As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1878-02/05) - 3

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Mas pelo Deus da sua convivencia habitual, pelo pobre Deus de gesso do
seu _bènitier_ barato; pelo Deus da procissão do Carmo e da procissão da
Saude, servido por padres barrigudos e oleosos, com as voltas sujas,
arrotando mofetos atraz dos andores; por esse Deus um tanto caturra, um
tanto carola, pelo Deus da Baixa em fim, ella não tem senão duvida ou
desdem.
Na moral as suas convicções baseiam-se em uma serie de principios
theoricos, que ella viu sempre ou quasi sempre refutadas por uma serie
contradictoria de interesses praticos, tirando esta conclusão: que o
dever consiste na mais habil combinação que se possa fazer d'essas
theorias e d'esses interesses para o fim de chegar a este ultimo
resultado, ao qual tendem solidariamente todas as fraquezas das
sociedades corruptas:--o socego.
Aos dezessete ou dezoito annos ella entra no mundo, isto é, principia a
ir aos bailes, a frequentar o theatro, a ler romances, a conversar com
os homens. Percebe então vagamente que ha em alguma outra parte, n'outra
região social, em outro bairro ou em outro paiz talvez, um mundo diverso
do seu pequeno mundo insipido, ordinario, estupido: que nem todas as
raparigas vivem como ella, pura boneca, no interesse exclusivo da moda e
da _toilette_; com uma cabeça ôca; n'um quarto que não cheira bem; tendo
um pae, automato de secretaria, de carteira ou de balcão, que pensa pela
cabeça de um jornal barato e mal feito, e uma mãe que se enfastia
medonhamente na sua bata e na sua ociosidade de cerebro, em revolta
cntra o destroço dos annos e contra o preço crescente dos generos
alimenticios, ralhando habitualmente com as criadas, ralhando com o
aguadeiro, ralhando com o marido.
Principia então a causar-lhe um tedio profundo, nauseante, a sua vida
domestica: a casa de aluguel de que muda de anno em anno; o seu pequeno
quarto sem tradições, sem historia, como o de uma estalagem; o saguão
infecto, onde zumbem no verão as grandes moscas gordas e pesadas; a
cozinha escura como uma exovia, deixando pender em esphacelamento as
caçarolas gordurosas e as louças esbotenadas; a sala pretenciosa e
inutil com os moveis angulosos e perfilados, o tapete com dois cavallos
arabes defronte do sofá, a lythographia da mulher que sorri, o album dos
retratos dos parentes com o seu ar endomingueirado e palerma, as flores
de papel, as missangas, e o globo de vidro azul pendente de um cordão no
meio dos cortinados.
Ella tem um secreto ideal de grande elegancia, de alta distincção
decorativa, o que quer que seja de superfino, de requintado, de exotico,
similhante ao que viu no theatro ou ao que leu em um romance de
Feuillet. E julga-se superior, predestinada para uma existencia mais
nobre, incomprehendida no seu meio, que a envergonha. E nunca se refere
á sua vida intima sem mentir. Mente ridiculamente a respeito das coisas
mais simples, mais triviaes, e é para se dar um aspecto superior, para
se encobrir do que é, que ella assim mente. Mente do modo mais miseravel
a respeito dos criados que não tem, das visitas que não faz, da opera
que não viu, dos livros que não lê, da modista a que não vae, dos banhos
que não toma, dos jantares que não come, das dignidades, das distincções
ou do luxo que não usa.
Casada, procura finalmente realisar os seus sonhos de leitora de
romances e de frequentadora dos dramas do theatro de D. Maria. Mas não
lhe sae o que quer: não sabe organisar aprazivelmente a casa, não sabe
tornar encantadora a familia.
Humilhada, infeliz, começa a descorçoar a pouco e pouco da sua
predestinação superior. Sente que ha na sua constituição moral uma falha
da qual resulta o desequilibrio dos seus actos com as suas aspirações.
Não se acha firme na posse da existencia. Falta-lhe essa tranquilla e
serena harmonia que se chama a perfeita dignidade e que é o resultado da
perfeita educação.
Se n'esse estado de espirito um homem que ella tenha por eminentemente
superior a notar e a seguir, por pouco que esse homem conheça o facil
processo de revigorar uma abatida vaidade romantica, ella cairá com uma
simplicidade tragica.
O homem superior, segundo o criterio da mulher em taes condições, é o
dandy. Porque o dandysmo é a unica fórma sob a qual a distincção se lhe
apresenta como uma coisa perceptivel. O cerebro mais provido do nobres
pensamentos terá para ella menos seducções do que uma cabeça bem
penteada, de cabellos espessos, annellados, separados nitidamente por
uma fina risca côr de rosa, perfumada de fresco. Nenhum encanto de
espirito, nenhuma delicadeza de coração, nenhuma virtude de caracter
exercerá sobre a imaginaçãoo d'ella a fascinação com que a subjuga a
alta elegancia authenticada aos seus olhos pelo crevetismo precioso. O
seu homem superior, o seu homem irresistivel, o seu homem fatal, será
aquelle que usar no seu banho a mais fina perfumaria, o que houver
jantado nos mais celebres restaurantes do _boulevard_, o que se vestir e
se calçar nos primeiros fornecedores da Europa, o que mais se tiver
desgastado do musculos e do cerebro nos altos vicios, o que mais
segredos tiver para contar das suas intimidades no mundo especial cujas
mulheres consomem por dia cem ou duzentos luizes em _foie gras_, em
_Champagne Clicot_, e em _Cold-creame_.
Se um tal homem, seccado, aborrecido, verdadeiramente estoirado nos
refinamentos da sensualidade, habituado a raspar os seus sapatos nos
tapetes de Smyrna dos _boudoirs_ forrados de setim, envoltos em renda de
França, mobilados de sandalo fosco esculpido, cheirando ás penetrantes
essencias de Lubin e á febre mal dissipada das devoradoras noitadas; se
um tal homem, dizemos, se ajoelhar um dia aos pés d'ella, para lhe dizer
obscenidades ao ouvido, as mesmas obscenidades que dizia ás outras,
_amando-a_ finalmente, amando-a elle, apezar do que ella considera as
suas inferioridades: apezar das suas meias com uma passagem, apezar do
seu joelho desformado pela falta de circulação proveniente de um defeito
caracteristico da sua raça, o defeito de não saber atar as ligas; apezar
ainda do seu quarto cheirando a pia, dos seus sapatos mal feitos, do seu
espartilho barato, da sua _toilette_ da Baixa, da sua pomada de botica e
do seu halito de dyspeptica denunciando um pouco a cebola do refogado
nacional ... Se, apezar de tudo isso, tão desdenhoso, tão frio, tão
gloriosamente corrupto, traçando a perna, descobrindo desleixadamente as
suas meias de seda bordadas, torcendo no dedo os seus anneis inglezes,
encasando no olho o seu monoculo, aproximando n'uma intimidade
attenciosa e benevola as scintillações do seu correcto _plastron_ de
Poole, e as exhalações frescas e aromaticas do seu bigode e do seu
cabello frisado á Capoul, elle souber pedir, ella pela sua parte não
saberá negar.
* * * * *
Tal é o caso de pathologia social, caso profundamente verdadeiro,
medonho, tragico, sobre o qual Eça de Queiroz escreveu _O Primo
Bazilio_, romance realista.
Realista porque? Por isso mesmo que exprime uma convicção social, e é
esse o caracteristico essencial da arte moderna. O romantismo não tinha
senão convicções esteticas, e satisfazia assim as necessidades de
espirito da sociedade que fez a Revolução, que caiu no Imperio, que
supportou as guerras de Bonaparte, e cujos cerebros não pediam á arte de
1830 senão uma coisa: serem acalmados e adormecidos. Os poetas então
cultivaram o idyllio amoroso e fizeram poemas dos seus proprios estados
de espirito; os romancistas e os dramaturgos inspiraram-se nas tradições
gothicas da edade media e fizeram uma restauração litteraria e burgueza
da cavallaria. De resto, nos artistas romanticos, perfeita emmancipação
da forma mais profunda indifferença pela questões sociaes do seu tempo.
Elles foram successivamente ou cumulativamente catholicos, pantheistas,
atheus, monarchicos, realistas, imperialistas, republicanos, scepticos,
phylanthropos.
A sociedade actual deixou de ser uma sociedade que repousa. É uma
sociedade que se reconstitue inteiramente e profundamente desde todas os
pontos da sua peripheria até as mais reconditas intimidades do seu ser.
Esta reconstituição não se está fazendo empyricamente pela revolução ou
pela sentimentalidade, está-se fazendo scientificamente pela
convergencia harmonica de todos os esforços intellectuaes sobre o mesmo
problema. Comprehendeu-se que são solidarios todos os estudos, os do
mundo inorganico e os do mundo organico; que são correlativas todas as
leis desde a da indestructibilidade da materia até a da evolução social;
que finalmente se não póde chegar ao conhecimento positivo de nenhum
phenomeno, quer da natureza, quer da sociedade, sem conhecer
integralmente a serie ou a sequencia de series em que elle é o elo que
prende um phenomeno anterior a um phenomeno subsequente.
N'esta liga de todos os espiritos para um fim commum, liga tão estreita,
que cada nova lei, cada nova theoria, cada nova hypothese em qualquer
dos ramos da sciencia se reflecte na direcção de todo o trabalho mental
em qualquer das suas manifestações, dando por exemplo a theoria
zoologica da adaptação ao meio um methodo novo na critica,--n'esta liga,
dizemos, a arte não póde deixar de ter um papel diverso do que tinha ha
trinta annos. Esse papel é-lhe imposto fatalmente pela nova orientação
mental da sociedade. A arte moderna não póde já hoje basear-se em
risonhas conjecturas abstractas, tem de assentar, para que nos interesse
e para que tenha a importancia de um agente da civilisação, em factos de
caracter scientifico, isto é: em factos que sejam a funcção de leis
sociologicas. Queremos factos, não queremos exclamações: _Res non
verba_.
Foi da palavra _res_, tomada precisamente n'essa accepção litteral, que
se tirou a designação _realismo_.
Chamar realismo ao que é puramente grosseiro, ao que é descarado, ao que
é torpe, é calumniar o dogma. Uma obra de arte póde conter o maximo
numero de torpezas e de obscenidades e não deixar por isso de ser
simplesmente lyrica.
O _Primo Basilio_ é um romance realista porque é a representação de um
facto social visto atravez de uma convicção scientifica. Luiza, a amante
do primo Basilio, é a personificação tremenda da tendencia morbida de
uma epoca. E é n'isso que consiste a alta moralidade do livro. O ser
Luiza _castigada_ (para nos servirmos da velha formula que via a moral
dos livros no premio que n'elles se concedia á virtude e no castigo com
que n'elles se fulminava o vicio), o ser castigada por meio de uma morte
afflictiva é um facto accessorio, que não conteria senão esta moral
negativa, se d'elle se quizesse extrair uma moral:--que para evitar a
morte por desgosto se deve attender no adulterio a que se queimem as
cartas.
A moral d'este livro não está em que a prima de Basilio morre depois da
queda; está em que ella--_não podia deixar de cair_.
Reconhecemos que esta moral é pouco accessivel á maior parte das
comprehensões. Esse é o grande mal do livro, ou antes esse é o grande
mal da litteratura de que o livro faz parte. O _Primo Basilio_ suppõe um
estado de civilisação artistica e litteraria superior á que existe na
sociedade portugueza. Suppõe manifestações parallelas nas applicações da
philosophia, na moral, na arte da pintura, na arte das construcções, na
hygiene, na politica, na pedagogia, na critica das instituições, na
critica dos costumes, na propria critica da arte.
Ora essas manifestações não existem por emquanto n'um estado de
vulgarisação que determine uma corrente harmonica no sentido a que se
dirige a arte tal como a comprehende, do modo mais elevado, o auctor do
_Primo Basilio_. A sociedade portugueza não comprehendeu ainda de um
modo collectivo e solidario, que é urgentemente indispensavel por todas
as manifestações do pensamento proceder á reconstituição da educação
burgueza.
De sorte que o dizer-se, como n'esse livro, á mulher nossa
contemporanea: «Eis--aqui está o modo pavorosamente simples como tu te
rendes da maneira mais ignobil ao mais ignobil dos homens»,--parece um
insulto áquellas que são as nossas amigas, algumas d'ellas as nossas
companheiras de trabalho, as nossas mães, as nossas irmãs, as nossas
filhas. Essa affirmação, porém, deixaria de ter um caracter
apparentemente aggressivo se o artista podesse accrescentar:
«Eu não sou um homem isolado no meio da sociedade a que pertenço. Sou
uma parte d'essa legião de trabalhadores dedicados, profundamente
honestos, que se sentem impellidos na obscuridade do seu estudo por esta
ambição heroica:--tornar o mundo mas bello e a humanidade mais digna. Na
minha qualidade de artista, a ti mulher que me lês, o mais que eu posso
fazer é commover-te de um modo profundo, levantando para esse fim o
problema que mais directamente prende com o que ha em ti mais sagrado,
com a tua castidade, com a tua honra. O amor clandestino, que a arte
romantica personificava aos teus olhos em figuras apaixonadas, de um
alto vigor dramatico, de um relevo fascinante, offereço-t'o eu tal como
elle hoje te ha de apparecer na vida real, na pessoa de um biltre
asqueroso, bem vestido, correcto, pelintra no fundo, meio principe e
meio forçado das galés, friamente calculador, sovina, absolutamente
pôdre. E é esse o homem que tu, pobre rapariga honesta, de preconceito
em preconceito, de erro em erro, és trazida, atravez de todos os
elementos que constituem a falsa educação que te deram, a admirar e a
proferir sobre todos. Se na sociedade a que tu pertences e a que eu
pertenço ha uma religião, se ha uma politica, uma moral, uma sciencia,
um jornalismo, uma critica, todos esses poderes mentaes harmonicamente e
convergentemente estarão n'este momento--no momento em que eu tenho a
concepção artistica do _Primo Basilio_--actuando sobre todas as
influencias que te rodeiam para o fim de te darem da vida domestica, do
amor, da familia, da dignidade, do dever, uma comprehensão nova, assento
em factos verificaveis, geometrica, positiva, inabalavel. Á religião
compete elevar e fortalecer positivamente a tua consciencia ou
demittir-se da solução do teu problema. Á politica, emprehender a
reforma das instituições em vista do teu aperfeiçoamente. Á moral,
fazer-te comprehender a noção da justiça. Á sciencia, o determinar com a
maior clareza as leis eternas do teu destino. Ao jornalismo, o fazer a
applicação d'essas leis aos phenomenos sociaes de cada dia. Á critica,
finalmente, o explicar-te a minha obra. A mim, porém, não me competia
como artista senão uma coisa: depois de conceber espontaneamente a minha
these, fazel-a viver na maxima elevação esthetica: porque meio? por meio
da mais perfeita fórma que pode attingir a arte. Foi o que eu fiz.»
Se com a natureza essencialmente artistica de Eça do Queiroz fosse
compativel a humildade de uma explicação n'essas bases, o seu livro
teria no leitor uma influencia de muito maior alcance moral. Mas um
artista tem a obrigação de se não explicar,--o que seria invadir uma
funcção alheia na justa divisão do trabalho intellectual moderno. Ha um
gosto publico do qual precede uma critica official, assim como ha uma
religião do Estado da qual procede uma hypocrisia publica. Ora assim
como o philosopho deve ser indifferente á theologia, o artista deve ser
indifferente á opinião. Mas esta independencia da philosophia e da arte,
se por um lado é a condição essencial da sua missão perante a pura arte
e perante a pura philosophia, por outro lado ella é a principal causa de
ficarem por muitas vezes addiados os mais importantes problemas perante
a comprehensão dos espiritos e a satisfação das consciencias.
Taes foram as razões porque--ao terminar ha mez e meio a leitura do
_Primo Bazilio_,--uma tão perfeita obra, que a consideramos como sendo
uma d'aquellas que mais honram a humanidade e de que mais se deve
gloriar uma litteratura--nós fizemos esta prophecia: Que este livro
seria como um d'esses complicados instrumentos mechanicos destinados á
observação dos mais delicados phenomenos da chimica, da optica ou da
biologia, instrumentos inuteis--ás vezes perigosos--para todo aquelle
que não tem a sciencia de os pôr em exercicio e de ver por elles a
divina revelação de um novo mundo.

* * * * *

O _Diario Illustrado_, publicando o retrato e a biographia do sr.
Osborne Sampaio, tece-lhe o seguinte elogio:
«Conta-se que estando ha dois annos em Cauterets, chegou um dia, depois
de jantar, a uma janella e lembrando-se do admiravel panorama que se
desfructa da sua casa de Lisboa, uma das melhor situadas,
exclamou:--Quem me dera já na minha casa do pateo do Pimenta!»
* * * * *
O _Diario Illustrado_ não ousa affirmar de um modo terminante que o sr.
Sampaio tivesse effectivamente proferido aquellas memoraveis palavras; o
_Diario Illustrado_ diz apenas: _Conta-se ..._
Ora este caso não se póde deixar assim envolvido na duvida. São
historicas as palavras do sr. Sampaio ou são puramente uma legenda das
montanhas, inventada pela imaginação supersticiosa dos pastores dos
carneiros negros, ou pela tagarelice anecdotica dos mercadores da feira
de Tarbes? Póde o _Diario Illustrado_ firmar com a sua palavra de honra
a authenticidade d'aquellas expressões? Foi effectivamente o sr. Sampaio
que as proferiu? Interroguemos gravemente as nossas reminiscencias! ...
Não seria antes algum dos outros heroes já celebres na historia da
cordilheira dos Pyreneus? Não seria o paladino Rolando, sobrinho de
Carlos Magno, marido de Alda a Bella, o que antes de morrer quebrou a
Durindana na batalha de Roncesvalles? Não seria o proprio Carlos Magno?
Não seria Sancho o Encerrado, ou seu genro Theobaldo, conde de
Champagne? Não seria Plantade, o Astronomo, que morreu em extase diante
da belleza da paizagem, entre os valles de Baréges e de Bagnère?
Está o _Diario Illustrado_ no caso de sustentar, debaixo de jura, por
tudo quanto ha para elle mais sagrado, com a dextra sobre a cabeça do
sr. Carvalho Ratado, que foi indubitativamente o sr. Osborne Sampaio
quem, depois de jantar, à janella da hospedaria, palitando talvez os
dentes, na casta simplicidade dos grandes heroismos, enunciou aquelles
dizeres?
Esperamos, tranquillos mas resolutos, a resposta de _Diario Illustrado_.
Porque, se se chegar a confirmar irrevocavelmente que existe, com
effeito, no nosso seculo e em um dos nossos pateos, um homem assás
convicto em suas crenças, assás profundo em suas vistas e assás firme em
suas resoluções, para ter dito um dia, de tarde, ao acabar de
jantar:--_Quem me dera já na minha casa do pateo do Pimenta_--; se tal
phrase não é uma ficção, se ella existe realmente fóra do estado
abstracto de suspeita destituida de fundamento,--o paiz não póde cruzar
os braços, inerte. Seria indigno, porque nunca palavra tão lucida como a
que o _Illustrado_ cita marcou a differença, toda favoravel á nossa
patria, que distingue os Pyreneus e o Ferregial de Baixo!

* * * * *

Os regulamentos disciplinares da universidade de Coimbra teem dado
ultimamente em resultado riscar um avultado numero de estudantes pelos
seguites delictos, cada um dos quaes foi objecto de um processo
especial:
1.º Rir atraz da procissão dos Passos.
2.º Ser testemunha de um duello abortado, proposto a um professor por um
viajante.
3.º Não ter dado pateada a um lente.
4.º Parecer constrangido a dar lição.
5.º Jogar o pugilato com um ou mais futricas nas ruas de Coimbra.
* * * * *
Os alumos condemnados pela perpetração dos delictos 1, 2, 3 e 4
appellaram para o Poder Moderador, o qual lhes commutou a pena de
expulsão temporaria em alguns dias de cadeia.
Procedendo d'essa forma o Poder Moderador não tomou em consideraçãoa
necessidade de fazer proceder á revisão da legislação academica. O Poder
teve apenas em vista o _desgosto_ infligido pela sanção dos regulamentos
universitarios ás familias dos alumnos condemnados:--No que o Poder
mostrou ter um coração do excellente rapaz alliado a um cerebro de
legislador mediocre.
* * * * *
Está pendente da confirmação regia, segundo nos consta, a pena imposta
aos reus do crime n.º 5, julgados já segundo o direito commum e
absolvidos pelos tribunaes civis.
N'esta conjunctura perguntamos:
É admissivel que sobre o mesmo facto recaia por esse modo o julgamente
de dois tribunaes parallelos? Pode a sociedade tolerar que cidadãos de
uma certa classe estejam sujeitos por uma legislação especial a serem
julgados em dois foros distinctos, recebendo duas punições em vez de
uma, se as duas sentenças forem conformes; ou sendo simultaneamente
tidos por innocentes e tidos por culpados, se as duas sentenças forem
contrarias?
Responder-nos-hão que o tribunal academico julga de circumstancias
especiaes que não são submettidas á apreciação dos tribunaes ordinarios?
Mas n'esse caso o tribunal academico com relação ao crime de que se
trata toma o caracter de um tribunal escolar ou de um tribunal de honra.
Como tribunal escolar á Universidade cabe apenas decidir se o facto de
sovar um futrica obsta a que se aprenda uma lição.
Com tribunal de honra a Universidade precisa de não perder de vista que
quando se trata d'algumas bofetadas ou d'alguns pontapés, o deshonrado
não é propriamente quem os dá, é por via de regra quem os recebe.
Se a Universidade insiste em julgar sob outro ponto de vista as questões
d'esta ordem, a Universidade converte-se em uma escola de poltrões e de
covardes, destinada a dissolver completamente os restos de virilidade
que ainda possa haver na mocidade portugueza.
Todo o homem que se não acha devidamente temperado na sua natureza
physica e na sua natureza moral para o fim de resistir energicamente,
com risco da sua propria vida, a uma offensa pessoal, é um homem
corromido, sem o sentimento do respeito devido á dignidde da sua
especie, atreito ás paixões mesquinhas, com manhas de reptil.
* * * * *
Se a Universidade tem o intento de educar os seus bachareis para
sevandijas ou para freiras, a Universidade faz bem proseguindo no velho
systema que tem por fim levar o estudante que queira concluir
honrosamente os seus estudos a proceder diante diante das ameaças da
força alheia por um d'estes dois modos: fugindo ou apanhando.
Se porém a Universidade quer fazer verdadeiros homens e verdadeiros
cidadãos, a universidade andaria melhor abstendo-se de uma vez para
sempre da instauração de processos ridiculamente pueris, requerendo das
côrtes a reforma dos seus regulamentos disciplinares, prescindindo de
atrophiar no coração da mocidade com um regimen fradesco os sentimentos
naturaes de valor e de brio, e pondo cobro ao passatempo indigno da
velha troça academica por meio da instituição de exercicios viris,
proprios de uma mocidade honesta e forte:--a gymnastica obrigatoria, a
escola de tiro, a esgrima, a lucta, o insubstituivel _cricket_.

* * * * *

No paiz mais tradicionista e mais formalista do mundo,--no paiz em que
Deus segundo Taine é um personagem official com os seus cortezãos e os
seus aulicos,--no paiz em que tendo uma vez esquecido fallar da
Providencia n'um discurso da corôa o chefe do estado fez novo discurso
para prehencher essa omissão,--na velha, na religiosa, na solemne
Inglaterra emfim, John Tyndal, proferindo recentemente a allocução
presidencial do _Birmingham and Midland Institute_, disse as palavras
seguintes:
«Dir-me-hão que supponho um estado de cousas determinado pela influencia
das religiões e comprehendendo os dogmas da theologia e a crença no
livre arbitrio, um estado, em summa no qual uma maioria moralisada
fiscalisa e disciplina pelo medo uma minoria immoral. Sendo perverso, e
perverso sem esperança, o coração do homem, dir-me-hão que se fossem
abolidas as sancções theologicas a raça inteira se modelaria por alguns
exemplos de depravação individual. Tornar-nos-hiamos todos ladrões e
assassinos. Porque é só o medo que nos refreia, e, se eliminassemos o
medo, não conheceriamos mais do que o instincto natural e
desconheceriamos o dever.
«Tenho de responder que me recuso absolutamente a admittir similhantes
conclusões. O scelerado não é em minha opinião a imagem da humanidade.
_Bebamos e comamos porque temos de morrer ámanhã_ não é a consequencia
ethica da regeição dos dogmas.
«As doutrinas moraes dos atheus nossos conhecidos são taes que nenhum
christão se envergonharia de as professar, e nenhum christão as censura
senão desde que conhece a origem de que ellas procedem.
«Reconheço de todo o coração e sou o primeiro a admirar a irradiação
espiritual, se assim ouso exprimir-me, que a religião produz na vida de
varias pessoas que conheço. Mas não posso tambem deixar de confessar que
muitas vezes a relligião passa por estrondosas derrotas ao procurar
produzir alguma coisa bella. O apostolo e o campeão da religião é
frequentemente um simples tagarela, um pouco clown. Essas differenças
procedem de distincções primordiaes de caracter que a religião é
insufficiente para nivelar.
«Dá uma verdadeira satisfação o sabermos que existam no nosso gremio
homens a que os batalhadores do pulpito chamam _atheus ou materialistas_
e cuja vida, não obstante, experimentada na pedra de toque de uma
moralidade accessivel contrasta de um modo mais que favoravel com a vida
d'aquelles que buscam aviltal-os com essa designação offensiva.
«Quando digo _offensiva_ quero simplesmente alludir aos que empregam
aquelles termos, não que eu pense que o _atheismo e o materialismo_,
comparados a muitas noções sustentadas pelos jornaes religiosos, tenham
em si um caracter offensivo.
«Quando eu quizer achar um homem escrupuloso nos seus contratos, fiel á
sua palavra e cuja regra moral se ache solidamente estabelecida; quando
eu quizer achar um pae amante, um esposo fiel, um visinho honrado, um
cidadão justo, procural-o-hei, com a certeza de o encontrar, entre esses
atheus a quem acabo de me referir. Tenho-os conhecido tão firmes na
morte como o tinham sido na vida. Ao expirar elles não esperavam a corôa
celeste, e todavia lembravam-se tanto dos seos deveres e eram tão
zelosos em os cumprir como se a sua vida futura dependesse do mais recto
emprego dos seus ultimos momentos.»
Em seguida Tyndal cita os exemplos de dois homens notaveis, um dos quaes
é christão, o outro não.
O christão é Faraday, que Tindal considera um modelo da associação da fé
religiosa com a elevação moral. O seu caracter é o mais proximo da
perfeição. A religião era-lhe necessaria: era a luz, ora a consolação
dos seus dias. Era forte mas meigo, impetuoso mas docil; uma cortezia
peregrina distinguia o seu commercio com os homens e com as mulheres, e,
comquanto nascido do povo, a sua fina natureza era digna da mais
delicada flor da cavalleria.
O que não é christão chama-se Darwin. Não tem o ponto de vista
theologico nem a commoção religiosa que constituiam um tão poderoso
agente na vida de Faraday, e todavia Darwin tem a perfeição moral de
Faraday. «O sr. Darwin, diz Tyndal, é uma natureza candida e simples, um
caracter terno e forte, um espirito profundo e da mais alta moralidade;
é o Abrahao dos homens da sciencia, sacrificador tão docil ás ordens da
verdade como o patriarcha antigo ás ordens do seu Deus.»
* * * * *
Estas nobres palavras, inspiradas pelo mais profundo sentimento de
verdade, de justiça e de amor, ditas por um homem da auctoridade moral
de Tyndal, teem um caracter solemne, quasi sacerdotal. Deffinem
exemplificadamente o dogma scientifico da virtude inherente á cultura da
intelligencia humana e mostram experimentalmente a existencia de uma
moral independente de toda a especulação theologica. Que fecunda these
para ser exposta e defendida diante de um auditorio feminino no estado
presente dos espiritos, em que as convicções do homem estão geralmente
em contradição com as crenças da esposa e da filha, e em que tão
necessario se torna portanto á harmonia moral da familia o principio
fundamental da conciliação das consciencias!
* * * * *
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