Electra: Drama em cinco actos - 7

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Que querem essas senhoras? (_Chega Patros do jardim, correndo_)
_Patros_
(_pesarosa, choramigando_) Minha senhora, a senhorita enlouqueceu...
Corre, foge, desapparece, chamando em gritos por sua mãe... Não quer que
a consolem... não ouve, não vê ninguem, não conhece ninguem!
_Evarista_
(_caminhando para o jardim_) Filha da minh’alma!
_Maximo_
(_olhando para o jardim_) Ahi vem. (_Larga Pantoja e dirige-se a ella_)
_Patros_
O senhor e o snr. Marquez conseguiram convencel-a e trazem-a para casa...
(_Apparece Electra conduzida pelo marquez e por Urbano. Junto d’elles,
Maximo. Ao vêr os que estão em scena Electra oppõe alguma resistencia.
Suave e carinhosamente a obrigam a approximar-se. Traz o cabello e o seio
adornado de flôrzinhas_)

SCENA XIII
ELECTRA, MAXIMO, EVARISTA, PANTOJA, URBANO, MARQUEZ E PATROS
(Conservam-se na scena a superiora e as irmãs)
_Evarista_
Deliras, minha pobre filha!
_Maximo_
Ouve, minh’alma, vem, escuta. O meu carinho será a tua razão.
_Electra_
(_afasta-se de Maximo com um movimento de pudor. O seu delirio é sereno,
sem gritos, sem risadas. Manifesta-o com uma accentuação de dôr resignada
e melancolica_) Não te approximes. Não te pertenço. Já não sou tua.
_Maximo_
Porque me foges? para onde vaes sem mim?
_Pantoja_
(_que passou para a direita, junto de Evarista_) Para a eterna verdade,
para a inalteravel paz.
_Electra_
Vou por minha mãe. Sabem onde está minha mãe?... Vi-a no côrro dos
meninos... Foi depois até a mimosa que está á entrada da gruta... E eu a
seguil-a sem a alcançar... Olhava para mim e fugia... (_Ouve-se ao longe
o canto dos meninos_)
_Marquez_
Aqui está Maximo... Olhe... É o seu noivo.
_Maximo_
(_vivamente_) Serei o teu marido... Ninguem se oppõe, e não ha força
nenhuma que o empeça, Electra, minha vida.
_Electra_
(_impondo silencio_) Quem fala aqui de noivos e noivas? Quebradas as
festas do noivado: não ha bôda... Que tristeza a da minha alma!... Só ha
padres com tochas a rezar por defuntos... Que grande é o mundo, e que só
que está! que vazio!... Acima da terra, pelo ceu, passam nuvens negras,
que são illusões, as illusões que foram minhas e não são de ninguem
agora... as illusões sem dôno!... Que solidão!... Tudo escurece, tudo
chora... Vae acabar o mundo... vae acabar. (_Com arrebatamento de medo_)
Quero fugir, quero-me esconder. Não quero padres, não quero tochas, não
quero officios... Quero ir para a minha mãe... Onde m’a enterraram?...
Levem-me á pedra da sua campa, e ali juntas, nós ambas, minha mãe e eu,
lhe direi as penas da minha alma, e ella me dirá verdades... verdades!
_Pantoja_
(_áparte, a Evarista_) É a occasião. Aproveitemol-a.
_Evarista_
Vem, minha filha, nós te levaremos á quietação e á paz.
_Maximo_
Não: o descanso e a razão estão aqui. Electra é minha... (_Evarista
procura leval-a_) Exijo-a.
_Electra_
Adeus, Maximo... Já te não pertenço: pertenço á minha dôr... A minha mãe
chama-me para o seu lado... (_Extactica, anciosa, prestando uma attenção
intensissima_) Ouço-lhe a voz...
_Maximo_
A voz!
_Electra_
Silencio, que me chama! (_delirando de alegria_) que está chamando por
mim!
_Evarista_
Torna a ti, meu amor!
_Electra_
Não ouviram? Não ouvem?... Lá vou, mamãsinha, lá vou! (_Corre para o alto
da escada_) Vamo-nos! (_A Maximo, que quer seguil-a_) Eu só... É por mim
só que chama. Tu não... Para estar sósinha commigo... Não ouves a voz
d’ella dizendo: Eleectra! Eleeeectra!... Vou vêl-a, vou falar-lhe...
(_Vae entrando na casa com Evarista e Pantoja_)
_Maximo_
Que iniquidade e que horror! Para m’a roubarem, enlouqueceram-na. (_Quer
desprender-se dos braços de Urbano e do marquez_)
_Marquez_
(_contendo-o_) Não enlouqueças tambem tu.
_Urbano_
Socega!
_Marquez_
Descansa, que eu te asseguro que a recobraremos!
_Maximo_
Amarrem-me! Levem-me manietado para a solidão, para a sciencia, para a
verdade. Este mundo incerto, mentiroso e iniquo, não é para mim!
FIM DO QUARTO ACTO


ACTO QUINTO
Sala do locutorio em S. José da Penitencia. Portas lateraes.
Ao fundo uma grande janela d’onde se vê o claustro.

SCENA I
EVARISTA E SOROR DOROTHÊA
_Evarista_
(_entrando com a freira_) D. Salvador...?
_Dorothêa_
Chegou ha um momento: está no escritorio com a superiora e com a madre
escrivã.
_Evarista_
Então Urbano lá irá ter com elle... Emquanto esperamos, dê-me noticias de
Electra... Foi muito feliz a escolha que fizeram de si, irmã Dorothêa—tão
sympathica e tão dôce—para a acompanhar, para viver com ella, para ser a
sua amiga e a sua confidente...
_Dorothêa_
Electra não me quer mal, e é talvez certo que por essa razão algum tanto
contribuirei para a socegar.
_Evarista_
(_aponta para a cabeça_) E como está ella de...?
_Dorothêa_
Bem. Recuperou inteiramente a razão, e não tem nenhum vestigio de
delirio, a não ser ainda aquella ideia fixa de querer vêr a mãe, de lhe
falar, de ter d’ella a solução das suas dúvidas. Todo o tempo que tem
livre das obrigações religiosas, e todo o que póde alcançar, o passa
no pateo do nosso cemiterio, e na horta contigua; e tanto ahi como no
dormitorio, sempre a mesma preoccupação a absorve.
_Evarista_
E lembra-se de Maximo? fala d’elle?
_Dorothêa_
Fala: mas nas suas meditações e nas suas rezas a ideia que mais acaricia
é de poder amal-o como um irmão, e, pelo que ainda hoje me disse, espera
conseguil-o.
_Evarista_
Mas é uma ideia apenas! É preciso que a essa ideia se associe o
coração... E bem poderia ser que assim succedesse se a desgraça de antes
d’hontem não viesse alterar o seguimento dos factos...
_Dorothêa_
Uma desgraça!...
_Evarista_
Morreu o nosso velho amigo D. Leonardo Cuesta...
_Dorothêa_
Não sabia...
_Evarista_
Que immensa tristeza para todos nós! Ha dias que se sentia mal, e
presagiava o seu fim. Sahiu na segunda feira muito cêdo, e na rua perdeu
os sentidos. Levaram-o para casa, e ás tres horas da tarde estava morto.
_Dorothêa_
Pobre senhor!
_Evarista_
No testamento nomeia Electra herdeira de metade da sua grande fortuna...
_Dorothêa_
Ah!
_Evarista_
Mas coma expressa condição de que ella abandone a vida religiosa. Sabe se
D. Salvador já terá conhecimento d’isto?
_Dorothêa_
Supponho que sim, porque elle tem conhecimento de tudo, e adivinha o que
não conhece.
_Evarista_
E é verdade!
_Dorothêa_
(_vendo chegar Urbano_) O snr. D. Urbano.

SCENA II
AS MESMAS E URBANO
_Evarista_
Falaste-lhe?
_Urbano_
Sim. Deixei-o a trabalhar no escritorio, com um tino, com uma fixidez
d’attenção, que me assombram. Que homem!
_Evarista_
Já teve noticia das ultimas disposições do pobre Cuesta?
_Urbano_
Já.
_Evarista_
Está contrariado?
_Urbano_
Se está não o mostra. Bem sabes que nem nos casos mais difficeis elle
deixa transparecer as suas commoções...
_Evarista_
(_interrompendo-o com enthusiasmo_) É um espirito d’aguia, que paira
acima de todas as tempestades da terra.
_Urbano_
Interrogando-o a respeito das esperanças que tinha de conservar Electra
no convento, respondeu-me singelamente com uma serenidade pasmosa:
«Confio em Deus».
_Evarista_
Que grandeza d’alma! E sabe que Maximo e o Marquez são os testamenteiros?
_Urbano_
Sabe mais. Recebeu ao meio dia uma carta d’elles annunciando-lhe que
virão esta tarde, acompanhados d’um tabellião, inquirir a menina, para
que declare se acceita ou se renuncia a herança.
_Evarista_
E á vista d’essa communicação...?
_Urbano_
Nada: imperturbavel, como sempre, repetindo a sua conhecida formula, que
o pinta n’um traço: «Confio em Deus».

SCENA III
OS MESMOS, MAXIMO E O MARQUEZ (pela esquerda)
_Marquez_
Esperaremos aqui.
_Maximo_
(_vendo Evarista_) Adeus, tia. (_Sauda-a com affecto_)
_Evarista_
(_respondendo ao cumprimento do marquez_) Então, Marquez... Ha finalmente
esperanças de ganhar a batalha?
_Marquez_
Não sei... Luctamos com féra de muito ardil.
_Evarista_
E a ti, Maximo, que te parece?...
_Maximo_
Que estamos em frente d’um terrivel mestre consummado no embuste. Mas eu
confio em Deus.
_Evarista_
Tambem tu...?
_Maximo_
Naturalmente: em Deus confia todo aquelle que crê na verdade. Combatemos
pela verdade. Como poderiamos suppôr que Deus nos abandone? Não poderia
ser, querida tia.
_Urbano_
Não viste Electra quando atravessaste os claustros?
_Maximo_
Não vi.
_Dorothêa_
(_approximando-se da janela_) Vae passar agora. Vem do cemiterio.
_Maximo_
(_correndo para a janela com Urbano_) Que triste! e que bella! A brancura
do habito dá-lhe o aspecto aereo de uma apparição. (_chamando-a_)
Electra!
_Urbano_
Cala-te.
_Maximo_
Não posso. (_Volta a olhar_) É então certo que vive... É ella que vae ali
na sua realidade primorosa, ou é uma imagem mystica que se despegou d’um
retabulo d’altar para andar pela terra?... Lá volta para traz... levanta
os olhos para o ceu... Se a visse diluir-se no ar, dissipando-se como uma
sombra, não me admiraria... Põe os olhos no chão... Pára... Em que estará
pensando? (_Continua a contemplar Electra_)
_Marquez_
(_que ficou no proscenio com Evarista_) ...Sim, minha senhora: falso,
falsissimo!
_Evarista_
Olhe o que affirma, marquez...
_Marquez_
Affirmo que ou o veneravel D. Salvador se equivoca, ou que disse,
sabendo-o, o contrario da verdade, movido de razões e fins, que não
penetram as nossas limitadas intelligencias.
_Evarista_
É impossivel, marquez... Faltar á verdade um homem tão justo, de tão pura
consciencia, de ideias tão altas!
_Marquez_
E quem nos diz, minha cara amiga, que nos arcanos d’essas consciencias
exaltadas não ha uma lei moral, cujas subtilezas estão longe do nosso
mesquinho alcance? Ha absurdos na vida do espirito como os ha na
natureza, onde vemos inumeros phenomenos cujas causas não são as que se
figuram.
_Evarista_
Não: não posso crer! Ha talvez casos em que a mentira aplana o caminho do
bem. Mas não estamos n’um caso d’esses... Eu por mim, não acredito.
_Marquez_
Para que possa formar o seu juizo, ouça o que lhe vou dizer. A marqueza,
Virginia, assegura-me que de Josephina Perret—sem que n’isto possa haver
mistificação nem equivoco—nasceu este homem que ahi está... E Evarista,
amiga intima de Josephina Perret, prova e demonstra esse facto da
maneira mais simples, mais clara e mais positiva. Além d’isso, eu mesmo
pude comprovar que Lazaro Yuste viveu longe de Madrid desde 1863 até 1866.
_Evarista_
Com tudo isso, marquez, não posso convencer-me de que...
_Marquez_
(_vendo entrar Pantoja pela direita_) Ahi vem elle.
_Maximo_
(_descendo ao proscenio_) Chega o abutre.
_Dorothêa_
Se me dão licença retiro-me. (_Sae pela esquerda. Pantoja permanece um
instante junto da porta_)

SCENA IV
EVARISTA, MAXIMO, URBANO, MARQUEZ E PANTOJA
_Pantoja_
(_adeantando-se vagarosamente_) Meus senhores, desculpem-me tel-os feito
esperar.
_Maximo_
Prevenido do objecto da nossa visita, creio que será inutil expol-o...
_Marquez_
(_benignamente_) Não o repetiremos para não mortificar o snr. de Pantoja,
que deve a estas horas considerar perdida a sua inutil campanha.
_Pantoja_
(_sereno, sem jactancia_) Eu não perco nunca.
_Maximo_
Será adeantar muito.
_Pantoja_
E asseguro que Electra, tendo aprendido já a desprezar os bens da terra,
não acceitará o legado.
_Evarista_
Já vês que este homem não se rende.
_Pantoja_
Não me rendo... nunca, nunca.
_Maximo_
Estou vendo. (_Sem poder dominar-se_) É então preciso matal-o?
_Pantoja_
Venha a morte.
_Marquez_
Não chegaremos a tanto.
_Pantoja_
Cheguem onde queiram. Hão de encontrar-me sempre impassivel e estavel, no
meu posto.
_Marquez_
Confiamos na lei.
_Pantoja_
Eu em Deus. E digo aos representantes da lei que Electra, adaptando-se
facilmente a esta vida de pureza, libando já as doçuras ineffaveis da
oração e da paz em Deus, não abandonará esta santa casa.
_Maximo_
(_impaciente_) Podemos falar-lhe?
_Pantoja_
N’este momento, precisamente, não.
_Maximo_
(_querendo protestar_) Oh!
_Pantoja_
Socegue.
_Maximo_
Não posso.
_Evarista_
É a hora do côro. Quer D. Salvador dizer, por certo, que depois da hora...
_Pantoja_
Está claro que sim. E para que se convençam de que nada temo, podem
trazer além do tabellião, o snr. delegado do governo. Mandarei abrir
a portaria... Permittirei que falem emquanto queiram com Electra. E se
depois d’isso ella quizer sahir, que sáia...
_Marquez_
Cumprirá o que diz?
_Pantoja_
Como não? se é em Deus unicamente que confio.
_Marquez_
Voltaremos logo. (_Toma o braço de Maximo_)
_Pantoja_
E nós para a egreja. (_Saem Urbano, Evarista e Pantoja_)

SCENA V
MARQUEZ E MAXIMO, que percorre a scena muito agitado,
impaciente, receioso
_Marquez_
Que diz a isto, Maximo?
_Maximo_
Que este homem, de tão superior talento para fascinar os debeis e para
zombar dos fortes, nos enlouquecerá a todos. Eu não sou para isto.
Em luctas de tal ordem, vontade contra vontade, sinto-me arrastado á
violencia.
_Marquez_
E que faz tenção de fazer?
_Maximo_
Leval-a embora. A bem ou a mal. Por vontade ou á força. Se não tiver
bastante poder para isto, adquiril-o, compral-o; trazer amigos,
cumplices, um esquadrão, um exercito... (_Com crescente fervor_) Renascem
em mim os rancores dos antigos bandos, com toda a ferocidade romantica do
feudalismo.
_Marquez_
Assim pensa, e assim o diz, um homem de sciencia!
_Maximo_
Os extremos tocam-se. (_Exaltando-se mais_) Para esse homem, para esse
monstro não ha argumentos, não ha raciocinios... É preciso matal-o.
_Marquez_
Nem tanto, nem tanto, meu querido! Imitemol-o, sejamos como elle astutos,
insidiosos, perseverantes.
_Maximo_
(_com brio e eloquencia_) Não: sejamos como eu... sinceros, claros,
valorosos. Marchemos de cabeça alta e de cara descoberta para o inimigo.
Destruamol-o, ou deixemo-nos destruir por elle... Mas d’uma vez, de uma
só investida, de um só golpe... Ou elle ou nós.
_Marquez_
Não, Maximo. Temos de ir com tento. Temos de respeitar a ordem social em
que vivemos.
_Maximo_
A ordem social em que vivemos envolve-nos em uma rede de mentiras e de
argucias, e n’essa rede morreremos estrangulados, sem defeza alguma...
presos de garganta, e de pés e mãos, nas malhas de milhares e milhares
de leis capciosas, de vontades fraudulentas, aleivosas, subornadas,
corrompidas.
_Marquez_
Socega. Preparemo-nos para o que esta tarde nos espera. Temos de prever
os obstaculos para pensar com tempo no modo de os vencer... Que succederá
quando dissermos a Electra que a mãe do seu noivo é com effeito e fóra de
toda a dúvida Josephina Perret e não Eleuteria Dias?
_Maximo_
Que ha de succeder? Que não o acreditará, porque na sua mente se
petrificou o erro e será já tarde para o desarraigar. Pois não se sabe
o que pode a suggestão contínua? O que póde o insinuante e invasivo
ambiente de uma casa como esta sobre as ideias dos que a habitam?
_Marquez_
Empregaremos meios efficases.
_Maximo_
(_com violencia_) Quaes? Deitar fogo ao convento, deitar fogo a Madrid...
_Marquez_
Não divagues. Se Electra não quizer sahir, leval-a-hemos á força.
_Maximo_
(_muito vivamente até o fim_) Ou uma força triumphante, ou uma
desesperação de vencido... morrer eu, morrer ella, morrermos todos.
_Marquez_
Morrer não. Vivamos todos, e preparemo-nos para a peor solução. Tenho
uma chave para entrar no claustro pela Rua Nova, e a irmã Dorothêa
pertence-me... Caluda!
_Maximo_
Violencia!
_Marquez_
Subtilesa e astucia!
_Maximo_
Adeante, de pronto, e pelo caminho direito!
_Marquez_
Não, homem, de vagar, com geito, e pelo atalho enesgado! (_Tomando-lhe
o braço_) E vamo-nos d’aqui, que estamos a tornar-nos suspeitos...
(_Levando-o_)
_Maximo_
Sim, vamo-nos.
_Marquez_
Confia em mim.
_Maximo_
Confio em Deus.

MUTAÇÃO
Claustro de S. José da Penitencia. Á direita uma asa da egreja,
com frestões envidraçados, pelos quaes transluz a claridade
interior. Á esquerda grande portada por onde se passa a outro
claustro, que se suppõe communicar com a rua. Ao fundo, entre a
egreja e as construcções da esquerda, grande arco abatido, para
lá do qual se vê em ultimo plano o cemiterio da congregação. É
noite escura.

SCENA VI
ELECTRA E SOROR DOROTHÊA
_Dorothêa_
Tão certo como ser noite, vieram dois sujeitos ao convento com proposito
de te arrancar d’aqui e de te levar para o mundo. Não o crês?
_Electra_
Sem que me digas quem são, o meu coração o adivinha: Maximo e o marquez
de Ronda... Se é certo que projectam levar-me é enorme a perturbação que
me causam. Desde que entrei n’esta santa casa emprehendi, como sabes, a
grande batalha do meu espirito. Procuro, humildemente e com a ajuda de
Deus, transformar em amor fraternal o amor de uma natureza bem diversa
que arrebatou a minha alma... Converter o ardente fogo do sol numa fria
claridade da lua... O constante meditar, lento mas progressivo, o desmaio
do coração, e as ideias submissas e dôces que Deus me envia vão-me dando
forças para vencer.
_Dorothêa_
Querida irmã, se em ti sentes a fortaleza d’esse novo amor, porque tens
mêdo de te encontrar com D. Maximo de Yuste?
_Electra_
Porque, vendo-o, sinto que todo o terreno ganho o perderia n’um só
instante.
_Dorothêa_
(_incredula_) E achas, em tua verdade, que tenhas algum terreno ganho?...
_Electra_
Oh! sim, algum... não muito por emquanto.
_Dorothêa_
Talvez, irmã Electra, que o vêr essa pessoa te demonstre se
effectivamente podes...
_Electra_
(_vivamente_) Oh! não m’o digas, que não posso!... No estado em que me
sinto, n’este principio de lucta, se o visse, se o ouvisse, eu perderia
toda a esperança de paz... Não vês que em minha consciencia eu me estou
debatendo contra dois impossiveis: não poder amal-o como esposo; não
poder amal-o como irmão? (_Aterrada_) Que supplicio, meu Jesus!... Para
o mundo não, não... Prefiro estar aqui, n’esta solidão de morte, n’este
laboratorio da minha alma, junto do cadinho divino, em que estou fundindo
um viver novo.
_Dorothêa_
Não esperes que as tuas ideias te deem a paz. Confia em Deus e n’aquelles
que Deus te envia... (_Resolvendo-se a falar mais claramente_) Não te
amedrontes assim perante o que suppões teu irmão. Alguem talvez negará
que o seja.
_Electra_
(_em grande excitação_) Cala-te! Cala-te! Em assumpto de tão grande
melindre toda a palavra que não contenha a certeza é inutil e cruel...
Póde levar-me á loucura. O que eu peço a Deus é a morte, ou a verdade
inteiramente indubitavel e definitiva.
_Dorothêa_
Socega, pobre Electra...
_Electra_
(_exaltando-se cada vez mais_) Todas as confusões que me atormentaram
ao vir para aqui estão renascendo no meu espirito... Atropelam-se-me no
pensamento anjos e demonios... Deixa-me... Eu quero fugir de mim mesma...
(_Corre a scena em grande agitação. Soror Dorothêa segue-a procurando
acalmal-a_)
_Dorothêa_
Tranquillisa-te, por Deus!... Esse tormento vae ter fim. (_Olha com
anciedade para a porta da esquerda_)
_Electra_
(_parecendo-lhe ouvir uma voz longinqua_) Ouve... Minha mãe que me chama.
_Dorothêa_
Não delires... Outras vozes, vozes de pessoas vivas, te chamarão.
_Electra_
É minha mãe... Silencio!... (_Escutando. Entra Pantoja pela direita_)

SCENA VII
ELECTRA, PANTOJA E DOROTHÊA
_Pantoja_
Minha filha, como sahiste da egreja sem que eu te visse?
_Dorothêa_
Sahimos para respirar ao ar livre. Electra asfixiava. (_Áparte_)
Approxima-se a hora... Deus nos ajude!
_Pantoja_
Sentes-te mal, minha filha?
_Electra_
(_com voz assustada e sumida_) A minha mãe chama por mim.
_Pantoja_
(_pegando-lhe carinhosamente na mão_) A dôce voz da tua mãe, falando-te
em espirito te dará conforto, prendendo-te com piedade e amôr a este
sagrado refugio. (_Ouve-se passando na egreja o côro das noviças_) Ouve,
Electra... É a voz dos anjos que te chamam do ceu.
_Electra_
(_delirante_) É o côro dos meninos a brincar. E entre essas vozes ternas,
distingo a de minha mãe chamando-me da sepultura.
_Pantoja_
Estás allucinada. É o divino côro dos anjos.
_Electra_
Não, não ha anjos... Ouço o meu nome, ouço o bulicio dos meninos, que
revolve toda a minha alma. São os filhos dos homens que fazem a alegria
da vida. (_Continua a ouvir-se mais apagado o côro das noviças_)
_Pantoja_
(_inquieto_) Irmã Dorothêa, diga á irmã porteira que vigie a porta da Rua
Nova e a da Ronda. (_Á esquerda e á direita_)
_Dorothêa_
Sim, meu senhor...
_Pantoja_
Mas não; irei eu mesmo... Não me fio de ninguem... Vou eu mesmo vigiar
todo o claustro, todas as passagens, todos os recantos da casa.
(_Assustado, julgando ouvir ruido_) Escute... Não ouvio?
_Dorothêa_
Quê?... Não ouvi nada... É illusão.
_Pantoja_
Pareceu-me ouvir um rumor de vozes... e bater n’uma porta ao longe.
(_Escuta_)
_Dorothêa_
De que lado? (_Olhando para o fundo á direita_)
_Pantoja_
Na direcção da enfermaria... Não estou socegado... Quero vêr eu mesmo...
Electra, volta para a egreja... Leve-a, irmã Dorothêa... Esperem-me lá...
(_Dando-lhes pressa_) Andem... (_Acompanha-as até á porta da egreja. Sae
pressuroso, inquieto, pelo fundo, á direita. Dorothêa vê-o afastar-se,
pega na mão de Electra, e vivamente volta com ella ao centro da scena.
Electra, sem vontade, deixa-se levar_)

SCENA VIII
ELECTRA E SOROR DOROTHÊA
_Dorothêa_
Vem commigo... Para a egreja não.
_Electra_
Aqui... Deixa-me respirar, deixa-me viver.
_Dorothêa_
(_aparte, inquieta_) É a hora dada pelo marquez de Ronda... Aproveitemos
os minutos, os segundos, ou tudo está perdido. (_Olhando para a
esquerda_) Vou dar-lhes entrada para este claustro... (_Alto_) Irmã
Electra, espera-me aqui.
_Electra_
(_assustada_) Onde vaes? (_Pega-lhe no braço_)
_Dorothêa_
(_com decisão, defendendo-se_) Tratar de ti, dar-te a saude e dar-te a
vida... Prepara-te para sahir d’este sepulcro, e leva-me comtigo.
_Electra_
(_tremula_) Irmã Dorothêa... não me deixes.
_Dorothêa_
Este momento decide da tua sorte... Volverás ao mundo... verás Maximo.
_Electra_
Quando?
_Dorothêa_
Já... Vaes vêl-o entrar por ali... (_Esquerda_) Animo!... Não me
estorves... Não te movas d’aqui. (_Sae correndo pela esquerda_)
_Electra_
Meu Deus! Virgem Santissima!... Será certo?... Por aqui... por aqui
virá... (_Julga vêr Maximo na escuridão_) Ah! é elle... Maximo! (_Falando
como em sonhos, desviando-se como d’um ser real_) Pára... Deixa-me...
Não posso amar-te como irmão, não posso... Está no fogo o cadinho em
que quero fundir um coração novo... Não vês que não posso levantar os
olhos para ti?... Para que me fitas d’esse modo, se me não pódes levar
comtigo?... É aqui que eu procuro a verdade. Minha mãe chama por mim...
(_Com accento desesperado_) Mãe! mãe! (_Volta-se de frente para o fundo.
Ao soarem as ultimas palavras de Electra, apparece a sombra de Eleuteria,
formosa figura em habito de monja. Electra de costas para o publico,
contempla-a com os braços cruzados no peito_) Oh! (_Grande pausa_)

SCENA IX
ELECTRA E A SOMBRA DE ELEUTERIA, que vagamente se destaca na
obscuridade do fundo. Electra adeanta-se para ella. Ficam as
duas figuras frente a frente, á menor distancia possivel uma da
outra.
_A Sombra_
Sou a tua mãe, e venho a aplacar a angustia do teu coração amante. A
minha voz dará á tua consciencia a paz. Nenhum vinculo da natureza te
prende ao homem que te escolheu por mulher. O que te disseram foi uma
ficção carinhosa destinada a trazer-te á nossa companhia e á doçura
d’esta santa casa.
_Electra_
Oh! mãe adorada, que consolação me dás!
_A Sombra_
Dou-te a verdade, e com ella a fortaleza e a esperança. Acceita, minha
filha, como provação em que se retemperou a força da tua alma, esta
reclusão transitoria, e não maldigas quem a promoveu... Se o amor
conjugal e as alegrias da familia solicitam a tua alma deixa-te de
boamente levar da suavidade d’essa atracção, e não procures aqui uma
santidade que não é para ti. Deus está em toda a parte... Eu não pude
encontral-o fóra d’este abençoado refugio... Procura-o tu no mundo por
vereda differente d’aquella em que eu me perdi... (_A sombra cala-se e
desapparece no momento em que se ouve a voz de Maximo_)

SCENA ULTIMA
ELECTRA, MAXIMO, MARQUEZ, PANTOJA E SOROR DOROTHÊA
_Maximo_
(_á porta da esquerda_) Electra!
_Electra_
(_correndo para elle_) Ah!
_Pantoja_
(_pela direita_) Minha filha, onde estás?
_Marquez_
Comnôsco.
_Maximo_
Commigo.
_Pantoja_
Foges-me, Electra?
_Maximo_
Não foge... Resuscita.
FIM

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