Electra: Drama em cinco actos - 4

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(_dando importancia á sua revelação_) Sabem o que me disse Cuesta?
Que entre a cafila dos pretendentes ha um preferido. Electra mesma o
confessou.
_Evarista_
E quem é? (_Passa da direita para a esquerda, ficando á direita de
Pantoja e d’Urbano_)
_Urbano_
(_a Pantoja_) Isto poderia modificar os termos do problema.
_Pantoja_
(_mal humorado_) E que significa essa preferencia? É um affecto puro, ou
é uma paixoneta immoderada, febril e ephemera, d’essas que constituem o
mais grave symptoma da loucura do seculo? (_Excitado e levantando a voz_)
É o que é preciso saber-se! que se saiba quem é!
_Urbano_
Saberemos...
_Pantoja_
(_passando para junto de Cuesta_) O snr. Cuesta não a interrogou?
_Evarista_
(_ao centro, a Urbano_) Procura tu certificar-te.
_Cuesta_
(_enfadado, em resposta a Pantoja_) Parece-me que estão os snrs.
desenvolvendo um zelo excessivo e contraproducente.
_Pantoja_
(_com uma suavidade que não encobre a sua altaneria_) O meu zelo, meu
muito querido D. Leonardo, é o zelo que devo ter.
_Cuesta_
(_um tanto ferido_) Eu julguei na minha qualidade de velho amigo da
casa...
_Pantoja_
(_levando Urbano comsigo para a direita_) Cuesta mette-se demais com o
que não é da sua conta.
_Cuesta_
(_a Evarista sem lhe dar cuidado que Pantoja o ouça_) O nosso presado
snr. Pantoja é talvez demasiadamente afouto na facilidade com que penetra
nas attribuições dos outros.
_Evarista_
(_sem saber bem que explicação dar_) Emfim, como nosso amigo muito antigo
e leal...
_Cuesta_
Tambem eu o sou.
_Urbano_
(_olhando para o fundo_) Ahi está já o Marquez.

SCENA XIV
OS MESMOS E O MARQUEZ
_Marquez_
Em boa hora chego!
_Pantoja_
(_áparte_) Em pessima!
_Marquez_
(_depois de saudar Evarista_) E Electra?
_Evarista_
Vem já.
_Marquez_
(_cortejando os outros_) Já não é cêdo.
_Urbano_
É a hora. (_Pantoja, impaciente, espera Electra á porta do seu quarto.
Cuesta fala com Urbano_)

SCENA XV
OS MESMOS E ELECTRA
_Pantoja_
(_com alegria annunciando-a_) Eil-a aqui. (_Electra entra pela direita,
muito elegantemente vestida com singeleza e distincção_)
_Marquez_
(_encomiastico_) Que elegante!
_Electra_
(_satisfeita, voltando-se para que a vejam de todos os lados_) Meus
senhores, que me dizem?
_Cuesta_
Divina!
_Marquez_
Ideal!
_Evarista_
Sim: estás bem.
_Pantoja_
(_fastiento dos elogios tributados a Electra_) Vamo-nos? (_Preparam-se
para sahir_)

SCENA XVI
OS MESMOS E BALBINA, que interrompe bruscamente a scena,
entrando pela esquerda, pressurosa e suffocada
_Balbina_
Minha senhora! Minha senhora! (_Suspensão geral_)
_Todos_
(_menos Electra_) Que é?
_Balbina_
Ai! o que a menina foi fazer!
_Electra_
(_áparte, batendo o pé_) Descobriram-me!
_Balbina_
Santo nome de Jesus!... Do que ella se havia de lembrar!... (_rindo_)
Não, que uma coisa assim!... Em nome do Padre...
_Evarista_
(_impaciente_) Acaba...
_Electra_
Eu confessarei, se me deixam. Foi que...
_Balbina_
Foi a casa do snr. D. Maximo, e roubou-lhe... com muita graça, mas
roubou...
_Urbano_
O quê?...
_Balbina_
O menino mais pequeno! (_Olham todos para Electra, que promptamente se
recompõe do susto e assume uma altitude serena e grave_)
_Evarista_
(_a Electra_) Isto que vem a ser?
_Pantoja_
Electra!
_Balbina_
Estava o menino dormindo muito socegadinho. A senhorita e a maluca da
Patros entraram pela casa dentro, ás escondidas e em bicos de pés...
Embrulharam-o, muito bem embrulhado, e fugiram com elle para cá.
_Evarista_
É inacreditavel.
_Pantoja_
(_reprimindo a sua irritação_) E não é decente.
_Electra_
(_com effusão_) Tia! pois se nos queremos tanto, tanto d’alma!... eu a
elle e elle a mim!
_Marquez_
(_enthusiasmado_) Que exemplar mulher!
_Cuesta_
Merece todo o perdão.
_Evarista_
Maximo estará furioso a estas horas...
_Balbina_
O José já para lá foi a correr...
_Urbano_
E a creança onde está?
_Balbina_
Está no quarto da Patros. A menina escondeu-o lá até que ella de noite
lh’o leve para dormir com a menina. (_Sorrisos dos homens, menos de
Pantoja_) O menino acordou ha um momento, e a Patros quiz dar-lhe um
biscouto para o entreter... Eu, que o ouço, acudo, e vejo-o... Virgem
Maria! Quiz pegar n’elle... Qual! estrebuchou e bateu-me... Tive de lhe
dar uma palmadinha tambem...
_Electra_
(_correndo para a esquerda com um impulso instinctivo_) Oh! meu querido
amorsinho!
_Pantoja_
(_procurando contel-a_) Não.
_Evarista_
(_segurando-a por um braço_) Espera.
_Balbina_
(_á porta da esquerda_) Ainda se ouve chorar.
_Electra_
Pobresinho d’elle!
_Evarista_
Que o levem para a sua casa.
_Electra_
Ninguem lhe toque... Ninguem se atreva a tocar-lhe... É meu.
(_Desprende-se á força de Evarista e de Pantoja, que querem contel-a, e
sae de uma corrida pela esquerda_)

SCENA XVII
OS MESMOS E JOSÉ
_Pantoja_
(_colerico, passando para a direita_) Que falta de dignidade e de juizo!
_José_
(_pressuroso, pelo jardim_) Minha senhora...
_Evarista_
O snr. D. Maximo que disse?
_José_
Não sabia de nada. Está lá com uns senhores. Quando lhe contei poz-se a
rir... Como se nada!... Diz que o menino que está muito bem entregue á
menina.
_Urbano_
Já é pachorra!
_Evarista_
(_a José_) Vaes leval-o a casa. Para que a menina aprenda.
_Marquez_
Voto por que a deixem gosar um pouco mais do seu lindo crime.

SCENA XVIII
OS MESMOS E ELECTRA, pela esquerda, trazendo nos braços o
menino, que tem pouco mais ou menos dois annos
_Electra_
Queridinho da minh’alma!
_Evarista_
Deixa o menino, e vamo-nos.
_Urbano_
São horas.
_Cuesta_
(_ao marquez_) Eu, pela minha parte, acho que é um rasgo de maternidade.
E applaudo-o.
_Marquez_
Eu digo que é um lance angelico. E adoro-o.
_Evarista_
(_querendo pegar no menino_) Então, Electra?
_Electra_
(_em passo ligeiro afasta-se dos que querem tirar-lhe o pequerrucho. Este
abraça-lhe o pescoço_) Não, não posso deixal-o agora.
_Evarista_
Balbina, pega n’esse menino.
_Electra_
(_passa de um lado para o outro, procurando um refugio_) Não! e não!
_Urbano_
Dá-m’o a mim.
_Electra_
Não!
_Pantoja_
(_imperioso, a José_) Pegue n’elle, José.
_Electra_
Não, já disse!... Ninguem lhe toca... É meu.
_Evarista_
Mas, filha, se temos de sahir!
_Electra_
Saiam! vão com Deus. (_Vendo que o chapeu a inhibe de abraçar e beijar
o seu amiguinho, arranca-o rapidamente da cabeça e atira-o para longe.
Continúa a passear o menino, fugindo dos que lh’o querem tirar, e, sem
ouvir, falando com o pequerrucho, que lhe deita os braços ao pescoço e a
beija_) Dorme, dorme, meu amor. Não tenhas medo, filhinho... Dorme, que
não te largo.
_Evarista_
Então vamos ou não vamos?
_Electra_
Eu não vou... Tens fome? tens sede, meu anjo? Eu te acalentarei... Deixa
berrar esses egoistas todos, que se não lembram de que não tens mãe!
_Pantoja_
Mas tem quem olhe por elle.
_Evarista_
Basta! (_Imperiosa, aos creados_) levem-o para a sua casa.
_Electra_
(_resolutamente, sem deixar que toquem na creança_) A casa! a casa!
(_Com passo decidido, sem olhar para ninguem, corre para o jardim e sae.
Seguem-a todos com a vista, indecisos, não ousando dar um passo para
ella_)
_Pantoja_
Que escandalo!
_Evarista_
Que loucura!
_Marquez_
Que juizo! o juizo mais perfeito da mulher! Achou o seu caminho.
FIM DO SEGUNDO ACTO


ACTO TERCEIRO
O laboratorio de Maximo. Ao fundo, occupando grande parte da
parede, divisoria com revestimento de madeira na parte inferior
e envidraçada para cima. Este tapamento separa a scena d’um
vasto local, em que se vêem maquinas e apparelhos para a
producção de energia electrica. A porta praticavel no socco
divisoria communica com a rua.
Á direita, no primeiro plano, um corredor que dá passagem para
o jardim dos snrs. de Garcia Yuste. No ultimo plano, uma porta
de communicação com a habitação de Maximo e com a cosinha.
Entre a porta e o corredor, uma estante com livros.
Á esquerda, porta de passagem para as casas em que trabalham os
ajudantes. Junto a esta porta, uma estante com apparelhos de
physica e objectos de uso scientifico.
Ao fundo, dos dois lados do socco de madeira, prateleiras com
frascos de diversas substancias e livros. No angulo da direita
um pequeno aparador.
Á esquerda da scena, a mesa do laboratorio com os objectos que
no dialogo se indicam. Fazendo angulo com ella, a balança de
precisão sobre um supporte de fabrica.
Ao centro pequena mesa de jantar, e quatro cadeiras.

SCENA I
MAXIMO, trabalhando n’um calculo, com grande attenção ao que
está fazendo—ELECTRA em pé, arranjando os multiplos objectos
que estão na meza: livros, capsulas, tubos de ensaio, etc.
Veste com simplicidade caseira, e grande avental branco.
_Maximo_
(_sem levantar os olhos do papel_) Para mim, Electra, a dupla historia
que me contas, esse supposto poder dos dois cavalheiros, é um facto
destituido de valor positivo.
_Electra_
(_suspirando_) Deus te ouça!
_Maximo_
Tudo se reduz a duas paternidades platonicas sem nenhum effeito legal...
até agora. O mais feio do caso é a auctoridade que quer assumir o snr. de
Pantoja...
_Electra_
Auctoridade oppressiva, suffocante, que me tira o ar. Nem me fales
n’isso, se não me queres amargurar a alegria de estar cá em casa!
_Maximo_
Devéras? assim te affliges?
_Electra_
Ainda mais: ponho-me n’esse estado singularissimo de cabeça e de
nervos... Já te contei... Em certas occasiões da minha vida apodera-se de
mim um desejo, fixo, fundo, absorvente, de tornar a vêr a imagem da minha
pobre mãe, como a via na minha meninez... Pois sempre que se aggrava para
mim a tyrannia de Pantoja, renasce o meu doloroso e invencivel anceio; e
sinto a perturbação nervosa e mental que me annuncia...
_Maximo_
A visão da tua mãe? Isso, rapariga, não é d’um espirito rijo e são.
Aprende-me a governar essa imaginação... Trabalha-me para a frente, e á
má cara. O ocio é o peor de todos os perturbadores da intelligencia.
_Electra_
(_muito animada_) Cá estou seguindo á risca o que me mandaste fazer.
(_Pega n’uns frascos de substancias mineraes e leva-os para uma das
estantes_) Estes frascos para o seu logar... Emquanto penso n’isto nem
penso na furia da tia logo que souber...
_Maximo_
(_attento ao trabalho_) A tia até ha de acabar por gostar... Mas
deixa que tu, tambem!... Não te bastou a loucura d’hontem... raptar
insidiosamente o menino... Tornas a trazer-m’o... ficas-te a embalal-o
e adormecel-o, muito mais tempo que o regular... E, não contente ainda
com a saturnal d’hontem, pespegas-te hoje cá em casa, e aqui andas
a sargentear, para uma banda e para outra, muitissimo fresca da tua
vida!... Ainda foi por Deus, que convidados para a distribuição dos
premios e para o almoço em Santa Clara os tios ainda a estas horas
ignorem o pulo medonho que a boneca deu da casa d’elles para a minha!
_Electra_
Tu é que me aconselhaste que me insubordinasse... «_Insubordina-te!_»
_Maximo_
Sim senhor: fui o instigador do delicto... E gabo-me d’isso.
_Electra_
A minha consciencia diz-me que não ha mal nenhum no que faço.
_Maximo_
Pois está bem de vêr que não ha... Foi talvez para casa de um pulha que
tu vieste!... Não faltaria mais nada senão que principiasse agora a haver
mal em estar alguem na minha casa!
_Electra_
(_trabalhando sempre e falando sem se distrahir do que faz_) Eu digo
mais: estando tu esmagado de trabalho, só, sem creados, e estando eu
para ahi, de mãos a abanar, sem ter absolutamente nada que fazer, o que
pareceria mal, o que seria indecente, é que eu não viesse...
_Maximo_
Cuidar de mim e dos pequenos... Effectivamente, se isso não é logica,
digo-te que botemos luto, porque já não ha logica no mundo!
_Electra_
Queridos pequerruchinhos! Toda a gente sabe que os adoro... São a minha
paixão, o meu fraco... (_Maximo, abstrahido n’uma conta, cessa de dar
attenção ao que ouve_) Chega-me a parecer... (_Approxima-se da mesa
levando uns livros que não estavam no seu logar_)
_Maximo_
(_vagamente_) Quê?
_Electra_
Que nem a sua propria mãe lhes quereria tanto como eu!
_Maximo_
(_satisfeito com o resultado do seu calculo, lendo em voz alta uma
cifra_) Zero, trezentos e dezoito... Fazes favor de me dar as _Tabellas
de resistencias_... aquelle livro encarnado...
_Electra_
(_correndo á estante da direita_) Não é este?
_Maximo_
Mais adeante.
_Electra_
É verdade... que tôla!
_Maximo_
Fica-te muito bem,—sabes?—que em tão pouco tempo conheças todos os meus
livros e os seus logares na estante...
_Electra_
Não dirás que te não puz tudo muito arranjadinho.
_Maximo_
Não; e darei graças a Deus, porque entrou finalmente n’este antro,
revolto e poeirento, a limpeza e a ordem!
_Electra_
(_desvanecida_) Confessas então que não sou absolutamente, absolutamente
inutil?
_Maximo_
(_olhando com fixidez para ella_) Não ha nada inutil na creação. Quem te
diz a ti que te não creou Deus para altos destinos? Quem te diz que não
virás a ser...
_Electra_
(_anciosa_) O quê?
_Maximo_
Uma alma grande, formosa e nobre, que está por hora meia afofada ainda na
serradura e na estopa de uma boneca?
_Electra_
(_com alegria_) Pae do ceu, se assim fosse! (_Maximo levanta-se e, na
estante da esquerda, pega n’umas barras de metal, que examina_) Nem me
digas isso que me entonteces de alegria... Pode-se cantar?...
_Maximo_
Podes cantar... (_Electra repete trauteando o andante de uma sonata_)
A boa musica é a espóra das ideias preguiçosas, que não affluem; e
é o gancho que puxa pelas que estão agarradas de mais ao fundo do
entendimento. Canta, companheira, canta... (_Prosegue attento á sua
occupação_)
_Electra_
(_á estante do fundo_) Continúo coordenando isto. Os metaloides para este
lado. Já os conheço pelos rotulos... Como este trabalhito entretem! Era
capaz de ficar aqui todo o santo dia...
_Maximo_
(_jovial_) Camarada!
_Electra_
(_correndo para elle_) Que manda o magico?
_Maximo_
Eu não mando por ora. Proponho. (_Pega n’um frasco que contém um metal em
limalha_) Se a menina magica quer collaborar commigo ha de fazer favor de
me pesar trinta grammas d’este metal.
_Electra_
Péso.
_Maximo_
Sabes já pesar na balança de precisão...
_Electra_
Perfeitamente. Dá cá. (_Alegre, contente, ao deitar o metal na capsula,
admira-lhe a belleza_) É lindo! Que é isto?
_Maximo_
É aluminio. Parece-se comtigo. Pesa pouco...
_Electra_
Ah! eu então?...
_Maximo_
Pesa pouco, mas é extremamente tenaz. (_Olhando-lhe para a cara_) Tu
tambem?
_Electra_
Em coisas que eu cá sei, sou tenaz até á barbaridade, e, chegado o
momento, estou certa de que o seria até ao martyrio. (_Continúa pesando
sem interromper a operação_)
_Maximo_
Que coisas são essas?
_Electra_
Que te importa! Tu és o magico, mas eu é que magíco... commigo, ás vezes.
_Maximo_
(_attento ao trabalho_) Pesas-me depois setenta grammas de cobre.
(_Dá-lhe outro frasco_)
_Electra_
O cobre então serás tu... Não: é tambem feio de mais para se parecer
comtigo.
_Maximo_
É feio, mas util.
_Electra_
Compara-te antes ao ouro, que é o que vale mais.
_Maximo_
Nada de ditos! Estás a desmoralisar-me o laboratorio.
_Electra_
Dá ao menos licença de que me reveja nas qualidades do metal bonito que
se parece commigo... Sou tenaz... Não me quebro... Farás favor de o dizer
á tia e ao tio Urbano, que, no sermão que me prégaram esta manhã, por
umas quarenta vezes me disseram que sou fragil... Fragil, eu!
_Maximo_
Não sabem o que dizem.
_Electra_
Sabem lá elles... nem o que é o aluminio, nem o que eu sou!
_Maximo_
Mas toma sentido, que te não equivoques no peso!
_Electra_
Equivocar-me eu! Pateta! Eu tenho muito mais tino do que ninguem cuida!
_Maximo_
Já vou vendo, já vou vendo! (_Dirige-se a uma das estantes em procura
d’um cadinho_) A tia, quando chegar a casa, é que lhe ha de custar um
pouco mais a compenetrar-se de que tenhas todo o tino que dizes...
_Electra_
Deus, que vê os corações, sabe se eu tenho culpa! Porque é que a tia não
deixa que eu venha para cá?
_Maximo_
(_voltando com o cadinho que escolheu_) Por que tu és uma menina
solteira, e as meninas solteiras não podem ficar assim em casa d’um homem
só, por mais honrado e por mais digno que elle seja.
_Electra_
Pois, senhor, não haja dúvida que, por essa regra, estão divertidas as
pobres meninas solteiras! (_Termina o peso e apresenta os dois metaes
pesados nas suas duas capsulas de porcelana_) Aqui tens o aluminio e o
cobre.
_Maximo_
(_pegando nas capsulas_) Um primor. Que limpeza de mãos... Que firmeza de
pulso, e que serenidade de attenção para não fazer d’isto uma trapalhada!
Estás fina.
_Electra_
Estou contente apenas. Quando se tem a alegria tudo corre bem.
_Maximo_
Ahi disse a collega uma importantissima verdade. (_Verte os dois corpos
no cadinho_)
_Electra_
Isso é um cadinho, não é?
_Maximo_
Sim senhor, para fundirmos os dois metaes.
_Electra_
Para nos fundirmos tu e eu, se não pegarmos á bulha no meio do fogo...
(_Trauteia a sonata_)
_Maximo_
Faze favor de chamar o Ricardo.
_Electra_
(_correndo á porta da esquerda_) Ricardo!
_Maximo_
Que venha tambem o Gil.
_Electra_
Gil! Venham ambos, que manda o mestre... não se demorem!

SCENA II
ELECTRA, MAXIMO, RICARDO E GIL, o primeiro vestido de operario,
com blusa, o segundo em trage burguez, com mangas de alpaca,
pena na orelha
_Gil_
(_mostrando um calculo_) Aqui está o valor obtido.
_Maximo_
(_lê rapidamente a cifra_) 0,158,073... Está errado (_Seguro do que diz
e com certa severidade_) Não é possivel que para um diametro de cabo
menor de quatro millimetros obtenhamos um circuito maior, segundo o teu
calculo. A verdadeira distancia deve ser inferior a duzentos kilometros...
_Gil_
Não sei então... eu... (_Confuso_)
_Maximo_
Está mal. É que te distrahiste.
_Electra_
É que vocês, coitados, não teem... a attenção serena...
_Maximo_
Emquanto fazeis os calculos estaes a pensar em historias da carocha.
_Electra_
E a conversar, a falar de touros, de theatros, da politica... assim não
fazemos nada.
_Gil_
Vou rectificar as operações.
_Electra_
E, sobretudo, muita paciencia, muita contensão, todos os cinco
sentidos!... Senão tornamos á mesma.
_Gil_
Vou vêr isto.
_Maximo_
Anda lá e não te descuides (_Gil sae e Maximo, virando-se para Ricardo,
entrega-lhe o cadinho_) Aqui tens.
_Ricardo_
Para fundir...
_Maximo_
Está preparado o forno?
_Ricardo_
Sim senhor.
_Maximo_
Mette immediatamente, e quando esteja em fusão, avisa. Com esta aleação
vamos fazer um novo ensaio de conductibilidade... Espero chegar aos
duzentos kilometros com perda escassissima.
_Ricardo_
Faz-se o ensaio hoje?
_Maximo_
(_atormentado por uma ideia fixa_) Sim, quanto antes. Não abandono este
problema. (_A Electra_) É a minha ideia fixa, que me não deixa viver.
_Electra_
Ideia fixa tambem eu tenho uma, e por ella vivo. Avante!
_Maximo_
Avante, _Electra_! Avante, _Ricardo_!
_Ricardo_
Não manda mais nada, patrão?
_Maximo_
Que actives a fusão.
_Electra_
Que se fundam bem os metaes!
_Ricardo_
Hão de ficar os dois em um só, senhorita.
_Electra_
Dois n’um.
_Maximo_
(_como preparando-se para outra occupação_) Agora, minha graciosa
discipula...
_Electra_
Agora ha de o mestre perdoar, mas tenho de ir vêr se acordaram os meninos.
_Maximo_
Ha quanto tempo comeram?
_Electra_
Ha trez quartos d’hora. Devem dormir meia hora mais. Está bem regulado
assim?
_Maximo_
Está bem tudo o que determines.
_Electra_
Olha o que dizes, que estarás por tudo...
_Maximo_
(_carinhosamente_) Por tudo.
_Electra_
Que se fique sabendo!... Eu venho já. (_Sae ligeira e cantando pela
esquerda. Entra ao mesmo tempo um operario, pelo fundo_)

SCENA III
MAXIMO E O OPERARIO
_Maximo_
Que ha?
_Operario_
Veio aquelle senhor, o marquez de Ronda...
_Maximo_
Porque não entrou?
_Operario_
Perguntou pelo patrão... Disse-lhe que tinha uma visita... Elle então,
como pessoa da casa, logo disse: «Já sei... ha de ser a senhorita
Electra... Voltarei logo».
_Maximo_
Porque lhe não disseste que entrasse, meu pascacio?
_Operario_
Como me disse que voltava...
_Maximo_
Pois sempre que vier, que entre, esteja que não esteja a senhorita
Electra, e sobretudo estando.
_Operario_
Assim se fará. (_Sae pelo fundo_)

SCENA IV
MAXIMO E ELECTRA
_Electra_
(_voltando do interior da casa_) Dormidinhos como dois anjos... até
d’aqui a meia hora...
_Maximo_
E os adultos não comem? não se almoça hoje n’esta casa?
_Electra_
Quando queiras. Está feito o almoço. (_Dirige-se para o aparador, onde
está a pequena baixella: talheres, toalha, guardanapos, fructeira_)
_Maximo_
É como deve ser... Tudo a horas... assim se chega sempre ao que se quer.
_Electra_
(_estendendo a toalha_) Ao que eu quero não chegarei nunca por mais
pontualidade que ponha...
_Maximo_
Deixa-me ajudar-te... (_Vae-lhe passando os pratos, os talheres, o pão, o
vinho_) Chegas, sim.
_Electra_
Achas?
_Maximo_
Acho. Tão certo que chegas como que tenho uma fome de cincoenta cavallos
de força.
_Electra_
Melhor, para que te agrade o almoço.
_Maximo_
A elle!
_Electra_
N’um minuto. (_Sae_)

SCENA V
MAXIMO E GIL
_Maximo_
Bemdita seja essa mulhersinha preciosa, que tão simples, tão instinctiva,
tão ingenuamente, traz a sua grande alma inquieta, torturada e núa, a
inundar de alegria e de luz este esconderijo da sciencia, transformando
tão estreita aridez em tão vasto paraizo! Bemdita a que com um mero
sorriso de creança vem arrancar da sua abstracção consumidora este pobre
Fausto, envelhecido aos trinta e cinco annos, e dizer-lhe: «Nem só de
verdades se vive!» (_Interrompe-o Gil, que tem entrado um pouco antes e
se approxima sem ser visto_)
_Gil_
(_satisfeito mostrando o calculo_) Pronto. Creio ter achado a cifra
exacta.
_Maximo_
(_pega no papel e olha-o vagamente, sem se fixar_) A exactidão!... E
tambem tu pensarás que só de coisas exactas vive o homem!? Saturada
de certeza, a alma insaciada appetece, mais que tudo, o que é apenas o
sonho, e vôa para elle, avassalada e rendida, sem nem sequer tentar saber
se é para a realidade, se para a illusão, que vôa!... Considerando bem,
Gil, nada mais natural do que um equivoco de calculo.
_Gil_
Sim, senhor, muito facilmente se distrae uma pessoa pensando em...
_Maximo_
Em coisas vagas, indefinidas, aereas, vaporosamente illuminadas de côr de
rosa e d’azul...
_Gil_
Eu, distrahido, confundi a cifra da potencial com a da resistencia... Mas
já rectifiquei... Queira vêr se está bem.
_Maximo_
(_lê_) 0,318,73... (_Com repentina transição para um goso expansivo_)
Homem! e que não estivesse! Se ainda errasses outra vez?... A exactidão
dos mathematicos perdoaria, por hoje, á nossa phantasia de poetas.
_Gil_
Ah! a exactidão não perdôa nunca: é a tyrannia da nossa vida;
opprime-nos, escravisa-nos, não nos deixa respirar.
_Maximo_
Essa mestra implacavel tambem algumas vezes nos sorri, nos acalenta e nos
encanta. Vês essa cifra?
_Gil_
(_contente, dizendo de memoria_) 0,318,73.
_Maximo_
Pois sabe que nunca os maiores poetas do mundo, Virgilio ou Homero,
Dante, Lope de Vega ou Calderon escreveram estrophe mais inspirada e mais
poetica do que é hoje para mim a d’esses miseros numeros! É verdade que a
harmonia, o encanto poetico não é n’elles que está. Está em que... Adeus,
vae almoçar... Deixa-me, deixa-nos... (_Afasta-o com a mão para que saia.
No ponto da scena em que pode olhar para o interior da habitação_) Ali é
que está a imaginação, a poesia, o ideal, no fundo d’essa cosinha, onde
n’este momento ondula a mais altiva e a mais virginal flôr da innocencia,
da candura e da bondade humana.

SCENA VI
MAXIMO E ELECTRA
_Electra_
(_entrando com uma terrina fumegante_) Aqui está o banquete.
_Maximo_
A vêr o que se fez! arroz com menudilhos... O thema é digno de Lucullo.
_Electra_
Elogia-o sem provar: está superfino. (_Senta-se_) Vou-te servir.
(_Servindo-o_)
_Maximo_
Não tanto.
_Electra_
Olha que não tens mais nada... Acho que se não deve ter mais d’uma
coisa... e escolher a melhor.
_Maximo_
Meu Deus! o que diria a tia, se agora nos visse aqui almoçando juntos...
_Electra_
Um almoço feito por mim!
_Maximo_
Sabes que está maravilhoso o teu arroz?
_Electra_
Foi minha mestra, em Hendaya, uma senhora valenciana. Eu fiz um curso de
arrozes. Sei-os fazer de sete maneiras differentes, todos riquissimos.
_Maximo_
Decididamente és todo um mundo novo.
_Electra_
E quem é o meu Colombo?
_Maximo_
Não ha Colombo que ousasse descobrir-te. Tu és um mundo que apparece.
_Electra_
Será talvez por eu ser um mundosito assim desconhecido, que querem
metter-me no convento para me livrar do perigo de que dêem commigo. E é
o que me espera...
_Maximo_
D’essa é bem natural que não escapes.
_Electra_
(_assustada_) Que dizes!
_Maximo_
Quero dizer: escapas... porque te hei de salvar eu.
_Electra_
Prometteste-me o teu amparo.
_Maximo_
E dou-t’o.
_Electra_
Que tencionas fazer?
_Maximo_
Eu te digo: o negocio é grave...
_Electra_
Falas com a tia, já se sabe...
_Maximo_
Falo com a tia...
_Electra_
E que lhe dizes?
_Maximo_
Falo com o tio...
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