As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1878-02/05) - 4

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Na reunião do ultimo congresso dos obreiros de Lyon um simples operario
mechanico chamado Jacquemin, delegado de uma pequena aldeia da
Haute-Saône, expõe com uma concisão profundamente lucida as causas que
determinam a inferioridade mental dos trabalhadores do campo,
tornando-os mais proprios do que quaesquer outros para serem
escravisados pelos poderes clericaes.
Depois de semeado o campo pelo lavrador, um segundo trabalho estranho
aos esforços do obreiro começa lentamente a operar-se: os trigos
crescem. Crescem em virtude de que lei?
Tal é a pergunta que o lavrador faz a si proprio. Sabe-se como lhe
respondem aquelles que são encarregados de o instruir e de o educar. A
noção que elle recebe ácerca do modo como o trigo cresce torna-o
fatalista e como tal facilmente susceptivel de se deixar dominar e
embair. Qual é o meio de o emancipar? Jacquemin responde: O meio é
ministrar-lhe a cultura intellectual de que elle carece. E o orador
operario acrescenta:
«Faz-se geralmente crêr ao lavrador europeu que as suas sementeiras se
desenvolvem em resultado de uma força cuja paternidade vem de Isis, ou
de Osiris, divindades que deixaram de reinar. A vontade do Isis fazia
crescer n'outro tempo o trigo dos antigos egypcios. Agora é o deus de
Mahomet que reina no Egypto. O trigo, pela sua parte, continua a
amadurecer nas mesmas condições em que amadurecia n'outro tempo. A ruina
dos successivos templos e das successivas religiões em nada tem alterado
as leis da natureza. E todavia dá-se por toda a parte o mesmo estado de
coisas: O indio crê que Brama intervem nos seus campos de arroz. O chim
vê nos seus o grande Todo. Em outros sitios é Budha. Para os gregos e
para os romanos era Ceres. Para uma parte da Asia é o grande Lama. Na
Africa é a grande serpente, a grande cobra ou o grande espirito.
«Tudo isto tem naturalmente produzido diversas corporações de
sacerdotes. Dizei-lhes que se ponham de accordo uns com os outros? ...
Respondeis-me que é impossivel. É effectivamente impossivel, o que é de
certo uma desgraça! Esse porém é o facto historico, que não podemos
deixar de assignalar. Esse facto infunde uma grande tristeza, porque
sobre as questões que elle suscita tem sido derramado o sangue de muitas
gerações.
«É a guerra, é a guerra de religiões. É tempo de lhe pôr um termo. É
tempo de estabelecer em bases demonstradas e accessiveis a todos a
legislação humana e a moral universal.»
* * * * *
Em Portugal os homens e as mulheres das cidades, os homens e as mulheres
do campo acham-se inteiramente ao abrigo das suggestões de idéas e de
principios que possam inferir-se das eloquentes palavras de Tyndal e de
Jacquemin. Em Portugal todas as palavras que exprimem fortes e sinceras
convicções de sciencia ou de simples bom senso são consideradas
perigosas e banidas das discussões publicas.
Debalde a historia da civilisação ingleza n'este seculo nos demonstra
que a tolerancia absoluta na manifestação do pensamento é a primeira
garantia da ordem na sociedade, que a maxima latitude na controversia
das idéas mantem sempre os problemas dentro da esphera expeculativa,
evitando assim que a orbita das applicações praticas seja invadida pelos
principios que não foram d'ante mão sanccionadas na opinião e pelas
reformas que ella não exigiu em nome de novas necessidades provenientes
de um mais alto estado do espirito ou da consciencia publica. Tal é o
methodo que tem preservado a sociedade ingleza das perturbações graves
que a impaciencia dos reformadores, não experimentada na pedra de toque
de uma discussão liberrima, lançou na vida pratica de outras nações,
como succedeu em França depois do segundo imperio, que corrompia todos
os debates intellectuaes, e em Hispanha depois do reinado de Isabel, que
esmagava todas as tentativas publicas de livre raciocinio.
Em Portugal essa importante lição tem sido absolutamente esteril.
Quando as conferencias democraticas inauguradas na sala do Casino
mostraram uma ligeira tendencia para produzir idéas, o governo sem
nenhuma outra forma de processo supprimiu as conferencias.
Quando depois d'isso alguns individuos suspeitos de atheismo resolveram
manifestar posthumamente as suas idéas solicitando para os seus
cadaveres o enterro civil, o governo interveiu ainda, restringindo por
todos os meios ao seu alcance--meios tumultuarios, illegaes,
vexatorios--a vontade do atheu menos perigoso que se conhece,--o atheu
morto.
Se nas escolas superiores se encontram professores benemeritos que
expõem impunemente nas aulas das sciencias naturaes e das sciencias
physicas algumas doutrinas positivas, experimentaes, estando por esse
facto em desaccordo manifesto com os dogmas e com as concepções
theologicas impostas ao espirito pela carta constitucional da monarchia,
a impunidade d'esses professores, dizemos, não se deve attribuir á
tolerancia philosophica do poder. Ella é simplesmente o
resultado--n'este caso benefico--da indisciplina geral dos serviços
publicos.
Ha professores que affirmam principios scientificos, exactamente como ha
professores que manteem no espirito da mocidade os erros mais
vergonhosos e mais crassos alheios á doutrina dos programmas. Ha lentes
que estão acima da lei pela mesma razão que ha outros que estão abaixo
d'ella:--por falta de inspecção e de policia.
Um facto recente dá-nos a prova mais cabal de que o estado não é
solidario nos progressos scientificos da nação, e que estes se operam
não sob o favor ou sob a tolerancia dos governos, mas sim apezar da
intolerancia que elles assumem e dos meios correctivos de que elles se
armam.
Veja-se o modo como foi discutido e como foi emendado na camara dos
dignos pares o ultimo projecto de lei sobre a instrucção primaria!
Eis as palavras proferidas sobre este assumpto por um dos legisladores
mais moços e mais instruidos d'aquelle sabio congresso:
«_O sr. conde de Rio Maior_ (copiamos o extracto da sessão, publicado do
_Jornal do Commercio_), _não é adversario do desenvolvimento da
instrucção primaria, porque não deseja que continue a subsistir o estudo
de ignorancia do nosso povo, onde a proporção dos que sabem ler é de 1
para 25, emquanto na Allemanha, Hollanda, Belgica, etc., é de 1 para 6.
Mas não deseja que se vote o estabelecimento do ensino obrigatorio.
Prefere a liberdade do ensino, porque julga mais conveniente que os paes
tenham a liberdade de darem aos filhos o ensino que lhes parecer mais
proprio. Póde haver um individuo analphabeto mas que seja homem de ordem
e temente a Deus, que não queira mandar o seu filho a uma escola cujo
mestre ensine doutrinas perigosas. Lembra que nos tempos das nossas
maiores glorias, embora a instrucção estivesse pouco diffundida, a nação
portugueza attingiu um alto grau de prosperidade; não pretende dizer com
isto que deixe de se derramar a instrucção, porque tambem é apostolo
d'esta idéa, mas quer que essa instrucção seja ao mesmo tempo moral e
religiosa.»_
A affirmativa de que a nação portugueza attingiu um alto grau de
prosperidde no tempo das nossas maiores glorias, _embora a instrucção
estivesse pouco diffundida_, é um erro de historia que o nobre conde
quiz commetter de certo intencionalmente para o fim de nos persuadir que
não é pelo excesso de instrucção em s.ex.ª que a gloria e a prosperidade
deixaram de nos sorrir. O sr. conde de Rio Maior não podia realmente
ignorar que o periodo mais prospero e mais glorioso da nacionalidade
portugueza, o periodo das nossas conquistas e dos nossos descobrimentos,
foi tambem o periodo da nossa maior cultura intellectual.
Esse periodo principia com o advento da dynastia de Aviz. Se o sr. conde
quer achar a differença que distingue esse tempo do tempo actual,
compare o mestre de Avis com qualquer dos soberanos da casa de Bragança.
D. João I era ao mesmo tempo um cavalleiro, um phylosopho e um
litterato. Teve a honra de hospedar na sua côrte o grande pintor
Van-Dyck e edificou a Batalha, um monumento de arte mais efficaz elle só
para formar a educação esthetica de um povo do que dez universidades e
vinte academias. Hoje edifica-se a penitenciaria, e o ultimo dos
artistas celebres que recentemente veiu a Portugal, o illustre pintor
Palmarolli, hospedou-se em uma estalagem e apenas conheceu da côrte
portugueza um dos seus fidalgos, que o chamou da janella do seu palacio,
em Cascaes, para lhe comprar agulhas e alfinetes, por ter supposto, ao
vel-o passar com uma caixa de tintas, que era um bufarinheiro.
Dos filhos de D. João I um é o infante D. Duarte, o creador da primeira
bibliotheca que existiu em Portugal, o eximio litterato auctor do _Leal
Conselheiro_. Outro era o infante D. Pedro, o que viajou _as sete
partidas do mundo_, auctor da _Vertuosa Bemfeitoria_ e um dos homens
mais profundamente eruditos da Europa no seu tempo. Outro era D.
Fernando, o captivo de Fez, o que teve por secretario Fernão Lopes. O
ultimo finalmente e o maior era D. Henrique, o iniciador das nossas
navegações, o fundador da chamada _Escola de Sagres_, o mais poderoso, o
mais grave, o mais austero centro de estudo de que ainda foi objecto a
sciencia do ceo e a sciencia do mar. Hoje o infante de Portugal é o
senhor D. Augusto, conhecido de todos nós por o termos visto passar no
Chiado e conhecido tambem n'um hotel de Loudres, onde o principe se
hospedou juntamente com dois dos mais notaveis productos da arte
nacional, que o acompanháram e que fizeram grande impressão na City,
onde os tomáram por duas vaccas sem pernas. Eram os baús de sua alteza,
feitos na rua dos Correeiros.
Da escola de Sagres sairam Pedro Alvares Cabral, Vasco da Gama,
Bartholomeu Dias, Fernando de Magalhães, Diogo Cão, Pedro da Covilhã,
Gaspar Côrte Real, os mais intrepidos viajantes e os mais valorosos
exploradores. Foi da influenzia d'elles e dos sabios que o infante D.
Henrique e seus irmãos souberam attrair a Portugal, que procederam
escriptores como Fernão Lopes, Gomes Annes de Azurára, Gil Vicente, João
de Barros, Damião de Goes, Jeronymo Osorio, e Luiz de Camões, talvez o
mais instruido e o mais sabio de todos os grandes poetas. Das escolas de
hoje, a não ser por influencia de alguns professores precitos e
apostatas que commetteram o sacrilegio de se libertarem do jugo
official, saem apenas bachareis, que sabem quando muito bacharelar, e
que vão para administradores de concelho ou para amanuenses de
secretaria.
No tempo da nossa prosperidade e da nossa gloria o povo era extremamente
instruido. É certo que não sabia ler. Mas saber ler não constitue
propriamente instrucção, mas sim um dos meios de instrucção. Ora o povo
dispunha então de outros meios superiores á leitura. O marinheiro e o
soldado educavam-se nas grandes viagens, os operarios educavam-se na
confecção das mais bellas obras de arte, como o convento de Thomar, os
Jeronymos, as capellas imperfeitas da Batalha, a torre de Belem. O povo
de então não sabia ler os livros, mas sabia mais do que isso: sabia
fazel-os. Foi o povo que ditou as narrativas sublimes da _Historia
tragico maritima_, o mais admiravel, o mais bello, o mais dramatico, o
mais commovedor, o mais eloquente livro de que se póde gloriar a
litteratura de uma nação.
A isso chama o sr. conde de Rio Maior achar-se pouco diffundida a
instrucção! E conclue d'esse absurdo que um povo póde attingir a
prosperidade sem sair da estupidez! Apezar d'esta singular theoria e das
accumuladas contradições do seu texto, em que s. ex.ª ora é apostolo da
instrucção, ora é apostolo da coisa contraria, o sr. conde de Rio Maior
seria apenas inoffensivo. S. ex.ª, porém, conclue a sua notavel falla
mandando para a mesa o seguinte additamento á lei que se estava
discutindo:
_O professor ou professora que no exercicio do magisterio primario
ensinar ou inculcar doutrinas contrarias á religião catholica, á moral,
á liberdade e á independencia patria será demittido nos termos d'este
artigo, independente da acção criminal que deva ser intentada. Os paes,
tutores ou pessoas encarregadas da sustentação e educação das creanças
podem requerer collectivamente ou individualmante contra o professor ou
professora que tiver commettido as faltas indicadas n'este artigo_.
Eis ahi o que se não admitte, porque esta disposição legislativa
proposta por s. ex.ª produz a fixação legal dos seus principios a
respeito da instrucção, isto é: que deve haver instrucção e ao mesmo
tempo que a não deve haver. Não é outra coisa senão eliminar a
instrucção, depois de a ter decretado, o submettel-a por lei, sob pena
de processo e demissão immediata do professor, aos principios da
religião catholica. A Igreja abriu, n'este seculo principalmente, um tão
profundo abysmo entre a concepção theologica e a explicação scientifica
dos phenomenos do universo, que toda a conciliação é hoje impossivel
entre o mestre e o padre. Não duvidamos que o christianismo possa ainda
reassumir o seu antigo papel de sanccionador supremo de todas as grandes
e definitivas conquistas do entendimento humano. O que é certo porém é
que a direcção reaccionaria que elle tem recebido do pontificado romano
desde a Reforma até hoje o inhabilita presentemente para realisar essa
aspiração de todas as almas piedosas. Ou o Estado sustenta o padre ou
sustenta o mestre. Constituir-se o defensor simultaneo d'esses dois
interesses oppostos é impossivel. Pedimos licença ao sr. conde do Rio
Maior para lh'o provar.
Supponhamos que o alumno pergunta ao seu professor o que é o diluvio
universal, que lhe pergunta qual é a idade da terra, que lhe pergunta o
que é o homem pre-historico, o que são as florestas carboniferas, o que
é o arco-iris, o que é o pára-raios, o que é transformação das especies,
o que é a Torre de Babel, o que é o Eden; supponhamos que o alumno faz
ao mestre qualquer das centenares perguntas d'este genero faceis de
formular ácerca das affirmações da Biblia ou dos conhecimentos do homem.
A essas perguntas o mestre não póde responder senão com o erro ou com a
heresia. O sr. conde de Rio Maior e os dignos pares que adoptáram a sua
emenda á lei da reforma da instrucção portugueza desejam que o mestre
responda pelo erro.
Mas isto é peior do que pôr de parte a sciencia; isto é, recebel-a para
a contradizer e para a destruir; isto é converter a ignorancia publica
em uma instituição do Estado.
Diderot conta o caso do homem que procurava o seu caminho, á luz de uma
lanterna, no meio da espessura tenebrosa de uma floresta. Alguem
disse-lhe: Queres saber o meio de achar o caminho? eu t'o ensino ... E
apagou-lhe a lanterna.
Quem foi que deixou no mundo esta lição?
Foi o theologo.
Um povo ignorante é um povo em trevas, cuja lanterna é a instrucção. O
legislador portuguez que tomou o encargo de apagar a luz é o sr. conde
de Rio Maior.
* * * * *
Notemos porém um facto consolador:
O sr. conde de Rio Maior attesta sobre os theologos que o precederam uma
sensivel diminuição de força. Elle mostra o ardor arrefecido e impotente
de um velho sangue que se decompõe e se dessora. A idéa que elle tem no
cerebro é uma idéa que se extingue.
Ha cem annos s. ex.ª teria proposto o carcere, a tortura, a fogueira,
para o mesmo crime para que hoje pede apenas, gaguejadamente, a demissão
do professor e o processo pelos tribunaes civis.
Inclinemo-nos diante de tão manifesta mansidão!
Nos fins do seculo XVI o _pendão da santa doutrina_, um lugubre pendão
negro, era levado pelas ruas de Lisboa, ao toque de uma campainha, por
fr. Ignacio de Azevedo. Fr. Ignacio era então o professor idealisado
pelo sr. conde de Rio Maior:_era o homem de ordem, temente a Deus_,
argumentando a doutrina christã a este povo. Todas as mulheres e todas
as creanças saiam ás portas a ajoelhar, sobre as immundicies, aos pés do
tenebroso frade, que levava comsigo a sciencia ecclesiastica,
amortalhada de negro, de cruz alçada, tangendo uma campainha, como quem
leva um morto. Fr. Ignacio invadia as casas particulares, invadia os
pateos da comedia, expulsava os comediantes, e subia elle mesmo ao
tablado a explicar os differentes modos porque se pecca e os diversos
methodos porque se mortificam os impetos da carne.
Ainda no seculo passado Pina Manique obrigava os professores a levarem
os estudantes á missa, do que colhiam nas sacristias uma certidão sobre
a qual se pagavam mensalmente os respectivos ordenados.
Hoje a parte disciplinar da nossa educação religiosa caiu com o pendão
negro da santa doutrina. Resta a parte doutrinária, resta apenas a
cartilha de Padre Mestre Ignacio.
E é sobre essa cartilha solitária, em torno da qual caíram dissolvidas a
uma por uma todas as energias sociaes que a mantinham na altura de uma
instituição civil, é sobre a cartilha do Padre Mestre Ignacio, que um
sabio legislador portuguez acompanhado de varios outros legisladores
portuguezes egualmente sabios, procura reconstituir no anno de 1878 o
ensino publico de uma nação!
* * * * *
Voltaire tinha uma prece fervorosa, que as _Farpas_ não cessam de elevar
aos céus em todas as manhãs e em todas as tardes:
_Meu Deus, tornae ridículos os nossos inimigos!_
O modo como foi discutida na camara dos dignos pares a reforma da
instrucção indica-nos que podemos por um momento deixar de repetir essa
oração. Aproveitamos a pausa para ir a Paris accender, em nome das
_Farpas_, um círio a Voltaire. Deus Nosso Senhor ouviu-o!

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