As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1882-11/12) - 1

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EÇA DE QUEIROZ--RAMALHO ORTIGÃO
AS FARPAS
_Chronica Mensal_
DA POLITICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES
QUARTA SERIE N.º 2
NOVEMBRO A DEZEMBRO 1882
Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder,
da escravidão dos partidos da veneração da rotina, do pedantismo das
sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da
politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande
universo, e da adoração de mim mesmo.
P.J. PROUDHON.


SUMMARIO

Congressos catholicos e ideias clericaes--Anjos e reprobos--As
influencias e eclesiasticas na sociedade portugueza--A egreja e as
mulheres--Os nossos padres, padre de missões, padre d'aldeia e padre de
sala--Os clubs e as sacristias--O jogo, a batota, o rei dos lusos e o
rei de copas, a rusga, a _vacca_--Doutor Jardim, sabio, e Rosalia, dama
illustre--Novas applicações da mobilia á critica litteraria--A moderna
arte portugueza e as escamas da corvina--O jornalismo em Braga--O
partido legitimista e a bandeira branca de Senna Freitas--Sampaio o
Saraiva de Carvalho--A augusta princeza anjo da caridade e do
bric-à-brac--Tragico fim de um gato d'esse anjo--Fausto e jocundo
desacato de s.ex.ª o ministro da justiça por s.em.ª o nuncio de sua
Santidade--A urna e a corveta Stephania--Os commendadores e os cães de
faiança---Milagrosa reapparição de Nossa Senhora Apparecida.
* * * * *
«Se Deus approva, que tenha a bondade de se deixar ficar sentado....
Está approvado.»
Tal é, resumidamente exposta, a commoda maneira de votar por meio da
qual não só o congresso catholico, reunido recentemente em Lisboa, mas
muitos dos concilios ecclesiasticos que precederam este, se mettem de
gorra parlamentar com os legisladores do ceu e constatam a approvação da
divindade ás deliberações tomadas pelos clerigos. Para esses
cavalheiros,--papas, bispos, conegos, simples padres d'enterro ou
sacristães--Deus é absolutamente a mesma coisa que é para o snr Fontes a
sua maioria regeneradora, o que quer dizer: uma entidade encarregada de,
assistir á apresentação dos decretos e de dar o sim.
* * * * *
Nos sermões de penitencia das nossas villas e aldeias o truque é o mesmo
que nos concilios, mas reforçado com um cordel.
O orador sacro, encarregado pela remuneração de 3$600 em dinheiro e um
prato de especiones com vinho fino, de refrescar para commodidade das
almas em cada uma das domingas da quaresma os ardores do purgatorio,
irrigando de eloquencia e de latinidade esse recinto de clarificação
espiritual, começa por pôr Deus no throno do altar mor, sob a figura do
Senhor dos Passos escondido atraz de uma cortina roxa, e dirige-se em
seguida para a cadeira da verdade, acompanhado de uma ponta do barbante
com que se ha de puxar a cortina. No final da predica, á peroração, o
ecclesiastico, depois de haver enxugado a um dos lenços estendidos sobre
o parapeito do pulpito os 3$600 de transpiração escorrida pela fronte e
pela região cervical, pega no cordel, volta-se para a cortina, faz uma
venia e diz:
«Senhor! se minha debil voz, eccoando n'este auditorio conspicuo, a cuja
frente diviso o veneravel vulto do illustre conselheiro d'estado
honorario, presidente d'esta benemerita irmandade,--se minha debil voz,
digo, conseguiu levar ao vosso coração amantissimo a convicção do
arrependimento em que se acham immersas as almas que ora vedes
prostradas a vossos pés, dignae-vos, Senhor, de apparecer para ouvirdes
nossos votos. Apparecei, Senhor! Porque não appareceis?!»
E por meio da bem conhecida e sempre efficaz figura de rhetorica
intitulada obsecração,--um dos mais arrojados e vehementes de todos os
tropos,--o orador, dirigindo-se sempre á cortina, com bola de mão para a
lacrimosidade dos fieis, faz sentir a estes por tabella que é mister que
elles solucem durante alguns minutos para que Deus lhes appareça, e lhes
perdoe. Os fieis então desatam em suspiros de corrente pranto, e o
ecclesiastico, acabando emfim por lhes dar Deus de presente, cae elle
mesmo prostrado de commoção e de espanto na borda do pulpito, como se
nunca em sua vida lhe houvesse apparecido um tão portentoso milagre como
esse de se correr a mesma cortina que occulta a imagem do Senhor dos
Passos, a que elle tem por officio puxar os cordeis em todas as
quaresmas, á razão de trinta e seis tostões por tarde, além do beberete.
* * * * *
Nos congressos dispensam de ordinario o barbante corroborativo da
oratoria sacra.
Apenas nomeada a mesa que tem de presidir aos debates, os clerigos
persignam-se, abancam, põem deante de si os rapés, e passam desde logo a
redigir a acta, dando como presente, entre as pessoas do clero, a do
divino Espirito Santo, representado sob a fórma de volatil symbolico e
para este effeito invisivel.
Emquanto a fazer approvar pela divindade dada como presente na acta,
tudo aquillo que elles se lembram de resolver em commum, consideram os
clerigos--e mui judiciosamente segundo se nos affigura--que é inutil
estar a puxar-lhe por guitas, tendo com Deus a mesma massada que se tem
com as marionettes.
N'esse presupposto o que os padres decidiram foi o seguinte:
«Sempre que Deus houver de regeitar alguma das nossas resoluções, que se
manifeste n'esse sentido. Não se manifestando, entende-se que está de
accordo.»
Com o quê, dão a palavra aos snrs membros que tenham que propôr coisas
para approvar.
* * * * *
Ora Deus, na sua qualidade de ser supremamente sabio, segue, como é
notorio, o systema habitual de não se manifestar nunca, quer seja para
approvar, quer seja para desapprovar aquillo que um maior ou menor
numero de padres, reunidos para esse effeito, determinem expor-lhe.
É claro que lhe não faltava agora mais nada, ao grande bom Deus, senão
sahir de toda a parte, onde dizem que está, para vir ali assim á capella
do Marquez de Castello Melhor, ou a qualquer outra, estabelecer dialogo
com o Padre Viegas ou com o Padre Garcia Diniz, para o fim de os
cumprimentar ou de os mandar á fava pelos seus discursos!
Succede por tanto que de todas as vezes que alguns sacerdotes, em folga
por falta de missas ou de enterramentos, se agregam a alguns seculares
mordidos pelo bicho carpinteiro do zêlo, e decidem juntos decretar mais
fervor á devoção das massas afim de que estas mandem dizer mais missas
ou se façam enterrar mais vezes, Deus, misericordioso e benigno, sorri
de indifferença ineffavel nas profundidades immaculadas do azul e deixa
o clero decretar, exactamente com a mesma longanimidade com que deixa a
herva crescer.
* * * * *
Não affirmaremos porém em absoluto que esta enorme frescata de
chinquilho, esta sem-cerimonia de bisca emparceirada com o Eterno pelos
sacerdotes, não possa uma ou outra vez offerecer alguns ligeiros
perigos, apertando-se de mais com o fiado.
Toda a familiaridade tem limites. Deus de quando em quando se pronuncia,
posto que indirectamente, no sentido de recordar essa discreta maxima
áquelles religiosos que abusam, dando-se ares de privar ainda mais com o
ceu do que privam com o proprio botequim do Martinho.
Ainda ha pouco no parlamento hispanhol se deu um facto proprio para
provocar em nosso espirito amargas conjecturas sobre os inconvenientes
de nos tornarmos nojosos á força de sermos nimiamente prolixos em
nossas intimidades com o Divino.
É de saber que o augusto pretendente D. Carlos, depois de haver
consumido nas roletas do exilio, com o bello sexo extrangeiro e em
devoções castelhanas, os bens da sua corôa, se achou reduzido ao mais
invejavel estado de pureza christã, não tendo de seu senão facturas de
fornecedores que pagar, a benção apostolica de Sua Santidade e o direito
divino.
Para sustentar esse direilo nas còrtes da nação hispanhola havia um
deputado especialmente incumbido de narrar á Peninsula tudo aquillo que
Deus continuava a fazer pelo mui catholico principe D. Carlos, desde que
D. Carlos, com a sua força desarmada e posta em penhor n'um banco de
Londres, deixara de fazer por Deus coisa que se visse suspensa por corda
no espaço,
Pois bem, o que ultimamente succedeu foi que: o deputado alludido, ao
principiar a usar da palavra para mais uma vez introduzir a divindade
n'uma falla aos de Castella, cahiu subitamente morto.
Os anjos haviam-o chamado ás alturas estendendo-lhe do empyreo o
ascensor de Jacob a que na terra damos o nome vulgar mas expressivo de
apoplexia.
Acontecem d'estas ás vezes!
Os fieis, a poder de mandarem os philosophos ao diabo, arriscam-se um
pouco a acabar como o hispanhol, fulminados repentinamente pelo
Altissimo, ao reconhecer-se que efectivamente não estão satisfeitos com
a marcha que modernamente teem tomado as coisas sobre a esphera
terrestre.
* * * * *
O mais vulgar porem, da parte de Deus, é a indifferença imperturbavel
pelo ardor, ainda o mais comichoso, d'aquelles que servem a sua egreja,
pondo-se de Deus á esquina para a gente e vibrando a religião como a
grande moca benzida com que atiram á testa de quantos andam a ganhar a
sua vida por este mundo, emquanto suas excellencias estão em folga
temporal nas sacristias, locupletando-se de bemaventurança futura e
d'hostias quotidianas.
Assim como nós outros fundamos camisarias ou estancos, fundam elles
agencias e sucursaes do ceu por sua conta, despachando os requerimentos
dos candidatos a anjos, designando em dias de juizo trimestraes, como os
exames de frequencia, os eleitos e os reprobos, e sentando desde logo
uns á mão direita e outros á mão esquerda do bem conhecido redactor
principal e leitor unico da _Nação,_ o snr Fernando Todo Pedroso.
* * * * *
Garibaldi, por exemplo, escusa de pensar em entrar jamais no ceu com a
sua famosa camisola, cujo vermelho ardente poria ao longo da Via Lactea
um rubôr d'aurora. Garibaldi que se aguente como puder nas profundidades
do inferno, pequeno de mais talvez para conter toda a paixão de
liberdade que encheu na terra o seu coração maldito. Elle levou uma fava
preta do Todo Pedroso snr Fernando, e S. Pedro está prevenido.
Os doze pescadores, que, á voz de Jesus fallando-lhes na montanba,
abandonaram as redes para levar palavras de consolação a todos os
opprimidos atravez do universo, não quereriam ao pé de si lá em cima
esse official do mesmo officio que tantas vezes abandonou a barca
amarrada ao rochedo de Caprera para ir com uma espada na mão arriscar a
pelle, não já para consolar, por meio de sermonarios, da liberdade
perdida, como nos apologos da biblia, mas para pôr definitivamente a
liberdade onde estava a oppressão. S. Paulo, que procedia
litterariamente, por meio de epistolas, como Madame de Sévigné, não
consentiria de boa mente que se puzesse ao lado da sua penna platonica a
espada cheia de bòccas de um companheiro que procurou como pôde lazer
por obras n'esta vida o que elle apenas prometteu em doces palavras para
a outra.---Assim o decidiram, pitadeando-se de commum accordo sobre o
caso, o reverendo Viegas e o reverendo Garcia Diniz, em conselho de
sacristia, sob a presidencia do Todo Pedroso.
* * * * *
O nobre conde de Santiago, pelo contrario, é recebido por aclamação, com
a sua chapeleira e o seu ripanso, no comboyo expresso, organisado por
estes senhores, do Passeio Publico para a Bemaventurança. Esse pieodoso
fidalgo está nomeado secretario do congresso catholico, o que lhe dá no
seio da christandade honras antecipadas de serafim. Com o privilegio de
redigir as actas do sagrado concilio o nobre conde acha-se
concomitantemente investido no direito de poder andar d'azas, desdo já,
por este mundo. Mais alguns mezes de fervor e de secretariado da parte
de s.ex.ª, e poderemos alimentar a esperança de o ver ainda atravessar
o Chiado como o atravessam os perus, isto é--em pennas. A natural
pudicicia de s.ex.ª lhe vedará porém talvez o circular entre os viventes
vestido unicamente com os espanadores dorsaes destinados ao convivio dos
cherubins no gallinheiro celeste.
* * * * *
O aspecto do recente congresso catholico do Passeio Publico (lado
occidental) tal como os noticiarios nol-o descrevem parece-nos de uma
pompa particularmente modesta, destinada, a não excitar represalias da
parte do snr. França Neto.
Meia duzia de padrecas, com as suas sobrecasacas dominicaes e os seus
chapeus altos anediados de novo para decoro das corôas subjacentes, mais
outros tantos seculares vestidos de preto e puxados á substancia do
panno fino pela benzina expurgante, postos todos em volta de uma meza a
assoarem-se uns para os outros com emphase, dão-nos menos a ideia de um
ajuntamento triumphante de convicções victoriosas do que o painel de um
simples ciprestal sentado,--com defluxo.
Alem de solicitar a benção apostolica, o congresso catholico de Lisboa
resumiu os seus trabalhos em duas unicas resoluções: fundar uma
universidade catholica e requerer dos poderes publicos que por meio da
sua policia elles façam respeitar nas ruas as pessoas dos
ecclesiasticos, presentemente apupados pela multidão, segundo elles
mesmos dizem, sempre que apparecem em publico revestidos de habitos
sacerdotaes. O que, a ser exacto, é precisamente a mesma coisa que
succedia em Paris ao padre Lacordaire no tempo da Restauração.
Notando-se que a Restauração foi de todos os governos em França aquelle
que mais protegeu o clero, fica-se em duvida sobre se a intervenção do
governo será o meio efficaz de garantir aos ecclesiasticos a deferencia
e o respeito, que ninguem jamais lhes recusa nos paizes de liberdade
religiosa, em que o Estado é atheu, como na America do Norte.
* * * * *
Se compararmos o espirito e o aspecto d'esta assembleia catholica com
algumas reuniões do mesmo genero celebradas na Europa durante o decurso
dos ultimos annos, somos obrigados a confessar que o prestigio do
sacerdocio decae de um modo sensibilisador.
No congresso belga, por exemplo, reunido em Malines no mez d'agosto de
1863, o numero dos adherentes era de 3:000. Na cathedral de
Saint-Rombaut, o cardeal-arcebispo Sterchx celebrou a missa solemne
d'abertura, depois da qual os membros do congresso seguiram em procissão
para a vasta sala das sessões, engrinaldada de festões de rosas e
empavesada de tropheus de todas as bandeiras da christandade como uma
enorme nau em triumpho. No topo do salão o estrado destinado á meza era
coberto por um docel de velludo carmesim franjado d'ouro sobre o qual se
destacava na doce pallidez do marfim uma imagem de Jesus cravado de
brilhantes na cruz d'ebano. Esveltos soldados da milicia papal, em
grande uniforme, de capacetes rutilantes e bigodes recurvos, fazem alas
lendo ao tiracollo as bandas symbolicas de seda branca e ouro. O alto
clero que vem tomar assento na assembleia passa em pompa, gravemente,
por cima do tapete de Smirna desenrolado ao longo da sala. Á frente, os
cardeaes com as suas purpuras roçagantes; depois os bispos inglezes, os
de Gand, de Tournay, de Namur, appoiados aos seus baculos, e os
sacerdotes do rito armenio, de grandes barbas, chapeus altos sem abas
com veus roxos, empunhando as suas longas bengalas de castão de ouro.
Foi no congresso de Malines que De Montalembert, o antigo collaborador
do abbade Lamennais, proferiu o seu monumental discurso sobre a egreja
livre no estado livre. De Montalembert acreditava ainda na possibilidade
de uma alliança entre o espirito ecclesiastico e o espirito scientifico
do mundo moderno, e o seu discurso é n'esse intuito um manifesto de uma
rara eloquencia apaixonada, profundamente convicta.
«Em toda a parte excepto na Belgica--disse elle--os catholicos são
inferiores aos seus adversarios na vida publica, porque os catholicos
não souberam ainda congrassar-se com a grande revolução que gerou a nova
sociedade, a moderna vida dos povos. Em presença da sociedade moderna os
catholicos sentem-se timidos e confusos; teem-lhe medo. Não aprenderam
por emquanto a conhecer, a amar a sociedade em que vivem. Muitos estão
ainda, pelo coração e pelo espirito, ligados ao antigo regimen, isto é,
a um systema que não admittia nem a egualdade civil, nem a liberdade
politica, nem a liberdade de consciencia. O antigo regimen tinha o seu
lado grande e bello; não pretendo julgal-o aqui, e muito menos pretendo
condemnal-o. Basta-me reconhecer-lhe um deffeito, mas esse capital: está
morto, e nunca mais resuscitará.»
Em seguida Montalembert demonstra que n'este seculo a egreja ou ha de
cessar de existir ou ha de viver na democracia e na liberdade. A egreja,
ou não tem mais que fazer no mundo, ou tem que contribuir ainda como nos
tempos que fizeram a gloria do seu passado, para a perfectibilidade do
espirito humano, intervindo no progresso pelo combate da livre razão
contra todas as usurpações, contra todos os privilegios, contra todas as
tyrannias exercidas sobre a inviolavel fraternidade humana.
A liberdade é uma só, unica, indivisivel e sagrada, expressa pelo
predominio dos poderes espirituaes sobre os poderes temporaes,
representada na parte dynamica pela sciencia, na parte statica pela
religião.
Na sciencia a liberdade consiste no direito de descobrir a verdade e de
a proclamar sem disfarce e sem restricção alguma como base das relações
do homem com o homem na independencia absoluta da revelação e da fé. Na
religião a liberdade consiste, como dizia Guizot, no direito que tem a
consciencia humana de não ser governada nas suas relações com Deus por
decretos ou por castigos humanos.
«Catholicos--disse Montalembert--se quereis a liberdade para vós,
entendei-o bem, é preciso que a queiraes egualmente para todos os homens
e debaixo de todos os ceus. Se a pedirdes para vós unicamente, não a
tereis nunca: dae-a em toda a parte onde fordes senhores para que vol-a
deem em toda a parte onde fordes escravos.»
Esta energica apologia da liberdade, enthusiasticamente applaudida,
levou o congresso de Malines a ridigir nos seguintes termos uma das
resoluções da assembleia: «É do interesse dos catholicos, assim como do
todos os cidadãos que sinceramente querem a liberdade, o substituir
quanto possivel a intervenção e a omnipotencia do estado pela energia
creadora e pelo principio expansivo do espirito de associação.»
* * * * *
Vejamos agora quaes foram os resultados praticos d'esse grande impulso
de eloquencia destinada a fazer entrar o catholicismo no movimento
liberal da moderna civilisação. Os destinos da egreja n'este fim do
seculo XIX estão profundamente ligados a esse facto culminante na
historia das ideias clericaes.
O que succedeu no congresso de Malines foi que os cardeaes e os bispos
abandonaram a reunião no dia immediato áquelle em que Montalembert
fizera o elogio da alliança da egreja catholica com a sciencia e com a
liberdade.
Compareceram apenas nas sessões subsequentes os membros obscuros do
baixo clero, os quaes movidos de um generoso impulso democratico
continuavam a applaudir Montalembert, não sem perguntarem a si mesmos
com certa inquietação o que se pensaria em Roma dos discursos e das
resoluções do congresso belga. A resposta não se fez esperar. Tres ou
quatro mezes depois Pio IX escrevia ao arcebispo de Munich uma carta, em
que pelo maneira mais formal censurava a audacia dos catholicos que
ousavam reunir-se em congressos para proclamarem por sua conta a
_liberdade da sciencia_.
Esta missiva, pouco terna para com os congressistas de Malines, não
obstou a que elles se reunissem ainda uma vez em agosto de 1864.
Montalembert não compareceu. Fallaram o padre Hyacinthe e o arcebispo
Dupanloup n'um sentido que, apesar de moderado, não pareceu
sufficientemente retrogrado a Sua Santidade. O papa respondeu ás utopias
liberaes do congresso com a publicação do _Syllabus_ e da encyclica
_Quanta cura_, cortando assim pela raiz e de uma vez para sempre toda a
illusão de um accordo entre o espirito ecclesiastico e o espirito da
civilisação.
Em presença d'esses factos, os congressistas de Malines tinham duas
resoluções que tomar: submetter-se e acceitar a doutrina da encyclica e
do syllabus, ou reagir e protestar. O primeiro caso era a retractação
vergonhosa de todos os principios affirmados e de todas as aspirações
manifestas no congresso; o segundo caso era a revolta e o schisma no
gremio da egreja.
N'esta conjunctura escabrosa o congresso preferiu dissolver-se.
Desde esse dia o destino do catholicismo ficou fixado.
Entre os interesses do clero e os interesses da civilisação ha uma
barreira que os proprios padres, ainda os mais instruidos e os mais
liberaes, julgaram impossivel transpôr.
* * * * *
Ora desde que não póde ser um alliado, o que está evidentemente
demonstrado, o padre é um inimigo. Para o combatermos a nossa primeira
obrigação é tomar conhecimento das forças de que elle dispõe para nos
prejudicar. Sobre este ponto a resolução tomada pelo congresso do
Passeio Publico de pedir a intervenção da policia civil para evitar que
o povo troce o clero, tranquilisa-nos satisfatoriamente.
Torquemada requerendo para a queima dos sacrilegos um lampejo
emprestado ao chifarote do habil Antunes é um symptoma doce. O
congresso propõe-se morder os impios com a condição de que os impios lhe
ponham as presas. É a S. Bartholomeu a troco de um dentista. Se os
querem ver cantar o côro dos punhaes, cedam-lhes o Vitry.
* * * * *
A unica coisa grave e perigosa para a sociedade, no congresso catholico
de Lisboa, é que, segundo parece, esse congresso foi divertido. As
senhoras pelo menos assim o entenderam concorrendo em grande numero a
todas as sessões.
Que attractivos especiaes tem a classe ecclesiastica para captivar assim
as adhesões da mulher?
Investigando este phenomeno, vemos em primero logar que ha em Portugal
tres especies distinctas de padres:--o padre das missões, o padre
d'aldeia e o padre de sala.
* * * * *
Os padres das missões subdividem-se em dois grupos differentes: os
aventureiros e os mysticos.
Os aventureiros viajam ordinariamente para a Africa por especulação
temporal, por amor á vida d'emigrante, á lavoura dos tropicos, ao lucro
mercantil, á intriga da politica colonial e á batota ultramarina. De
quando em quando, ao apparececrem-lhes á mão, arrebanhados, alguns
centos de pretos mansos e somnolentos, baptisam-os em massa,--cerimonia
tocante a que os pretos se submettem adormecidos como verdadeiros
justos, conscios por experiencias feitas de que essa operação, altamante
civilisadora posto que inoffensiva, os não torna nem mais nem menos
pretos do que elles são.
Os mysticos, mais raros, são pessoas doentes da hallucinação do
martyrio. A sua ambição suprema consiste em serem comidos ás fatias
fritas, com mandioca, pelas raças anthropophagas. Logo que se julgam
sufficientemente temperados com o latim preciso para excitar a gula
canibalesca e assaz tenros de carne pela vida de capoeira aos comedouros
dos seminarios, vestem-se com os trajes de D. Basilio no _Barbeiro de
Sevilha,_ mettem um breviario debaixo do braço e embarcam para regiões
inhospitas e selvagens.
Uma vez em communicação com os infieis, nunca mais cessam de lhes metter
o breviario em cruz entre a bocca e o prato, até conseguirem realisar a
sua aspiração suprema, que é não restar d'elles mais que uma batina e um
par de sapatos, deitados para debaixo da meza juntamente com as cascas
dos legumes, e dois canibaes a palitarem os dentes, e, a dizerem um para
o outro:
--Saboroso padre! benza-o Manipanso!
* * * * *
O padre d'aldeia é d'ordinario o melhor dos homens.
A sua rudeza montesinha colloca-o ao abrigo de todas as subtilezas
enervantes da penitencia requintada e dos pequenos peccados elegantes e
estonteadores.
As suas intimidades com a sã natureza dão-lhe o instincto de uma boa
religião alegre e repicada, com arcos de murta no adro tapetado de
espadanas, de funcho e de rosmaninho, na festa do orago, com morteiros á
missa cantada, n'uma vasta satisfação de cajados reluzentes, de
sapatorros novos nos rapazes, de barbas feitas nos velhos, e de mangas
arregaçadas, de linho branco e fresco, nas queijadeiras postadas em fila
no arraial.
Na quaresma conduz de sobrepeliz uma grave e, simples via-sacra á roda
da egreja, de cruzeiro em cruzeiro, até á grade do cemiterio.
Pelo Natal, ao terminar a missa da festa, toma do altar a ingenua e
rosada imagem de um pequeno Jesus rechonchudo, de refeguinhos nos
artelhos e nos pulsos, e ao som da gaita de folle, passeia-o sob um
chuveiro de beijos humidos e repenicados por entre as broas de pão
podre, os cabazes d'ovos e os casaes de capões, que atravancam a
passagem por entre os fieis ajoelhados na nave.
Nos dias ordinarios engrola a missa das almas ao romper do dia n'um
latim abreviado, mastigado á pressa, e vae podar as cepas, sachar o
cebolo, enxertar os limoeiros ou caçar as perdizes, palmilhando o monte,
saltando vallados, e regressando a casa ao toque das Ave-Marias, com os
perdigueiros adeante, a espingarda na bandoleira; dando as bôas noites
para a direita e para a esquerda ao atravessar a aldeia; batendo no
hombro aos homens, beliscando na cara as raparigas, com a boa
jovialidade carnal do seu velho confrade de Meudon o reverendo Rabelais.

* * * * *
O padre de sala grassa principalmente na aristocracia das cidades, cujas
casas frequenta por um resto de tradição antiga nas familias nobres,
onde o capellão era de rigor nos accessorios da _mise-en-scene,_ como o
boleeiro, o creado de farda e a preta.
As meninas nobres, que hoje lêem o _Figaro_ e os romances de Daudel, não
tomam completamente a serio essa reliquia heraldica. O padre da casa é
para ellas um simples utensilio de caracter profano, recreativo e
caturra. Troçam-o como um grotesco inoffensivo, e utilisam-o como um
serviçal de sexo neutro, collocado na serie zoologica da herilidade
entre a creada de quarto e o homem. Encarregam-o de certas compras
raciocinadas, que não sabe fazer um simples moço de recados sem o curso
dos seminarios.
É o padre que vae ao Seíxas buscar as lãs para bordar, segundo os
matizes da amostra, que leva o bracelete a compor ao Leitão, e o
_chignon_ para frisar ao Godefroy. É elle que acompanha ás lojas de dia
e ás visitas sem cerimonia á noite. Leva os agasalhos; ajuda a vestir os
paletots, ata os sapatos cujas fitas se deslaçam no caminho, e paga os
bilhetes do americano com dinheiro que se lhe fornece para isso.
Não está persistente n'uma só casa, como nas antigas capellanias. Anda
aos dias. Aos domingos vae jantar a casa das F., onde serve ao croquet
ou ao lawn-tennis no jardim, e onde marca as carambolas no bilhar á
noite. Ás segundas feiras chaperona a lição de desenho das meninas S. Ás
terças acompanha a viscondessinha de X ás suas devoções a S. Luiz e a
outros logares. Ás quintas dão-lhe chá preto e pão torrado com manteiga
para ir fazer perna ao wihst da velha baroneza de P.
Aos serões, em torno do candieiro, depois de despejado o saco das
mexeriquices que traz das casas d'onde vem, vê as gravuras das
Illustrações, ou dorme. As meninas procuram ás vezes arrancal-o ao
torpôr da sua digestão ou da sua ignorancia, ambas egualmente crassas:
--Padre José, esperte! não se faça ainda mais mono do que é; scintille
para ahi um boccado; tenha faisca, ainda que seja em latim, ou em canto
chão!
E perante o olhar d'elle, esbugalhado, vermelho, attonito, ellas, em
inglez, umas para as outras, picando o _crochet:_
--Cada vez mais bruto! uma lastima! um cumulo!
Quem precisa de padre e o não tem á mão, pede-o emprestado, como se pede
emprestado ao visinho um alicate ou um martello. Sophia, que está em
Cintra, escreve para Lisboa a uma amiga:
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