As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1882-11/12) - 4

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gremio de um paiz livre e constitucional, onde o governo se não exerce
por sophisticações capciosas, antes versa sobre formas parlamentares
baseadas nas ficções mais engenhosas e mais lucidas. Uma d'essas ficções
fundamentaes do systema que felizmente nos rege consiste no principio
sagrado da discussão, da consulta e do voto. Para bem se comprehender
toda a belleza d'este profundo principio cumpre observar--e para isto
chamo particularmente a attenção de Vossa Eminencia--que, toda a vez que
um estadista, chamado aos conselhos da corôa pela augusta confiança do
principe, pede ácerca dos seus actos a opinião de qualquer dos poderes
do Estado, a obrigação d'esses poderes, quaesquer que elles sejam,
_quaesguer que elles sejam_--repito-o--é abundarem approvativamente e
jubilosamente no sabio parecer do ministro preopinante. Assim o exigem
as sabias praxes de longo tempo estabelecidas e firmadas no feliz e
liberrimo governo da nação portugueza.
--Mas então,--obtemperou o sacerdote romano--o systema governativo, de
cujo elencho V. Ex.ª é tenor applaudido, vem a ser realmente a farça
mais divertida _(la piu piacevole)_ que se conhece! O pundonoroso luso
da pasta da justiça, apenas o roupeta lhe fallou em farça, meu amiguinho
e snr, agora, o vereis!
_--Farça!_ bradou s.ex.ª com o gesto nobre mais recommendado pela
rhetorica para os grandes lances da indignação suprema. _--Farça!_ O
forasteiro ousa chamar _farça_ ao sublime governo constitucional,
monarchico-representativo da patria do fallecido marquez de Pombal! do
chorado Santos e Silva! e do arrojado tribuno José Estevão Coelho de
Magalhães, cognominado por antonomasia o _Deus da Palavra_!!... Cuidará
então o snr, por acaso, que seja uma coisa séria a curia! mais o
pontificado! mais a infallibílidade do papa! mais as indulgencias para
ir para o ceu a trez vintens por cabeça! mais a bulla para misturar
carne com peixe a pataco por familia! mais as dispensas, a tanto por
incesto e a tanto por divorcio, para se casarem ou descasarem primos
carnaes com primos carnaes, genros com sogros e bisnetos com bisavós!...
Cuida o snr que ainda alguem toma a serio n'este mundo uma chirinola
d'essas?! Uma das coisas com que os snrs nos andam sempre a massar é a
sua famosa _vinha do senhor:--Vimos da vinha do senhor! Vamos para a
vinha do senhor! Trabalhamos na vinha do senhor!_ Suppoem os snrs
porventura que ainda ha no orbe taberneiro, baiuqueiro, tasqueiro, ou
bodegueiro convencido de que o senhor tem vinhas?! Os snrs intitulam-se
a si mesmos _sal da terra_; ora vamos a saber uma coisa: os snrs estão
efectivamente persuadidos de que são sal?... Vive o snr, por exemplo, na
convicção profunda e inabalavel de que é medido ás razas pelos almotacés
sempre que passa ás portas, e que paga 10 réis de direitos em alqueire
sempre que penetra nas zonas fiscaes das deoceses em que circula? Tem o
snr, na sua qualidade de sal, a intima certeza de que lhe baste
abraçar-se de arripio a uma pescada fresca para que essa pescada fique
pronta para se deitar á panella com cebola e batatas?! No dito estado de
sal, nutre o snr a austera e firme convicção profissional de que lhe
assiste o poder de resequir as hervas e de revivificar os espiritos?...
Está o snr bem certo de que não tenha senão a sentar-se no bucho verde
para que elle ganhe caruncho, ou a pôr a benta mão sobre os sermões de
Garcia Diniz ou sobre os artigos da _Nação_ para que essas producções
literarias cessem para logo de ser a mais ensosa e a mais dissaborida
coisa que Deus permitte a fazer aos seus ministros em toda a vastidão
da crusta terrachea?!... E, então, com tudo isto, os snrs é que são os
sérios, e nós é que havemos de ser os farçantes, heim?
Emquanto o ministro, arrebatado e fluente, proseguia no seu discurso,
que não hesitamos um só momento em qualificar de sacrilego e de
perverso, o pastor da Egreja, o procurador de Pedro, havia chamado a si
o baculo que deixara atraz da porta do gabinete de s.ex.ª, e
experimentava-lhe a elasticidade da fibra, apoiando-se-lhe á cacheira e
drobando-o e redobrando-o de ferrão fixado ao solo.
* * * * *
Até ahi chegam as nossas conjecturas formuladas sobre as informações
dispersas que podemos recolher ácerca d'este memoravel incidente. D'esse
ponto por deante ignoramos como é que os factos precisamente se
passaram. Lemos porem no _Diario de Portugal_ uma phrase reveladôra, que
se nos figura perfeitamente clara e definitiva. Diz aquella auctorisada
folha:
_O nuncio desacatou sua excellencia_.
Os boatos das secretarias esclarecem ainmais essa affirmativa de um dos
periodicos ministeriaes.
_Sua excelencia_--segredam as vozes familiares da burocracia--_apanhou
um calor_.
* * * * *
Dilucidada assim a secreta verdade dos factos, entendemos que o snr
nuncio andou admiravelmente bem. E não podemos de modo algum attingir as
causas do geral descontentamento que invadiu os periodicos liberaes por
occasião d'este jubiloso successo.
* * * * *
E' indespensavel que de uma vez e para todo o sempre a gente acabe de se
compenetrar bem de uma coisa. E vem a ser: Que os governos não entendem,
nem podem entender nada, pela palavra, acerca de bispos.
Os bispos--dizem-o todos os textos canonicos--são os pastores das almas,
incumbidos pelo Espirito Santo de governar a Egreja de Deus. E' n'elles
que reside a plenitude do sacerdocio, a posse inteira dos poderes
confiados por Jesus Christo aos apostolos. Elles não podem ser
considerados senão como puros e legitimos delegados do chefe supremo da
Egreja, por elle encarregados de manter a continuidade do sagrado
ministerio, de presidir, de governar e de julgar em seu nome e em nome
de Deus, de quem o papa é o representante visivel na terra.
Ora, se são effectivmnente as ideias, os sentimentos, as aspirações, os
interesses do Summo Pontifice e não os do snr Julio de Vilhena que os
bispos teem de representar, de deffender e de servir, como é que querem,
de boa fé e francamente, que seja o snr Julio de Vilhena e que não seja
o papa quem escolha os individuos encarregados de similhante missão?
* * * * *
Que os bispos saiam melhores ou saiam peiores, escolhidos pelo nuncio de
Sua Santidade ou escolhidos pelo ministro de sua magestade fidelissima,
que é que teem com isso os jornalistas republicanos e livres
pensadores?...
Pergunta-se uma coisa a estes jornalistas:
Foi para intervir nos mais perfeitos methodos de fazer padres, de dar
ordens, ou, de ministrar sacramentos, que suas excelencias se fizeram
livres pensadores? Mas escusavam então de se incommodar para isso,
prejudicando-se consideravelmente nos meios de acção, de que para tal
fim disporiam continuando a ser mesarios da freguesia das Chagas ou
irmãos do Senhor dos Passos da parochia das Mercês!
Teem, por ventura, estes philosophos democratas e materialistas
pretenções secretas pendentes do governo das deoceses do reino?
Vejamos, sinceramente:
Os snrs querem chrismar-se? querem tomar prima-tonsura ou subdiacono?
querem parochiar? querem dizer missas? querem cantar responsos? querem
confessar mulheres?...
Se querem, digam-o! Desce-se um veu sobre a questão e não se torna mais
a fallar n'isso.
Se, pelo contrario, os snrs não pretendem coisa nenhuma dos bispados,
que diabo então lhes importam, aos snrs, os bispos?
Parece-nos ouvir uma voz replicar-nos, dizendo:
--Mas ha um facto extra-ecclesiastico e extra-religioso que obriga os
republicanos livres pensadores a tomarem interesse e fogo na questão dos
bispados, e esse facto vem a ser que é o governo da nação quem paga os
bispos.
Muito bem, voz! muitissimo bem! Quem paga os bispos é com effeito o
governo. E é por essa razão que nós applaudimos com enthusiasmo o snr
Nuncio, ao termos a grata noticia de que sua eminencia, _desacatou_ o
governo:--para ver se o governo aprende a não ser tolo!
* * * * *
A corveta _Stephania_ acaba de dar da sua incapacidade como instrumento
beligerante o testemunho mais eloquente, mais triste e mais solemne.
Mandada á ilha da Madeira para o fim de resolver em favor do governo o
empate de uma eleição de deputado, a dita corveta de tal modo manobrou
que a eleição de desempate recahiu em massa sobre o candidato
republicano de opposição ao governo.
Considerada pelos poderes publicos como incapaz do real serviço, consta
que este vaso de guerra vae ser aposentado e recolhido debaixo do leito
do Arsenal na qualidade de vaso de paz.
Para substituir a _Stephania_ nas campanhas navaes das futuras eleições
pensa-se em mastrear em corveta o compadre Tavares. Para esse fim
estão-se já colligindo nas estações competentes os mexilhões precisos
para guarnecer a quilha d'este distincto cavalheiro.
Parabens a sua excellencia!
* * * * *
Agora invocamos a protecção dos anjos para que, com sua assistencia,
passemos a narrar em resumido discurso e em florida linguagem, propria
da alteza do assumpto, como foi que o milagre se deu no povo do
Carnaxide.
Era por uma formosa tarde do cálido mez de agosto. O astro do dia se
inclinava ao occaso, onde o oceano parecia attrahil-o com as argentadas
presas de suas ondas. Sobre a verde alfombra alvos cordeiros, conduzidos
pelos zagaes, pasciam as tenras hervas, ao passo que no umbroso bosque o
bando alado entoava os louvores do Eterno em doces e bem concertados
gorgeios.
Debaixo de uma virente faia se achavam alguns camponezes dando alento ao
fatigado corpo e discreteando em ameno convivio ácerca de seus bucolicos
lavores e bem assim da vida e prendas de Santa Rosa de Lima por ser esse
o milagroso dia de tão prodigiosa santa.
Eis senão quando, volvendo os olhos, como que tocados por um
presentimento divino, para o lado em que se acha a egreja parochial de
Carnaxide, viram os ditos camponezes apropinquar-se um vulto em tudo
magestoso acima do narravel.
Com a mão direita se apoiava esse vulto a um bordão de peregrino, em
quanto que com a mão esquerda ora comprimia a fronte pensativa coroada
de um pastoril chapeu de palha, ora fazia um gesto cortez para o
horisonte como que convidando o mesmo vulto a proseguir na senda da
vida em direcção á faia virente.
Conjecturaram os camponezes que fosse S. Basilio Magno, S. Pedro Nolasco
ou S. Praxedes, e logo viram que não era Santo Antão--por não ter porco
ao lado.
Junto da faia, aquelle que os camponezes haviam tomado de longe por
Praxedes, collocou a mão sobre o coração e arremetendo com a fronte para
as nuvens, exclamou:
Eu nunca vi Lisboa, e tenho pena!
Era s.ex.ª o snr Thomaz Ribeiro, ministro da poesia lyrica e dos
negocios do reino.
Ao reconhecel-o, os camponezes cahiram em giolhos.
--Guarde-vos Deus, bons rusticos!--disse s.ex.ª acommodando o stylo á
rude e acanhada comprehensão do auditorio--E que a senhora Santa Rosa de
Lima, que é hoje seu dia, vos tenha de sua bemdita mão!
E em seguida, descriminando a um par um os individuos no grupo
campesino a que nos referimos, s.ex.ª proseguiu continuando a
exprimir-se em prosa:
--Que fizestes do vosso cordeiro favorito, ó Tityro?--Trazeis comvosco a
vossa avena, Melibeu?--Onde a vossa pastora Anarda, amigo Silvano?
Todos os camponeses se acercaram então de s.ex.ª, ficando suspensos da
facundia de seu labio, pois nunca jamais, nem na freguesia de Carnaxide
nem em duas legoas em redondo, se ouvira tanta gentilesa e amenidade de
lingoagem como a que sahia em jorras da bôcca d'esse portentoso homem de
penna e de governação.
Felizes e volozes devolviam as horas em pratica tão discreta quão
matizada de piericos primores, quando s.ex.ª, alongando a dextra n'um
brando meneio para o pendôr da collina, perguntou:
--Que vetustas ruinas são aquellas que alem descortino alvejando na
quebrada da serra?
E, como houvesse em resposta que essas ruinas eram a antiga egreja de
Nossa Senhora Apparecida,
--Corramos prestes ao templo!--bradou s.ex.ª--Dirijamo-nos pressurosos a
elevar nossas preces e a depor nossas modestas offerendas no altar
d'essa Virgem Senhora Nossa que tão galhardamente denominaes
_Apparecida!_ Vinde, Silvano! Vinde Melibeu! Tityro, Aleixo, Frondelio,
Belmiro e Castalio! Vinde todos, ó pastores! Eia!... Ao templo! ao
templo!...
Os pastores, então, plangentes e lacrimosos, explicaram voz em grita que
Nossa Senhora Apparecida de longo tempo desapparecera. Mão impia de
infames governos despoticos a arrebatara do seu templo de Carnaxide para
a transportar para a Sé no meio da indignação geral dos povos e das
patronas minazes da real melicia. De sorte que, já no tempo em que o
feroz usurpador do throno de Lysia se apegára com a Senhora Apparecida
para sarar da perna que quebrou ao ir a quatro sollas de Queluz para
Cacilhas, no logar do Moinho de Cavallinhos, cantavam os cegos na via
publica:
D. Miguel foi á Sé,
Sentou-se n'uma cadeira,
E disso para os malhados:
Esta perna está inteira!
Ao ouvir taes vozes, já soltas, já metreficadas, s.ex.ª extrahiu a lyra
que trazia ao tiracollo em um saco, juntamente com a pasta da publica
governação, e sobre o mavioso instrumento jurou que antes que a casta
Phebe voltasse por seis vezes a sorrir do ceu ao terno Endymion, ou--por
outra--que dentro, de seis mezes contados, a milagreira imagem de Nossa
Senhora Apparecida volveria da Sé a Carnaxide, reapparecendo pela
segunda vez aos povos em todo o esplendor do seu excelso vulto.
Vendo os camponezes que por meio de um tão manifesto e prodigioso
milagre assim lhes era restituida sua Senhora, outra vez cahiram
submissos em giolhos.
E foi só depois de s.ex.ª se haver retirado pela mesma vereda por onde
viera; foi depois de lhe terem ouvido ao longe e pela derradeira vez
repetir aos montes e ás hervinhas:
Eu nunca vi Lisboa, e tenho pena!
que os camponezes, reunidos em honesto convivio sob a faia, regressaram
a suas pousadas, tangendo alegres tibias e entoando lôas festivaes em
honra d'aquelle que tão grande capricho punha em lhes restituir a
Senhora Apparecida quão grande era a pena que alimentava em seus carmes
de nunca ter visto Lisboa.
Gloria pois a s.ex.ª!
* * * * *
Outrora o portuguez de volta do Brazil, com fortuna, com papagaios e com
pedras no peito da camisa e na bexiga, comprava invariavelmente, ao
desembarcar, um acommenda, dois cães de faiança e um bilhete da imperial
na malaposta de Braga. Depois do que, passava a usofruir n'uma quinta
minhota o producto do seu trabalho d'emigrante, representado em
molestias sedentarias, em graças regias e em quadrupedes de louça.
A patria explorava-o e ria-se d'elle.
Agora chega do Rio de Janeiro o snr Eduardo de Lemos, sem pedras e sem
papagaios, posto que com fortuna, e, segundo lemos no _Diario do
Governo_, elle não só não paga mas resigna uma commenda com que o
agraciou a regia munificencia.
Tomemos nota do phenomeno, porque elle é o symptoma de uma revolução
profunda: elle é o _Emfim Malherbe veio_ da historia dos commendadores e
dos cães,--vertebrados da olaria nacional e do grosso commercio
extrangeiro.
Que o nosso velho mundo decrepito e tremelicante se prepare para o
embate hostil e tremendo do novo poder revolucionario que se annuncia!
Atraz de Eduardo de Lemos ha no Brazil uma legião inteira, intelligente,
instruida e forte, que vae chegar--para se rir.
Lisboa 15 de dezembro de 1882.
_Ramalho Ortigão._
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