As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1877-05/06) - 4

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um exercicio de força, e as _canas_, um exercicio de destreza.
* * * * *
A moderna educação portugueza esterilisou a sociedade para o fim de
gerar homens proprios para as lutas do trabalho nas regiões inclementes
em que é preciso arrostar com a fadiga, com o sol tropical, com as
febres dos rios podres.
Os cidadãos que em Portugal recebem alguma cultura de espirito
sacrificam-lhe de tal modo o seu desenvolvimento physico que não só não
podem levar a sua influencia e a sua dominação intellectual ao interior
da Africa, mas nem sequer a levam de Lisboa a Cascaes se lhes suprimirem
as facilidades do rebocador ou do carrão.
Sabemos que ha excepções, mas essas constituem uma vantagem pessoal de
poucos individuos, e não uma feição do paiz.
Na Inglaterra pelo contrario o _sport_ está na mesma alma da nação,
completa o caracter do paiz.
O principe de Galles readquiriu depois da sua ultima viagem a
popularidade que antes d'ella tendia a fugir-lhe. O simples facto de ter
penetrado na India e de ter caçado as feras a tiro com risco de vida é
um dos seus mais poderosos titulos á estima publica. O _sport_ é na
Inglaterra uma especie de religião. O inglez bem educado atravessa a
Africa por fanatismo. Simplesmente para a ter atravessado, e para ter a
gloria incomparavel de o poder referir ás sociedades sabias de
geographia, de zoologia, de botanica, de meteorologia, de anthropologia,
aos differentes clubs dos caminheiros da Inglaterra, da França e da
Suissa, deixando a enorme distancia atraz de si os seus compatriotas de
curto folego que apenas subiram ao Monte Branco ou percorreram a pé os
Pyreneus.
Ora sem esse fanatismo e sem esse enorme ecco na opinião e na
popularidade não ha paiz que se possa medir com a empresa enorme de
explorar e de civilisar as regiões salvagens. São insufficientes para
esse fim todos os esforços do governo, das sociedades geographicas, das
academias e de todas as agregações artificiaes de alguns individuos; é
preciso que o grande impulso parta do genio collectivo do povo.
* * * * *
O povo pertuguez não está creado para esses movimentos energicos. Era
uma raça audaz, enthusiasta e forte. Preverteram-a com duzentos annos de
uma educação dogmatica e de uma disciplina fradesca.
Estamos como o filho de um homem que herda um estaleiro em que o pae
fazia navios e em que elle para sustentar a fabrica tem de brandir um
machado e de talhar madeira durante dez horas por dia. Ora esse filho é
um anemico, que não pode com a sua _badine_. O que ha de fazer?
Restaurar a sua constituição ou vender o machado e ir tossir para o
Martinho.
* * * * *
Contra os agentes da dissolução em que cahimos uma ou duas vozes em todo
o paiz protestam--o que até o dia de hoje 15 de junho, ás 11 horas e
meia da noite, tem sido completamente inutil. Deitam-se abaixo
livrarias, enegrecem-se com prosa official resmas de papel da Abelheira,
abrem-se conferencias publicas, organisam-se expedições,--tudo para dar
a entender ao mundo que somos um povo forte. E no entanto o povo
continua nas condições de abatimento em que estava, as quaes não podem
tornal-o proprio para o dominio, mas sim para a servidão.
Vimos já, ligeiramente esboçado, o quadro da educação inglesa. Vejamos o
espectaculo correspondente na nossa organisação social.
Olhem ao domingo e á quinta feira para um dos nossos collegios de
educação em passeio na baixa. Uma fieira de pequenos macilentos e
enfesados, encarreirados a dois de fundo, vestidos de preto ou com
falsos uniformes de guarda-marinhas, vigiados por dois padres. Que
differença dos collegiaes inglezes, com os seus chapeus de palha, a
blusa de flanella, o calção curto, a meia de lã, correndo livremente nos
campos, com os grossos sapatos cheios de lama, em plena liberdade,
entregues a si mesmos, responsaveis pelos seus actos, conscientes do seu
direito e do seu dever como pequenos republicos!
Em Portugal um cão fraldiqueiro pode andar sem perigo pelas ruas,
sabe-se governar, sabe-se dirigir, sabe morder, sabe voltar para casa;
um joven racional de dez ou doze annos, dos quaes cinco de escola sob a
pressão dos compendios do sr. João Felix, não aprendeu nada d'isso, e
precisa de um padre ou d'um aguadeiro que o leve pela mão para
atravessar a rua!
Essa miseravel creatura tem uma mãe que o não deixa saltar para que não
quebre as pernas, que o não deixa trepar para que não quebre a cabeça,
que o não deixa metter-se na agua fria para que não se constipe. Era
melhor que elle tivesse quebrado uma perna uma vez, que tivesse rachado
a cabeça quatro, e que se tivesse constipado dezeseis, e houvesse
aprendido assim a ser um principio d'homem, do que não ter passado por
nenhum d'esses desares e ser unicamente um lamentavel boneco, medroso e
covarde, que um gaiato, creado na lama da rua e tendo metade da edade
que elle tem, pode impunemente encher de bofetadas nas duas faces e
estofar de ponta-pés em todo o resto do corpo, servindo-se para isso dos
membros que não quebrou, nem a trepar, nem a correr, nem a deitar-se de
mergulho ao ribeiro, apezar dos perigos previstos pela mãe do molestado.
O primeiro acto da vida civil d'esse sujeitinho consiste em metter
empenhos para ser approvado em instrucção primaria.
A primeira gloria da sua existencia consiste em se considerar tão
importante personagem que sahiu approvado com dez valores, apezar de ter
passado a metter os dedos pelo nariz e a explorar exclusivamente esse
orgão todo o tempo destinado a aprofundar concomitantemente as doutrinas
do sr. Felix.
No anno seguinte começa a estudar as linguas e a fumar cigarros ás
escondidas.
Penetra finalmente na rhetorica e na leitura dos romances, em que passam
visões de mulheres que o tornam cada vez mais amarelo.
Chega da côr de uma cidra ao fim do curso dos lyceus, tendo, além de
todos os preparatorios, mau halito, as pernas cambadas, a espinha
torcida, algum tedio da vida e muita caspa.
Matricula-se então na faculdade de direito na universidade de Coimbra e
o primeiro effeito dos estudos superiores sobre a sua cabeça é
augmentar-lhe a caspa.
Depois a vida academica absorve-o e elle percorre toda a escala das
nobres loucuras de uma mocidade espirituosa e vivaz: empenha as piugas,
toca o fado, dá canelões nos caloiros, espanca os burguezes, faz algumas
canções «grivoises», entorna o môlho das ceias pelo peito da batina, e
regressa a Lisboa bacharel formado.
Tem vinte annos e fez vinte exames. Para cada exame pediu protecção a
tres individuos;--pediu protecção e pediu feriados; pediu humildemente,
inclinado, arrastando a capa, retirando-se ás arrecúas como uma pêga
assustada, sorrindo com um agrado pusilanime:--Sr. doutor, imploro
submissamente a valiosa protecção de v. ex.ª!... Sr. doutor, criado de
v. ex.ª!... Criado de v. ex.ª! ex.'mo sr. doutor...
O espinhaço do bacharel traz feita de Coimbra a curva servil do
pretendente do Terreiro do Paço.
O que na universidade pedia, em Lisboa requer. É apenas a mudança de
nome: «--Sr. ministro, imploro submissamente a protecção de v. ex.ª...
Criado de v. ex.ª, sr. ministro... Ex.mo sr. ministro, humilde servo de
v. ex.ª...» E sae ás arrecúas dos gabinetes dos ministros como saía dos
gabinetes dos lentes, dando-se o ar lastimoso de um cão pelludo ao
emergir da agua, com o seu velho sorriso deploravel, anediando a copa do
chapéo com o canhão da sobrecasaca.
Depois de ter cambado os tacões de cinco ou seis pares de botas nos
passeios por baixo da arcada das secretarias, o bacharel alcança o que
deseja. Um ministro despacha-o--para se ver livre d'elle. Consegue ser
empregado publico ou candidato governamental por um circulo do
continente ou do ultramar.
Desde então as engrenagens do machinismo official apoderam-se d'elle
para nunca mais o largarem. É um escravo. Perdeu a personalidade.
Pertence á grande legião. Vae para onde ella for, diz o que ella disser,
pensa o que ella pensar, dentro de limites intransitaveis, na distancia
prefixa do cepo a que o amarraram.
É assim que uma quantidade iunumeravel de individuos que formam a
classe dirigente vivem d'este cuidado unico: O cuidado de se não
comprometterem. Nunca mais dizem o que sentem. Nas suas idéas, nas suas
opiniões, na sua linguagem, tudo é riscado pela pauta official. Se
alguma vez do fundo do nojo que suscita esta dyspepsia moral lhes vem á
bocca uma verdade, engolem-a para baixo como o caroço de uma fruta
prohibida.
Como pelo desdem do trabalho vivem n'uma estreiteza pecuniaria visinha
da miseria, muitos se lançam á caça do casamento rico, e, vexando-se de
ser tecelões ou ferreiros, não se vexam de casar por interesse, e
acceitam para toda a vida a intimidade indissoluvel de uma mulher feia,
estupida, malcreada, sem espirito de ordem, sem methodo, sem a dignidade
do conforto e do aceio domestico,--a viva negação de todas as condições
que tornam a casa feliz e a familia amavel.
É d'esses consorcios sem idealidade e sem amor, contraidos fóra da mutua
dedicação que completa o homem pelo seu par e cria o verdadeiro
individuo social duplicadamente corajoso, digno e forte, que saem os
filhos dissolutos, os jovens cynicos, desdenhosos das affeições
honestas, hostis a todos os sentimentos de familia, cujos nobres
encantos nunca aprenderam a conhecer e a estimar.
D'esses consorcios procedem tambem as meninas futeis e pretenciosas,
frageis entes inuteis, a que falta a condição essencial da nobreza e da
dignidade da mulher--a comprehensão do _ménage_, o culto do santuario
domestico. Ellas refugiam-se da convivencia antipathica da sua familia,
constituida sem bases organicas, na religião, ou, para que o digamos no
termo mais preciso, na _igrejice_, e na leitura dos romances
sentimentaes. A _igrejice_ e o romance são os dois pólos da sua vida
moral.
Como qualquer d'essas meninas desconhece completamente a arte de
cultivar e desenvolver os seus encantos de espirito e de caracter, um
instincto de aperfeiçoamento, desencaminhado pela educação, leva-a ao
cultivo do trapo como um fim de superioridade, e arroja-a no lastimavel
fetichismo dissipador da moda.
Ignora completamente todas as artes que constituem os elementos da
felicidade conjugal e que só por uma grande pratica e por uma longa
tradição se aprendem: a arte de se fazer bella pelo simples modo de atar
uma fita, de pôr em si uma flor, pela maneira de coser, de caminhar, de
se sentar n'um _fauteuil_, de pegar no talher, de estar á mesa; a arte
de dirigir a cozinha, de organisar a alimentação, de extrair da sua
chimica a alegria e a saude dos seus commensaes; a arte de arranjar a
casa, de lhe dar physionomia, de a obrigar a mostrar talento, a exprimir
idéas, a ter quasi conversação, fazendo respirar como coisas vivas nos
armarios as pilhas perfumadas da roupa branca, sorrir nas prateleiras da
casa de jantar o esmalte das loiças e o estanho reluzente das tampas das
canecas, estenderem-nos os braços as cadeiras do salão, e
solicitarem-nos a permanecer a côr dos cortinados, o tom dos estofos, o
assumpto dos quadros, a collocação dos moveis, a graduação da luz, a
frescura do ar, a nitidez geral do aceio e a sabia disposição dos livros
e dos jornaes sobre o panno da mesa.
A menina em similhantes condições de inutilidade raramente se casa, ou
se desquita do marido se algum dia o vem a ter. As suas inclinações
romanescas e doentias chamam-a para beata. De resto é essa talvez a sua
melhor maneira de ter um fim, porque, emquanto a ser mãe, prohibe-lh'o
physica e moralmente a accumulada estreiteza do coração e dos ossos.

Taes são, no caracter dos individuos de um e outro sexo, os frutos da
educação portugueza na classe mais preponderante da sociedade, aquella
que fórma a opinião e determina as tendencias do espirito publico. Com
similhante estado é irreconciliavel o genio explorador, a tendencia para
as viagens entre póvos barbaros e finalmente o poder de dirigir e de
dominar.
* * * * *
Como colonisadores temos apenas uma vantagem sobre os outros póvos
europeus: a sobriedade, que permitte aos nossos operarios alimentarem-se
com a simplicidade d'esses chins cuja concorrencia, pelo simples facto
d'elles se satisfazerem não comendo senão arroz e não tendo outra
baixella senão dois paus, faz tremer todos os trabalhadores do mundo.
Mas esta grande virtude de raças inferiores, caracteristica
principalmente dos nossos operarios do Minho e de Traz-os-Montes, é
insufficiente para nos conservar o dominio de extensos territorios, que
se não arroteiam para a civilisação senão pelo esforço combinado de
altas faculdades administrativas que não temos, de uma grande robustez
physica que tambem não temos, e de um enthusiasmo impulsivo e
desinteressado, tirado de uma grande corrente nacional das mesmas idéas
e das mesmas convicções, o qual egualmente nos falta.
* * * * *
Nenhum phenomeno mais expressivo da nossa anarchia administrativa e da
nossa abdicação governamental do que o estado da nossa marinha.
Em todo o paiz colonial e maritimo a industria da pesca é a escola em
que se iniciam os marinheiros. A pesca é a infancia da marinha. A
Hollanda comprehendeu admiravelmente essa verdade, e a industria
piscatoria é desde muitos annos objecto dos cuidados e das attenções
mais desveladas por parte do governo hollandez, cuja marinha é hoje
florentissima. Essa marinha constituiu-a a Hollanda attraindo, com
grande augmento de salarios, os pescadores biscaynhos que iam á pesca da
baleia ao cabo de Finisterra.
As pescarias no mar largo, como a da baleia e principalmente a do
bacalhau, são particularmente favorecidas por todas as nações maritimas
com grandes premios conferidos pelo estado. É na classe numerossima dos
tripulantes de milhares de navios empregados nas chamadas _grandes
pescas_ que se recrutam os marinheiros das armadas europêas.
O governo francez protege, com grandes subsidios na armação dos navios e
com avultados premios sobre o pescado importado, as suas pescas do
bacalhau, cujo producto augmenta extraordinariamente os recursos
alimenticios do paiz, elevando-se o seu valor em dinheiro á somma de 17
milhões por anno. A pesca do bacalhau emprega em França 400 navios e 12
mil marinheiros.
Um facto bem notavel e digno de ser ponderado pelos legisladores
portuguezes é que a prosperidade e o progresso da França teem sido
marcado, como a temperatura em um termometro, pelo desenvolvimento ou
pela estagnação das suas grandes pescas! No tempo da emancipação
communal a pesca do bacalhau desenvolve-se enormemente; cae com a
corrupção monarchica do regimen despotico; revive deante das medidas
legisladas pela Revolução.
Talvez o governo ignore as condições em que actualmente se tributa o sal
que os pescadores francezes nos compram com destino ao seu bacalhau. Os
navios francezes que veem ao nosso porto fornecer-se d'esse genero fazem
fiscalisar o seu carregamento pelo respectivo consulado; o consul
francez remette ao seu governo a nota dos moios de sal carregados em
Lisboa e cujos direitos de importação em França são pagos no porto
d'onde o navio partiu pelo proprietario responsavel por este imposto.
D'este modo evita-se todo o contrabando na importação do sal: os
direitos estão pagos na razão de 50 centimos por cem kilogrammas. Quando
porém o navio que carregou em Lisboa volta a França com o sal empregado
nos bacalhaus que pescou, o governo restitue-lhe os direitos
anteriormente percebidos, não já na razão de 50 centimos por cada cem
kilogrammas de sal, mas sim na de 13 francos por cada cem kil. de
bacalhau. É assim que na questão de um simples imposto se revela o plano
de um paiz para o qual a administração tem um fim de progresso.
Portugal possue no mar dos Açores, segundo a asseveração de varios
navegantes, um banco de bacalhau que muitos julgam superior ao da Terra
Nova, o qual se diz descoberto por um portuguez Gaspar Côrte Real. E
deixa morrer ao desamparo essa grande industria riquissima, a pesca de
um peixe precioso em que tudo se transforma em riqueza: as linguas
constituem um artigo especial presadissimo dos _gourmets_; dos
intestinos faz-se o melhor adubo da terra; do figado extrae-se o oleo
importantissimo para a industria e para a medicina; os ovos empregam-se
com grande vantagem na pesca da sardinha.
Apezar de Portugal ser um paiz privilegiado para a pesca do bacalhau,
pelo valor e pela pericia dos seus pescadores, pela posse do melhor sal
que se conhece para salgar o peixe e do melhor sol que ha para o secar,
o nosso governo despresa este importantissimo ramo da actividade
commercial, perdendo por esse mesmo facto a melhor escola pratica dos
nossos marinheiros e dos nossos navegantes. A grande pesca tambem é para
nós um symptoma da vitalidade nacional. Quando eramos fortes mandavamos
cincoenta ou sessenta navios de pesca para a Terra Nova. Hoje pescamos
na costa o carapau para o gato, servindo-nos de redes que deveriam ser
prohibidas, despovoando as aguas de pequenos peixes insignificantes, que
pelo contrario pesariam dois kilos e seriam um importante artigo
alimenticio, se tivessemos estudado os nossos apparelhos de pesca e
soubessemos legislar sobre a dimensão permittida ás malhas das redes. O
governo portuguez nunca deu a este assumpto, base de toda a exploração
colonial, um só instante de attenção.
O parlamento nomeia em cada anno uma commissão de pescas, que ainda não
serviu para mais nada se não para tributar o pescador. As especies de
peixes que frequentam as nossas costas estão por estudar. A piscicultura
não tem sido objecto de maiores disvellos que a ictyologia: nem uma só
medida tomada pelo Estado para repovoar as aguas das nossas costas e dos
nossos rios principaes; nenhum estudo feito sobre os botes e sobre os
apparelhos empregados na pesca. Assim o pescador considera o Estado, que
elle nunca viu representado senão pelo fisco, como um puro explorador.
Na Povoa de Varzim ha um antigo quebra-mar destinado a formar um porto
de abrigo, que nunca se concluiu. Todas as reclamações, todas as
instancias feitas para este fim teem sido inuteis.
Ha cerca de seis annos el-rei em pessoa visitou a Povoa acompanhado por
um dos seus ministros, o sr. Avelino, o qual em nome do soberano
prometteu aos pescadores que ia ser concluido o paredão. Até hoje ainda
se não accrescentou uma pedra áquelle monumento unico do desleixo
nacional!
E todavia o espirito aventuroso dos nossos antigos navegantes, que o sr.
marquez de Sousa Holstein acaba de procurar resuscitar com a sua
eloquente e erudita conferencia ácerca da escola de Sagres, está ali
vivo ao pé d'esse paredão em ruinas. Ha ahi tres mil homens que em cada
dia jogam as suas vidas com a mesma coragem com que nós aqui em Lisboa
jogamos as cartas. Os poveiros são os homens mais alentados e mais
robustos que tem Portugal. É raro o que se enterra no cemiterio da
freguezia. Morrem no mar, sob um céo de chumbo, estrangulados pela
inclemencia das vagas, á vista da terra, ao alcance das vozes das suas
mulheres e dos seus filhos, por lhes faltar o abrigo a que se destina o
quebra-mar de conclusão em projecto! Não ha um que saiba ler. Habitam em
terra um bairro infecto e miseravel. Os cações escalados, destinados á
alimentação no inverno, secam pregados ás portas interiores das casas.
Cheios de _vermine_, homens, mulheres e creanças, dormem no mesmo
quarto, n'uma promiscuidade horrorosa. A terra da patria dá-lhes apenas
um farol, que elles illuminam á sua custa, e um barco de salva-vidas,
que elles mesmos tripulam. E é para isso que elles, desgraçados, quasi
mendigos, pedindo esmola em bandos durante o inverno, pagam um imposto
annual de cerca de seis contos de réis, integralmente devorados pelo
fisco.
Imagine-se como elles lhe hão de querer e como a hão de amar, á querida
terra da patria!
A unica vingança que esses generosos lobos do mar tiram do Estado, que
tão vilmente os explora e os rouba, consiste em não darem nem um só
homem para o recrutamento maritimo. Não ha meio algum de os obrigar a
fornecer um recruta á armada. Preferem morrer mil vezes a servir taes
amos.
E eis ahi está o ultimo capitulo na provincia do Minho da historia,
feita pelo sr. marquez de Sousa, da escola dos navegadores portuguezes
fundada em Sagres pelo infante D. Henrique!
Como a administração das nossas colonias depende directamente da
organisação da nossa marinha, como a importancia da nossa marinha
depende da organisação das nossas pescas, a Academia prestou á
civilisação da Africa um serviço verdadeiro, não organisando
conferencias, mas tomando uma deliberação mais obscura e todavia mil
vezes mais importante: a de nomear o sr. Brito Capello, naturalista
adjunto do museu zoologico, para ir estudar ao longo do nosso littoral a
industria da pesca e de expôr os meios de a reorganisar.
Comtudo a opinião, que tem de julgar os factos, tão esclarecida é, que
applaudiu como um notavel beneficio patriotico a iniciativa das
conferencias--um espectaculo de erudição, e não teve uma palavra de
applauso para a missão do sr. Capello--o primeiro passo para atacar o
mal na sua verdadeira origem!
* * * * *
Do estado verdadeiramente deploravel em que se acha a nossa força
maritima póde-se ter uma idéa pela recente medida tomada pelo governo de
convidar a servir na armada, mediante uma gratificação apregoada na
folha official todas as praças de infanteria ou de caçadores que para
esse fim se apresentem! O governo tem de um marinheiro esta
comprehensão:--que elle se fabrica por meio do abono de quatrocentos
réis por dia dados a um soldado de caçadores!
Mas, a não ser que o façam ao acaso ou que se determinem por uma
escolha baseada na côr dos olhos ou na fórma do nariz, que razões podiam
ter levado o governo a alistar na arma de caçadores um dos seus
recrutas? Suppomos que estas razões devem ser tiradas das condições em
que foi educado o recruta; que o fizeram caçador porque habitava as
montanhas, porque era um caminheiro, porque tinha a agilidade que dá a
luta com os terrenos escabrosos nas visinhanças das serras. Ora, sendo
assim, como querem sujeitar á vida sedentaria do mar e á familiaridade
das ondas esse montanhez, que nunca pegou n'um remo, que chegou das
Alturas de Barroso, do Marão ou da Serra da Estrella e que sente as
pernas enferrujadas e o pulmão opprimido desde que não anda mais de uma
legua por dia trepando saudosamente ás colinas que cercam o logar do seu
quartel?
Outro facto não menos expressivo é o que ha pouco tempo se deu com
alguns guarda-marinhas do nosso conhecimento em estação em Loanda.
Sabe-se que não ha plantas dos nossos portos da Africa, cuja navegação
se faz por meio de cartas inglezas.
Os jovens marinheiros a que nos referimos, impellidos por esta vergonha
da nossa marinha, quizeram levantar a planta do porto de Loanda.
Empregaram todos os esforços para obter os necessarios instrumentos, não
puderam conseguir senão unicamente a offerta de um bote, unico elemento
de trabalho que o governador se achava habilitado a pôr á disposição
d'esses extravagantes. Elles comprehenderam então que não tinham senão
uma coisa que consagrar aos destinos da patria; não era o talento, não
era a dedicação, não era o trabalho; era unicamente a saude. E foram
immolar o figado á administração nacional para bordo do seu navio, como
patos de engorda pregados pelos pés á respectiva capoeira.
Quando os nossos officiaes teem conseguido arruinar completamente as
suas visceras na inanição official das nossas estações de Africa, voltam
doentes á metropole e concluem a missão civilisadora que o paiz lhes
incumbiu tomando as aguas alcalinas de Vidago.
As aguas de Vidago são o fim supremo do seu destino militar.
* * * * *
Emquanto estas coisas se passam os inglezes, com um poder creador que
faz muitas vezes o elogio das suas faculdades inventivas, acham em cada
dia pretextos novos para intervirem com o _seu protectorado
humanitario_ nos negocios do interior africano, e dilatam a pouco e
pouco a sua occupação e o seu dominio manso sobre o nosso territorio.
* * * * *
Um dos incidentes que acompanham a questão suscitada pela viagem do
capitão Cameron é a revelação feita por este viajante de que as
auctoridades portuguezas no interior da Africa não obstam ao trafico dos
escravos, que ainda ali vigora.
Como é que nós respondemos á denuncia d'este facto? Respondemos negando
a asseveração do sr. Cameron e fazendo protestos.
Para decidirmos se um tal modo de retorquir nos podia ser ou não
permittido, vejamos quem é o homem que nos acusa.
Cameron é o segundo europeu depois de Levingstone que modernamente
atravessou a Africa desde a costa oriental até a costa occidental,
levado por um intuito exclusivamente scientifico. D'esta viagem, que
durou quatro annos, trouxe o sr. Cameron o projecto de ligar a costa do
oriente com a do occidente por meio da navegação fluvial, aproveitando
as relações hydrographicas do rio Congo e do Zambese, o primeiro dos
quaes desemboca de um lado no Zaire e o outro do lado opposto, ao sul de
Moçambique.
Durante esses quatro annos passados entre selvagens, o capitão Cameron
parte de Bogamoyo em frente de Zanzibar, passa em Rehenneko, atravessa o
paiz de Ounyanyembe, o paiz de Ugara, o Ujiji, o lago Tanganyika, o
mercado de Nyaugwe, o estado de Urua, a Ponta do Lenho, desce as margens
do Congo, toca em Benguela, chega finalmente a Loanda. Os companheiros
de viagem que haviam saido de Inglaterra para o acompanharem--o doutor
Dillon, Moffat sobrinho de Levingstone, o artilheiro Murphy, não podem
seguil-o a mais do começo d'essa longa e perigosa expedição. Adoecem
successivamente todos. Moffat morre em Bogamoyo. Em Ounyanyembe
apparecem-lhe os homens de Levingstone trazendo o cadaver do explorador
que o precedera. Então Murphy e Dillon, ambos gravemente enfermos,
desistem de continuar essa immensa viagem e regressam com o corpo de
Levingstone para Zanzibar. Dillon morre no caminho.
Cameron, só, sem nenhum outro companheiro europeu, armado de uma
clavina, seguido por uma escolta de negros, prosegue, caminhando
atravez de regiões inexploradas e desconhecidas, sob um clima mortifero,
deixando atraz de si, marcado com a morte dos seus camaradas e cada um
dos primeiros estadios da sua portentosa peregrinação.
Não sabemos quem era Cameron ao partir. Admittimos que saisse da
Inglaterra com a educação commum de um simples tenente da armada
britanica. Mas dizemos que uma viagem como a que elle fez, e nas
condições em que a fez, basta para retemperar uma alma e para formar um
caracter. Um tal homem não mente. N'elle a mentira seria a refutação de
todos os principios do nosso aperfeiçoamento, seria a violação de todas
as leis da natureza humana.
Nada mais lastimosamente ridiculo do que a indignação patriotica de
qualquer dos nossos politicos, chupando auctoritariamente um cigarro no
Gremio ou á porta da Casa Havaneza, bombardeando a atmosphera com balas
de fumo, e desmentindo o homem mais competente que hoje existe no mundo
para nos informar do que se passa em Africa!
O que Cameron disse ácerca da escravatura africana na conferencia feita
em Londres foi o seguinte:
«Cerca da linha de separação das bacias do Zambese e do Congo fomos
retardados no primeiro acampamento por causa da caça aos escravos
fugidos. Quando pela manhã me preparava para partir, chega um mensageiro
dizendo-nos: _Não partaes; Kouaroumba vae chegar com os seus escravos_.
Depois do meio dia chegou effectivamente Kouaroumba com uma fila de
cincoenta ou sessenta infelizes mulheres, carregadas com a presa,
trazendo algumas os seus filhos nos braços. Estas mulheres representavam
pelo menos a ruina e a destruição de quarenta ou cincoenta aldeias e a
matança d'aquelles dos seus habitantes masculinos que não conseguiram
refugiar-se nos juncaes para ali viverem como podessem ou morrerem de
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