus tenha em glória?
*Telmo*, _áparte_. Terá...
*Magdalena*. O amigo e camarada antigo de seu pae?
*Telmo*. Não, minha senhora, não, por certo.
*Magdalena*. Então?...
*Telmo*. Nada. Continuae, dizei, minha senhora.
*Magdalena*. Pois está bem.--Digo que mal sei dar-vos conselhos, e não
queria dar-vos ordens... Mas, meu amigo, tu tomáste--e com muito gôsto
meu e de seu pae, um ascendente no espirito de Maria... tal que não
ouve, não cre, não sabe senão o que lhe dizes. Quasi que es tu a sua
donna, a sua aia de criação.--Parece-me... eu sei... não falles com ella
d'esse modo, n'essas coisas...
*Telmo*. O quê? No que me disse o inglez, sôbre a sagrada Escriptura que
elles lá teem em sua lingua, e que?...
*Magdalena*. Sim... n'isso decerto... e em tantas outras coisas tam
altas, tam fóra de sua edade, e muitas do seu sexo tambem, que aquella
criança está sempre a querer saber, a perguntar.--É a minha unica filha:
não tenho... nunca tivemos outra... e, além de tudo o mais, bem ves que
não é uma criança... muito... muito forte.
*Telmo*. É... delgadinha, é. Hade inrijar. É tê-la por aqui, fóra
d'aquelles ares apestados de Lisboa; e deixae, que se hade pôr outra.
*Magdalena*. Filha do meu coração!
*Telmo*. E do meu.--Pois não se lembra, minha senhora, que ao principio,
era uma criança que eu não podia...--é a verdade, não a podia ver: ja
sabereis porquê... mas vê-la, era ver... Deus me perdoe!... nem eu
sei...--E d'ahi começou-me a crescer, a olhar para mim com aquelles
olhos... a fazer-me taes meiguices, e a fazer-se-me um anjo tal de
formosura e de bondade, que--vêdes-me aqui agora que lhe quero mais do
que seu pae.
*Magdalena*, _surrindo_. Isso agora!...
*Telmo*. Do que vós.
*Magdalena*, _rindo_. Ora, meu Telmo!
*Telmo*. Mais, muito mais. E veremos: tenho ca uma coisa que me diz que
antes de muito se hade ver quem é que quer mais á nossa menina n'esta
casa.
*Magdalena*, _assustada_. Está bom; não entremos com os teus agouros e
prophecias do costume: são sempre de aterrar... Deixemo'-nos de
futuros...
*Telmo*. Deixemos, que não são bons.
*Magdalena*. E de passados tambem...
*Telmo*. Tambem.
*Magdalena*. E vamos ao que importa agora.--Maria tem uma
comprehensão...
*Telmo*. Comprehende tudo!
*Magdalena*. Mais do que convem.
*Telmo*. Ás vezes.
*Magdalena*. É preciso moderá-la.
*Telmo*. É o que eu faço.
*Magdalena*. Não lhe dizer...
*Telmo*. Não lhe digo nada que não possa, que não deva saber uma
donzella honesta e digna de melhor... de melhor.
*Magdalena*. Melhor quê?
*Telmo*. De nascer em melhor estado.--Quizestes ouvi-lo... está ditto.
*Magdalena*. Oh Telmo! Deus te perdoe o mal que me fazes. (_Desata a
chorar_.)
*Telmo*, _ajoelhando e beijando-lhe a mão_. Senhora... senhora D.
Magdalena, minha ama, minha senhora... castigae-me... mandae-me ja
castigar, mandae-me cortar ésta lingua pêrra que não toma insino.--Oh
senhora, senhora!... é vossa filha, é a filha do senhor Manuel de
Sousa-Coutinho, fidalgo de tanto primor, e de tam boa linhagem como os
que se teem por melhores n'este reino, em toda Hespanha... A senhora D.
Maria... a minha querida D. Maria é sangue de Vilhenas e de Sousas; não
precisa mais nada, mais nada, minha senhora, para ser... para ser...
*Magdalena*. Calae-vos, calae-vos, pelas dores de Jesus Christo, homem.
*Telmo*, _soluçando_. Minha ricca senhora!...
*Magdalena*, _inchuga os olhos, e toma uma attitude grave e firme_.
Levantae-vos, Telmo, e ouvi-me. (_Telmo levânta-se_) Ouvi-me com
attenção. É a primeira e será a última vez que vos fallo d'este modo e
em tal assumpto.--Vós fostes o aio e amigo de meu senhor... de meu
primeiro marido, o senhor D. João de Portugal; tinheis sido o
companheiro de trabalho e de glória de seu illustre pae, aquelle nobre
conde de Vimioso, que eu de tamanhinha me acostumei a reverenciar como
pae. Entrei depois n'essa familia de tanto respeito; achei-vos parte
d'ella, e quasi que vos tomei a mesma amizade que aos outros...
chegastes a alcançar um podêr no meu espirito, quasi maior...--decerto,
maior--que nenhum d'elles. O que sabeis da vida e do mundo, o que tendes
adquirido na conversação dos homens e dos livros--porêm, mais que tudo,
o que de vosso coração fui vendo e admirando cada vez mais--me fizeram
ter-vos n'uma conta, deixar-vos tomar, intregar-vos eu mesma tal
auctoridade n'esta casa e sôbre minha pessoa... que outros poderão
estranhar...
*Telmo*. Emendae-o, senhora.
*Magdalena*. Não, Telmo, não preciso nem quero emendá-lo.--Mas agora
deixae-me fallar.--Depois que fiquei so, depois d'aquella funesta
jornada de Africa que me deixou viuva, orphan e sem ninguem... sem
ninguem, e n'uma edade... com dezasette annos!--em vós, Telmo, em vós
so, achei o carinho e protecção, o amparo que eu precisava. Ficastes-me
em logar de pae: e eu... salvo n'uma coisa!--tenho sido para vós,
tenho-vos obedecido como filha.
*Telmo*. Oh minha senhora, minha senhora! mas essa coisa em que vos
apartastes dos meus conselhos...
*Magdalena*. Para essa houve podêr maior que as minhas fôrças... D. João
ficou n'aquella batalha com seu pae, com a flor da nossa gente. (_Signal
de impaciencia em Telmo_) Sabeis como chorei a sua perda, como respeitei
a sua memoria, como durante sette annos, incredula a tantas provas e
testimunhos de sua morte, o fiz procurar por essas costas de Berberia,
por todas as sejanas de Fez e Marrocos, por todos quantos aduares de
Alarves ahi houve... Cabedaes e valimentos, tudo se impregou;
gastaram-se grossas quantias; os embaixadores de Portugal e Castella
tiveram ordens apertadas de o buscar por toda a parte; aos padres da
Redempção, a quanto religioso ou mercador podia penetrar n'aquellas
terras, a todos se incommendava o seguir a pista do mais leve indício
que podésse desmentir, pôr em dúvida ao menos, aquella notícia que logo
viera com as primeiras novas da batalha de Alcacer. Tudo foi inutil; e a
ninguem mais ficou resto de dúvida...
*Telmo*. Senão a mim.
*Magdalena*. Dúvida de fiel servidor, esperança de leal amigo, meu bom
Telmo! que diz com vosso coração, mas que tem atormentado o meu...--E
então sem nenhum fundamento, sem o mais leve indício... Pois dizei-me em
consciencia, dizei-m'o de uma vez, claro e desinganado: a que se apéga
ésta vossa credulidade de sette... e hoje mais quatorze... vinte e um
annos?
*Telmo*, _gravemente_. Ás palavras, ás formaes palavras d'aquella carta
escripta na propria madrugada do dia da batalha, e entregue a Frei Jorge
que vo-la trouxe.--«Vivo ou morto»--resava ella--vivo ou morto... Não me
esqueceu uma lettra d'aquellas palavras; e eu sei que homem era meu amo
para as escrever em vão:--«Vivo ou morto, Magdalena, heide ver-vos pelo
menos ainda uma vez n'este mundo.»--Não era assim que dizia?
*Magdalena*, _aterrada_. Era.
*Telmo*. Vivo não veiu... inda mal!--E morto... a sua alma, a sua
figura...
*Magdalena*, _possuida de grande terror_. Jesus, homem!
*Telmo*. Não vos appareceu, decerto.
*Magdalena*. Não: credo!
*Telmo*, _mysterioso_. Bem sei que não. Queria-vos muito; e a sua
primeira visita, como de razão, seria para minha senhora. Mas não se ia
sem apparecer tambem ao seu aio velho.
*Magdalena*. Valha-me Deus, Telmo! Conheço que desarrazoaes, e comtudo
as vossas palavras mettem-me um medo... Não me façaes mais desgraçada.
*Telmo*. Desgraçada! Porquê? não sois feliz na companhia do homem que
amaes, nos braços do homem a quem sempre quizestes mais sôbre
todos?--Que o pobre de meu amo... respeito, devoção, lealdade, tudo lhe
tivestes, como tam nobre e honrada senhora que sois... mas amor!
*Magdalena*. Não está em nós da-lo, nem quitá-lo, amigo.
*Telmo*. Assim é. Mas os ciumes que meu amo não teve nunca--bem sabeis
que têmpera d'alma era aquella--tenho-os eu... aqui está a verdade nua e
crua... tenho-os eu por elle: não posso, não posso ver... e desejo,
quero, forcejo por me acostumar... mas não posso. Manuel de Sousa... o
senhor Manuel de Sousa-Coutinho é guapo cavalheiro, honrado fidalgo, bom
portuguez... mas--mas não é, nunca hade ser, aquelle espelho de
cavallaria e gentilleza, aquella flor dos bons... Ah meu nobre amo, meu
sancto amo!
*Magdalena*. Pois sim, tereis razão... tendes razão, será tudo como
dizeis. Mas reflecti, que haveis cabedal de intelligencia para
muito:--eu resolvi-me por fim a casar com Manuel de Sousa; foi do
apprazimento geral de nossas familias, da propria familia de meu
primeiro marido, que bem sabeis quanto me estima; vivemos (_com
affectação_) seguros, em paz e felizes... ha quatorze annos. Temos ésta
filha, ésta querida Maria que é todo o gôsto e ância da nossa vida.
Abençoou-nos Deus na formosura, no ingenho, nos dotes admiraveis
d'aquelle anjo... E tu, tu, meu Telmo, que es tam seu, que chegas a
pretender ter-lhe mais amor que nós mesmos...
*Telmo*. Não, não tenho!
*Magdalena*. Pois tens: melhor.--E es tu que andas, continuamente e
quasi por accinte, a sustentar essa chymera, a levantar esse phantasma,
cuja sombra, a mais remota, bastaria para innodoar a pureza d'aquella
innocente, para condemnar a eterna deshonra a mãe e a filha... (_Telmo
dá signaes de grande agitação_) Ora dize: ja pensastes bem no mal que
estás fazendo?--Eu bem sei que a ninguem n'este mundo, senão a mim,
fallas em taes coisas... fallas assim como hoje temos fallado... mas as
tuas palavras mysteriosas, as tuas allusões frequentes a esse desgraçado
rei D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda não quiz
acreditar que morrêsse, por quem ainda espera em sua leal
incredulidade!--esses continuos agouros em que andas sempre de uma
desgraça que está imminente sôbre a nossa familia... não ves que estás
excitando com tudo isso a curiosidade d'aquella criança, aguçando-lhe o
espirito--ja tam perspicaz!--a imaginar, a descobrir... quem sabe se a
accreditar n'essa prodigiosa desgraça em que tu mesmo... tu mesmo...
sim, não cres devéras? Não cres, mas achas não sei que doloroso prazer
em ter sempre viva e suspensa essa dúvida fatal. E então considera, ve:
se um terror similhante chega a entrar n'aquella alma, quem lh'o hade
tirar nunca mais?... O que hade ser d'ella e de nós?--Não a perdes, não
a mattas... não me mattas a minha filha?
*Telmo*, _em grande agitação durante a falla precedente, fica pensativo
e aterrado: falla depois como para si_. É verdade que sim! A morte era
certa.--E não hade morrer: não, não, não, tres vezes não. (_Para
Magdalena_) Á fe de escudeiro honrado, senhora D. Magdalena, a minha
bôcca não se abre mais; e o meu espirito hade... hade fechar-se
tambem... (_Á parte_) Não é possivel, mas eu heide salvar o meu anjo do
ceu! (_Alto para Magdalena_) Está ditto, minha senhora.
*Magdalena*. Ora Deus t'o pague,--Hoje é o último dia de nossa vida que
se falla em tal.
*Telmo*. O último.
*Magdalena*. Ora pois, ide, ide ver o que ella faz: (_levantando-se_)
que não esteja a ler ainda, a estudar sempre. (_Telmo vae a sahir_) E
olhae: chegae-me depois alli a San'Paulo, ou mandae, se não podeis...
*Telmo*. Ao convento dos Dominicos? Pois não posso!... quatro passadas.
*Magdalena*. E dizei a meu cunhado, a Frei Jorge-Coutinho, que me está
dando cuidado a demora de meu marido em Lisboa; que me prometteu de vir
antes de véspera, e não veiu; que é quasi noite, e que ja não estou
contente com a tardança. (_Chega á varanda, e olha para o rio_) O ar
está sereno, o mar tam quieto, e a tarde tam linda!... quasi que não ha
vento, é uma viração que affaga... Oh e quantas faluas navegando tam
garridas por esse Tejo! Talvez n'alguma d'ellas--n'aquella tam
bonita--venha Manuel de Sousa.--Mas n'este tempo não ha que fiar no
Tejo, d'um instante para o outro levanta-se uma nortada... e então aqui
o pontal de Cacilhas!--Que elle é tam bom mareante... Ora, um cavalleiro
de Malta! (_olha para o retratto com amor_) Não é isso o que me dá maior
cuidado. Mas em Lisboa ainda ha peste, ainda não estão limpos os ares...
E ess'outros ares que por ahi correm d'estas alterações públicas,
d'estas malquerenças entre castelhanos e portuguezes! Aquelle character
inflexivel de Manuel de Sousa traz-me n'um susto contínuo.--Vai, vai a
Frei Jorge, que diga se sabe alguma coisa, que me assocegue, se podér.

SCENA III
MAGDALENA, TELMO, MARIA

*Maria*, _entrando com umas flores na mão, incôntra-se com Telmo, e o
faz tornar para a scena_. Bonito! Eu ha mais de meia hora no eirado
passeando--e sentada a olhar para o rio a ver as faluas e os bergantins
que andam para baixo e para cima--e ja abhorrecida de esperar... e o
senhor Telmo, aqui pôsto a conversar com minha mãe, sem se importar de
mim!--Que é do romance que me promettestes? não é o da batalha, não é o
que diz:
Postos estão, frente a frente,
Os dois valorosos campos;
é o outro, é o da ilha incoberta onde está elrei D. Sebastião, que não
morreu e que hade vir um dia de névoa muito cerrada... Que elle não
morreu; não é assim, minha mãe?
*Magdalena*. Minha querida filha, tu dizes coisas? Pois não tens ouvido,
a teu tio Frei Jorge e a teu tio Lopo de Sousa, contar tantas vezes como
aquillo foi? O povo coitado imagina essas chymeras para se consolar na
desgraça.
*Maria*. Voz do povo, voz de Deus, minha senhora mãe: elles que andam
tam crentes n'isto, alguma coisa hade ser. Mas ora o que me dá que
pensar é ver que, tirado aqui o meu bom velho Telmo, (_chêga-se toda
para elle, acarinhando-o_) ninguem n'esta casa gosta de ouvir fallar em
que escapásse o nosso bravo rei, o nosso sancto rei D. Sebastião.--Meu
pae, que é tam bom portuguez, que não póde soffrer estes castelhanos, e
que até ás vezes dizem que é demais o que elle faz e o que elle falla...
em ouvindo duvidar da morte do meu querido rei D. Sebastião... ninguem
tal hade dizer, mas põe-se logo outro, muda de semblante, fica pensativo
e carrancudo: parece que o vinha affrontar, se voltásse, o pobre do
rei.--Ó minha mãe, pois elle não é por D. Filippe; não é, não?
*Magdalena*. Minha querida Maria, que tu hasde estar sempre a imaginar
n'essas coisas que são tam pouco para a tua edade! Isso é o que nos
afflige, a teu pae e a mim; queria-te ver mais alegre, folgar mais, e
com coisas menos...
*Maria*. Então, minha mãe, então!--Veem, veem?... tambem minha mãe não
gosta. Oh! essa ainda é peor, que se afflige, chora... ella ahi está a
chorar... ella ahi está a chorar... (_vai-se abraçar com a mãe que
chora_) Minha querida mãe, ora pois então!--Vai-te embora, Telmo,
vai-te: não quero mais fallar, nem ouvir fallar de tal batalha, nem de
taes histórias, nem de coisa nenhuma d'essas.--Minha querida mãe!
*Telmo*. E é assim: não se falla mais n'isso. E eu vou-me embora. (_Á
parte, indo-se depois de lhe tomar as mãos_) Que febre que ella tem
hoje, meu Deus! queimam-lhe as mãos... e aquellas rosetas nas faces...
Se o perceberá a pobre da mãe!

SCENA IV
MAGDALENA, MARIA

*Maria*. Quereis vós saber, mãe, uma tristeza muito grande que eu
tenho?--A mãe ja não chora, não? ja se não infada commigo?
*Magdalena*. Não me infado comtigo nunca, filha; e nunca me affliges,
querida. O que tenho é o cuidado que me dás, é o receio de que...
*Maria*. Pois ahi está a minha tristeza: é esse cuidado em que vos vejo
andar sempre por minha causa. Eu não tenho nada; e tenho saude, olhae
que tenho muita saude.
*Magdalena*. Tens, filha... se Deus quizer, hasde ter; e hasde viver
muitos annos para consolação e amparo de teus paes que tanto te querem.
*Maria*. Pois olhae: passo noites inteiras em claro a lidar n'isto, e a
lembrar-me de quantas palavras vos tenho ouvido, e a meu pae... e a
recordar-me da mais pequena acção e gesto,--e a pensar em tudo, a ver se
descubro o que isto é--o porque tendo-me tanto amor... que, oh isso
nunca houve decerto filha querida como eu!...
*Magdalena*. Não, Maria.
*Maria*. Pois sim; tendo-me tanto amor, que nunca houve outro egual,
estaes sempre n'um sobresalto commigo?...
*Magdalena*. Pois se te estremecêmos?
*Maria*. Não é isso, não é isso: é que vos tenho lido nos olhos... Oh,
que eu leio nos olhos, leio, leio!... e nas estrêllas do ceu tambem--e
sei coisas...
*Magdalena*. Que estás a dizer, filha, que estás a dizer? que desvarios!
Uma menina do teu juizo, temente a Deus... não te quero ouvir fallar
assim.--Ora vamos: anda ca, Maria, conta-me do teu jardim, das tuas
flores. Que flores tens tu agora? O que são éstas? (_pegando nas que
ella traz na mão_)
*Maria*, _abrindo a mão e deixando-as cahir no regaço da mãe_. Murchou
tudo... tudo estragado da calma... Éstas são papoulas que fazem dormir,
colhi-as para as metter debaixo do meu cabeçal ésta noite; quero-a
dormir de um somno, não quero sonhar, que me faz ver coisas... lindas ás
vezes, mas tam extraordinarias e confusas...
*Magdalena*. Sonhar, sonhas tu acordada, filha! Que, olha, Maria,
imaginar é sonhar: e Deus pôs-nos n'este mundo para velar e
trabalhar--com o pensamento sempre n'elle sim, mas sem nos extranharmos
a éstas coisas da vida que nos cercam, a éstas necessidades que nos
impõe o estado, a condicção em que nascêmos. Ves tu, Maria: tu es a
nossa unica filha, todas as esperanças de teu pae são em ti...
*Maria*. E não lh'as posso realizar, bem sei.--Mas que heide eu fazer?
eu estudo, leio...
*Magdalena*. Les demais, cânças-te, não te distraes como as outras
donzellas da tua edade, não es...
*Maria*. O que eu sou... só eu o sei, minha mãe... E não sei, não: não
sei nada, senão que o que devia ser não sou...--Oh! porque não havia de
eu ter um irmão que fosse um galhardo e valente mancebo, capaz de
commandar os terços de meu pae, de pegar n'uma lança d'aquellas com que
os nossos avós corriam a India, levando adeante de si Turcos e Gentios!
um bello moço que fosse o retratto proprio d'aquelle gentil cavalleiro
de Malta que alli está. (_Apontando para o retratto_) Como elle era
bonito meu pae! Como lhe ficava bem o preto!... e aquella cruz tam alva
em cima! Paraque deixou elle o hábito, minha mãe, porque não ficou
n'aquella sancta religião, a vogar em suas nobres galeras, por esses
máres, e a affugentar os infieis deante da bandeira da Cruz?
*Magdalena*. Oh filha, filha!... (_Mortificada_) porque não foi vontade
de Deus: tinha de ser d'outro modo.--Tomára eu agora que elle chegásse
de Lisboa! Comeffeito é muito tardar... valha-me Deus!

SCENA V
JORGE, MAGDALENA, MARIA

*Jorge*. Ora seja Deus n'esta casa!
(Maria beija-lhe o escapulario e depois a mão; Magdalena somente o
escapulario.)
*Magdalena*. Sejaes bem vindo, meu irmão!
*Maria*. Boas tardes, tio Jorge!
*Jorge*. Minha senhora mana!--A bençam de Deus te cubra, filha!--Tambem
estou desassocegado como vós, mana Magdalena: mas não vos afflijaes,
espero que não hade ser nada.--É certo que tive umas notícias de
Lisboa...
*Magdalena*, _assustada_. Pois que é, que foi?
*Jorge*. Nada, não vos assusteis; mas é bom que estejaes prevenida, por
isso vo-lo digo. Os governadores querem sair da cidade... é um capricho
verdadeiro... Depois de aturarem mettidos alli dentro toda a fôrça da
peste, agora que ella está, se póde dizer, acabada, que são rarissimos
os casos, é que por fôrça querem mudar de ares.
*Magdalena*. Pois coitados!...
*Maria*. Coitado do povo!--Que mais valem as vidas d'elles? Em pestes e
desgraças assim, eu intendia, se governásse, que o serviço de Deus e do
rei me mandava ficar, até á última, onde a miseria fosse mais e o perigo
maior, para attender com remedio e amparo aos necessitados.--Pois, rei
não quer dizer pae commum de todos?
*Jorge*. A minha donzella Theodora!--Assim é, filha; mas o mundo é
d'outro modo: que lhe faremos?
*Maria*. Emendá-lo.
*Jorge*, _para Magdalena, baixo_. Sabeis que mais? Tenho medo d'esta
criança.
*Magdalena*, _do mesmo modo_. Tambem eu.
*Jorge*, _alto_. Mas emfim, resolveram sahir: e sabereis mais que, para
côrte e «buen-retiro» dos nossos cinco reis, os senhores governadores de
Portugal por D. Filippe de Castella que Deus guarde, foi escolhida ésta
nossa boa villa d'Almada, que o deveu á fama de suas aguas sadias, ares
lavados e graciosa vista.
*Magdalena*. Deixá-los vir.
*Jorge*. Assim é: que remedio! Mas ouvi o resto. O nosso pobre convento
de San'Paulo tem de hospedar o senhor arcebispo D. Miguel de Castro,
presidente do govêrno.--Bom prelado é elle; e, se não fosse que nos tira
do humilde socêgo de nossa vida, por vir como senhor e principe
secular... o mais, paciencia. Peior é o vosso caso...
*Magdalena*. O meu!
*Jorge*. O vosso e de Manuel de Sousa: porque os outros quatro
governadores--e aqui está o que me mandaram dizer em muito segrêdo de
Lisboa--dizem que querem vir para ésta casa, e pôr aqui aposentadoria.
*Maria*, _com vivacidade_. Fechâmos-lhes as portas. Mettêmos a nossa
gente dentro--o terço de meu pae tem mais de seiscentos homens--e
defendêmo'-nos. Pois não é uma tyrannia?...--E hade ser bonito!...
Tomára eu ver seja o que for que se pareça com uma batalha!
*Jorge*. Louquinha!
*Magdalena*. Mas que mal fizemos nós ao conde de Sabugal e aos outros
governadores, para nos fazerem esse desacato? Não ha por ahi outras
casas; e elles não sabem que n'esta ha senhoras, uma familia... e que
estou eu aqui?...
*Maria*, _que esteve com o ouvido inclinado para a janella_. É a voz de
meu pae! Meu pae que chegou.
*Magdalena*, _sobresaltada_. Não oiço nada.
*Jorge*. Nem eu, Maria.
*Maria*. Pois oiço eu muito claro. É meu pae que ahi vem... e vem
affrontado!

SCENA VI
JORGE, MAGDALENA, MARIA, MIRANDA

*Miranda*. Meu senhor chegou: vi agora d'aquelle alto entrar um
bergantim que é por fôrça o nosso. Estaveis com cuidado; e era para
isso, que ja vai a cerrar-se a noite... Vim trazer-vos depressa a
notícia.
*Magdalena*. Obrigada, Miranda.--É extraordinaria ésta criança; ve e
ouve em taes distâncias...
(Maria tem sahido para o eirado, mas volta logo depois.)
*Jorge*. É verdade. (_Á parte_) Terrivel signal n'aquelles annos e com
aquella compleição!

SCENA VII
JORGE, MAGDALENA, MARIA, MIRANDA, MANUEL DE SOUSA _entrando com varios
criados que o seguem--alguns com brandões accesos.--É noite fechada_.

*Manuel*, _parando juncto da porta, para os criados_. Façam o que lhes
disse. Ja, sem mais detença! Não apaguem esses brandões; incostem-n'os
ahi fóra no patim. E tudo o mais que eu mandei.--(_Vindo ao proscenio_)
Magdalena! Minha querida filha, minha Maria! (_Abraça-as_) Jorge, ainda
bem que aqui estás, preciso de ti: bem sei que é tarde e que são horas
conventuaes; mas eu irei depois comtigo dizer a «mea culpa» e o
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