Electra: Drama em cinco actos - 3

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(_grave_) Não: é a ambição, a maldita ambição, que a tantos fascina e a
tantos deita a perder.
_Maximo_
Ambição legitima e indispensavel á humanidade. Imagine a tia...
_Evarista_
(_cortando-lhe a palavra_) É a ancia das riquezas, para saciar com ellas
a avidez do goso. Gosar, gosar, gosar: isso unicamente quereis, e para
isso vos consumis, sacrificando o estomago, o cerebro, o coração e a
propria alma, sem vos lembrardes da inanidade das coisas da terra e da
brevidade da vida. Rapidamente nos vamos, e tudo cá fica.
_Maximo_
(_impaciente por sahir_) Tudo, menos eu, que me safo já.

SCENA III
OS MESMOS E JOSÉ
_José_
(_annunciando_) O snr. marquez de Ronda.
_Maximo_
(_detendo-se_) Esperarei já agora para o vêr.
_Evarista_
(_recolhendo os papeis_) Não manda Deus que trabalhemos hoje.
_Urbano_
Adivinho ao que vem.
_Evarista_
Que entre, José, que entre! (_José sae_)
_Maximo_
Vem convidal-os para a inauguração da nova _Irmandade da Escravidão_
fundada por Virginia. Disse-m’o hontem á noite.
_Evarista_
Bem sei... Então é hoje?

SCENA IV
EVARISTA, URBANO, MAXIMO E O MARQUEZ
_Marquez_
(_saudando com affabilidade_) Querida amiga... Urbano... (_A Maximo_)
Olá! não esperava encontrar o magico...
_Maximo_
O magico diz-lhe adeus e some-se.
_Marquez_
Um momento. (_Retendo-o_)
_Evarista_
Sim, Marquez: iremos.
_Marquez_
Já sabem?
_Urbano_
A que horas?
_Marquez_
Ás cinco em ponto. (_A Maximo_) A si não lhe digo porque sei que não tem
tempo.
_Maximo_
Desgraçadamente. Segue-se então que o não espero hoje.
_Marquez_
Como, se temos essa festa rija de religião e de mundanismo! mas lá vou á
noite.
_Evarista_
(_levemente zombeteira_) Já cá se tem notado, com muito regosijo é claro,
a frequencia das visitas do Marquez á caverna do nigromante.
_Maximo_
O Marquez dá-me muita honra com a sua amizade e com o interesse que toma
pelos meus estudos.
_Marquez_
Veio-me agora o delirio das maquinas e dos phenomenos electricos...
Caturrices de velho!
_Urbano_
(_a Maximo_) Parabens pelo discipulo.
_Evarista_
Deus sabe... (_Maliciosa_) Deus sabe quem será o mestre e quem o alumno!
_Marquez_
A respeito do mestre, sinto que elle esteja presente porque isso me priva
de applicar aos seus meritos todas as mordeduras que a inveja me inspira.
_Evarista_
Retira-te, Maximo; vamos dizer mal de ti.
_Maximo_
Repaste-se a má lingua! Adeusinho todos. Adeus, tia.
_Evarista_
Vae com Nossa Senhora!
_Marquez_
(_a Maximo que sae_) Até á noite, se me deixarem. (_A Evarista_)
Extraordinario homem! Sempre o admirei muito, mas agora que tenho
apreciado mais de perto todas as suas qualidades, sustento que não ha
outro no mundo como este seu sobrinho.
_Evarista_
No terreno scientifico.
_Marquez_
Em todos os terrenos, senhora de Yuste. Pois quê?!...
_Evarista_
De certo que como intelligencia...
_Marquez_
(_com enthusiasmo_) Como intelligencia, como caracter, como coração, como
tudo... Quem é que é melhor?
_Evarista_
(_sem querer empenhar-se n’uma discussão delicada_) Bem, bem, Marquez...
(_Variando de tom_) É então ás cinco, disse...?
_Marquez_
Em ponto. Contamos tambem com Electra.
_Evarista_
Não sei se a leve...
_Marquez_
Ora essa! Tenho incumbencia especialissima de conseguir a presença da
senhorita Electra n’esta solemnidade, e já prometti que sim. Virginia
deseja muito conhecêl-a.
_Urbano_
Á vista d’isso...
_Marquez_
Não me deixem ficar mal!
_Evarista_
Bem: conte com ella.
_Marquez_
Teremos muita gente, toda a nossa roda...
_Urbano_
Oh! vae estar brilhante com certeza.
_Marquez_
Com que então, até já. Tenho de ir a casa de Otumba, e passarei por cá
na volta. (_Ouve-se a voz de Electra pela esquerda, chalrando e rindo
alegremente. O marquez pára a escutal-a_)

SCENA V
OS MESMOS E ELECTRA
_Electra_
Pois sim, sim... rica, minha riquinha! mais um beijo... Que doida que és!
que doida que sou! mas entendemo-nos ambas. (_Apparece pela esquerda com
uma grande e rica boneca, que beija e que embala. Detem-se envergonhada_)
_Evarista_
Que vem a ser isto, rapariga?
_Marquez_
Não lhe ralhe.
_Electra_
Mademoiselle Lulu e eu damos á lingoa, contamo-nos coisas.
_Urbano_
(_ao Marquez_) Anda desatinada hoje.
_Electra_
(_afastando-se, diz segredinhos á boneca. Os outros olham_) Que linda que
és, Lulu! Mas elle, ainda mais lindo que tu. Que feliz seria o meu amor
com elle e comtigo!
_Marquez_
Sempre folgazã, pelo que vejo...
_Evarista_
Pelo contrario: desde hontem n’uma tristeza que nos dá cuidado.
_Marquez_
Tristeza? idealidade antes.
_Evarista_
E, agora, está vendo...
_Marquez_
(_carinhoso, dirigindo-se para ella_) Rica menina!
_Electra_
(_approximando a cara da boneca da do marquez_) Vamos, Mademoiselle, não
se me faça môna: dê um beijinho a este senhor. (_Antes que o marquez
beije a boneca dá-lhe um leve carolo com a cabeça de Lulu_)
_Marquez_
A Lulu não beija: a Lulu marra. (_Acariciando o queixinho de Electra_)
Por isso gósto mais da sua amiguinha do que d’ella.
_Electra_
De miôlo póde crêr que tanto tem uma como outra.
_Urbano_
Mas que conversas tu com a boneca?
_Electra_
Desafógo com ella, conto-lhe as minhas penas.
_Evarista_
Penas, tu?
_Electra_
Penas eu, sim, pois quê?... E quando nos vê muito caladas ambas é porque
nos estão lembrando as nossas coisas passadas...
_Marquez_
Ah! se a interessa o passado já é um signal de que pensa pela sua
cabecinha.
_Evarista_
E que coisas passadas são essas que dizes?
_Electra_
Digo do tempo em que nasci. (_Com gravidade_) O dia em que eu vim ao
mundo foi um dia muito triste, pois não foi? Lembra-se aqui alguem de
como foi esse dia?
_Evarista_
Filha, que tontices que dizes! E não tens vergonha de que o snr. Marquez
te veja tão adoidada?
_Electra_
Creia, tia, que não ha doidos tão doidos, nem creanças tão creanças, que
não tenham sua razão para dizer o que dizem e para fazer o que fazem.
_Marquez_
Muito bem pensado.
_Evarista_
Qual é então a tua razão para esses brinquedos tão fóra da tua edade?
_Electra_
(_olhando para o marquez, que sorri ao seu lado_) Isso não posso contar
agora.
_Marquez_
Quer dizer que me retire.
_Evarista_
Electra!
_Marquez_
Eu ia já despedir-me... com bem pena de que as minhas occupações me
privem de convivencia tão interessante. Adeus, senhorita; volto ás cinco
para a levar commigo.
_Electra_
A mim!
_Evarista_
Sim; vamos á inauguração das _Escravas_.
_Electra_
E eu tambem?
_Evarista_
Podes-te ir vestindo.
_Electra_
(_assustada_) Ha de estar muita gente... A gente mette-me medo. Gósto
mais de ficar só.
_Marquez_
Estaremos em familia. E com isto me despégo.
_Evarista_
Até logo, Marquez.
_Marquez_
(_a Electra_) Menina, ás cinco; aprendámos a ser pontuaes. (_Sae pelo
fundo com Urbano_)

SCENA VI
EVARISTA E ELECTRA
_Evarista_
Explicarás agora a extranha maluquice em que andas.
_Electra_
Eu lhe digo, tia: tenho uma dúvida... como direi?... um problema...
_Evarista_
Problemas, tu!
_Electra_
Exactamente, no plural, problemas... porque é de mais d’um que se trata.
_Evarista_
Valha-te Nossa Senhora!
_Electra_
E quero vêr se m’os resolve...
_Evarista_
Quem?
_Electra_
Uma pessôa que já não vive.
_Evarista_
Que dizes?
_Electra_
Minha mãe. Não se afflija... Minha mãe pode-me dizer o que eu pretendo...
e aconselhar-me. A tia não acredita que as pessôas do outro mundo podem
vir a este? (_Gesto de incredulidade de Evarista_) Não acredita. Acredito
eu. Acredito porque o tenho visto. Eu tenho visto minha mãe...
_Evarista_
Virgem Maria! como tens essa cabeça!
_Electra_
... Quando era muito pequenina, assim, d’este tamanho...
_Evarista_
Nas Ursulinas de Bayona?
_Electra_
Sim... Minha mãe apparecia-me.
_Evarista_
Em sonhos, naturalmente.
_Electra_
Não, não: estando eu acordada, tão bem acordada como estou agora.
(_Colloca a boneca n’uma cadeira_)
_Evarista_
Pensa no que dizes, Electra...
_Electra_
Quando eu estava só, sósinha, triste ou doente; quando alguem me
lastimava dando-me a perceber a desairosa situação que eu tinha no mundo,
a minha mãe vinha, e consolava-me. Primeiro via-a imperfeitamente,
confusa, como vaporosa, a parecer diluir-se nas coisas distantes, nas
coisas proximas. Adeantava-se, n’uma claridade que tremeluzia... Depois,
não bulia mais; era uma fórma quieta, uma serena imagem triste... E
eu não podia então duvidar de que a tinha ali... Era minha mãe... Das
primeiras vezes via-a em traje elegante de grande dama... Um dia,
por fim, appareceu-me de habito e escapulario de monja. O seu rosto
envolvido nas toucas brancas, e o seu corpo coberto pela estamenha
pendente tinham uma magestade de belleza que não póde imaginar quem a não
viu.
_Evarista_
Tu deliras, minha pobre filha!
_Electra_
Junto de mim abria os braços como se quizesse enlaçar-me. Falava-me n’uma
voz dôce, mas longinqua e recondita... não sei como lh’o explique... Eu
perguntava-lhe coisas, e ella respondia-me... (_maior incredulidade de
Evarista_) A tia não acredita?
_Evarista_
Vae dizendo.
_Electra_
Nas Ursulinas tinha uma bella boneca, a que eu chamava tambem Lulu...
Veja a tia que mysterio este!... Sempre que eu andava pela horta, ao
cahir da tarde, só, levando ao colo a minha boneca—tão melancolica eu
como ella—olhando muito para o ceu, era certa, segura, infallivel, a
visão de minha mãe... primeiro entre as arvores, como enformada no ôco
das folhagens; depois, desenhando-se de luz, e caminhando para mim,
vagarosamente, por entre os troncos escuros...
_Evarista_
E em mais crescida, quando vivias em Hendaya... tambem?...
_Electra_
Nos primeiros tempos não... Então já eu brincava com bonecas vivas: os
dois pequerruchinhos da minha prima Rosalia, menina e menino, que nunca
se separavam de mim, e me adoravam, como eu a elles. De noite, na solidão
do nosso quarto, com os meninos dormidinhos, como elles aqui... e eu
aqui (_indica o logar dos dois leitos parallelos_) por entre as duas
caminhas brancas a minha mãe passava, meiga, silenciosa, aeria, sem pisar
o chão... E debruçava-se para mim...
_Evarista_
Cala-te, por Deus, que até me fazes medo... Mas depois que foste mais
crescida... agora—digamos—acabaram essas visões...
_Electra_
Nunca mais as tive desde que deixei de viver com bonecas e com meninos.
É por isso que eu trato de voltar á edade da innocencia, e de me fazer
creança pequena outra vez, a vêr se, tornando a ser o que fui, voltará
tambem minha mãe a vêr-me, como d’antes... Para que falemos, e me
responda ao que lhe quero perguntar... e me dê conselho...
_Evarista_
E que dúvidas são as tuas, que assim precisas...
_Electra_
(_pondo os olhos no chão_) Dúvidas?... coisas que a gente não sabe, e
quer saber.
_Evarista_
Tolice! Que tão grave caso vem a ser esse para que precises de consulta e
de conselho?...
_Electra_
Cá uma coisa... (_Vacilla, está quasi a dizêl-o_)
_Evarista_
O quê? dize.
_Electra_
Uma coisa... (_Com timidez infantil dando voltas á boneca e sem se
atrever a revelar o seu segredo_) Uma certa coisa...
_Evarista_
(_severa e affectuosa_) Ih! que intoleravel que estás, com tanta
creancice! (_Tira-lhe a boneca_) Que estupida e ao mesmo tempo que
atilada que tu és! Tão depressa te mostras um prodigio de intelligencia
e de graça como parece que não passas de maluca... Andam ás bulhas com a
tua alma cherubins e demonios. Temos que intervir para acabar com essa
lucta e dar em Satanaz muitos açoites, ainda que algum te caia em ti e
te dôa um poucochito... (_Beija-a_) Vamos! juizo. Precisas de te occupar
n’alguma coisa, de distrahir essa cabeça... Não te esqueça de que é ás
cinco a festa... Vae-te arranjar, anda...
_Electra_
Sim, tia.
_Evarista_
Faltam tres quartos.
_Electra_
Vou apromptar-me.
_Evarista_
E poucas brincadeiras... cuidado! (_Sae pelo fundo levando a boneca
pendida, suspensa por um braço_)

SCENA VII
ELECTRA E PATROS
_Electra_
(_olhando para a boneca_) Pobre Lulu! como te levam á dependura!
(_Imitando a postura da boneca e apalpando o seu proprio braço dolorido_)
Que dôr que vaes ter, coitada, no hombro desengonçado! (_Senta-se
meditabunda_) E o outro á minha espera... Como foi triste a separação!
como elle chorava, estendendo-me os bracinhos!... e eu que lhe prometti
voltar...
_Patros_
(_assomando cautelosa pela esquerda_) Senhorita, senhorita...
_Electra_
Entra.
_Patros_
(_avançando com precaução_) Não está ninguem?
_Electra_
Estamos sós.
_Patros_
Não se pilha outra occasião assim, menina! Ou agora ou nunca.
_Electra_
Vens de lá?
_Patros_
Agora mesmo... Muitos senhores que dizem numeros... milhões, _bilhões_ e
_quatrilhões_... E lá dentro, ninguem.
_Electra_
(_vacillando_) Atrevo-me?
_Patros_
(_decidida_) Atreva-se, menina.
_Electra_
Nossa Senhora do Carmo, protegei-me! (_Dirige-se á sahida que dá para
o jardim. Pára assustada_) Espera. Não será melhor sahirmos pelo outro
lado? Pode estar a tia á janella da casa de jantar...
_Patros_
Pode, pode! Demos a volta por aqui. (_Pela esquerda_)
_Electra_
Sim, por aqui... Estou a tremer toda... de valentia! e de medo. Ávante!
(_Saem a correr pela esquerda_)

SCENA VIII
URBANO E JOSÉ, que entram pelo fundo ao tempo a que saem as duas
_Urbano_
Quem vae ali?
_José_
É a Patros.
_Urbano_
Então que temos?... conta lá.
_José_
São já cinco os que fazem olho á menina: cinco vistos por mim. Fóra os
que não vi.
_Urbano_
E quê? rondam a casa?
_José_
Dois pela manhã, dois de tarde, e o mais pequenitate de todos, de sol a
sol.
_Urbano_
Tens notado se ha communicação entre a janella do quarto da senhorita
Electra e a rua por meio de cesto pendente ou de cordão telephonico?
_José_
Não vi nada d’isso. Mas cá eu, se fôsse os senhores, mudava a menina para
os quartos d’acolá. (_Á esquerda_)
_Urbano_
E algum d’esses meninos não se coará para dentro do jardim?
_José_
Isso sim! Não que elles teem espinhaço e querem-o para mais d’uma vez.
_Urbano_
Bem: vae vigiando sempre. (_Entra Cuesta pelo fundo_)

SCENA IX
URBANO E CUESTA, com papeis e cartas
_Urbano_
Ora graças a Deus, Leonardo!
_Cuesta_
Já te tinha dito que não vinha de manhã. (_A José, dando-lhe uma carta_)
Isto para registar. Logo irão mais cartas. (_Sae José_)
_Urbano_
(_pegando n’um papel que Cuesta lhe entrega_) Que vem a ser isto?
_Cuesta_
O recibo das cem mil e tantas pesetas... assigna-me agora um talão de
sessenta e sete mil...
_Urbano_
Para a remessa para Roma...
_Cuesta_
Isso mesmo. E Evarista?
_Urbano_
A vestir-se.
_Cuesta_
Já sei que vaes á inauguração das _Escravas_ e que tambem vae Electra.
_Urbano_
Essa pequena, positivamente, não promette coisa boa. Está cada vez mais
caprichosa e mais leviana...
_Cuesta_
(_vivamente_) Sem maldade!
_Urbano_
Mas com symptomas d’isso. Evarista, que é a cautella e a prudencia em
pessoa, anda a pensar em submettel-a a um regimen sanitario em S. José da
Penitencia.
_Cuesta_
Has de me permittir que discorde inteiramente d’esse alvitre. Tu dirás
que quem me manda a mim...
_Urbano_
Pelo contrario: como amigo da casa muito estimo que dês opinião e
conselho.
_Cuesta_
Isso de arrastar para a vida claustral uma rapariga que não denota
manifesta vocação de piedade, é grave... E não devereis extranhar que
porventura alguem se opponha...
_Urbano_
Quem se ha de oppôr?
_Cuesta_
Que sei eu! alguem... Na vida d’esta menina ha, por emquanto, um factor
desconhecido... Um bello dia poderá succeder... não direi que succeda...
Um bello dia, quando puxeis pela corda com mais força, poderá vir uma voz
que diga: «Alto lá, senhores de Yuste!»
_Urbano_
E nós responderemos: «Querido snr. factor desconhecido, aqui tem a
menina, com o que nos livra d’uma tutella difficil e incommoda.»
_Cuesta_
(_senta-se com muita fadiga_) Isto, Urbano, é apenas uma supposição
minha... é um modo de fallar...
_Urbano_
Não te sentes bem? Queres tomar alguma coisa?
_Cuesta_
Não... Este maldito coração recusa-se a ser dirigido pela vontade...
_Urbano_
Descansa... Queres-te tu deitar?
_Cuesta_
Pois não sabes o que tenho que fazer? (_Tirando papeis do bolso_) Para
já, duas carta urgentes, que teem de partir hoje.
_Urbano_
Escreve-as aqui. (_Fazendo um logar á meza, e retirando livros e papeis_)
_Cuesta_
Está dito... installo-me ahi.
_Urbano_
Eu estou atarefadissimo tambem. Tenho voltas que dar...
_Cuesta_
Não penses mais em mim. (_Escreve_)
_Urbano_
Desculpa. Evarista não tarda ahi.
_Cuesta_
(_sem olhar_) Até logo... (_Sae Urbano pelo fundo_)

SCENA X
CUESTA, ELECTRA E PATROS (Assomam as duas á porta da esquerda
como para reconhecer o terreno)
_Electra_
Cuidado, Patros... Por aqui é difficil trazêl-o.
_Patros_
(_reconhecendo Cuesta, que vê de costas_) D. Leonardo!
_Electra_
Chut!... O mais seguro é deixal-o no teu quarto até á noite. Que massada
a tal inauguração!
_Cuesta_
(_volta-se ao ouvir vozes_) Ah! Electra...
_Electra_
Importunamos, D. Leonardo?...
_Cuesta_
Não, minha amiguinha. Quer fazer-me o favor de esperar um pouquinho...
que termine uma carta? Tenho que lhe dizer.
_Electra_
Aqui me tem. (_Áparte a Patros_) Que sécca! (_Alto_) Vinhamos unicamente
buscar um papel e um lapiz para umas contas. (_Tira da meza um lapiz
e papel. Áparte a Patros_) Cuida bem d’elle... Que amor que elle está
adormecido! Com o seu focinhinho côr de rosa e as mãos sujas, com as
unhitas pretas de andar a escarvar na terra... Dá vontade de o engulir!
_Patros_
Com os lindos pés gordos, e a espessa carapinha d’ouro que elle tem...
_Electra_
(_com effusão de carinho_) Dá volta á cabeça da gente. Olha bem por elle,
Patros; vê lá!...
_Patros_
Levo-lhe agora um bôlo.
_Electra_
Não dou licença. Prohibo rigorosamente os bôlos. Para lhe sujarem o
estomago!... Leva-lhe uma sopinha...
_Patros_
Mas como hei de eu arranjar sopinha?
_Electra_
Tens razão... Ah! pede na cosinha uma taça de leite para mim.
_Patros_
Isso mesmo! E dou-lh’a quando acordar.
_Electra_
Toma lá tambem o papel e o lapiz para elle fazer os seus rabiscos... É a
coisa de que mais gosta... Depois, á noite, na primeira occasião, mette-o
no meu quarto, para dormir comigo.
_Cuesta_
(_fechando a carta_) Acabei.
_Electra_
Perdoe um momento, D. Leonardo. (_Áparte a Patros_) Não o deixes nem um
momento... Muito cuidadinho! Se D. Leonardo me não prender muito, ainda
irei dar-lhe um beijo antes de me vestir.
_Cuesta_
Patros, estas cartas para o correio!
_Patros_
Vão-se levar já.

SCENA XI
CUESTA E ELECTRA
_Cuesta_
(_pegando-lhe nas mãos_) Venha cá, sua grande extravagante... quanto me
alegra vêl-a!
_Electra_
É muito meu amigo, D. Leonardo? Não imagina como eu gosto de que me
estimem!
_Cuesta_
Mas precisamos tambem de ter mais um poucochinho de proposito e d’assento
n’essa cabecinha... É bom que não haja nada que se nos dizer... E a mim
contaram-me—pêtas já se vê!—que fervilham os namorados...
_Electra_
Ah! Sim, eu já lhes perdi a conta! Mas não gosto senão d’um.
_Cuesta_
D’um! E quem é?
_Electra_
Isso... lá me parece perguntar de mais...
_Cuesta_
Eu conheço-o?
_Electra_
Se conhece!
_Cuesta_
Fez-lhe a sua declaração d’uma maneira decente?
_Electra_
Não me fez declaração nenhuma, nem me disse nada... até agora.
_Cuesta_
E a menina ama esse timido donzel, e julga-se correspondida?
_Electra_
Suspeito que me corresponde... Mas não o asseguro...
_Cuesta_
Tenha confiança em mim, e conte-me isso.
_Electra_
Agora não, que vou vestir-me.
_Cuesta_
Falaremos depois.
_Electra_
(_medrosa, olhando para o fundo_) Se não viesse a tia...
_Cuesta_
Vista-se... Ámanhã será.
_Electra_
Sim, ámanhã. Adeus. (_Corre para a direita. Movida de uma ideia repentina
dá meia volta_) Antes de me vestir... (_Áparte_) Não resisto. Vou dar-lhe
um beijo. (_Sae correndo pela esquerda. Cuesta segue-a com a vista e
suspira_)

SCENA XII
CUESTA, URBANO E EVARISTA; depois ELECTRA
_Cuesta_
(_reunindo e recolhendo os papeis_) Que felicidade a minha, se
publicamente a pudesse amar!
_Evarista_
(_vestida para sahir_) Desculpe terem-no deixado para ahi, Leonardo. Já
me disse Urbano que lançamos uma grande operação.
_Urbano_
(_entregando a Cuesta um talão_) Ahi tens.
_Evarista_
Não me espantarei se o vir apparecer-nos com outra carga de dinheiro...
Deus o dá, Deus o recebe... (_Assoma Electra pela porta da esquerda.
Ao vêr a tia hesita, não se atreve a atravessar. Decide-se por fim,
procurando escapulir-se. Evarista segura-a_) Ora não ha! Então ainda te
não vestiste? D’onde vens?
_Electra_
Da casa de engommar. Fui á Patros para me alisar um papo...
_Evarista_
Gabo-te a pachorra! (_Notando que sae a ponta de uma carta de uma das
algibeiras do avental de Electra_) Que tens aqui? (_Pega na carta_)
_Electra_
Uma carta.
_Cuesta_
Creancices.
_Evarista_
Não imagina, Cuesta, o desgosto que esta rapariga me dá com as suas
travessuras, que já não são tão innocentes como isso! (_Dá a carta a
Urbano_) Lê tu.
_Cuesta_
Vamos a vêr isso.
_Urbano_
(_lendo_) Senhorita—Tenho para mim que n’esse rosto feiticeiro...
_Evarista_
(_zombando_) Muito bonito! (_Electra contém difficilmente o riso_)
_Urbano_
(_continúa a ler_) ...que n’esse rosto feiticeiro escreveu o Supremo
artifice o problema do... do... (_Sem entender a palavra seguinte_)
_Electra_
(_apontando_) ...do «cosmos».
_Urbano_
Isso mesmo: do cosmos, symbolisando em seu luminoso olhar, na sua bocca
divina, o poderoso agente physico, que...
_Evarista_
(_arrebatando a carta_) Que indecencias!
_Urbano_
(_descobrindo outra carta em outro bolso_) está outra. (_Pega n’ella_)
_Cuesta_
Vejamos essa!
_Evarista_
Isto, Electra, não é o corpo de uma menina: é um marco postal.
_Urbano_
(_lendo_) Desapiedada Electra, com que palavras exprimirei o meu
desespero, a minha loucura, o meu frenesi...?
_Evarista_
Basta... Isso revolta-me. (_Incommodada revista as algibeiras de
Electra_) Apostaria que ainda ha mais.
_Cuesta_
Indulgencia, Evarista!
_Electra_
Tia, não se amofine mais...
_Evarista_
Que me não amofine!... A amofinação eu t’a contarei... Veste-te
immediatamente.
_Urbano_
(_consultando o relogio_) É quasi a hora.
_Electra_
N’um momento!
_Evarista_
Avia-te, avia-te! (_Electra, contente de se vêr solta, corre para o seu
quarto_)

SCENA XIII
CUESTA, URBANO, EVARISTA E PANTOJA
_Evarista_
(_com tristeza e desalento_) E então, Leonardo, que me diz a isto?
_Cuesta_
O socego com que deixou devassar os seus segredos demonstra bem a pouca
importancia que lhes dá e que elles teem.
_Evarista_
Não, não é tanto assim...
_Pantoja_
(_pelo fundo, anciado_) Está o Cuesta! Já se não pode dizer o que se
quer...
_Evarista_
(_contente de vêl-o_) Até que emfim, Pantoja... (_Formam-se dois grupos:
á esquerda Cuesta sentado, Urbano em pé; á direita, Pantoja e Evarista,
sentados_)
_Pantoja_
Venho contar-lhe coisas da maior gravidade.
_Evarista_
Ai de mim! seja o que Deus quizer.
_Pantoja_
(_repetindo a phrase com reservas_) Seja o que Deus quizer... está muito
bem, mas queiramos tambem nós o que quer Deus, e empenhemos toda a nossa
vontade em produzir o bem, por mais que nos custe!
_Evarista_
A sua energia fortifica a minha... Então... que ha?
_Pantoja_
Ha pouco, em casa de Requesens, falou-se de Electra em termos dissolutos.
Contavam que, indecorosamente envolvida por um vespeiro de namorados,
ella se divertia a receber e a mandar cartas a toda a hora do dia.
_Evarista_
Infelizmente, Salvador, a frivolidade d’esta menina é tal que, com toda a
minha ternura por ella, nem eu mesma a sei defender!
_Pantoja_
(_angustiado_) Pois saiba mais, e veja que não tem limites a maldade
humana. Hontem á noite o marquez de Ronda, na tertulia da sua casa, na
presença de Virginia, sua santa mulher, e de outras pessoas do maior
respeito, não cessou de exaltar os encantos de Electra com expressões do
mais material e repugnante mundanismo.
_Evarista_
Tenhamos paciencia, meu amigo.
_Pantoja_
Paciencia... Paciencia é uma virtude que vale muito pouco sempre que se
não reforça com a resolução. Não confundamos essa virtude com o vicio
da negligencia, e determinemo-nos com firmeza, minha querida amiga, a
resguardar Electra da infamia do mundo, em logar onde não veja exemplos
de leviandade e onde não ouça uma só palavra do contagioso impudor da
sociedade em que vivemos.
_Evarista_
Onde respire um ambiente de pura virtude...
_Pantoja_
E não a perturbe o zumbido de pretendentes impudicos e infecciosos...
Na critica edade da formação do caracter, em que ella está, temos nós a
obrigação de livral-a do immenso perigo, do maior de todos...
_Evarista_
Que perigo?
_Pantoja_
O homem. Nada na terra peor que o homem... quando não é bom. Por mim o
sei: fui o meu proprio mestre. O meu desvario, de que pela graça de Deus
me curei, e depois d’isso a minha tão longa e entristecida convalescença,
duramente me ensinaram a grave e delicada medicina das almas...
Deixe-me, e eu lhe salvarei essa menina... (_Interrompe-o Urbano, que
passa para o grupo da direita_)
_Urbano_
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