As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1877-05/06) - 3

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procuram debalde afogar o advento da nova era! Os reis oppõem os seus
exercitos; a igreja oppõe as suas excommunhões; o seu inferno, em que ha
o ranger dos dentes por todos os seculos dos seculos sem fim; os seus
carceres em que a lepra corroe até á medula os ossos dos condemnados; os
seus tormentos, em que ha o fogo lento, a grelha, o forno rubro, o
borzeguim que se descalça levando comsigo, palpitantes, todos os
musculos e todos os nervos das pernas, a pua que fura as unhas e o torno
que esmaga os ossos do craneo e faz rebentar o cerebro como um abcesso
espremido.
E tudo é em vão! A sciencia intemerata prosegue, inerme e candida, sem
haver feito uma unica victima, sem uma só gota de sangue derramado, sem
uma só lagrima vertida! E deante da branca visão benigna que se
aproxima, o dogma espavorido recúa mais profundamente fulminado por um
simples raciocinio humano de que nunca o foi a mais fraca das almas
deante da colera implacavel e infinita dos deuses immortaes.
Tudo quanto atravez de toda a historia moderna a auctoridade tem
procurado conservar pela força se tem fatalmente destruido pelo tempo. O
que a auctoridade e a força têem conseguido é unicamente atrazar o
movimento intellectual, determinando os longos periodos estacionarios da
humanidade. Pelo contrario tudo quanto a sciencia iniciou se transmittiu
de idade em idade, se desenvolveu, se relacionou, se perpetuou. Nem uma
unica semente lançada á terra pelo trabalho e pelo estudo deixou ainda
de vingar e de frutificar em resultados decisivos de tolerancia, de
paz, de liberdade e de justiça.
Na astronomia, na physica e na chimica, na geologia, na meteorologia, na
zoologia, na medecina, na philologia quantos descobrimentos novos! E
cada novo descobrimento é uma conquista nos dominios da Igreja, dominios
que ella successivamente cede na mesma proporção em que a sciencia
caminha.
É um novo diluvio aquelle de que a historia do pensamento humano nos
offerece a imagem caudalosa e tremenda. A inundação espraia-se no vasto
campo da theologia, e vemos ao longe, fugindo desgrenhadas, as ultimas
superstições, medonhas como os grandes monstros pre-historicos que vão
ser tragados pela vaga.
Cançada de combater a theologia finalmente rende-se. Tendo perseguido
Galileu, Giordano Bruno, Savanarola, Averroes, Luthero, tendo combatido
todos os iniciadores de um novo systema do universo ou de uma nova
comprehensão dos destinos do homem, a Igreja vê apparecer Darwin, e nem
se quer tenta lutar!
O transformismo, revelado por Lamarck, supitado um momento na Academia
Franceza sob a auctoridade funesta de Cuvier, é finalmente definido e
promulgado, e todo o immenso edificio theologico da creação do mundo e
do homem cae aluido pela lei da adaptação e da seleção natural na luta
pela existencia.
Ás grandes revoluções nas sciencias physicas e naturaes succederam-se
modificações equivalentes nas theorias e nas praxes da vida social, na
economia, na administração, na politica, no sentimento, na critica, na
poesia, na arte, na moral e na propria religião.
Da philosophia zoologica de Darwin sae um Deus como religião alguma
tinha até hoje tido o poder de concebel-o, o unico Deus compativel com a
noção da sabedoria infinita. Segundo os systemas da creação anteriores
ao transformismo, e adoptados pela Igreja, Deus era o auctor de um
universo que elle successivamente revia e emendava, depois de cada um
dos cataclismos que passavam por cima da sua obra, como passa uma
esponja sobre uma operação incorrecta. Segundo a theoria darwiniana,
experimentalmente demonstrada e contraprovada pelos mais sabios
analysadores, Deus não revê, Deus não corrige, Deus não se emenda, Deus
não se aperfeiçôa sendo assim perfectivel e portanto imperfeito, como
fatalmente deveriamos admittir que o era acceitando a doutrina do
Genesis e a critica paleontologica de Cuvier e de todos os adversarios
de Lamarck de Goethe, de Darwin e de Haeckel.
As especies extinctas não foram cortadas pelo Creador no livro da terra
como por meio de um signal posto á margem na prova de uma segunda
edição.
Os orgãos rudimentares dos animaes, os orgãos que não têem funcção,
deixaram de ser excrecencias de stylo inadvertidas pelo auctor ou
empregadas por elle com um intuito de ornato rhetorico. Se o homem, por
exemplo, tem em estado rudimentar e na atrophia de uma inercia de
milhares de seculos, uma cauda indicada pelas suas vertebras falsas, se
tem mamillas sem amamentar, se tem utero sem conceber, se tem um segundo
estomago sem ruminar, escusamos já hoje de explicar estes factos por um
descuido indolente ou por uma emphase premeditada na confecção do nosso
organismo. A evolução genealogica de todos os seres e a sua procedencia
de um tronco ancestral commum, descoberta e provada pela lei de Darwin,
basta para nos explicar cabalmente todas as apparentes anomalias da
creação sem quebra da infalibilidade suprema.
Assim o Deus revelado ao mundo pelos modernos philosophos theistas é o
unico Deus omnipotentemente sabio, o unico Deus verdadeiramente divino,
porque não procede na obra da creação por emendas, revisões successivas,
reedições augmentadas e correctas, como o Deus theologico: Elle cria a
vida no atomo primitivo vogando na immensidade, deixa cair a cellula
primordial nas profundidades fecundas do Mar Tenebroso e ordena-lhe que
se desenvolva dentro de uma lei prefixa. Depois do quê não só não
descansa, não só não revê, não só não modifica, mas nem sequer espera,
porque infinito Elle mesmo, e prehenchendo o infinito no espaço e o
infinito no tempo, possue em si proprio, completa, a infinita evolução.
Surge finalmente invencivel na sociedade contemporanea um novo poder
temporal, o poder da industria, e um novo poder espiritual--o poder da
consciencia na comprehensão da solidariedade humana.
Vae pois longe, dercorrida ha muitos annos a idade ingenua em que o
genero humano acreditava na virtude das peregrinações aos santos
logares!
Compare Vossa Santidade a primeira e a segunda cruzada com esta que nós
outros, portadores do album em que escrevemos estas linhas, acabamos de
emprehender e de levar a cabo em comboyo de recreio de ida e volta, a
preços reduzidos, guiados pelo padre Conceição Vieira, um sacrista, e
pelo Pedro de Alcantara, um grotesco! E estes dois sujeitos são quanto
pudemos obter como successores de Pedro Eremita e de Godofredo de
Bulhões.
Somos noventa e nove, de um paiz de quatro milhões de habitantes, o
menos instruido de todo o orbe christão, aquelle em que por mais tempo
vigorou, com detrimento do nosso senso commum e um pouco tambem da nossa
pelle o despotismo da inquisição e do direito divino. Isto ainda assim
não obsta porém a que deixassemos na patria tres milhões novecentos mil
novecentos e um individuos que não quizeram vir, perdendo assim a
indulgencia plenaria e deixando de resgatar as suas almas das penas
eternas a troco da modica quantia de dezeseis libras, ida e volta, em
segunda classe!
Porque elles entendem--principalmente depois que o fogo do Santo
Officio deixou de afervoral-os--que não é facil despir os peccados como
se despe um collete de flanela, descalçar a culpa como se descalçam as
chinellas de trazer no quarto, e pendurar a responsabilidade como se
pendura a _robe de chambre_ para envergar a _toilette_ redemptora de uma
viagem a Roma.
Parece-lhes que o Diabo não é tão tolo como alguem o presume, e que, se
elle tiver, por exemplo, a idéa de filar o padre Conceição Vieira ou o
padre Marnoco para os referver no caldeirão destinado á classe
ecclesiastica apanhada em peccado, não será porque os mesmos Conceição e
Marnoco lhe digam que estão afivelando a chapeleira para ir buscar as
indulgencias a Roma, que o Diabo crusará os braços e deixará escapar-lhe
sob essa evasiva, aliás engenhosa, uma tão interessante presa.
Estão profundamente convencidos--os herejes!--de que, acima da
auctoridade dos pontifices, que teem o poder de resgatar as culpas e de
franquear a entrada no reino dos céos, está um outro poder mais alto--o
poder da incorruptivel consciencia, segundo o qual não é pelas romagens
divertidas nem pelas orações authomaticas, nem pelas estereis
penitencias, mas sim pela simples pratica do dever, austero e
inilludivel, que cada um se affirma como verdadeiro justo.
Acham ridiculo um céo em que tenha de sentar-se, glorioso e triumphal, á
mão direita do Deus da Justiça, um padre Marnoco--simplesmente porque
obteve as indulgencias no jubileu pontificio, em quanto á mão esquerda
fique ardendo nos tormentos eternos um Lincoln, que pacificou a America,
que deu a paz a tres milhões de negros e que, depois de uma vida toda
consagrada á justiça e á abnegação, entrou finalmente na eternidade pela
porta do martyrio, coberto com a benção da humanidade e com a benção da
historia, mas sem a benção dos papas.
Santissimo Padre! estas convicções profundas d'aquelles que não vieram a
este jubileu, não podemos deixar de vos dizer n'este album,--como
seríamos forçados a dizer-vol-o, se estivessemos aos vossos pés n'uma
confissão geral, humildes e contrictos, batendo nos peitos,--estas
convicções dos que não vieram são tambem no intimo das nossas almas as
convicções de todos os que nos achamos aqui, quer chegados das
occidentaes praias lusitanas, quer procedentes de qualquer outra região
do globo.
E a evidente prova de que a nossa fé está irremissivelmente apagada e
precisa de se reconstituir em novas bases, é que, no tempo em que o papa
era o imperador e o Cesar, no tempo em que elle brandia uma espada de
justiça e de guerra, meio milhão de homens rojados aos seus pés estariam
prontos a recomeçar as guerras santas ao seu minimo aceno.
Hoje vós proclamaes que sois captivo, que sois ultrajado, espoliado,
perseguido, e entre todos os que vos trazem offertas não ha um só que
seja capaz de derramar o seu sangue para vos restituir a liberdade que
dizeis perdida e o poder que dizeis violado! Beijamos devotamente o
vosso pé sacrosanto; depois do quê, em vez de enristarmos uma lança,
vimos para a rua com as mãos nos bolsos e um charuto nos beiços ver
desfilar em pelotões marciaes os esveltos _bersaglieri_ da Italia
unificada.
Debalde nos dizeis que «os pedreiros livres atacam a religião e chamam
os catholicos a combater.» Os pedreiros livres são bem lastimaveis se
não teem mais nada que fazer do que chamar-nos ao combate! A verdade não
se alimenta com sangue, alimenta-se com principios, e não necessita de
victimas, necessita unicamente de razões: é precisamente n'isso que ella
se distingue do erro e da mentira.
Se os pedreiros livres querem por força combater, a resposta mais
sensata ao seu convite aos catholicos é mandar-lhes um medico que os
sangre e lhes prescreva os debilitantes. Que os senhores pedreiros
tenham a bondade, antes de nos reptar ao combate, de experimentar a
dieta!
Emquanto á guerra, não! Oh! não! Esse é um privilegio dos reis. Hoje só
os reis, e algum tanto tambem os diplomatas, é que fazem as guerras. Por
uma razão muito simples: é que só elles as pódem fazer por um modo
exclusivamente verbal,--mandando partir os seus exercitos.
Quando os exercitos se lembrarem de mandar partir adeante os reis e os
diplomaticos, teremos então firmada para todo sempre a paz geral.
Concluindo pois, Santissirno Padre, dignae-vos de lançar-nos a vossa
benção e de nos permittir que a transmittamos a todos os nossos
concidadãos, que saberão devidamente presal-a sendo enviada por quem é,
como vós, um ancião veneravel, cuja longa vida é para todos os que
trabalham e para todos os que soffrem um nobre exemplo de constancia nos
principios, de firmeza na luta e de resignação na derrota.

* * * * *

Sua alteza o principe real, herdeiro presumptivo da corôa, acaba de
tomar a primeira communhão.
Comparecendo pela primeira vez no tribunal da graça aprendeu sua alteza
a theoria do resgate da culpa pela penitencia.
A familia real e a côrte reuniram-se solemnemente no templo para verem
ensinar a esse menino por que methodo facil os reis podem deixar na
terra o oprobrio e enfiarem no entanto para o ceu o mais candido vôo,
alados pelos anjos que, ao som da musica da real capella e ao signal da
benção lançada pelo sacerdote, baixam aos reaes paços a pegarem ao collo
nas almas dos principes devidamente desobrigados.
Dizem todos os jornaes que foi extremamente edificante e commovente
esse augusto espectaculo.
* * * * *
Para ministrar ao principe a sagrada eucharistia foi chamado
expressamente do Porto o sr. bispo D. Americo.
Parece-nos--comquanto não ouzemos dizel-o sem uma reserva profundamente
timida--que sendo a communhão um acto puramente religioso, seria talvez
mais consentaneo com a humildade christã que o sr. bispo D. Americo não
fosse chamado, que se não fizesse da pratica de um sacramento uma
distincção aristocratica, e que sua alteza commungasse simplesmente como
os demais christãos na igreja da sua freguezia e pelas mãos do seu
parocho.
Poderão objectar-nos que, não comprehendendo as abluções do rito senão
as pontas dos dedos no sacrificio da missa e sendo as _douches_
applicadas unicamente aos sacerdotes pelo bico de um galheta, ha
parochos que, por não ultrapassarem as prescripções liturgicas teem nas
suas lobas tantas nodoas como botões, e não sómente cheiram
penetranremente ao fumo do incenso e ao murrão dos cirios, mas cheiram
tambem algum tanto a saes ammoniacaes e a uréa, d'onde poderia resultar
que no banquete eucharistico a qualidade da baixella desgostasse o
principe da pureza mystica do manjar.
A essa objecção respondemos que seria mais economico e talvez mesmo mais
efficaz para remedio do baixo clero que, em vez de só mandar vir o sr.
D. Americo, deslocando-o dispendiosamente da sua diocese com os seus
famulos e a sua mitra, se mandasse chamar simplesmente o sr. Cambournac.
Porque--acreditem-o--não é com a presença do illustre e correcto bispo
portuense, nitidamente barbeado, perfumado pelo uso de bons comesticos,
com bellas meias de seda escrupulosamente esticadas por um destro _valet
de chambre_, com fina roupa branca e lustrosas unhas esmeradamente
limadas e polidas, não é com exemplos que deslumbram que se ha de obstar
á decadencia das nossas batinas. Ellas em Portugal não querem por
emquanto exemplos. O que ellas querem é directamente benzina.
* * * * *
Se, porém, se entende definitivamente que á mesa da communhão devamos
nós os catholicos aproximar-nos por cathegorias e por classes, como á
mesa dos paquetes, então pedímos uma tarifa para regularisação do
serviço ecclesiastico. Que a Igreja nos diga definidamente quem são os
passageiros da terceira classe que commungam na tolda com a marinhagem e
quaes os escolhidos com direito a receberem a communhão á mesa do
commandante!
* * * * *
Depois da ceremonia religiosa, accrescentam os jornaes, que fora servido
no paço um opiparo almoço aos dignatarios da côrte e ao alto clero.
Esperamos que o sr. patriarcha fazendo aos poderes temporaes o duro
sacrificio de não cumprir o preceito jejuando, pozesse ao menos a
condição de que a sua costelleta fosse de bacalhhau!

* * * * *

A narração feita pelo capitão Cameron da sua viagem no continente
africano veio levantar em Portugal, entre alguns incidentes, a seguinte
questão:
O que devemos fazer para manter por meio de medidas civilisadoras o
dominio das nossas colonias?
Para isto ha uma unica resposta: Para dominar o que se deve fazer é
crear faculdades dominantes.
Quem tem força para dirigir manda; quem a não tem serve.
A escola dos grandes exploradores e dos colonisadores é a escola da
força nos individuos. Quando Stanley deu pela primeira vez conta em uma
conferencia em Londres, da viagem que fizera em procura de Levingstone o
argumento que mais convenceu o publico de que o conferente não era um
simples phantasista foi a expressão energica da sua figura agigantada, a
sua saude de Hercules e os fortes pulsos com que na gesticulação elle
parecia estar outra vez abatendo e supplantando de novo aos olhos do
auditorio os obstaculos com que dizia ter luctado.
Deante de um retrato do capitão Cameron sentimos a mesma impressão, que
explica o successo de uma empreza difficil e perigosa pela decisão e
pela firmeza do que a emprehende. A physionomia um pouco espessa e dura
de Cameron, o seu grosso pescoço solidamente plantado entre uns hombros
athleticos são para a consideração de todos os inglezes os mais bellos
attributos de raça, o mais apreciavel caracteristico de uma distincção
privilegiada. Porque na educação ingleza a saude, o vigor muscular, a
força physica são o objecto de um culto.
Nos collegios Eton, Rugby, Harrow, os jogos athleticos, a pella, o
exercicio do remo, a carreira, o _foot ball_, o _cricket_ occupam todos
os dias algumas horas de applicação. Duas vezes por semana, quando
menos, as aulas terminam ao meio dia para darem tempo aos exercicios
physicos. As contendas entre os alumnos decidem-se ao pugilato, deante
de testemunhas, com padrinhos que estabelecem as condições do combate,
que amparam o vencido, que lhe refrescam com agua as contusões, porque
estes encontros não terminam sem um ou outro ou ambos os contendores
ficarem com um olho pisado, um dedo partido, ou um beiço esmurrado por
um dos socos do adversario. Toda a creança que se exhime a liquidar n'um
combate leal as suas pendencias de honra é despresada pelos seus
camaradas e considerada como incapaz de vir a ser jámais um verdadeiro
_gentleman_.
Do collegio passam os alumnos creados n'este regimen durante a
adolescencia para as universidades, onde a mocidade se desenvolve sob um
regimen egual: conhecem-se as celebres regatas no Tamisa entre as
equipagens das duas universidades de Oxford e de Cambridge. Os
estudantes ricos exercitam-se e fortificam-se ainda montando a cavallo,
caçando a raposa, governando a quatro. Para se tornarem vigorosos e
dextros, creanças, moços, adultos, homens de quarenta e cincoenta annos,
outros muito mais velhos, como por exemplo lord Palmerston, cumprem as
mais severas prescripções hygienicas, submettem-se a uma alimentação
especial, absteem-se de todo o excesso que prejudique o desenvolvimento
systematico da musculatura. Os principaes divertimentos nacionaes são os
exercicios de agilidade e de força. Ha _crickters_ que teem ido jogar
partidas solemnes de Londres á Australia.
Em Lisboa vivem dois inglezes que vão frequentemente a Cintra a pé,
levam as suas espingardas, passam o dia a caçar nos Capuchos e
regressam á noite sempre a pé. Tripulam uma pequena embarcação com a
qual teem batido em muitas apostas todos os catraeiros do Caes do Sodré.
Ha poucos dias foram ao Porto expressamente para regatar com o club
d'aquella cidade. Foram vencidos pelos do Porto. Depois da regata havia
uma partida de _cricket_. Um dos inglezes a que nos referimos
sustentou-se no campo cinco horas consecutivas sem nunca sair do jogo.
Dois officiaes a bordo de um dos navios da ultima esquadra que esteve no
Tejo partem a pé de Lisboa, pela manhã, vão a Mafra, passeiam na mata,
percorrem todo o enorme edificio do convento, almoçam um bife e voltam a
pé a Lisboa, chegando a tempo de estarem em um jantar de convite, á hora
fixada, lavados, perfumados, frescos, com os seus uniformes de _soirée_
e uma rosa de Mafra na casa da farda.
D'estes factos e de muitos outros equivalentes, que seria prolixo
enumerar, deduz-se que o assumpto de uma conferencia, que não vemos por
emquanto citada entre as que nos annuncia a Academia ácerca da
civilisação africana, poderia intitular-se: _Da influencia do «sport» no
caracter dos povos exploradores_.
* * * * *
A Academia póde muito bem civilisar a Africa pelo modo mais
superiormente sabio na rua do Arco a Jesus, mas não seria talvez
inteiramente ocioso o perguntar quem é que ha de ir levar aos interiores
inhospitos da Africa as bases elementares d'essa civilisação. Não ha
duvida que é possivel mas não é completamente inaccessivel a algumas
objecções a hypothese de que os negros se queiram desde já civilisar a
si mesmos e venham expressamente para esse fim á Academia escutar. Ao
passo que, por outro lado, as prelecções dos illustres academicos não se
distinguem das conferencias feitas em Paris e em Londres pelos viajantes
extrangeiros unicamente no facto de encararem os assumptos por um ponto
de vista contrario, distinguem-se ainda pela particularidade de que os
srs. Cameron e Young fizeram as suas exposições depois de chegarem, e os
srs. academicos, com excepção do sr. José Horta, fazem as suas um
poucochinho antes de partirem. Isto em nada prejudica o valor real da
doutrina academica, que de modo algum menospresamos. O que pretendemos
simplesmente notificar é que talvez não seja facil encontrar-se de
pronto quem vá traduzir em bunda ao gentio de Africa a prosa eloquente
e vernacula dos civilisadores inamoviveis da metropole. Não é facil
encontrar esses homens, porque a raça dos nossos antigos expedicionarios
abastardou-se e extinguiu-se na molleza dissoluta dos costumes modernos.
Folheem-se os velhos chronistas, examinem-se os retratos dos homens dos
nossos descobrimentes e das nossas conquistas:
Affonso de Albuquerque, aos sessenta e tres annos de idade, cercado dos
desgostos mais profundos, arrosta durante cinco mezes com os estragos
devastadores da terrivel dysenteria asiatica, porque--diz João de
Barros--_como era fragueiro e pouco mimoso de sua pessoa só se lançava
em cama, quando mais não podia_. Albuquerque que em saude reunia á força
physica a grande força moral da alegria--_era homem de muitas graças e
motes, e em algumas melancolias leves, no tempo de mandar, soltava
muitas, que davam prazer a quem estava de fóra,_--assim tocado de morte
por uma enfermidade que não perdôa nunca, reune conselho de capitães,
nomeia o seu successor põe bôa ordem em todos os negocios da
administração da India, escreve a el-rei a famosa carta, modelo de
hombridade e de independencia, cujo autographo se conserva na Torre do
Tombo, despede-se do rei de Ormuz, e faz-se ao mar em um dos seus
navios, onde expira, tendo fulminado a incompatibilidade das monarchias
com o direito por via da conhecida phrase: _mal com o rei por amor dos
homens, mal com os homens por amor do rei_.
O infante D. Henrique--segundo o mesmo João de Barros--_tinha largos e
fortes membros acompanhados de carne: a côr da qual era branca e corada,
em que bem mostrava a boa compleição dos humores. Tinha os cabellos
algum tanto alevantados, e o acatamento_ (_por a gravidade de sua
pessoa_) _um pouco temeroso a quem d'elle não tinha conhecimento._
Do conde Duarte de Menezes, a quem D. Affonso V deu a capitania de
Alacer-Ceguer, e que foi um dos heroes da Africa, diz Gomes Eanes de
Azurara: «Foi este conde de baixa estatura de corpo, enformado em
carnes, e de cabellos corredios, e graciosa presença, embargado na
falla, e homem de grande e bom entendimento, pouco risonho nem
festejador, tal que quasi do berço começou de ter auctoridade e
representação de senhorio. Foi muito amador de verdade e de justiça,
_mui temperado em comer, e beber, e dormir, e soffredor de grandes
trabalhos, tanto que parecia que elle mesmo se deleitava em os haver,
porque quando lhos a necessidade nom apresentava elle por si mesmo os
buscava_. E segundo entender dos homens nem se desenfadava tanto em
outra cousa, como nos feitos da cavallaria, como aquelle que quasi do
berço usara o officio das armas.»
Diriamos estar vendo colorida no stylo das nossas velhas chronicas a
photographia moderna de um _sportman_ da Grã-Bretanha.
Do mesmo Duarte de Menezes diz Schoeffer: «O poder que tinha sobre si
mesmo, a sua gravidade natural, que raras vezes interrompia por um
sorriso, e sobretudo o seu juizo são e a sua alta intelligencia
tornavam-o _proprio para o commando_.»
O infante D. Pedro, o que, segundo o proloquio popular, _viajou as sete
partidas do mundo_, era alto e magro; diz Schoeffer que a suavidade do
seu olhar abrandava a impressão de receio produzida pela sua estatura e
pelo seu rosto fortemente carregado; «irado tinha um aspecto que
infundia terror».
Os corações eram de uma tempera inquebrantavel, hostil á
sentimentalidade e á ternura. Em um combate no assedio de Alcacer,
Martim de Tavora arranca do poder dos moiros a golpes de espada o seu
fidagal inimigo Gonçalo Vaz Coutinho, verte para o conseguir o seu
proprio sangue, arrisca eminentemente a sua vida, e quando Gonçalo Vaz
lhe pergunta como viverão d'ahi em diante, Tavora responde-lhe
duramente: «Como dantes.» E a inimisade dos dois continuou inabalavel.
Os que eram dados ao galanteio das damas commoviam-as mais pela asperesa
varonil do aspecto do que pela suavidade effeminada das formas.
Na lenda dos doze que foram bater-se na corte de Londres pelas damas do
Palacio, o Magriço diz á loura _miss_ que depois do combate ia
deitar-lhe agua ás mãos: «Sabei, senhora, que as minhas mãos, segundo as
tenho assim tão grosseiras e cabelludas, poderão ser-vos molestas e temo
que vos causem desgosto.» Ao que a mimosa ingleza replica fazendo sentir
ao calejado e cabelludo cavalleiro que a bella mão de um homem é a que
denota pelo seu aspecto não dedicar-se ás caricias molles, mas sim aos
fortes trabalhos que teem como fim a honra e como premio o amor.
O Vasco da Gama era de um porte tão exforçado e valoroso, que o rei D.
Manuel, hesitante na escolha do homem a quem devia entregar o commando
da expedição projectada, vendo-o atravessar por acaso na sala em que ia
sentar-se á mesa para jantar, determina que seja aquelle o que vá
descobrir-lhe a India.
O modo como o Gama esmaga a seu bordo a conspiração dos pilotos basta
para provar que D. Manuel tinha o olho prescrutante que adivinha os
homens pela cara. Sacudido pela tempestade temerosa no meio de empresa
de tanto risco e de tamanha aventura, quando a guarnição desalentada e
espavorida pede em todos os navios da frota que se arribe, que se
regresse á patria, o Gama prende a um por um todos os pilotos cabeças do
motim, carrega-os de ferros, encarcera-os no porão, intima-os a que lhe
entreguem «quantas cousas tinham da arte de navegar» sob pena de os
enforcar a todos, e havendo na mão as cartas que os deviam orientar na
volta, lança tudo ao mar, exclamando: «Olhae que não tendes mais mestres
nem pilotos nem quem vos ensine o caminho de hoje em diante. A Deus vos
encommendae e pedi misericordia, e a mim de hoje ávante ninguem me diga
que arribe; porque de mim sabei certo que, se não achar recado do que
venho buscar, não voltarei nunca mais.»
Ao que a guarnição se submetteu com a docilidade de quem não tinha senão
dois caminhos que escolher n'aquella viagem:--o da India ou o da morte.
O proprio Camões, o immortalisador das façanhas d'essa velha raça, era
elle mesmo um forte, um destemido, um lord Byron da Renascença. Os seus
costumes de audaz espadachim e de famigerado tranca-ruas crearam-lhe na
India conflictos arriscados, de cujas ameaças elle sorria dizendo: que
só era vulneravel pelas solas dos pés e que estas ninguem lh'as vira nem
havia de ver.
Em todas as altas figuras do nosso grande seculo se patenteia o typo
expressivamente caracteristico de uma forte raça privilegiada, hoje
extincta.
A Europa sahia apenas do regimen feudal. Conservavam-se vivas no coração
de todos os fidalgos as tradições da cavallaria. Os besteiros de conto
eram apenas uma debil tentativa do que deviam vir a ser mais tarde os
nossos exercitos permanentes.
Os grandes vassalos defendiam os seus foros com numerosas lanças, e nos
prasos em que não serviam o rei e a patria batendo-se com inimigos
extrangeiros, adestravam a mão em sortidas e escaramuças intestinas.
Quando não combatiam monteavam.
Tinham a educação da guerra, a experiencia das aventuras arrojadas e das
duras privações.
Os divertimentos publicos eram ainda os jogos guerreiros: o _tavlado_,
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