As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1883-06) - 1

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5--PATEO DO ALJUBE--5
EÇA DE QUEIROZ--RAMALHO ORTIGÃO
AS FARPAS
_Chronica Mensal_
DA POLÍTICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES
QUARTA SERIE No.3 JUNHO 1883
LISBOA
EMPREZA LITTERARIA LUSO-BRAZILEIRA--EDITORA
Ironia, verdadeira liberdade. És tu que me livras da ambição do poder,
da escravidão dos partidos da veneração da rotina, do pedantismo das
sciencias, da admiração das grandes personagens, das mistificações da
politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande
universo, e da adoração de mim mesmo.
P.J. PROUDHON.


Carta a sua alteza real o serenissimo principe snr D. Carlos regente em
nome do rei.
SUMARIO
Rasão d'esta carta--Projecto de partida de sua alteza--Pessoas que o
acompanham e pessoas que deveriam acompanhal-o. Eloquente e notavel
parallelo--As instituições nacionaes e _As Farpas_--A educação do
príncipe. Como elles a fizeram. Como nós a aconselhamos--A instrucção de
sua alteza. Os seus estudos. Os seus livros. Os seus mestres. As suas
convivencias. O seu theor de vida--Intervenção de sua magestade a rainha
na direcção intellectual de seu augusto filho--O príncipe, o homem, o
cidadão, o alferes, o marinheiro, o conselheiro d'estado--A
viagem--Crise pedagogica--A renovação mental de sua alteza--De como o
príncipe deveria proceder n'este momento supremo para dar o que deve ao
throno, á familia, á sociedade e á natureza--Sua alteza porém fará o que
for servido.


LISBOA, 25 DE MAIO DE 1883
SENHOR!
E' de interesse particular mas importantissimo o assumpto que ora nos
traz por meio de carta aos pés interinamente reaes de vossa alteza.
O § 28 do artigo 145 do titulo VIII da Carta Constitucional da monarchia
garante a todo o cidadão o direito de communicar por escripto com o
Poder Executivo, e é d'esse direito que hoje tomamos a libertade de
usar, ao abrigo da lei, aproveitando para tal fim o momento presente, em
que vossa alteza é o chefe temporareo do sobredito Poder, como regente
do reino na ausencia em partes de Castella de seu augusto pae, El-Rey
nosso senhor, que Deus guarde por longos e dilatados annos.
Senhor, ha obra de tres para quatro meses que os papeis publicos nos
deram a boa nova de que vossa alteza iria em breve completar o tirocinio
da sua educação como principe, como cidadão e como ser vertebrado,
correndo algumas terras e partidas do mundo, como o finado infante snr.
D. Pedro, que Deus em sua santa gloria haja.
Por essa dacta, puzeram as folhas o dedo sobre os nomes de algumas
pessoas, que vagamente se suppunha virem a ser chamadas para acompanhar
vossa alteza em sua peregrinação de estudo pratico atravez dos homens e
das coisas da civilisação entre gentes extranhas.
Seguimos as indigitações da imprensa acerca do pessoal d'essa embaixada
pedagogica, e sorrimo-nos entre desdenhosos e galhofeiros, pois
abrigavamos a convicção indestructivel de que os redactores d'_As
Farpas_ eram os cavalheiros naturalmente indicados pela opinião publica
e pelo consenso geral da côrte para a honrosa e ardua missão de que se
tratava.
Effectivamente, Senhor, relanceando os olhos ao passado, e investigando,
atravez do movimento politico e do movimento intellectual do seculo,
quaes as instituições nacionaes a cuja campainha tenhamos de tanger para
encontrar os varões comprovadamente aptos para se incumbirem no momento
presente do honroso encargo de preceptores de vossa alteza, o que é que
vemos?... Ou antes: O que é que vossa alteza vê? Porque, em nossa
acrysolada modestia, nós preferimos perante essa interrogação
remetter-nos a um silencio discreto, _ponere custodiam ori nostro_, dar
dois passos atraz, curvos e submissos, com os olhos no chão e os claques
debaixo do braço, aguardando tranquillos o real veredictum de vossa
alteza.
Vossa alteza, havendo por bem baixar sua serenissima vista sobre as
instituições patrias, vê para um lado as duas camaras, a Sociedade
Geographica, a Universidade de Coimbra e o salão da senhora D. Maria
Kruz; e para o lado opposto, á outra banda, vê vossa alteza _As Farpas_,
quarenta a cincoenta volumes de uma prosa divina, a 200 réis o volume,
que será a mais bella, a mais pura e a mais duradoura gloria litteraria
do seculo do felicissimo principe, augusto pae de vossa alteza.
Os litteratos vindouros, chamados a illustrar pelo lavor de suas pennas
o reinado de vossa alteza, procurarão á porfia imitar esta obra sublime.
Porém de balde. Porque nada ha mais inimitavel, pela affabilidade do
trato sobretudo, do que o critico no estado benigno de morto. Seremos
pois os classicos da lingua, nós outros, para esse tempo. Seremos os
Vieiras e os Bernardes do cyclo do rei Luiz, o venturosissimo. As
academias archivarão, como preciosas reliquias, a lanterna e o bordão
nodoso com que atravessamos a vida espargindo sobre a terra a luz e as
pisaduras. Vossa alteza, octogenario, coroado de cãs, porá os seus reaes
oculos para nos ler aos seus netos, aos quaes vossa alteza dirá, batendo
com os nós dos dedos sobre a nossa obra amarellecida e veneranda:
--O velho rei Carlos foi tão bom e tão prasenteiro rei como o principe
seu progenitor, mas faltaram-lhe Curcios e Livios d'esta laia para o
immortalisarem no eterno jubilo das gentes!
E vossa alteza soluçará de saudosa magoa sobre as cabeças infantis da
sua prole, considerando-se um monarcha desditoso por que na vasta
perspectiva do seu reinado lhe faltou a projecção grandeosa d'esta obra
cathedralesca.
Queira vossa alteza ir sempre seguindo, por partes.
Que é que as duas camaras do parlamento teem botado durante o decurso
dos ultimos quinze annos em beneficio da educação de vossa alteza ou da
educação d'alguem que seja n'este mundo?
Nada, serenissimo senhor! pela palavra nada!
Hade ter constado por certo a vossa alteza o que elles ainda ultimamente
fizeram com um projecto de lei sobre a instrucção secundaria, o qual
Thomaz Ribeiro, esse bem-quisto vate, ministro de vossa alteza e
porta-alaúde da sua côrte, arrancou a ferros das entranhas da musa para
o mandar para a mesa como uma especie de gémea administrativa da
_Delphina do mal_.
Como vossa alteza não era a esse tempo regente soberano do reino, e se
achava ainda então sob o dominio da auctoridade paterna, não sabemos se
lhe teriam permittido a leitura d'esse debate ...
Foi uma coisa enorme, respeitavel senhor!
Um queria que lhe abolissem o latim, lingoa morta e má lingoa,
sevandijada de verbos exquisitos, como _sum-es-fui_ e outros que taes; e
em substituição pedia _disciplina psychologica_, que era para os rapazes
ficarem bem ao facto da alma humana. E voltando-se para a meza, o orador
berrava:
--Eu cá, snr presidente, não me importa com Tito Livio, nem me importa
com ninguem n'este mundo. Alma e mais alma para cima do alumno, que é do
que os rapazes precisam para ir para leis!
Outro queria religião, porque sem religião o que é o homem? O homem sem
religião é, com licença, um bruto. E citava Renan que fôra visinho
d'elle em Paris e que não era bruto. Porquê? Porque tinha temor de
Deus,--de noite, ás escondidas, em casa. O orador soube-o pela porteira
do predio.
Houve um deputado que insistiu em que se affastasse o publico dos
lyceus, porque muita canalha junta não aprende nada. Um menino até dois
é o dado para os mestres todos se concentrarem e fazerem uma educação
capaz.
Houve mais um que pediu institutos de instrucção secundaria para a
mulher, pela rasão de quê, segundo elle, se tornava mister que a mulher,
_que é já a rosa, fosse tambem o perfume_. Textual!
E houve ainda um outro que, abundando nas ideias do precedente, exclamou
enternecido, com os olhos em alvo: _É indispensavel, snr. presidente,
que os dois sexos, o masculino e o feminino, caminhem na senda do futuro
ao lado um do outro, de mãos dadas_. Egualmente textual!
Emfim, ao cabo de vinte dias de discussão, a decencia obrigou a agarrar
no projecto pelas orelhas e a leval-o de rastos para a camara dos pares;
mas como esta camara o não quiz por coisa nenhuma do mundo, o ministro
das _Flores d'alma_, e do Reino, levou-o para casa no louvavel intuito
de o pôr em verso. E consta agora que o vão aproveitar sob a forma de
magica no theatro de D. Maria.
Logo depois da instrucção publica não viu vossa alteza como elles
pegaram n'uma questão d'arte?!...
Lembra-se um de fallar no leilão do diplomata Zéa Bermudez, o qual
reunia ás qualidades do mais excellente homem uma pequena collecção
d'arte com _quatro potes etruscos_.
Ao ouvir fallar pela primeira vez durante toda a sua longa carreira
parlamentar em quatro potes etruscos, a camara e o governo embasbacaram
por um momento, mas recahindo immediatamente em si com maravilhosa
presença de espirito, camara e governo menearam as cabeças
familiarmente, como se cada um dos legisladores não tivesse feito desde
muito pequeno outra coisa senão jogar a pucara com potes d'esses.
Houve um assentimento geral na assembleia, e os gestos e as vozes
exprimiram com unanimidade:
--Oh! sim!... os potes etruscos ... conhecemos perfeitissimamente!
--O paiz, snr presidente, não pode consentir que preciosidades de tão
inestimavel valor artistico saiam do reino para ir enriquecer os museus
extrangeiros!...
--Appoiado! appoiado!--opinou o snr presidente do conselho, convicto e
subitamente illuminado pela providencia como um vidente da Etruria em
potes.
E a camara em peso, por todos os votos menos um, votou um credito
supplementar de 5 contos de réis. Para quê, senhor? Para proteger a arte
nacional, que nem tem escolas, nem mestres, nem discipulos, nem modelos,
nem livros, nem coisa nenhuma, além do snr. conde de Almedina, e a qual
a camara, ao cabo de vinte annos de esquecimento ou de desdem, se lembra
de patrocinar afinal com 5 contos extraordinarios! Cinco contos por
quatro cacos feiissimos, meu rico senhor!... por quatro potes, que uns
dizem que foram feitos em Pompeia, e outros que foram feitos nas Caldas
antes da vinda de Christo, e que, em todo o caso, admittindo-se mesmo
que houvessem sido feitos ha muito mais tempo e muitissimo mais longe,
só seriam de alguma utilidade aos artistas se lh'os dessem cheios de
compota de marmelo ou de conserva de pimentos com cenouras!
Tal é a camara, ó serenissimo principe!
E a Geographica pode vossa alteza crer que é outra que tal. A sabia
corporação da rua do Alecrim não passa de um parlamento como o de S.
Bento, com a differença de que, em vez de ser electivo, é de
assignatura, a cinco tostões por mez, e n'elle a rhetorica é consultiva
em vez de ser deliberante. É a camara ou a ante-camara dos aprendizes a
deputados e a ministros; é o vitello mamão de que a representação
nacional é o boi gordo.
Na primeira quinta feira de despacho digne-se vossa alteza ordenar que o
trinchante mór da real casa lhe raspe bem raspado um dos seus ministros
e lh'o sirva sem casca: ahi está o geographo.
Encasque-se o geographo: eis ahi o ministro.
Sobre a Universidade corramos o veu da pudicicia. O mesmo governo,
considerando recentemente a influencia deslumbrante que esse luminoso
foco do saber exercia sobre a imaginação da mocidade, deliberou com
prudencia applicar-lhe um apagador. A respeito de ensino--disse em
portaria o snr ministro do reino ao reitor d'aquelle instituto de
instrucção--o melhor é pôr-lhe ponto. E assim se fez, com regosijo e
applauso geral dos doutos.
Resta-nos o _drawing-room_ da senhora D. Maria Kruz.
Este centro intellectual está indubitavelmente acima de todos os outros
e exerceu na educação nacional uma influencia doce e benefica. É certo
que durante muitos annos foi pela escada tapetada da _Abbaie aux Bois_
presidida por essa dama, e não pelos degraus sordidos da sociedade
geographica, que os litteratos, com algum stylo e pera, iam a deputados
e iam a ministros.
A esta intervenção senhoril, que por algum tempo deu á politica
portugueza uma leve atmosphera de delicadeza e de graça, um fugitivo
_odore di femmina_, se deve o accordo que se fez em alguns caracteres
entre a avidez das ambições e o respeito pelas escovas d'unhas.
De resto ha para todos os effeitos uma differença consideravel entre o
entrar na vida dando o braço a uma senhora, e o entrar levado em charola
pelo snr Pequito e pelo snr Luciano Cordeiro.
A senhora D. Maria Kruz abdicou porem ha muito tempo da influencia da
sua amabilidade perante o prestigio politico d'esses dois geographos
fura-vidas, e contenta-se hoje em offerecer á sua antiga côrte a
amisade, a conversação e o chá das suas quintas-feiras.

Toda essa gente, no fim de contas, se tem importado tanto com vossa
alteza como com minha avó torta. Ao passo que _As Farpas_ desde o
primeiro dia da sua existencia até hoje jámais desfilaram os olhos
desvelados e respeitosos dos interesses da real familia, em geral, e
muito em especial dos de vossa alteza serenissima.
Era vossa alteza um baby, da altura de uma bengala, quando seus
illustres paes, vilmente illudidos por indignos conselheiros, appareciam
com vossa alteza nos sitios publicos apresentando-o aos povos em traje
de mascara, já de coronel de comedia, já de tabelião de entremez.
De uma vez levaram-o ás corridas de cavallos vestido de funccionario
publico: calça até abaixo, apolainada em cima dos botins apiorrados,
jaquetão, collarinho alto, chapeu redondo, grilhão de ouro no relogio e
luva branca. Vossa alteza poderá fazer uma ideia da figura que estava
dignando-se de olhar por um binoculo ás avessas para o prior da Lapa.
Era aquillo em louro, sem a corôa e sem o annel liturgico.
_As Farpas_ protestaram com energia, clamando em stylo vehemente que
vossa alteza tinha direitos inilludiveis a não ser confundido por meio
dos nefandos artificios do algibebe da côrte com um padre pequeno. Que
vossa alteza era o herdeiro presumptivo de um sceptro; nunca o de um
cachucho de pregador! Que mais nobre do que essa vestimenta seria a pura
nudez com a decencia apenas garantida pela antiga folha de vinha ou por
um simples phyloxera.
_As Farpas_ aconselharam que vestissem vossa alteza sensatamente, de
flanella, meias de lã, knickerbokar, blusa, collarinho chato, e sem
luvas.
Hoje, que vossa alteza é um homem, deixamos ao seu juizo emancipado o
decidir quem tinha razão: se os aulicos conselheiros da guarda-roupa de
vossa alteza, se nós, seus criticos.

Mais tarde quando vossa alteza penetrou nos dominios da instrucção
secundaria, e que de Coimbra foi chamado por cartas regias o mestre de
hebraico Joaquim Alves Sousa para o fim de vir ler a vossa alteza Logica
e Rhetorica, _As Farpas_ apoderaram-se solicitas e velozes d'esse
sapiente caturra, e provaram por meio de argumentos irrespondiveis que
era abusar da submissão de um jovem principe, innocente e ingenuo, o pôr
defronte d'elle, sob o pretexto de o instruir, esse agoirento mocho,
pilhado na lobrega escuridão da metaphysica universitaria, e posto na
Ajuda, com a borla doutoral a um lado e o comedouro do rapé ao outro, a
explicar as regras do enthimema, do epicherema e do sorites, e bem assim
o emprego da synedoche, da antonomasia e da catachrese.
Apesar de todas as nossas objecções, esse nefasto humanista amargurou os
dias preciosos de vossa alteza, procurando cavilosamente fazer-lhe
acreditar que o epicherema era tão indispensavel ao homem como o proprio
pão.
Se tinhamos rasão ou não sabe-o hoje muito bem vossa alteza, que é homem
ha uns poucos d'annos sem ter precisado nunca até hoje nem do epicherema
nem do sorites nem de coisa alguma d'aquellas com que por tanto tempo o
estopou, sem proveito para ninguem, esse semsaborão tremebundo, seu
mestre.
Quando foi da nomeação do snr conselheiro Viale, do snr Martens Ferrão,
do snr Santa-Monica, _As Farpas_ intervieram de novo, constatando que a
educação de vossa alteza não era precisamente a piscina da pudica
Susana, para assim a rodearem em grupo mythologico de todos os velhos
bar-baças aposentados da magistratura e da academia.
Os resultados confirmaram quanto por essa occasião predissemos. Os
pedagogos de vossa alteza educaram-o dentro da virtude mas fóra da
natureza, fazendo de vossa alteza uma especie de rosière de Nanterre,
cuja vida tivesse por fim servir de assumpto a um romance coroado pelas
sociedades sabias e destinado a conferir-se em premio de animação ás
engommadeiras virtuosas.
Conhece vossa alteza a _Educação de um principe_, de Edmond About?
Recommendamos-lhe com empenho a leitura d'essa obra tão importante aos
principes como o proprio livro de Machiavel.
Em lição digna das nossas mais graves meditações, About mostra-nos a
tragica situação do principe Paulo no primeiro dia do seu noivado.
É alta noite. Findaram as festas do hymeneu em palacio. O monarcha
agradeceu n'um bem elaborado speech as manifestações geraes do regosijo
da côrte por occasião do feliz consorcio do principe herdeiro,
applaudindo incondicionalmente as danças e as cantatas, e queixando-se
apenas de pouca pimenta nos molhos mediocremente incendiarios do real
banquete. Os musicos, desencanudadas as flautas, mettido o rabecão na
caixa, e confiados os timbales ao moço da real capella, haviam-se
retirado a seus tugurios. Os aulicos resonavam enconchados nos catres da
regia mansão. E o commandante da companhia dos vivas, incumbido,
mediante a esportula de 3:200 e jantar, de fazer de Povo nos dias de
gala, havia terminado os seus trabalhos; o rei, com sua natural
affabilidade, havia-lhe dito commovido, batendo-lhe no hombro e
metendo-lhe na mão os 3:200: _Obrigado, meu povo!_ e elle, com o
vozeirão restaurado por duas gemadas, partira á pressa para ir levantar
os vivas á Republica n'uma manifestação de provincia para que estava
escripturado.
Tudo pois era silencio e trevas no regio alcaçar, quando o monarcha se
ergueu, de chambre e chinelas, no louvavel intuito de espairecer dos
duros encargos da publica governação espreitando um momento pela
fechadura da porta da camara nupcial do principe Paulo e da princeza
Margarida. N'isto, ao atravessar na escuridão o salão de baile, mudo,
apagado e deserto, catrapuz! Era o rei que ia de corôa para baixo e de
chichelos ao ar por cima de um _fauteil_, encambulhado n'um homem que
dormia sentado ali assim. Gritos de pavão do monarcha aterrado, e
cortezãos em ceroulas que chegam com luzes. Descobre-se que o rei cahira
por cima do principe real, que estava noivando sosinho n'uma cadeira com
o chapeu de bicos na cabeça, abraçado á espada dos reis seus avós.
--Que faz você aqui, seu estupido?--lhe perguntou o monarcha com voz
acre.
--Eu nano--respondeu o principe sorridente e doce.--Como a princeza
Margarida me disse que ia nanar para a sua camara e como eu agora não
tenho camara para nanar, vim nanar para esta cadeira.
--Chamem os mestres de sua alteza!--bradou o rei iracundo, com um gallo
na testa e com os braços cruzados no peito.
Um momento depois, como os trez pedagogos comparecessem á real presença,
enrolados á pressa nas togas do professorado, de barretes de dormir, com
as competentes pennas de pato aparadas da vespera e mettidas atraz das
orelhas, o rei disse-lhes:
--Esse jumento que ahi está, (e estendendo o seu dedo magnimo, com um
largo gesto antigo indicava o principe, vestido de general, de esporas e
chapeu armado, que bocejava encostado ao sabre de seus antepassados)
esse real jumento ignora completamente os deveres mais rudimentares de
um principe para com a sua princeza. E é para isto que eu tenho tido
aqui á engorda durante quinze annos tres burros de tres mestres!... Ora
muito bem: vou deixar-vos a sós por espaço de cinco minutos com tão
repulsivo idiota. Se ao cabo de cinco minutos, contados pelo relogio,
elle não estiver ao facto d'aquillo que todo o homem de barbas na cara
deve saber para não vir para aqui a estas horas _nanar_ n'uma cadeira,
decapito-vos a todos trez esta noite como quem decapita pelo entrudo
tres perus gordos e emborrachados!
Uma vez a sós com o real alumno, os tres pedagogos cahiram em desfeito
pranto nos braços uns dos outros, porque nenhum d'elles sabia nem se
lembrava de haver jámais lido nos auctores coisa alguma relativa aos
_deveres mais rudimentares dos principes para com suas princezas_.
Quando vossa alteza se dignar de passar um exame sobre esta materia aos
seus pedagogos, pedimos, senhor, e ousamos esperar da vossa clemencia,
que a pena ultima lhes seja commutada.
Piedade, principe, piedade!

Quer vossa alteza mais provas da desinteressada solicitude com que _As
Farpas_ teem sempre velado com diurno e nocturno olho sobre o prestigio
de tudo quanto mais directamente se relaciona com a sua pessoa, com a
sua familia, com a sua côrte?...
Compulse vossa alteza essa collecção immarcescivel e a cada momento
encontrará n'ella os conselhos mais amigaveis e mais justos, sobre as
maneiras, sobre a _toilette_, sobre a linguagem, sobre a etiqueta do
palacio; acerca dos discursos da corôa, dos uniformes, das librés, dos
cavallos, das carruagens, dos bailes, dos jantares, das viagens, das
caçadas, das recitas de gala, das revistas militares, etc.
Quem foi que mais ardentemente pugnou para que não pegasse a vossa
alteza e a seu augusto irmão a alcunha piegas dos _cabeças louras_ e dos
_louras creanças_, que lhes puzeram os noticíaristas?
Quem mais do que nós se esforçou em obstar que sua magestade a rainha
cahisse, sob a antonomasia de _anjo da caridade_, nos logares communs da
rhetorica sordida de procissão e do fogo preso, de bambolim de murta e
de peixe frito?...
Não faremos a vossa alteza a injuria de o suppôr assaz destituido de bom
gosto para não comprehender quanto a notoriedade, levada até esse ponto
de incontinencia, melindra e emurchece aquella delicada e fina flor do
recato, que é a mais bella joia das princezas que bebem silenciosamente
e heroicamente a vida na obscuridade inviolavel, como a imperatriz da
Allemanha, por exemplo, ou a imperatriz do Brazil.
Por todos estes titulos julgavamos nós ter a certeza de ser os
individuos chamados a acompanhar vossa alteza na sua viagem de
instrucção.
Quando ultimamente lemos nas gazetas os nomes dos snrs Antonio Augusto
d'Aguiar e Martens Ferrão, em vez dos nossos, aquelle que escreve estas
linhas telegraphou a Eça de Queiroz nos seguintes termos:
_Eça de Queiroz--Lawrence's Hotel--Cintra. Diga se recebeu rei convite
ir extrangeiro principes, e se vae._
E recebemos a seguinte resposta:
_Ramalho Ortigão--Caetanos--Lisboa. So recebi Alberto Braga convite ir
Collares burros, e não vou._
Havieis-nos pois lançado a ambos ao ostracismo ... Maldição e prudencia!
O preclaro major Quillinan, que tão galhardamente defendeu ha pouco a
honra nacional publicando no _Morning-Post_ uma bisca contra o
detestavel Brigth, annuncia agora e faz publico que, visto o governo de
sua magestade fidellissima não haver prestado a consideração devida ao
feito alludido, elle, major Quillinan, não mais volverá a soccorrer-nos
nas molestias de Brigth. Brigth tem d'ora avante o rim da gente ás
ordens. Tripudie sobre elle a capricho, que o major Quillinan dá
licença! A camara dos commus pode desde hoje beber-nos o sangue á
vontade, que o bebe por conta do lavrador.
Regala-te para ahi, ó vibora sedenta!
Nós porém, senhor,--como se diz na «Vie Parisienne»--_não somos esse
major_.
Vamos pois dar a vossa alteza n'este momento decisivo e solemne os
derradeiros conselhos que a nossa dedicação a vossa alteza nos inspira,
para que a todo o tempo se não diga que um mesquinho despeito nos
reduziu n'esta suprema contingencia a um silencio criminoso,
sarocoteando-nos cynicamente no vil mutismo, como dois peixes vermelhos
dentro de uma redoma cheia d'agua, emquanto vossa alteza caminha para o
abysmo, levado ao extrangeiro, como quem leva uma retorta, pelo nefando
chimico snr Antonio Augusto d'Aguiar.
Fomos vilmente preteridos--é certo--por esse cavalheiro ... Um chimico,
senhor! um perfumista desaproveitado! um baldroqueiro de drogas! um
troquilha de liquidos de laboratorio, nojosos e peçonhentos! Além
d'isso, um gordo descommunal, um gordo inverosimil! um d'estes gordos
que não passam ás alfandegas sem que as apalpadeiras venham e lhe ponham
o visto! um gordo que vae alarmar a Europa, e que vossa alteza, em justa
satisfação da curiosidade dos povos, se ha de ver forçado a exhibir á
avidez do publico na feira de Saint-Cloud ou na feira _au pain
d'epices_, a dois sous por cabeça. Elle, do alto de um estrado, dirá á
França:--_Messieurs! je suis jeune fille, je suis née à Marseille, j'ai
seise ans, je pèse 150 kilos, tatez mon mollet, S.V.P_!
E vossa alteza, de casaca e gravata branca, piscando o ôlho ao povo, com
malicia, terá de acrescentar:
--_Il n'y a pas de coton là dedans, messieurs!_
Elle demais a mais usa uma luneta forrada de cautchu ...
E é este homem que vae ser o real olheiro de vossa alteza atravez do que
ha que ver por esse mundo!
Um olheiro, de galochas de borracha na vista!
Um olheiro que vae para ver tudo e que a si mesmo se não viu nunca senão
até metade do ventre, porque da outra metade até os pés principia para o
seu raio visual o hemispherio do grande indecifravel, do eterno
incognoscivel!
Que, pela nossa parte, tome vossa alteza nota que não pretendemos
sensurar ninguem! Uma vez que os paes de vossa alteza decidiram que esse
cavalheiro nos devia substituir para o acompanhar, nós não temos que
dizer senão que vae muito bem acompanhado. Vae lindo! Não haja duvida
nenhuma que vae perfeito!
E todavia é possivel que o veneravel sabio venha a abusar um pouco do
algebrismo technico da sciencia que tão gloriosamente professa e que,
quando vossa alteza o consulte sobre o _menu_ da sua ceia no café
Anglais ou sobre o governo do seu _cob_ na Avenue des Potins, elle lhe
responda pela fórmula KO+2S0³, ou KO,2S0³, a qual fórmula não é
precisamente a da elegancia mais garantida, posto que seja, sem questão
alguma, a do bissulfato de potassa.
Antes de entrarmos agora na ordem dos conselhos que o nosso mister de
criticos nos impõe o dever sagrado de ministrar a vossa alteza,
consideremos por um momento o estado presente da educação que vossa
alteza vae concluir na sua proxima viagem.
Um jornal insuspeito, o _Commercio de Portugal_, resume o programma
d'essa educação no seguinte quadro:
_«Conhece o principe o latim, francez, inglez, italiano, allemão,
hespanhol, e estuda o grego. Faz com muito aproveitamento o curso de
humanidades; tendo ahi principalmente alargado os estudos sobre a
historia universal e patria. Estuda um curso regular de sciencias
naturaes e mathematicas. Nas sciencias sociaes, que pode-se dizer
constituem a_ SCIENCIA DO GOVERNO _para um principe, o curso de
disciplinas seguido por sua alteza tem sido o seguinte, que indicamos
mais desenvolvidamente por entendermos que muito interessa saber-se.
Começou pelo estudo aprofundado da philosophia, especialmente dirigido
para o estudo superior da philosophia do direito.
Em 1878 começou os estudos de philosophia racional e moral, e historia
systematica da philosophia.
Preparado assim, começou em seguida o estudo de direito natural ou da
philosophia do direito. Passou depois a estudar o direito publico
interno e politico;--direito constitucional portuguez; e historia tanto
antiga como moderna das instituições politicas da nação; organisação da
administração publica em Portugal nos seus differentes ramos; leitura e
explicação do codigo administrativo e das leis eleitoraes.
Estudo comparado das instituições politicas das principaes nações cultas
e analyse de seu systema eleitoral.
Parallelamente e em lições alternadas, sua alteza seguiu o estudo
sistematico da historia do direito publico da Europa, seguindo como base
a notavel obra «Le droit public et l'Europe moderne,» do Vicomte
Lagueronière.
Estudos dos principaes tratados porque foi alterada a carta e a
organisação politica da Europa desde os tratados de paz de Westphalia
até a actualidade.
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