Electra: Drama em cinco actos - 6

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EVARISTA E PANTOJA, que com mostras de cansaço e desalento se
atira para o banco da esquerda, primeiro plano.
_Evarista_
Entramos?
_Pantoja_
Perdão: deixe-me respirar por um momento. Na egreja abafava-se... com o
calôr, com o apertão de gente...
_Evarista_
Vou-lhe mandar vir alguma coisa fresca... (_chamando_) Balbina!
_Pantoja_
Não, obrigado.
_Evarista_
Uma taça de tilia...
_Pantoja_
Tambem não. (_Na occasião de Balbina sahir, a senhora dá-lhe a mantilha,
que acaba de tirar, e o livro de missa_)
_Evarista_
Não ha motivo, emquanto a mim, para nos affligirmos tanto...
_Pantoja_
Não é, como querem dizer, o meu orgulho; é n’um ponto mais delicado e
mais profundo que eu me sinto ferido. Nega-se-me a consolação e a gloria
de dirigir essa creatura e de a levar commigo pelo caminho do bem. E vejo
com grande magoa que você, tão affecta aos meus principios, e que eu
considerava uma fiel amiga e uma fervorosa alliada, me abandona na hora
critica.
_Evarista_
Perdoe-me, D. Salvador. Eu não o abandono. Estavamos inteiramente de
accordo, com relação a Electra, em guardal-a por algum tempo—nunca se
tratou de a encerrar para sempre—em S. José da Penitencia, attendendo á
disciplina e purificação d’aquella casa... Mas surge agora repentinamente
esta inesperada veneta de Maximo, e eu não posso, realmente, não posso de
modo nenhum recusar o meu consentimento... É uma loucura? será... Mas de
Maximo, como homem de honrado e correcto procedimento, que tem que dizer?
_Pantoja_
Nada. (_corrigindo-se_) Isto é: alguma coisa poderia talvez... Mas, por
agora, o que unicamente digo é que Electra não está preparada para o
casamento, não tem aptidão para eleger marido... Não reprovo em absoluto
que se case, quando seja com um homem cujas ideias a não pervertam...
Mas este ponto é para mais tarde... O essencial n’este momento é que
essa tenra creatura entre quanto antes no sagrado asylo, onde nos cumpre
estudar, com o tacto mais subtil e mais carinhoso, a configuração do seu
caracter, as suas predilecções, as suas tendencias, os seus affectos;
e em vista do que observarmos, fundamentadamente e seguramente depois
d’este prévio exame, resolveremos... (_Altaneiro_) Que ha que dizer a
isto?—pergunto eu agora.
_Evarista_
(_acobardada_) O que digo é que para esse plano... na realidade
perfeito... eu não posso, não ouso offerecer-lhe a minha cooperação.
_Pantoja_
(_com arrogancia, passeando_) De modo que, segundo os seus caridosos
principios, se Electra se quer perder, que se perca!... que importa?...
Se ella quer condemnar a sua alma, que a condemne!... Que temos nós com
isso?
_Evarista_
(_com maior timidez, suggestionada_) Perder-se! condemnar-se! E está
porventura na minha mão evital-o?
_Pantoja_
(_com energia_) Está.
_Evarista_
Oh! não... Não tenho a audacia de intervir... E com que direito?...
Impossivel, Salvador, impossivel...
_Pantoja_
(_affirmando mais a sua auctoridade_) Saiba, minha amiga, que o acto
de apartar Electra de um mundo nefasto, em que por todos os lados a
rodeiam appetites e voracidades ferozes, não é um despotismo: é o amor
na expressão mais alta e mais pura do carinho paternal. Ainda por acaso
ignora, Evarista, que o fim supremo e unico da minha vida não é hoje
outro senão o bem d’esta menina?
_Evarista_
(_acobardando-se mais_) Bem sei que é assim.
_Pantoja_
(_com effusão_) Eu amo Electra com um amor que as grosseiras palavras
do homem não podem definir. Desde que os meus olhos a viram, a voz
do sangue me bradou do mais fundo do meu ser que essa creatura me
pertence... Quero têl-a, e devo têl-a, santamente, debaixo do meu dominio
paternal... Quero que ella me ame como os anjos amam... que seja a pura
imagem da minha crença, o limpido espelho do meu eterno ideal... que
se reconheça obrigada a padecer por aquelles que lhe deram a vida, e
purificando-se pela mortificação, nos ajude a nós, que fômos maus, a
alcançar o perdão de Deus... Não comprehende estas coisas, Evarista?
_Evarista_
(_abatida_) Comprehendo-as e profundamente admiro a elevação do seu
entendimento.
_Pantoja_
Menos admiração e mais eficacia em meu auxilio é o que lhe peço.
_Evarista_
Não posso... (_Senta-se chorosa e abatida_)
_Pantoja_
É bem natural que Electra lhe não mereça o mesmo interesse que tão
profundamente me inspira a mim. (_Empregando suavidades de persuasão_)
Convenho em que n’estes primeiros tempos lhe tenha de pesar algum tanto
o seu brusco apartamento das alegrias mundanas, mas muito rapidamente se
adaptará á dôce paz, á venturosa quietação do claustro... Eu a dotarei
amplissimamente. Tudo quanto tenho será para ella, para o esplendor da
sua santa casa... Será nomeada Superiora, e sob a minha auctoridade, e
pelo meu conselho, governará a congregação... (_Com profunda commoção_)
Que celestial ventura, meu Deus! Que felicidade para ella, e para mim!
(_Fica-se como em extase_)
_Evarista_
Comprehendo que por não acceder ao que deseja de mim eu privo talvez
uma creatura de chegar ao estado mais perfeito da condição humana...
Conhece bem os meus sentimentos, Salvador... Sabe com quanto prazer
eu trocaria sem vacillar toda a opulencia em que vivo pela gloria de
dirigir obscuramente uma modesta casa religiosa do maior trabalho e da
maior humildade! Sempre o admirei pela sua larga protecção a S. José da
Penitencia, e subiu de ponto essa admiração quando soube que redobrou o
seu auxilio desde a occasião em que a minha pobre Eleuteria foi procurar
n’esse instituto o esquecimento, a paz e o perdão dos seus erros de amor,
como os de Magdalena. N’esse acto da vida do rico snr. de Pantoja se me
revelou a espiritualidade mais pura a que se pode elevar um homem.
_Pantoja_
Sim: desde que a sua desventurada prima deu entrada n’aquelle sagrado
asylo, a minha protecção não sómente se tornou mais positiva mas ainda
mais espiritual. Nunca, nunca mais tornei a pôr os meus olhos em
Eleuteria depois de convertida, porque de ninguem—nem de mim!—ella se
tornou a deixar vêr desde que lhe cortaram os cabellos e lhe botaram
o escapulario. Mas eu ia quotidianamente á egreja; e invisivel do
côro, n’um recanto da nave, praticava em espirito com a penitente,
considerando-a tão perfeitamente regenerada como eu proprio o estava.
Morreu a infeliz aos quarenta e cinco annos da sua edade. Então obtive
o consentimento de uma sepultura no interior do edificio. E desde esse
dia não protegi mais a congregação, tornei-a inteiramente minha, porque
n’ella repousavam debaixo da pedra de uma campa os restos d’aquella que
eu amei. Juntára-nos o peccado, reunia-nos o arrependimento, ella na paz
da morte, eu na tempestuosa provação da vida...
_Evarista_
E ainda agora aquelle a que bem podemos chamar o senhor e o reformador
do convento, todos os dias, sem excepção de um unico, visita aquella
santa casa e se ajoelha no cemiterio humilde e docemente poetico, onde as
monjas dormem o somno eterno.
_Pantoja_
(_vivamente_) Sabia isso?
_Evarista_
Sabia... E que no claustro, silencioso e florido, entre loendros e
cyprestes...
_Pantoja_
É certo... quem lh’o disse?
_Evarista_
...vagueia, como um propicio phantasma da saudade, o sombrio fundador
d’aquella casa, implorando de Deus o descanço d’ella e o seu.
_Pantoja_
Sim... Ali repousarão tambem os meus pobres ossos. (_Com vehemencia_)
Quero, além d’isso, que assim como em espirito eu me não aparto por um
só momento d’aquella casa, ahi passe tambem, pelo tempo que fôr preciso,
o espirito de Electra... Não a violentarei á vida claustral; mas se,
experimentando essa existencia, e apreciando o seu incomparavel sabor,
ella deliberasse persistir na clausura, eu acreditaria então que Deus
me destinara para a mais ineffavel graça. Ali as cinzas adoradas da
peccadora redimida; ali, na candida alvura do seu habito de noviça, a
minha filha; ali eu, pedindo a Deus para ellas a gloria eterna. E na
morte, o escondido e imperturbado repouso na mesma terra amada,—todos os
meus amores commigo e todos nós em Deus...
_Evarista_
(_com viva commoção_) Perfeita grandeza, por certo... Idealidade
incomparavel.
_Pantoja_
Duvída ainda de que o meu pensamento seja o mais elevado? De que me não
move nenhuma paixão ruim?
_Evarista_
Como quer que duvíde?
_Pantoja_
Pois se com effeito lhe parece bello o meu plano, porque me não ajuda a
realisal-o?
_Evarista_
Porque me não considero com poderes para isso.
_Pantoja_
Nem assegurando-lhe eu que a reclusão de Electra terá um caracter
provisorio?
_Evarista_
Nem assim. Não, D. Salvador, não conte commigo... (_luctando com a sua
consciencia_) Reconheço toda a elevação, toda a formosura das suas
ideias... D’ellas sinto um ecco suave e acariciador na minha propria
alma. Mas—que quer, meu bom amigo—vivo no mundo em que Deus me collocou:
tenho tambem para com este mundo deveres sagrados. Dêvo-me, com aquelles
que me rodeiam, á vida social; e na vida da sociedade e da familia o seu
projecto é... como lh’o direi, sem o magoar?... é uma anomalia angelica.
_Pantoja_
(_dissimulando o seu enfado_) Bem. Paciencia... (_Passeia caviloso e
sombrio_)
_Evarista_
(_depois de uma pausa_) Em que pensa? Desiste?
_Pantoja_
(_com naturalidade e firmeza_) Não, minha senhora.
_Evarista_
Qual então o seu projecto?
_Pantoja_
Não sei... Ha de acudir-me uma ideia... Pensarei... (_Resolvendo-se_)
Minha cara amiga, quer fazer-me o favor de escrever uma carta á superiora
da Penitencia?
_Evarista_
Dizendo-lhe...?
_Pantoja_
Que venha aqui immediatamente, com duas irmãs, n’uma carruagem.
_Evarista_
Porque lhe não escreve directamente?
_Pantoja_
Porque tenho de acudir a outras coisas.
_Evarista_
Quer já?
_Pantoja_
O mais breve possivel...
_Evarista_
Bem. (_Dirige-se para casa_)
_Pantoja_
Peço-lhe que mande a carta sem perda de tempo.
_Evarista_
(_olhando do alto da escada para o jardim_) Creio que elles ahi vem.
_Pantoja_
Depressa a carta, minha cara amiga.
_Evarista_
Vae já... Deus nos inspire a todos. (_Entra em casa_)
_Pantoja_
Lá vou ter. (_Áparte_) Que me não vejam! (_Esconde-se atraz do macisso da
direita junto da escada_)

SCENA VIII
PANTOJA, occulto; ELECTRA, URBANO, MARQUEZ, que voltam da
missa—PATROS, que desce de casa.
_Electra_
(_adeantando-se encontra-se com Patros junto da escada_) Veio?
_Patros_
Não, senhorita. (_Ouve-se o canto afastado dos meninos que brincam no
jardim_)
_Electra_
Morro de impaciencia. (_Tira o chapeu e as luvas, que entrega a Patros
com o livro de missa_) Vou brincar com os pequenos emquanto espero...
Não... Vou apanhar flôres. (_Colhe algumas no macisso da esquerda_)
_Urbano_
(_a Patros_) A senhora?
_Patros_
Em casa.
_Marquez_
Vamos ter com ella.
_Urbano_
Vamos a isso. (_Entram em casa. Patros segue-os_)
_Electra_
(_admirando as flôres que acaba de cortar_) Que lindos, que graciosos
rainunculos! (_Pantoja apparece e Electra assusta-se ao vêl-o_) Ai!

SCENA IX
ELECTRA E PANTOJA
_Pantoja_
Assim te assusto, minha filha?
_Electra_
É verdade... Não posso evital-o... Que quer? Bem sei que não devia, e que
não tenho de que ter medo... Perdôe-me por quem é, D. Salvador... Vou
jogar ao côrro com os pequenos...
_Pantoja_
Um momento. Vaes aos meninos para que elles te dêem da sua alegria?
_Electra_
Não, hoje não; vou repartir com elles da que trasborda da minha alma.
(_Afasta-se o canto de roda dos meninos_)
_Pantoja_
Já sei a causa d’essa grande alegria, já a sei...
_Electra_
Uma vez que sabe, não tenho então que lhe contar. Até logo snr. de
Pantoja.
_Pantoja_
Ingrata! Concede-me um instante...
_Electra_
Um instantinho só?
_Pantoja_
Unicamente.
_Electra_
Bom. (_Senta-se no banco de pedra. Colloca a um lado as flôres e vae
escolhendo aquellas com que se touca, mettendo-as no cabello_)
_Pantoja_
Não sei porque tens reservas commigo sabendo quanto me interesso pela tua
felicidade e pela tua vida...
_Electra_
(_sem olhar para elle, attenta ás flôres_) Pois, se o interessa a minha
felicidade, alegre-se commigo: sou a creatura feliz.
_Pantoja_
Feliz hoje. E amanhã?
_Electra_
Amanhã mais feliz do que hoje... E sempre mais, sempre o mesmo!
_Pantoja_
A alegria verdadeira e constante, o goso perenne e indestructivel só
existem no amor eterno, superior ás inquietações e ás miserias humanas.
_Electra_
(_adornado o cabello, põe flôres no seio e no cinto_) Toca-me outra vez
no antigo registro de que tenho de ser anjo... Sou uma pobre pessoasinha
summamente terrestre, D. Salvador. Deus fez-me para mulher, e botou-me a
este mundo. Já vê que, se estou aqui, é porque elle não precisava de mim
para o ceu n’esta occasião.
_Pantoja_
Ha tambem anjos na terra, minha filha. Anjos são todos aquelles que no
meio das desordens da materia sabem viver a pura vida do espirito.
_Electra_
(_mostrando o collo e o busto ornados de florinhas. Ouve-se mais perto o
coro dos meninos_) Que tal? não lhe pareço um anjo?
_Pantoja_
Pareces, e quero que o sejas.
_Electra_
Assim me adorno para divertir os meninos. Se visse a graça que elles me
acham! (_Com uma triste ideia subita_) Sabe com que eu me estou parecendo
agora? Com um menino morto. Assim se enfeitam os meninos quando os levam
a enterrar.
_Pantoja_
Para symbolisar a ideal belleza do ceu para onde elles vão.
_Electra_
(_arrancando as flôres_) Não, isso não, não quero parecer menina morta.
Dá-me a ideia de que vem o snr. de Pantoja para me levar á sepultura!
_Pantoja_
Oh! eu não te quero enterrada. Quereria rodear-te de luz. (_Vae
esmorecendo e cessa de todo o côro dos meninos_)
_Electra_
Tambem se põem luzes aos meninos mortos.
_Pantoja_
Não quero a tua morte, quero a tua vida; não a vida inquieta e vulgar,
mas dôce, livre, elevada, amorosa, com um eterno e puro amor divino.
_Electra_
(_Confusa_) E porque é que me deseja tudo isso?
_Pantoja_
Porque te quero muito, com um amor mais excelso que todos os amores
humanos. Melhor comprehenderás a grandeza d’este affecto, dizendo-te que
para evitar-te a mais leve dôr eu tomaria para mim os mais espantosos
tormentos que se possam imaginar.
_Electra_
(_estonteada, sem entender bem_) É o cumulo da abnegação uma coisa
d’essas.
_Pantoja_
Considera agora quanto soffrerei por não poder evitar um desgostosinho,
um dissabor, que te vou dar.
_Electra_
A mim?
_Pantoja_
A ti mesma.
_Electra_
Um desgosto?
_Pantoja_
Desgosto que mais me afflige por ter de ser eu que t’o cause.
_Electra_
(_rebelando-se, levanta-se_) Desgostos! Não os quero. Não os acceito.
Guarde-os. Que ninguem hoje me traga senão alegrias!
_Pantoja_
(_condoído_) Bem quizera dar-t’as, mas não posso.
_Electra_
Que terror que tenho! (_Com subita ideia que a tranquillisa_) Ah! já
sei... Pobre D. Salvador!... É que me quer dizer mal de Maximo... Alguma
coisa que lhe parece mal, mas que a mim me parece bem... Escusa de se
cançar porque nem me convence nem o acredito. (_Precipitando-se na
emissão das palavras sem dar tempo a que Pantoja fale_) Maximo é o maior
e o melhor homem do mundo, é o primeiro, e todo aquelle que me disser
uma palavra contraria a esta verdade, mente, e detesto-o pela mentira, e
detesto-o...
_Pantoja_
Por Deus, minha filha! Não te arrebates assim... Ouve. Eu não digo
mal de ninguem, nem dos que me odeiam. Maximo é bom, é trabalhador, é
intelligentissimo... Que mais queres?
_Electra_
(_satisfeita_) Assim, continue assim... Vae dizendo muito bem.
_Pantoja_
Digo mais ainda: que podes amal-o, que deves amal-o...
_Electra_
(_com alegria_) Ah!
_Pantoja_
Amal-o entranhadamente... (_Pausa_) A culpa não é d’elle, não é...
_Electra_
(_assustada outra vez_) Querem vêr que ainda acaba por lhe attribuir
maldades?
_Pantoja_
A elle não.
_Electra_
Então a quem? (_Recordando-se_) Ah! adivinho: o snr. de Pantoja e o pae
de Maximo foram implacaveis inimigos. Tambem me disseram já que esse
senhor de Yuste, honradissimo nos seus negocios, foi, talvez, um pouco
demais galanteador e mundanario... Mas que me importa isso?
_Pantoja_
Pobre innocente! não sabes o que dizes.
_Electra_
Digo que esse excellente homem...
_Pantoja_
Lazaro Yuste, sim... Ao nomeal-o tenho de associar a sua triste memoria á
de uma pessoa que já não vive... muito querida de ti...
_Electra_
(_comprehendendo e não querendo comprehender_) De mim!
_Pantoja_
Que morreu, e a quem tu muito queres. (_Pausa. Olham um para o outro_)
_Electra_
(_com terror e em voz apenas perceptivel_) Minha mãe! (_Pantoja faz um
signal affirmativo_) Minha mãe! (_Attonita, desejando e temendo uma
explicação_)
_Pantoja_
Chegaram os dias de perdão. Perdoemos.
_Electra_
(_indignada_) Minha mãe, a minha pobre mãe! Não falam d’ella senão para
a deshonrar, para a denegrir... E ultrajam-a aquelles mesmos que a
envilleceram! Pudesse eu tel-os a todos na mão para os desfazer, para os
destruir, para não deixar d’elles nem uma migalha assim!
_Pantoja_
Terias que principiar por Lazaro Yuste.
_Electra_
O pae de Maximo!
_Pantoja_
O primeiro depravador da desgraçada Eleuteria.
_Electra_
Quem é que o diz?
_Pantoja_
Quem o sabe.
_Electra_
E... (_Fixam-se nos olhos. Electra não se atreve a expôr a sua ideia_)
_Pantoja_
Triste de mim!... Não deveria falar-te d’isto. Dera para o esconder todos
os dias que me restam de vida. Comprehenderás que não podia ser... O meu
amor por ti ordena-me que fale.
_Electra_
(_angustiada_) Meu Deus! e ter eu de ouvil-o!
_Pantoja_
Disse eu que foi Lazaro Yuste...
_Electra_
(_tapando os ouvidos_) Não quero, não quero ouvir.
_Pantoja_
Tinha então tua mãe a edade que tens agora: desoito annos...
_Electra_
Não acredito, não acredito...
_Pantoja_
Era uma jovem senhora encantadora, quasi uma creança, que supportou com a
mais corajosa dignidade o horror d’aquella vergonha...
_Electra_
(_rebelando-se com energia_) Cale-se! Cale-se!
_Pantoja_
A vergonha do nascimento de Maximo.
_Electra_
(_apavorada, com o rosto demudado, recua cravando os olhos em Pantoja_)
Ah!
_Pantoja_
Procurando com discrição attenuar a affronta da sua victima, Lazaro
occultou o menino e levou-o misteriosamente comsigo para França.
_Electra_
A mãe de Maximo foi uma senhora franceza: Josephina Perret.
_Pantoja_
Mãe adoptiva.
_Electra_
(_tapando os olhos com ambas as mãos_) Divino Jesus! É o ceu que desaba...
_Pantoja_
(_condoído_) Filha da minha alma, volve para Deus os teus olhos.
_Electra_
(_demudada_) É um sonho... Tudo o que estou vendo é illusão, é mentira.
(_Olhando espantadamente para uma parte e para outra_) Mentira estas
arvores, esta casa, este ceu... Mentira tu! tu! tu, que não existes,
monstro d’um pesadelo horrivel!... (_Com os punhos na cabeça_) Acorda,
desgraçada, acorda!
_Pantoja_
(_tentando socegal-a_) Electra, querida Electra! Pobre innocente!
_Electra_
(_com um grito d’alma_) Mãe, minha mãe!... A verdade, dize-me a
verdade... (_Fóra de si percorre a scena_) Onde estás, mãe?... Quero
a morte ou a verdade... Minha mãe! minha mãe!... (_Sae pelo fundo,
perdendo-se na longinqua espessura das arvores. Ouve-se proximo o canto
dos meninos jogando ao côrro_)

SCENA X
PANTOJA, URBANO, MARQUEZ, vindos de casa, á pressa. Depois
d’elles BALBINA E PATROS
_Urbano_
Que é?
_Marquez_
Ouvimos gritar Electra.
_Balbina_
Foi a correr pelo jardim.
_Patros_
Por aqui. (_As duas creadas assustadas correm e internam-se no jardim_)
_Marquez_
(_olhando por entre as arvores_) Lá vae correndo... Continúa a gritar...
Pobre Electra! (_Adeanta-se para o jardim_)
_Urbano_
Que foi isto?
_Pantoja_
Eu lh’o direi... Um momento... Providenciemos antes de mais nada...
_Urbano_
O quê?
_Pantoja_
(_procurando coordenar as suas ideias_) Deixe-me pensar... Trazel-a para
casa já... Ir buscal-a... Vá!
_Urbano_
(_olhando para o jardim_) Lá está já o meu sobrinho...
_Pantoja_
(_contrariado_) Em que má hora!
_Urbano_
Correm para elle os meninos... Parece que o informam... Electra
foge-lhe... Não o quer vêr... Mette-se na gruta... O Marquez intervem...
Pobre Maximo!
_Pantoja_
Vá! vá ter com elles!... Não deixe que Maximo intervenha...
_Urbano_
Que balburdia! (_Interna-se no jardim_)
_Pantoja_
Se eu podesse... (_hesitante em ir e não ir_)
_Balbina_
(_voltando pressurosa do jardim_) Pobre menina! Chama aos gritos pela sua
mãe... Sentou-se agarrada aos meninos á porta da gruta, e ninguem a tira
d’ali...
_Pantoja_
E Maximo?
_Balbina_
Muito inquieto, sem saber o que ha de fazer, como todos nós... Vou chamar
a senhora...
_Pantoja_
Não, não vá. Já chegaram a senhora superiora e as irmãs de S. José?
_Balbina_
Já, sim senhor, chegaram agora.
_Pantoja_
Não diga nada á senhora. Vá para casa e espere por mim.
_Balbina_
Sim, senhor. (_Sobe para casa_)
_Pantoja_
(_indeciso e como assustado_) Não sei que faça... Pela primeira vez na
minha vida hesito... Irei?... Esperarei aqui? (_resolvendo-se_) Vou. (_A
poucos passos encontra-se com Maximo, agitado e colerico, que vem do
jardim e o detem_)

SCENA XI
PANTOJA E MAXIMO
_Maximo_
(_ardentemente em toda a scena_) Alto!... Diz-me o marquez de Ronda que
d’aqui, depois de uma demorada conversação comsigo, sahiu Electra no
delirio em que está.
_Pantoja_
(_perturbado_) Aqui... de certo... falamos... A senhorita Electra...
_Maximo_
Foi mordida pelo monstro.
_Pantoja_
Talvez... mas o monstro não sou eu. É um mais terrivel, que se alimenta
de factos e que se chama a Historia. (_Querendo ir-se_) Adeus.
_Maximo_
(_agarrando-o fortemente por um braço_) Espere. Primeiro vae repetir
aqui, já, immediatamente, o que foi que disse a Electra esse seu monstro
da Historia...
_Pantoja_
(_sem saber que dizer_) Eu... convém assentar préviamente que...
_Maximo_
Nada de preambulos... Quero aqui a verdade, concreta, exacta, precisa...
Electra foi offendida de um modo tão profundo que lhe alterou a razão...
Com que palavras, com que suggestões? Preciso de sabel-o prontamente.
Trata-se da mulher que é tudo para mim no mundo.
_Pantoja_
Para mim é mais: é o ceu e a terra.
_Maximo_
Quero saber, n’este mesmo instante, que horrivel maquinação foi esta,
urdida por si, contra essa menina, contra mim, contra nós ambos
eternamente unidos pela effusão das nossas almas. Com que baba se
envenenou aquella a quem eu posso e devo chamar desde já a minha legitima
mulher? Que responde?
_Pantoja_
Nada.
_Maximo_
(_acommette-o explodindo em colera_) Pois por esse infame silencio,
mascara impudente e abjecta de um egoismo tão grande que não cabe no
mundo; por essa virtude não sei se falsa, se verdadeira, que da sombra
desfere o raio que nos aniquilla; (_agarra-o pela garganta e derriba-o no
banco_) por essa doçura que envenena, por essa suavidade que estrangula,
Deus te confunda, homem grande ou miseravel reptil, aguia, serpente, ou o
que sejas!
_Pantoja_
(_recobrando alento_) Que brutalidade! que infamia! que demencia!
_Maximo_
Bem sei. Estou doido... (_Recompondo-se_) E quem é que dispõe assim do
poder diabolico de desvirtuar o meu caracter, arrastando-me a esta colera
insensata, fazendo-me o estupido aggressor de um ente debil e mesquinho,
incapaz de responder á força com a força?
_Pantoja_
(_tomando aprumo_) Com a força te respondo. (_Voltando á sua condição
normal, exprimindo-se com serenidade sentenciosa_) Tu és a força do
musculo, eu a força da alma. (_Maximo olha para elle, attonito e
confuso_) Posso mais do que tu, infinitamente mais. Duvídas?
_Maximo_
De que póde mais?
_Pantoja_
A ira suffoca-te, e cega-te o orgulho. Eu, injuriado e escarnecido,
recobro a serenidade. Tu não. Tu tremes. Tu, que te julgas a força, tu,
Maximo, tremes!
_Maximo_
É a ira. Não a provoque.
_Pantoja_
Nem a provoco nem a temo. (_Cada vez mais senhor de si_) Tu maltratas-me.
Eu perdôo-te.
_Maximo_
Que me perdôa a mim! (_iracundo_) Mas é para o homicidio que assim me
empurra!
_Pantoja_
(_com serena e fria gravidade, sem jactancia_) Enfurece-te, grita,
bate-me... Aqui me tens inabalavel e indifferente... Não ha força humana
que me dobre nem poder nenhum da terra que me afaste do meu caminho.
Injuria-me, fere-me, mata-me: não me defendo. O martyrio não me repugna.
Póde a violencia destruir o meu pobre corpo, que nada vale. Mas o que
está aqui (_na sua mente_) é indestructivel. Na minha vontade só um poder
impera: o de Deus. E se a minha vontade se extinguir na morte, a ideia
que sustento lhe sobreviverá, triumphante e eterna.
_Maximo_
Não póde ter ideias grandes quem não tem grandeza, nem piedade, nem
ternura, nem compaixão.
_Pantoja_
O meu fim é mais alto que todos os raciocinios. Para elle me dirijo por
qualquer caminho que se me depare.
_Maximo_
(_aterrado_) Por qualquer caminho!? Para ir para Deus não ha senão um: o
da Bondade Humana. (_Com exaltação_) Deus do ceu! tu não pódes permittir
que ao teu reino se chegue por lobregas e tortuosas alfurjas, nem que
á tua gloria se suba calcando os corações que te amam... Não; Deus não
permitte isso. Vêr tal absurdo seria vêr toda a Natureza em ruina, toda a
maquina do Universo destruida e aniquillada.
_Pantoja_
Estás offendendo Deus com as tuas palavras blasphemas.
_Maximo_
Mais o offendes tu com os teus actos sacrilegos.
_Pantoja_
Basta. Não disputo comtigo. Não tenho mais que dizer-te.
_Maximo_
Não tem mais? Se ainda me não disse nada! (_Segura-o vigorosamente por um
braço_) Vamos d’aqui ter com Electra, e, na presença d’ella, ou esclarece
as minhas dúvidas e me tira da anciedade horrivel em que estou, ou ahi
morre, e morro eu, e morreremos todos trez. Assim lh’o juro pela memoria
de minha mãe.
_Pantoja_
(_depois de o encarar fixamente_) Vamos. (_Ao darem os primeiros passos
sae Evarista de casa_)

SCENA XII
OS MESMOS, EVARISTA E PATROS. Atraz d’Evarista a superiora e as
duas irmãs de S. José
_Evarista_
Que succedeu, Maximo?... Que colera é essa?
_Maximo_
É este homem que me enlouquece... Venha, tia, venha tambem comnosco...
(_Vendo a superiora e as irmãs, amedrontado_) Que mulheres são aquellas?
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