As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1882-11/12) - 3

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duas buxas de algodão em rama para se lhe introduzirem nas orelhas.
Folgamos de veras ao ver assim tão harmonicamente alliadas em proveito
da poesia lyrica as duas importantes industrias de fazer critica nos
jornaes e de pôr cortinados da Suissa nas casas.
* * * * *
Entre os mimosos e ricos brindes offerecidos a Leopoldo de Carvalho na
noite da sua festa artistica no theatro do Gymnasio, lêmos no _Diario de
Noticias_ que sobresahiam em primeira linha dois formosissimos quadros
devidos á pericia de uma joven menina da nossa melhor sociedade e feitos
de escamas de corvina.
Tambem folgamos muito com isto.
Em todas as exposições de quadros celebradas nos principaes centros
artisticos do mundo durante este derradeiro quarteirão do seculo, se
notava com lastima geral que o simples oleo, a tinta de aguarella, o
lapis e o esfuminho, eram elementos insufficientissimos para com elles
se constituir o quadro a toda a altura das enormes exigencias da
esthetica contemporanea. A joven admiradora de Leopoldo, lançando mão
genial das escamas da corvina e arrojando-as valorosamente á tela, vem
prehencher uma lacuna immensa nos recursos até hoje tão estreitos das
artes do desenho.
Gloria eterna a tão benefica e prestante menina, honra da patria e do
peixe fresco, alegria de seus carinhosos paes, e satisfação completa de
suas boas mestras!
Nada mais lisongeiro para um luso, em face dos tremendos esforços de
processo empregados pelos artistas modernos em lucta com a invencivel
perfeição, do que ver essa joven compatriota, inspirada do alto,
apartar-se repentinamente da grande legião dos atormentados, empunhar a
faca de amanhar o peixe, cahir sobre a corvina, empolgal-a pelo rabo, e
escamar em seguida duas obras primas sobre os laureis do festejado actor
Leopoldo!
Só nos resta agora, para inteira consagração d'este grande facto
artistico, que D. Guiomar, empunhando mais uma vez o luminoso facho da
critica, nos queira dizer de que côr é que devemos capitonar as casas e
que peça de musica temos de mandar tanger por Macario, para o fim de bem
nos compenetrarmos das impressões que são chamados a produzir nas
organisações accessiveis á comprehensão do bello os novos effeitos
estheticos introduzidos no sublime pelas escamas dos peixes.
* * * * *
Antes d'hontem, 3, nova rusga ás casas de jogo. Em uma batota
assaltada, cincoenta jogadores presos, e cincoenta mil réis
aprehendidos.
O _Correio da Noite_ refere sobre este assumpto que na batota alludida
se não jogava depois de algum tempo a esta parte com receio de uma
visita policial. A policia porem, com a mais louvavel lisura, fez correr
no bairro o boato semi-official de que não havia mais rusgas ás batotas.
Os jogadores então, julgando-se ao abrigo carinhoso e paternal da lei,
reuniram-se outra vez, a policia vigilante cahiu-lhes em cima, e
batoteou-se a si mesma, em nome de el-rei, com todo o dinheiro que
empalmou do bolo.
A opinião mostra-se satisfeita com este exemplar procedimento da
policia, que anima sagazmente os mal intencionados á pratica do crime
para o fim politico de pechinchar com os resultados pecuniarios d'elle.
E os jornaes continuam a chamar _uma rusga_ a cada uma d'estas
diligencias destinadas a reprimir o vicio funesto da tavolagem.
Se os jornaes conhecessem melhor a technologia dos jogos de parar, não
chamariam a estes lances _uma rusga_; chamar-lhe-hiam--mais
propriamente--uma _vacca_.
* * * * *
Os jogadores até hoje presos teem sido todos condemnados;--coisa que
naturalmente produz nas massas um saudavel terror, levando-as ou a não
mais jogarem senão nas batotas officiaes, como a Bolsa, a Loteria e as
Eleições, ou a jogarem mais reconditamente.
Para não desmamarem os povos, violentamente de mais, da saborosa pratica
dos crimes a que elles, coitadinhos, estão habituados, os tribunaes,
implacaveis com o jogo, mostram-se benignamente contemporisadores com
outros erros menos funestos á moral e ao proximo do que o manejo dos
baralhos.
Ha dias, por exemplo, foi carinhosamente absolvido um cavalheiro que
tinha arrancado um olho da cara a uma mulher.
O juri tomou em consideração as circumstancias attenuantes que revestiam
esse pretendido crime, ou, para que melhor o digamos, _innocente
gracejo_.
O juri attendeu principalmente a este facto, que não póde deixar de
inspirar a mais profunda piedade a todos os corações ternos:--aquelle a
quem por um momento pedimos venia para chamar _reu,_ se assim nos é
licito exprimir-nos, amava aquella a quem tirou o olho.
O movel do crime,--digo--o movel da pilheria, de que o innocente é
accusado, foi o amor que lhe inundava o peito.
Ai d'aquelle que nunca amou! esse é um bruto, que jamais deverá ser
chamado a resolver questões d'olhos.
Os que uma vez amaram esses comprehenderão bem todos os thesouros de
ternura que trasbordaram da alma do anjo supracitado, ao praticar o acto
que o levou, incomprehendido, á barra dos tribunaes humanos.
O cherubins do empireo! sacudi sobre o nosso tinteiro as asas candidas e
luminosas, para que com uma das vossas pennas possamos pintar a scena
que entre esses dois amantes se passou!
O cavalheiro principiou naturalmente por pedir á sua doce amada que ella
mesma lhe desse o ôlho, em prenda, ou em troca talvez, por um de vidro.
Ella responderia primeiro por uma timida recusa, entre reprehensiva e
ironica:
--Ora, para que queres tu o ôlho?... Importas-te tu bem com o meu ôlho!
se me amasses, sim, comprehendo que quizesses um ôlho meu, o ôlho da tua
Bébé, para o pôres n'um medalhão. Mas oh! tu não me amas....
--Ah! eu não te amo? Eu é que te não amo?! Eu é que te não quero um ôlho
para um berloque?!... Ora espera, que já te mostro se te adoro ou não!
E, em seguida, por um d'esses actos de paixão profunda que muitas vezes
transformam o homem n'um deus, o cavalheiro abriria um canivete e,
delicadamente, apoderar-se-hia do ôlho da creatura.
Oh! amor!... amor!
Um jornal pareceu não saborear competentemente toda a doçura d'este
breve e delicioso idyllio, opinando que deveria ser condenmado á cadeia
um malandro tão garantidamente bestial como mostrava ser para o dito
jornal o serafim a que nos reportamos.
Um dos membros do juri dirigiu á folha alludida uma bella carta
patenteando as altas razões juridicas que os levaram, elle e os seus
collegas, a absolver o colleccionador d'olhos, cujo amor se debatia em
juizo.
Diz o jurado:
_Se o reu houvesse sido condemnado, teria isso por ventura restituido o
ôlho á queixosa?_
Nós já acima nos prostramos no chão junto ás plantas eruditas com que o
Dr. Luiz Jardim palmilha as veredas historicas percorridas no seculo
XVII pelas damas illustres.
Outra vez nos vemos agora forçados a estender-nos ao comprido. Sempre
que personagens d'este quilate apparecem ao critico, a restricta
obrigação d'este é por-se de rôjos.
* * * * *
Na sessão inaugural do novo centro legitimista, ultimamente fundado na
cidade de Braga, o mui ardente ecclesiastico snr Senna Freitas,
terminando um enthusiastico discurso, tirou do seio uma bandeira branca,
e n'um rapto de eloquencia obrigou todos os assistentes a jurarem sobre
essa bandeira fidelidade eterna ao legitimo rei snr D. Miguel de
Bragança Junior.
Referindo este facto o _Diario de Noticias_ accresccnta, reprehensivo e
severo, que «não se devem fazer comedias partidarias com a independencia
da patria.»
Julgamos do nosso dever pacificar o justo melindre patriotico do _Diario
de Noticias_, affirmando-lhe que depois de haver desfraldado do seio a
bandeira branca sobre que se fez a jura, Senna--como consta por pessoas
fidedignas--se assoou commovido a essa mesma bandeira. Pelo que se veio
a descobrir que ella era unicamente um lenço.
Pela parte que nos toca não podemos deixar de applaudir absolutamente a
attitude firme e energica que o reverendo Senna assumiu no gremio do
venerando partido legitimista, levando pela persuasão oratoria os seus
correligionarios politicos a acceitarem como symbolo sacrosanto das suas
crenças o moderno lenço d'assoar, em vez de continuarem a seguir
servilmente as tradições partidarias da velha côrte toireira e
cavalhariçal de Queluz; onde, entre os amigos intimos do snr D. Miguel
I, taes como o picador João Sedvem e o caceteiro José da Policia, exigia
o uso que nem os juramentos nem os defluxos se depozessem jamais sobre
outro qualquer symbolo que não fosse unicamente a mão de cada um.
* * * * *
Na casa Cordeiro, ao Chiado, leilão de louças, de antiguidades e do
moveis artisticos.
Tentámos adquirir n'essa venda um espelho com moldura de faiança
portugueza e dois bules francezes, stylo da China, em ramagens azues
sobre fundo branco. Estes dois lotes foram-nos arrebatados por um
licitante mais forte, o qual soubemos, mais larde ser um agente de sua
magestade a rainha, encarregado de comprar por conta d'aquella augusta
senhora.
O negro despeito pela privação dos referidos objectos obriga-nos ao
desafogo de alguns commentarios.
* * * * *
A tendencia geral para o bric-à-brac é o grande escolho dos progressos
de algumas das artes industriaes n'este seculo. O gosto das mobilias
antigas acabou, assim se póde dizer, com a moderna marcenaria artistica.
Em Lisboa, por exemplo, todos os entalhadores de talento se fizeram
restauradores, atamancadores, renovadores de trastes antigos. Ninguém se
dá já ao trabalho de inventar o mais elegante leito, o mais decorativo
armario, o mais gracioso sofá. Contentamo-nos, como suprema realisação
das nossas aspirações no conforto e na graça da habitação, em metter a
roupa branca nas mesmas gavetas em que os antepassados dos outros
guardavam os seus calções curtos de veludo de Utrecht, e de fazermos
sentar as nossas mulheres nos mesmos canapés em que se entufaram outrora
as cabaias e os guarda-infantes das damas contemporoneas do snr rei D.
João v.
Pelos vestigios que na arte da mobilia deixa da originalidade do seu
gosto, o seculo XIX figurará na historia como o seculo--dos
ferros-velhos.
* * * * *
É aos reis que compete attenuar este desdouro, imprimindo nas formas
artisticas do seu tempo o cunho esthetico do seu reinado. É isso de
resto o que sempre se vê na historia do movel. A cada uma das
modificações caracteristicas por que successivamente vae passando a
linha e a côr na alfaia dos tempos modernos corresponde invariavelmente
o nome de um soberano, desde Luiz XIII até Napoleão I, o qual, apesar de
não ter passado nunca em questões de gosto da sua primeira patente de
cabo de esquadra, conseguiu ainda assim dar ao mobiliario da sua epocha
o typo da mesma emphase cezarea que o imperial _parvenu_ aprendera na
convivencia e nas lições do comediante Talma, encarregado de lhe ensinar
a traçar a purpura, e do rhetorico Champagny incumbido de lhe fazer os
rascunhos dos «improvisos» para as proclamações de guerra.
Os trez grandes decoradores Boule, Gouthière e Riesner, cujas obras
obtiveram recentemente no leilão do duque de Hamilton os mais fabulosos
preços que podem attingir as materias preciosas, eram os fornecedores
dos Bourbons, e foi para as residencias reaes de França que elles
fabricaram as suas mais delicadas e primorosas obras.
O celebre Boule tinha, como se sabe, as suas officinas estabelecidas no
proprio palacio do Louvre, onde estava alojado na categoria de
fornecedor privilegiado de Luiz XIV.
Riesner era, ainda em 1791, um dos fornecedores de Marie Antoinette.
Os nomes d'esses principes, refractarios por outros titulos á
consideração e á estima do mundo moderno, viverão por muito tempo
immortalisados nas collecções democraticas das artes decorativas,
alliados á memoria da doce e benefica influencia que exerceram sobre os
progressos do gosto artistico, que são ao mesmo tempo os progressos da
elevação do espirito e da dignidade domestica do homem civilisado.
* * * * *
Sua magestade a rainha senhora D. Maria Pia, comprando os seus moveis
nos leilões dos seus subditos, em vez de os mandar fazer pelos artistas
mais talentosos do seu reino, não se nos figura que esteja no caminho
mais directo para que o seu augusto nome chegue a ter um logar
proeminente nos futuros annaes do bom gosto. E nada nos punge mais
melancolicamente do que a perspectiva do futuro vacuo em torno da
influencia esthetica d'esta princeza de uma elegancia tão distincta
quanto talvez ephemera.
Ficando-nos os nossos dois lotes n'esse leilão e arrebatando-os pela
quantia de mais tres tostões e meio com que cobriu o nosso ultimo lance,
sua magestade a rainha vibrou, com fina mão ganhosa, o derradeiro golpe,
definitivo e mortal, no estremecido prestigio com que a artistica
sumptuosidade suprema dos antigos principes se impunha ainda hoje á
fascinação dos miseros burgueses enriquecidos.
Que os adelos se barbeassem deante das elegantes _psychés_ das Maintenon
e das Pompadour, e que almoçassem nas taças _pâte tendre_, das Dubarry
ou das Marie Antoinette, coisa era já bem desconsoladora, bem triste e
bem dissolvente!
Mas, depois do ultimo leilão, em que nós fomos batidos por sua magestade
a rainha, o facto é mil vezes mais grave. Porque--comprehendem bem esta
_nuance_--agora é a mais distincta, a mais elegante, a mais
aristocratica das princezas, que revê os candidos e impolutos arminhos
do seu real manto no mesmo espelho a que na vespera fez a barba o
Villas! e é a mesma augusta soberana que, descendo do seu throno com a
esvelta graça altiva e triumphante de uma Diana vencedora, vae ella
mesma tomar o chá no mesmo bule por cujo bico almoçou dois dias antes o
Agostinho, da rua do Alecrim!... Oh! minha senhora! minha senhora!
* * * * *
Despeitados, como naturalmente sahimos do leilão Cordeiro, imaginem se
nos daria prazer ou não a noticia da morte violenta e affrontosa de que
foi victima o mais bello gato de sua magestade!
Escolhido em Paris, expressamente para a senhora D. Maria Pia, pela
competencia unica do grande especialista o pintor Lambert, esse gato
de, uma belleza e de uma magestade digna dos versos de Beaudelaire,
contrahira em palacio uma especie de tinha, que obrigou os physicos da
real camara a raparem-o á escovinha.
Foi n'esse estado de tonsura, desfigurando o aristocratico animal até o
ponto de o fazer confundir com um simples individuo de telhado, que um
dos vigilantes e zelozos camareiros de sua majestade, surprehendeu ha
dias o interessante enfermo no acto de tasquinhar na copa uma costelleta
destinada ao inviolavel almoço do monarcha. Ora todas as pessoas
versadas nas praticas da côrte, por mais perfunctoriamente que seja,
sabem muito bem que para todos os fins da etiqueta e da devoção ás reaes
pessoas, uma costelleta destinada á refeição do principe é absolutamente
a mesma coisa que seria o proprio principe, panado, e posto n'um prato
com uma rodella de limão em cima, tão real e perfeitamente como estaria
no solio com a sua corôa na cabeça e o seu sceptro em punho.
O camareiro pois, vendo seu augusto amo tão vil e perversamente
mordiscado por aquelle que Lambert escolhera para fins de certo mais
abstinentes e mais respeitosos, o camareiro--dizemos--acceso em zelo
pela inviolabilidade da real pessoa encarnada na especie eucharistica de
costelleta, foi pé ante pé, e, de surpreza, apoderando-se do inimigo
pela ponta da cauda, rejeitou-o por uma janella á distancia kilometrica
que em todas as monarchias solidamente constituidas deve sempre medear
entre o cheiro das saborosas costelletas dos principes e os appetites
caprichosos dos gatos das princezas. Bem feito!
* * * * *
Aquelle que com amargo fel traça estas linhas colericas, movido
unicamente pelo baixo despeito de não haver pechinchado n'um leilão um
espelho e dois bules, incorre d'est'arte para com a pessoa da augusta
soberana em um reprehensivel excesso de ira plebeia. Elle porem se
promtifica desde já a ser mais tarde, elle proprio, o primeiro a
reconhecel-o e a lamental-o.
* * * * *
Andámos tres dias sem poder entender bem qual a causa do conflicto entre
o governo de sua magestade e Monsenhor Masella, nuncio apostolico e
representante diplomatico de Sua Santidade em Lisboa.
O rancor de todo o jornalismo, empenhado na critica d'este incidente,
diluiu a historia d'elle n'uma tal quantidade de fel verboso que a
menção do facto perde-se inteiramente na onda biliosa dos commentarios.
Sahiram para este effeito do fundo do velho guardaroupa da rhetorica
liberal todos os atiributos empoeirados e carunchosos da indignação
classica, e mais uma vez vimos á luz do dia, expostas em andôr, como
n'uma procissão solemne, as reliquias venerandas de um stylo de guerra
que, desde o tempo ominoso dos Cabraes, suppunhamos definitivamente
morto, empalhado, camphorado e recolhido para sempre nas collecções
archeologicas.
* * * * *
«Portuguezes! descendentes d'aquellcs heroicos e sublimes martyres que
com tanto sangue implantaram e regaram n'este abençoado torrão a virente
arvore da liberdade, ergamos-nos todos como um só homem!--dizem as
folhas. Ergamo-nos, sem distincção de campo nem de facção, para sacudir
o jugo a que pretende fazer-nos dobrar a cerviz um falso discipulo do
augusto martyr do Golgotha, esquecendo que seu mister é todo de paz e
d'amor, renegando escandalosamente a doutrina amantissima do
Crucificado, calcando a pés os preceitos evangelicos do Redemptor.
Cessem n'este momento solemnissimo todas as divergencias que por ventura
hajam desunido a grande familia liberal! Unamo-nos todos em amplexo
fraternal para quebrarmos as algemas do fanatismo com que anhelam
arroxear-nos os pulsos! Unamo-nos para expulsar do templo sacrosanto de
Jesus o vendilhão infamissimo, para desafrontarmos, alfim, a religião de
nossos paes, a religião de nossas mães, a religião de nossas filhas, a
religião de nossas sobrinhas, de nossas tias, de nossas sogras, de
nossas primas, senhores, e de nossas cunhadas!--a nossa sublime
religião, finalmente, tal como ella é em sua excelsa pureza, que ora
vemos torpemente desvirtuada pelo proprio representante d'aquelle mesmo
Redemptor, cujas cinco chagas são o mais augusto emblema da bandeira da
nação portuguesa!»
* * * * *
Os jornaes d'hoje, os d'hontem e os d'antes de hontem veem cobertos
d'artigos do teor do pequeno extracto concentrado que temos a honra de
offerecer ao leitor como ligeira amostra do genero.
O periodico legitimista a _Nação_ foi o unico que ousou tomar a defesa
do odioso Nuncio, mas o _Diario da Manhã_ d'hoje agarra-se pelas orelhas
á _Nação_ e escaca-a com um d'estes artigos que inutilisam o adversario
por espaço de seis dias, porque é preciso andar a procurar-lhe os
bocados dispersos no raio de uma legoa em redondo para o tornar a pôr em
pé outra vez.
Imaginem que o _Diario da Manhã_, desde que começou a questão até hoje,
se tinha conservado silencioso, a ver correr o marfim. Eis senão quando
a _Nação,_ imprudente, se sae com um artigo insolito a dizer que os
unicos prelados portuguezes verdadeiramente no espirito de Deus são os
tres prelados de Angra, do Funchal e de Gôa.
Nós tínhamos lido o artigo da _Nação_ e confessamos mesmo que no
primeiro repente gostamos d'elle.
Comprehende-se, de resto, a nossa ingenuidade. Como a _Nação_ é
geralmente considerada o periodico que mais entende d'esta coisa de
bispos--especialidade em que somos completamente leigos--desde que ella
affirmou que os unicos bispos bons eram os d'Angra, do Funchal e de Gôa,
nós, na boa fé, appressámo-nos logo a tomar nota do documento, e cá
ficamos com mais essa informação devidamente registrada para algum dia
em que por acaso viessemos a ter precisão de bispos maus para nosso uso.
Mas o _Diario da Manhã_, o qual, pelo que se vê agora, é doutorado
n'esta materia, e conhece tão bem todos os bispos como nós outros
conhecemos os nossos dedos, o _Diario da Manhã_, que, segundo parece,
estava calado e á coca, exactamente á espera de que lhe bolisscm com os
bispos, apenas a _Nação_ disse que os unicos tres bispos com geito eram
os do Funchal, d'Angra e de Gôa, ah! pae do ceu!
Nada menos de cinco columnas na primeira pagina do jornal ocupa a
desanda tremenda applicada á _Nação_ pelo _Diario da Manhã_ d'hoje! E é
preciso lêl-a toda, de principio a fim, essa tunda, para ahi aprendermos
a tristissima verdade de que não póde um homem hoje em dia fiar-se em
ninguem.
Ficamos sabendo agora que os taes tres excelentissimos prelados com que
a _Nação_ nos queria espigar como afiançados, são precisamente os
peiores de todos!
Prelados bons, segundo o _Diario da Manhã_, prelados desenganados,
prelados que se podem dar a contento seja para onde fôr, restituindo-se
o seu importe caso não agradem, são o bispo de Coimbra, o bispo de Evora
e o arcebispo de Bragança.
O bispo de Coimbra, sim scnhores! fallem-me no bispo de Coimbra! isso é
que é fazenda.
Bispo de Bragança, bom bispo tambem: as ovelhas que o levarem irão tão
bem servidas como levando o de Coimbra, ou melhor.
O arcebispo d'Evora egualmente se lhes garante a todos os respeitos: é
gallinha!
Emquanto aos outros tres sujeitinhos recommendados da _Nação_ diz o
_Diario da Manhã_ que elles não são outra coisa senão os _soldados do
exercito das trevas_.
Tomo nota, e cá dou ordem que não estou em casa para nenhum d'esses tres
melros. Rua, que é a sala dos cães!
Para _soldados do exercito das trevas_ bastam-nos os persevejos,
escusa-se de bispos.
Supponham porém que o benemerito _Diario da Manhã_ nos não prevenia e
que eu, por exemplo, ovelha innocente posto que velha e mesmo já um
pouco pellada no lombo--abria o meu seio incauto aos persevejos ... quero
dizer, aos bispos ... da, _Nação_!... Que tal estava a rascada, heim?
E vamos agora nós a outra coisa, que nos está a lembrar.... Vamos nós
agora que o proprio _Diario da Manhã_....--Não queremos melindrar
ninguem, e pedimos ao _Diario da Manhã_ que o não leve a mal pelo amor
de Deus.... Perguntamos apenas uma coisa: o homem é infallivel? Não é.
Infallivel é unicamente o papa, o homem não. _Humanum est errare_...--
Vamos pois, como iamos dizendo, que o mesmo _Diario da Manhã_ não seja
tão forte em escolher os bispos como a Vicencia o é em escolher os
melões. Ha certeza absoluta de que este amavel confrade não possa
incorrer no mesmo erro grosseiro e lastimabilissimo em que cahiu a
_Nação?..._
Decididamente pedimos licença para ampliar um tanto mais as instrucções
que ha pouco demos á nossa cosinheira:
--Gertrudes! não estou em casa para bispo nenhum.
* * * * *
Todos os jornaes, exceptuada apenas a refalsada _Nação,_ pedem ao
governo que sem perda de tempo restitua as suas credenciaes ao nuncio.
O _Seculo_ vae mais longe e acreseenta ser preciso que ao nosso
representante junto ao Vaticano se enviem instrucções terminantes para
impedir que monsenhor Masella receba n'esta occasião o barrete
cardinalicio que lhe está promettido por Sua Santidade.
No _Seculo_, um jornal republicano e livre pensador, é talvez um pouco
estranhavel a pretensão de influir com o seu voto sobre o momento mais
propicio para cardinalisar Masella.
Se se tratasse simplesmente de cardinalisar um camarão--operação a que
se procede cosendo-o--o parecer do _Seculo_ junto da tia Pincha,
encarregada de lhe confeccionar uma salada de mariscos, seria até certo
ponto admissivel e opportuno. Mas quando é o papa Leão XIII e não a
propria tia Pincha que opera, cuida por ventura o _Seculo_ que a coisa é
a mesma, e que lhe basta bater na mesa com a ponteira da bengala para
que a Curia Romana lhe sirva um cardeal ou para que lh'o não sirva?...
Oh! não.
Para intervir na distribuição dos barretes cardinalicios o _Seculo_ tem
exactamente os mesmos direitos que assistem ao papa para influir na
distribuição dos barretes phrygios.
O partido republicano do Brazil impõe ás vezes solemnemente o barrete
symbolico da Republica aos seus membros mais illustres. Ainda ha pouco o
sympathico agitador Lopes Trovão recebeu no Rio de Janeiro, no momento
de partir para a Europa, essa honrosa investidura, sendo-lhe adjudicado
então um bello barrete, de luxo, bordado a ouro de lei, com galões e
borla de canotilho do mesmo vil e precioso metal.
Outro tanto--com algum ferro o dizemos mas sem canotilho algum--não
temos nós que agradecer á obzequiosidade da mocidade avançada e generosa
de Lisboa. O barrete phrygio do nosso uso pessoal, aquelle que nos cobre
a fronte invejosa nos dias em que embarcamos no Tejo para ir ao largo
pescar o pargo ou a abrotida, adquirimol-o na Ribeira Velha por oito
tostões e meio.
De lã e vermelho, do matiz radical denominado _rebenta-boi_, é com esse
barrete carregado á banda sobre um olho, com o monoculo expectante da
critica no outro olho, e com um nicker-bockar nas pernas, que o que
traça estas regras se presa de ter servido a causa, já sobre as aguas do
mar, já em terra firme, nas praias de banhos durante as estações
balnearias, fazendo ranger de despeito higlifico os dentes das
instuições caducas, representadas nas villegiaturas maritimas pela musa
do constitucionalismo D. Guimar Torresão, dama tão illustre em fins do
seculo XIX quanto o foi Rosalia por meiados do seculo XVII, segundo o
affirma o mui culto Doutor Jardim ... de S. Pedro d'Alcantara.
Se o _Seculo_ segue porém as boas praticas do republicanismo brazileiro,
presenteando alguma vez com barretes os personagens mais distinctos do
seu partido, que diria o _Seculo_ se, usando da reciprocidade de um
direito que elle proprio reconhece, Sua Santidade o Papa lhe viesse
dizer em tal conjuntura:
--Alto lá! não dêem isso a Trigueiros de Martel, que estou politico com
esse sujeito por uma partida que elle me fez. Colloquem antes o barrete
sobre a cabeça do martyr Gomes Leal, cabeça de genio e bem assim do
turco, cabeça até hoje inteiramente despremiada, não constando que até
agora tivesse ainda tido outra coisa, além da caspa propria, senão galos
e brechas feitas pelos socos monarchicos do inimigo.
* * * * *
Foi só no momento preciso a que escrevemos esta pagina depois de varios
dias de estudo retroactivo atravez das declamações da imprensa, que
emfim conseguimos--por um acaso--descobrir os elementos do conflicto
entre o governo portuguez e o representante de sua santidade em Lisboa.
Eis o caso:
* * * * *
Sua excellencia o nobre ministro da justiça, usando d'aquella apreciavel
franqueza que tanto agrada entre amigos verdadeiros e sinceros, mostrou
a Sua Eminencia o nuncio a lista dos novos bispos que o governo se
propunha nomear, pedindo ácerca d'elles a opinião do mesmo snr nuncio.
Sua Eminencia, usando por seu turno da mesma franqueza com que tão
benevolamente fora tratado pelo snr ministro, respondeu que achava
pessimos alguns dos bispos propostos.
--Como assim!?--volveu, acidulado e surpreso, o das justiças
humanas.--Como cavalheiro que me preso de ser, eu dirijo-me
amistosamente a Vossa Eminencia pedindo-lhe a sua opinião franca,
desassombrada e sincera, e Vossa Eminencia, em vez de me dar a opinião
que eu tão bisarramente lhe peço, dá-me pelo contrario a opinião
precisamente opposta á que eu tenho!?...
--Perdão...---interrompe o ecclesiastico--eu pensei que, desde que v.
ex.ª me consultava....
-Nada de sophismas, eminentissimo senhor!... Não me force Vossa
Eminencia a ser um pouco mais acre e a ter de accrescentar: nada de
cavilações! Não queira Vossa Eminencia levar-me ao desgosto acerbo de
ter de recordar-lhe, que Vossa Eminencia se acha, mercê de Deus, no
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