Electra: Drama em cinco actos - 1

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PÉREZ GALDÓZ
ELECTRA
DRAMA EM CINCO ACTOS
VERSÃO PORTUGUEZA
DE
RAMALHO ORTIGÃO
PORTO
LIVRARIA CHARDRON
De Lello & Irmão, editores
1901
Unica traducção portugueza auctorisada pelo auctor
_Porto—Imprensa Moderna_


ACTO PRIMEIRO
Sala sumptuosa no palacio dos senhores de Garcia Yuste. Á
direita, sahida para o jardim. Ao fundo, communicação para
outras salas do palacio. Á direita, no primeiro plano, porta
dos quartos d’Electra.

SCENA I
MARQUEZ E JOSÉ
_José_
Estão no jardim... Vou dar parte.
_Marquez_
Espera lá. É esta a primeira visita que faço aos senhores de Garcia Yuste
no seu palacio novo... Deixa-me dar uma vista d’olhos... Está n’um grande
pé... Bem hajam os que tão bem empregam o seu dinheiro! Porque não é
sómente o seu estado de casa, é o bem que fazem, o generosos que são em
obras pias...
_José_
Oh! lá isso...!
_Marquez_
E tão mettidos comsigo! tanto da paz e do socego do lar!... Ainda que,
segundo cuido, ha novidade agora na familia...
_José_
Novidade? Ah! já sei... Quer o snr. Marquez referir-se...
_Marquez_
Escuta, José! Promettes fazer o que eu te peça?
_José_
Já o snr. Marquez sabe que eu me não esqueço nunca dos quatorze annos que
servi na sua casa... O snr. Marquez manda, não pergunta.
_Marquez_
Pois venho cá de proposito para conhecer essa interessante senhorita, que
os teus amos trouxeram agora d’um collegio de França...
_José_
A senhorita Electra.
_Marquez_
Podes dizer-me se os senhores estão contentes com essa nova sobrinha? É
pessôa amoravel, agradecida?
_José_
Oh! n’esse particular!... Os senhores morrem por ella... Sómente...
_Marquez_
Quê?
_José_
A menina é travessasita...
_Marquez_
A edade!
_José_
Brincalhôna, oh! mas brincalhôna, que se não faz uma ideia...
_Marquez_
Mas diz que é linda, que é um anjo...
_José_
Um anjo sim, se ha anjos parecidos com mafarricos... É que nos põe o sal
na moleira a todos cá de casa!
_Marquez_
Estou morto por conhecêl-a!
_José_
No jardim a encontra o snr. Marquez. É lá que passa as manhãs pondo em
redemoinho tudo.
_Marquez_
(_olhando para o jardim_) Lindo jardim, bello parque, as velhas arvores
do antigo palacio das Gravelinas...
_José_
É exacto.
_Marquez_
O grande predio, ao fundo da alameda, é tambem dos senhores de Yuste?
_José_
Tambem. Com entrada pelo jardim e pela rua. Em baixo tem o seu
laboratorio o sobrinho dos patrões, o senhorito Maximo, primeiro dos
trunfos de Hispanha nas mathematicas, e... na outra coisa... na...
_Marquez_
Bem sei... Chamam-lhe o _Magico prodigioso_... Conheci-o em Londres...
ainda a mulher d’elle era viva.
_José_
Morreu em fevereiro do anno passado... e deixou-lhe dois filhos, dois
amores!
_Marquez_
Ultimamente renovei com elle o meu antigo conhecimento, e, apesar de nos
não visitarmos, por certos motivos, somos muito amigos.
_José_
Tambem eu gósto d’elle. Optimo sujeito...!
_Marquez_
E outra coisa: não estão arrependidos os teus amos de terem mettido em
casa esse diabretesito?
_José_
(_receoso de que venha gente_) Eu direi a V. Ex.ª... Tenho notado... (_Vê
vir D. Urbano pelo jardim_) Ahi vem o senhor.
_Marquez_
Põe-te a andar.

SCENA II
MARQUEZ E D. URBANO
_Marquez_
(_abrindo-lhe os braços_) Querido Urbano!
_Urbano_
Marquez! ditosos olhos!...
_Marquez_
E Evarista?
_Urbano_
Bem... Sómente extranhando muito as grandes ausencias do marquez de
Ronda...
_Marquez_
Oh! você não imagina o inverno que passámos...
_Urbano_
E Virginia?
_Marquez_
Assim, assim... Sempre achacada, mas reagindo constantemente pela força
de uma vontade tenaz, cabeçuda lhe chamarei.
_Urbano_
Pois ainda bem! ainda bem!... Com quê... quer que desçamos ao jardim?
_Marquez_
Vamos já! Deixe-me tomar assento, pouco a pouco, na sua casa nova...
(_Senta-se_) E conte-me lá, querido, conte-me d’essa menina encantada,
que foram buscar ao collegio.
_Urbano_
Não, não estava já no collegio. Tinha ido para Hendaya, para uns parentes
da mãe. Eu nunca fui muito da opinião de a trazer para cá. Mas Evarista
emprehendeu n’isso... Quer sondar o caracter da pequena, apurar se
d’ella se poderá fazer uma mulher em termos, ou se nos estará destinada
a vergonha de a vêr herdar as tendencias da mãe... Você sabe que era uma
prima irmã de minha mulher; e escuso de lhe lembrar os escandalos que deu
essa Eleuteria desde o anno de 80 a 85.
_Marquez_
Nem me fale n’isso!
_Urbano_
Emfim, foi a ponto de que a familia, vexada, rompeu com ella de todo e
para sempre! Esta menina, agora, cujo pae se não sabe quem seja, criou-se
com a mãe até os cinco annos. Depois levaram-a para as Ursulinas de
Bayona. Lá, ou por abreviar ou pelo que fosse, puzeram-lhe esse nome,
exquisito e novo, de Electra.
_Marquez_
Novo, propriamente, não. Á pobre mãe—coitadita—Eleuteria Dias, todos
nós, os intimos da casa, lhe chamavamos tambem Electra, em parte
talvez por abreviatura, e em parte porque ao pae, militar valente mas
assignaladamente desditoso na vida conjugal, tinham posto a alcunha de
_Agamemnon_.
_Urbano_
D’essa não sabia... Tambem nunca vivi com elles. Eleuteria, pela fama que
tinha, figurava-se-me uma creatura repugnante...
_Marquez_
Por amor de Deus, querido Urbano, não sejamos pharisaicos... Lembre-se
que Eleuteria—a quem chamaremos _Electra I_—mudou de vida, ahi por 88...
_Urbano_
E não deu pouco que falar esse arrependimento tambem. Lá foi morrer
a S. João da Penitencia, em 95, regenerada, abominando a monstruosa
libertinagem da sua vida...
_Marquez_
(_como quem lhe reprehende o rigorismo_) Deus lhe perdoou...
_Urbano_
Sim, sim... perdão, esquecimento...
_Marquez_
E tratam então agora de tentear _Electra II_ a vêr se inclinará para bem
ou se lhe dará para mal... Que resultado vão dando as provas?
_Urbano_
Resultados obscuros, contradictorios, variaveis de dia para dia, de
hora para hora. Ha momentos em que ella nos revela qualidades sublimes,
mal encobertas pela sua innocencia; outros, em que nos apparece como a
creatura mais doida a quem Deus deu licença de vir ao mundo. Tão depressa
encanta pela sua candura angelica como aterra a gente pelas diabolicas
subtilezas que desfia da sua propria ignorancia.
_Marquez_
Natural desequilibrio da edade, excesso de imaginação, talvez. É esperta?
_Urbano_
Como a electricidade em pessoa, mysteriosa, repentista, de grande tino.
Destroe, transtorna, perturba, illumina.
_Marquez_
(_levantando-se_) Fervo em curiosidade. Vamos vêl-a.

SCENA III
MARQUEZ, URBANO, CUESTA, pelo fundo
_Cuesta_
(_entra com mostras de cançaço, tira do bolso a carteira de negocios, e
dirige-se á mesa_) Marquez... Tudo bom por cá?
_Marquez_
Oh! grande Cuesta! que nos conta o nosso incançavel agente?
_Cuesta_
(_senta-se. Revela um padecimento de coração_) O incançavel... começa a
cançar.
_Urbano_
Homem! e que me dizes da alta d’hontem no Amortisavel?
_Cuesta_
Veio de Paris com dois inteiros.
_Urbano_
Fizeste a nossa liquidação?
_Marquez_
E a minha?
_Cuesta_
Estou com isso... (_Tira papeis da carteira e escreve a lapis_) N’um
instante saberão as cifras exactas. Tirou-se todo o partido que se podia
tirar da conversão.
_Marquez_
Naturalmente... Sendo o typo de emissão dos novos valores 79,50... tendo
nós comprado por preço muito baixo o papel recolhido...
_Urbano_
Naturalmente...
_Cuesta_
O resultado foi enorme.
_Marquez_
Querido Urbano, esta facilidade com que se enriquece é positivo que dá o
amor da vida e o enthusiasmo da belleza humana. Vamos para o jardim.
_Urbano_
(_a Cuesta_) Vens?
_Cuesta_
Preciso de dez minutos de silencio para pôr em ordem os meus apontamentos.
_Urbano_
Deixamos-te em socego. Não queres nada?
_Cuesta_
(_abstrahido nas suas contas_) Não... quero dizer... Sim: manda-me vir um
copo de agoa. Estou abrasado.
_Urbano_
Immediatamente. (_Sae com o Marquez para o jardim_)

SCENA IV
CUESTA E PATROS
_Cuesta_
(_corrigindo as suas notas_) Ah! cá está o erro. Aos de Yuste toca... um
milhão e seiscentas mil pezetas. Ao marquez de Ronda, duzentas e vinte
e duas mil... Temos que descontar as doze mil e tanto, equivalentes aos
nove mil francos... (_Entra Patros com copos d’agoa, caramellos e cognac.
Espera que Cuesta termine a sua conta_)
_Patros_
Ponho aqui, D. Leonardo?
_Cuesta_
Põe e espera um instante... Um milhão e oitocentos... com os seiscentos
e dez... fazem... claro! está certo. Bem bom! bem bom!... Com que então,
Patros... (_tira do bolso dinheiro, que lhe dá_) Toma lá!
_Patros_
Muito obrigado!
_Cuesta_
E já te aviso que espero de ti um favôr...
_Patros_
Dirá, D. Leonardo.
_Cuesta_
Pois, minha amiga... (_remechendo um caramello_) Escuta...
_Patros_
Não quer cognac?... Se vem cançado, a agoa só pode fazer-lhe mal.
_Cuesta_
Sim: deita um poucochito... Pois o que eu quereria...—Não vás pôr
malicia no que a não tem: sentido!—o que eu quereria era falar alguns
momentos, a sós, com a senhorita Electra. Conhecendo-me como me conheces,
comprehenderás de certo que o meu fim é o mais honrado e o mais digno...
Mas sempre t’o digo para te tirar todo o escrupulo... (_Recolhe os
papeis_) Antes que venha alguem, poderás dizer-me que occasião e que
logar será melhor?
_Patros_
Para dizer duas palavras á senhorita Electra... (_meditando_) terá de ser
então quando os senhores estiverem com o procurador... Eu verei.
_Cuesta_
Se pudesse ser hoje, melhor.
_Patros_
Ainda cá volta hoje?
_Cuesta_
Volto. Avisa-me.
_Patros_
Esteja certo. (_Recolhe o serviço e sae_)

SCENA V
CUESTA E PANTOJA, que entra em scena meditabundo, abstraído,
todo vestido de preto
_Cuesta_
Amigo Pantoja, salve-o Deus! Como vamos?
_Pantoja_
(_suspira_) Vivendo, amigo, que é o mesmo que dizer: esperando.
_Cuesta_
Esperando melhor vida...
_Pantoja_
Padecendo n’esta o que Deus determine para merecer a outra.
_Cuesta_
E de saude que tal?
_Pantoja_
Mal e bem. Mal, porque me affligem desgostos e achaques; bem, porque me
apraz a dôr, e me regosija o soffrimento. (_Inquieto, e como dominado por
uma ideia fixa, olha para o jardim_)
_Cuesta_
Que ascetico vem hoje!
_Pantoja_
Olhe que cabecinha de vento a d’aquella Electra...! Lá vae ella de
corrida com os pequenos do porteiro, com os dois filhos do Maximo, e
ainda com filhos dos visinhos. Quando a deixam n’aquellas travessuras de
creança é que ella é feliz.
_Cuesta_
Adoravel creaturinha! Que Deus a fade bem, para ser uma mulher como se
quer!
_Pantoja_
D’aquella graciosa boneca, d’aquella voluvel menina facilmente se poderia
tirar um anjo; da mulher que ella ha de ser, não sei.
_Cuesta_
Não o entendo bem, amigo Pantoja.
_Pantoja_
Entendo-me eu... Olhe, olhe como brincam... (_Assustado_) Deus de
misericordia! quem é que vae com ella?... Não é o marquez de Ronda?
_Cuesta_
Elle mesmo.
_Pantoja_
Que corrupto homem! Tenorio da geração passada não se decide a jubilar-se
para não dar um desgosto a Satanaz!
_Cuesta_
Para que mais uma vez se possa dizer que não ha paraizo sem serpente...
_Pantoja_
Para isso não! serpente já tinhamos. (_Passeia nervoso e displicente pela
sala_)
_Cuesta_
E diga-me, passando a outra coisa: teve já noticia do dinheirão que lhes
trouxe?
_Pantoja_
(_sem prestar grande attenção e fixando-se n’outra ideia que não
formúla_) Ah! sim, já... Ganhou-se muito.
_Cuesta_
Evarista completará agora a sua grande obra religiosa.
_Pantoja_
(_maquinalmente_) Sim.
_Cuesta_
E poderá o amigo Pantoja consagrar muito maiores recursos a S. José da
Penitencia.
_Pantoja_
Sim... (_Voltando á sua ideia fixa_) Serpente já tinhamos... Que dizia,
amigo Cuesta?
_Cuesta_
Dizia eu...
_Pantoja_
Desculpe interrompel-o... Sabe se sempre é certo que o nosso visinho
de defronte, o nosso maravilhoso sábio, inventor e quasi thaumaturgo,
projecte mudar de casa?
_Cuesta_
Quem? Maximo? Acho que sim... Parece que em Bilbau e em Barcelona acolhem
com enthusiasmo os seus admiraveis estudos para novas applicações da
electricidade; e lhe offerecem todos os capitaes que elle queira para
proseguir nas experiencias que encetou.
_Pantoja_
(_meditativo_) Oh! capitaes eu lh’os daria tambem, comtanto que...

SCENA VI
PANTOJA, CUESTA, EVARISTA, URBANO E O MARQUEZ, que veem do
jardim
_Evarista_
(_soltando o braço do Marquez_) Bons dias, Cuesta. Pantoja, quanto estimo
vêl-o! (_Cuesta e Pantoja inclinam-se e beijam-lhe respeitosamente a mão.
A senhora de Yuste senta-se á direita; o Marquez em pé ao lado d’ella. Os
outros agrupam-se á esquerda falando de negocios._)
_Marquez_
(_reatando com Evarista uma conversação interrompida_) Por este andar a
minha boa amiga não sómente passa á Historia mas passa a figurar tambem
no _Anno Christão_.
_Evarista_
Não me gabe por coisas em que não ha merecimento nenhum, Marquez...
Não temos filhos: Deus cumula-nos de riqueza. Temos em cada anno uma
herança. Sem trabalho nenhum—nem, sequer o de discorrer—o excesso dos
nossos rendimentos, habilmente manejados pelo amigo Cuesta, capitalisa-se
sem darmos por isso, e cria novas fontes de dinheiro. Se compramos uma
quinta, a subida dos productos triplica n’esse mesmo anno o valor da
terra. Se ficamos senhores de um baldio inteiramente sáfaro, acontece
que no subsolo se descobre um jazigo immenso de carvão, de ferro ou de
chumbo... Que quer dizer tudo isto?
_Marquez_
Quer dizer—acho eu—que quando Deus multiplica tantas riquezas sobre quem
nem as deseja nem as estima, bem claramente elle está indicando que as
concede para que sejam empregadas em servil-o.
_Evarista_
É claro. Interpretando-o tambem assim, eu apresso-me a cumprir a vontade
de Deus. O dinheiro que Cuesta nos veio hoje trazer apenas me passará
pelas mãos, e com elle completarei a somma de sete milhões consagrados
á obra do Santo Patrocinio. E mais farei para que a casa e o collegio
de Madrid tenham o decoro e a magnificencia adequada a um tão grande
instituto. Desenvolveremos tambem as obras do collegio de Valencia e do
de Cadiz...
_Pantoja_
(_passando para o grupo da direita_) Sem esquecer, minha senhora, a casa
dos altos estudos, a sua escola de instrucção superior, que virá a ser o
santuario da verdadeira Sciencia.
_Evarista_
Bem sabe que é esse o meu constante pensamento.
_Urbano_
(_passando tambem para a direita_) N’isso se pensa n’esta casa de noite e
de dia.
_Marquez_
Admiravel, minha querida amiga, admiravel! (_Levanta-se_)
_Evarista_
(_a Cuesta, que igualmente tem passado para a direita_) E agora, amigo
Leonardo, que vamos fazer?
_Cuesta_
(_sentando-se ao lado de Evarista, a quem propõe novas operações_) Por
hoje nos limitaremos a metter algum dinheiro...
(_Pantoja, em pé, colloca-se á esquerda de Evarista_)
_Marquez_
(_passeando na scena com Urbano_) Ha de permittir, querido Urbano, que,
proclamando os merecimentos sublimes da senhora de Garcia Yuste, eu não
deite em sacco roto os nossos: falo da minha mulher e de mim. Saberá que
Virginia já fez a caridade de transferir para as Escravas de Jesus um bom
terço da nossa fortuna...
_Urbano_
Das mais solidas da Andaluzia.
_Marquez_
E por nosso testamento deixamos tudo a essas senhoras, menos a parte
destinada a certos encargos e aos parentes pobres.
_Urbano_
Ora vejam lá!... Mas, segundo me constou, o Marquez aqui ha annos parece
que não via com enthusiasmo illimitado que a piedade da marqueza, minha
senhora, se tornasse tão angelicamente dispendiosa...
_Marquez_
É certo... mas converti-me. Abjurei todos os meus erros. A minha mulher
catechisou-me.
_Urbano_
Exactissimamente o que me succedeu a mim. Evarista virou-me com o forro
de santo para fóra.
_Marquez_
Para conservar a paz e estabelecer a harmonia conjugal, principiei
por contemporisar, continuei contemporisando... Pois, meu amiguinho,
contemporisação foi ella que, a pouco e pouco, cheguei ao que se vê: Sou
um escravo... das _Escravas de Jesus_! E não me arrependo. Vivo n’uma
placidez beatifica, curado de todas as inquietações da minha vida. E
estou já agora a convencer-me de uma coisa: é que a minha mulher não
sómente salva a sua alma, mas que me salva a minha tambem!
_Urbano_
Pois é o que eu egualmente recommendo cá em casa: que não se esqueçam,
podendo tambem ser, de me salvar a mim!
_Marquez_
Nós, homens, não temos iniciativa para nada.
_Urbano_
Absolutamente para nada!
_Marquez_
Verdade seja que ás vezes até o que se chama respirar nos prohibem!
_Urbano_
Prohibida a respiração... Conheço!
_Marquez_
Mas vivemos em paz.
_Urbano_
E servimos a Deus sem esforço nenhum. Isso é que é.
_Marquez_
As nossas mulheres lá vão adeante de nós, por esse bemdito caminho da
eternidade, pela gloria fóra; e podemos estar socegados, que nos não
deixam na estrada.
_Urbano_
Pois! é a sua obrigação.
_Evarista_
Urbano?...
_Urbano_
(_acudindo pressuroso_) Menina...
_Evarista_
Põe-te á disposição de Cuesta para a liquidação e para a entrega aos
padres.
_Urbano_
Hoje mesmo. (_Cuesta levanta-se_)
_Evarista_
E outra coisa: faze-me favor de chegar ao jardim, e dizer a Electra que
tem já tres horas de brincadeira.
_Pantoja_
(_imperioso_) Que se venha embora. É brincar de mais.
_Urbano_
Vou já. (_Vendo vir Electra_) Ella ahi vem.

SCENA VII
ELECTRA, atraz d’ella MAXIMO
_Electra_
(_Entra a correr e a rir, perseguida por Maximo, a quem ganhou na
corrida. O seu riso é de medo infantil_) Bem feito, que não me pilhas!...
Enraivece-te, brutamontes!
_Maximo_
(_traz em uma das mãos varios objectos que indicará, e na outra um ramo
de choupo, que esgrime como um chicote_) Eu te digo se te pilho ou não,
selvagem!
_Electra_
(_sem fazer caso dos que estão em scena, corre a casa com infantil
ligeiresa e vae refugiar-se no vestido de D. Evarista, ajoelhando-se-lhe
aos pés e abraçando-a pela cinta_) Estou salva!... Tia, ponha-o fóra!
_Maximo_
Ah! já foges! já tens medo, minha menina!
_Evarista_
Mas, filha da minh’alma! quando é que terás modos de senhora? E tu,
Maximo, és tão creança como ella.
_Maximo_
(_mostrando as coisas que traz_) Vejam o que esse demonico me fez.
Quebrou-me estes dois tubos... E olhem o estado em que poz estes papeis,
contendo calculos que representam um trabalho enorme. (_Mostra os papeis
suspendendo-os de alto_) D’este fez uma passarola; este deu-o aos
pequenos para pintarem elephantes, burros e um couraçado a atirar balas a
um castello...
_Pantoja_
Então ella foi ao laboratorio?
_Maximo_
E revolucionou os pequenos... Revolveram-me tudo!
_Pantoja_
(_com severidade_) Isso, menina...
_Evarista_
Electra!
_Marquez_
(_enthusiasmado_) Electra! Encanto de menina grande! Bemditas
travessuras!
_Electra_
Eu não lhe quebrei os tubos. Não ha tal! Foi Pepito que lhe fez esse
obsequio. Os papeis, sim senhor; fui eu que peguei n’elles, imaginando
que não serviam para nada com os hediondos esgaravunhos que tinham.
_Cuesta_
Basta! haja pazes!
_Maximo_
Pois vá lá, por esta vez... (_a Electra_) Perdôo-te. Deves-me a
vida... Toma lá. (_Entrega-lhe a chibata; Electra recebe-a, e bate-lhe
brandamente_)
_Electra_
Toma agora tu! Esta é pelo que me disseste. (_Batendo-lhe com mais
força_) Esta agora pelo que não quizeste dizer-me.
_Maximo_
Disse-te tudo.
_Pantoja_
Moderação! juizo!
_Evarista_
Que te disse elle?
_Maximo_
Disse-lhe verdades uteis... Que aprenda por si mesma o muito que ainda
ignora; que abra bem abertos esses grandes olhos e que os estenda pela
vida humana, para que veja que nem tudo é alegria, que ha tambem no mundo
deveres, desenganos e sacrificios...
_Electra_
Chega o lobishomem! (_Occupa o centro da scena, onde todos a rodeiam,
menos Pantoja, que se colloca ao lado d’Evarista_)
_Cuesta_
Nem tudo applausos!
_Urbano_
A severidade é precisa.
_Maximo_
Em severidade ninguem me ganha... Dize: é ou não é verdade que sou
severo, e que tu m’o agradeces? Confessa que me agradeces!
_Electra_
(_batendo-lhe de leve_) Peste de sábio! Se isto fôsse um açoite
verdadeiro, ainda com mais alma te batia.
_Marquez_
(_risonho e encarinhado_) Electra, veja se me bate em mim tambem...
Faça-me essa esmola!
_Electra_
Em si não, porque não tenho confiança... Só se fôr muito de levesinho...
assim... assim... assim... (_Toca levemente no Marquez, em Cuesta e em
Urbano_)
_Evarista_
Melhor seria que tocasses piano para esses senhores ouvirem.
_Maximo_
Quê, se não estuda nada! Só uma coisa se póde comparar á sua grande
disposição artistica, é o seu espantoso desapego de todas as artes.
_Cuesta_
Que nos mostre as aquarellas e os desenhos. O Marquez vae vêr.
(_Juntam-se todos em volta da meza, menos Evarista e Pantoja, que
conversam áparte_)
_Electra_
Ahi sim senhor! (_Procurando a pasta de desenhos entre os livros e as
revistas que estão na mesa_) Agora se vae vêr se sou ou se não sou uma
artista!
_Maximo_
Forte gabarola!
_Electra_
(_desatando as fitas da pasta_) Pois sim! tu a desfazeres e eu a
augmentar-me veremos quem póde mais. Ora aqui está, e pasmem! (_Mostrando
os desenhos_) Que teem que dizer a estes portentosos esboços de paizagem,
de figura, de animaes? a estas vaccas que parecem pessoas? a estas
naturezas mortas que parecem vivas? a estes rochedos que só lhes falta
fallarem?! (_Todos se extasiam no exame dos desenhos, que passam de mão
em mão_)
_Evarista_
(_tendo desviado a attenção do grupo do centro, entabolou conversa intima
com Pantoja_) Tem razão, Salvador. Quando é que a não tem? Agora, no caso
de Electra, o seu argumento é um clarão que nos illumina a todos.
_Pantoja_
Não vá crêr que seja a minha pobre intelligencia que projecta essa
luz. Ella é apenas o resplendor de um fogo intenso que tenho em mim: a
vontade! Por meio d’esta força, que devo a Deus, esmaguei o meu orgulho e
emendei os meus erros.
_Evarista_
Depois da confidencia que hontem á noite me fez é indiscutivel para mim o
seu direito de intervir na educação d’essa cabeça de vento...
_Pantoja_
Para lhe ensinar o caminho da vida, para lhe mostrar o alto fito da nossa
misera existencia na terra...
_Evarista_
E esse direito que indubitavelmente lhe cabe, implica deveres
inilludiveis...
_Pantoja_
Quanto lhe agradeço que tão perfeitaimente o comprehenda, minha senhora
e amiga da minha alma! Eu receava que a minha confidencia d’hontem,
historia funesta que reveste de negro os melhores annos da minha vida,
me tivesse feito decaír da sua estima!
_Evarista_
Não, meu amigo. Quem é que dentro da humanidade se póde considerar
liberto da fraqueza humana? Em si o peccador regenerou-se, castigando
a vida com as mortificações do arrependimento, e dignificando-a com a
pratica da virtude.
_Pantoja_
A divina tristeza, o amor da solidão, o convicto desprezo de todas as
vaidades do mundo foram a salvação da minha alma. Pois bem: eu não
estaria completamente purificado perante a minha consciencia se n’esta
occasião não interviesse nos negocios da terra para salvar dos seus
perigos a angelica innocencia d’essa menina, fatalmente destinada, se
lhe não acudirmos, a precipitar-se pelo caminho em que se perdeu a sua
desgraçada mãe.
_Evarista_
A minha opinião é que fale com ella...
_Pantoja_
A sós.
_Evarista_
Assim o entendo: a sós. Faça-lhe comprehender, o mais delicadamente que
possa, a especie de auctoridade que tem...
_Pantoja_
É todo o meu desejo esse... (_Continuam em voz baixa_)
_Electra_
(_no grupo do centro disputando com Maximo_) Deixa-te de sentenças, que
tu d’isto não sabes nada! Então não querem vêr com a que elle se sae?
que o passaro parece um velho pensativo, e que a mulher faz lembrar uma
lagosta desmaiada...
_Marquez_
Não senhor... Eu acho que está muito bem feito!
_Maximo_
Ás vezes tambem lhe dá para ahi! Quando menos pensa saem-lhe coisas
prodigiosamente exactas.
_Cuesta_
É certo que estas velhas arvores, atravez das quaes se descobre uma
triste faixa de mar, ao longe...
_Electra_
A minha especialidade aposto que ainda nenhum adivinhou qual é?... Pois
são os troncos velhos, são os carcomidos muros em ruina. É singular que
só pinto bem aquillo que não conheço: a tristeza, o passado, o môrto! A
grande luminosidade radeante da alegria, da mocidade, não me sae! (_Com
pena e assombro_) Sou uma grande artista para tudo que não sou eu!
_Urbano_
Tem graça.
_Cuesta_
Esta menina é optima!
_Marquez_
É scintillante!
_Maximo_
Esperemos que lhe venha a reflexão tambem... a seu tempo...
_Electra_
(_zombando de Maximo_) A reflexão! a gravidade! o tempo que ha de vir!...
É a sombra que sempre me deita este cipreste!... Ora fica sabendo que eu
hei de ter tudo isso quando me dér para ahi... e mais do que tu, meu
sabichão!
_Maximo_
Veremos... veremos isso quando te chegar a vez!
_Pantoja_
(_que não tem dado attenção ao que se passa no grupo_) Não posso
occultar-lhe, minha senhora, que me desagrada muito a familiaridade de
Electra com o sobrinho do seu marido.
_Evarista_
Ha de se lhe corrigir. Mas no emtanto sempre tenha você em conta que este
Maximo, que ahi vê, é um homem perfeitamente de bem e raramente serio...
_Pantoja_
Bem sei, minha amiga... Mas nos desfiladeiros da confiança excessiva
resvalam os mais solidos e os mais firmes; uma triste experiencia m’o
ensinou a mim!
_Electra_
(_no grupo do centro_) Eu hei de tomar todo o juizo que eu quizer quando
elle me fôr preciso. Ninguem se põe serio emquanto Deus não manda.
Ninguem diz ai ai senão quando alguma coisa lhe doe.
_Marquez_
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