As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1877-05/06) - 1

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RAMALHO ORTIGÃO--EÇA DE QUEIROZ
AS FARPAS
CHRONICA MENSAL DA POLITICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES
NOVA SERIE TOMO IX
Maio a Junho 1877


Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder,
da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das
sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da
politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande
universo, e da adoração de mim mesmo.
P.J. PROUDHON


SUMMARIO
A burra do Estado. Porque motivo o ministerio Fontes se deitou abaixo
d'essa burra, e do mais que então passou. A queda do dente. Elogio do
dente pelo sr. Assumpção. O dente embrulhado n'um papel. O dente aos pés
do throno. O dente demittido. Pede-se um dente novo.--O drama _Leonor de
Bragança_ e a caixa do Poder Moderador. Parallelo da peça do sr. Luiz de
Campos e da do sr. Alfredo Ansúr. Os caracteres em cada uma das duas
peças, a lingoagem, o stylo, a cortezania, a intenção moral. Conclusões
do referido estudo: requisita-se para o sr. Ansúr a commenda do lagarto
ou metade da caixa conferida pelo Poder ao sr. Campos.--As corridas de
cavallos--O premio do Jockey-Club e o premio da Academia--O progresso em
Lisboa durante o ultimo semestre. A sociedade affirma o seu movimento
ascendente na civilisação por meio de dois novos estancos e de uma
ourivesaria. Philosophia de uma vitrine de joias--A peregrinação a Roma.
Os preparativos. A partida. A prescripção da _toilette_. A chegada a
Lourdes. Aspecto pittoresco e elegante do milagre: o _restaurant_, o
trem de Paris, as _parties fines_ sobre a relva, o Champagne e as
bilhinhas da agoa. Em Roma. As offerendas. O dinheiro de S. Pedro. A
applicação d'esta receita. O album dos peregrinos e o que n'elle se
contém. A nossa allocução. O primeiro e o ultimo jubileu. Pio IX e
Bonifacio VIII. A antiga fé. Os peregrinos em 1300. A fé actual e os
peregrinos d'hoje. O conflicto da sciencia e da fé. O Deus de Darwin. Os
novos poderes espirituaes. De como ninguem quer o ceu do Padre
Marnoco--A primeira communhão de sua alteza o principe--A civilisação
africana e as conferencias academicas. Uma conferencia que se não faz:
_Da influencia do «sport» no caracter dos povos exploradores_.
* * * * *
Era em uma bella manhã do mez de março. A primavera, essa filha do amor
e da brisa--como diria o sr. Antonio de Serpa se as conveniencias
partidarias lhe permittissem ainda dedilhar a theorba sob o lyrico
balcão de D. Mafalda--tinha estendido sobre as campinas o seu manto de
esmeraldas. Nas estradas que convergem a Lisboa um alegre raio de luz
animava a circulação da vida suburbana. Havia um novo tom festivo no
chocalhar das recuas dos almocreves, no rodar das pesadas carroças da
hortaliça de que se exhalam emanações appetitosas de cuentro e de
pimpinella, no tic-tic do passo miudo e zeloso dos jumentos saloios
ajoujados de bilhas de leite e de seirões de roupa lavada. A agua das
regas rumorejava suavemente por baixo da macia verdura aveludada dos
favaes. As cotovias cantavam na espessura das hortas. Pelos portões das
quintas, de pateo ajardinado, sahia em calidas baforadas o perfume dos
limoeiros. Por cima dos muros pintados de amarelo bracejavam sobre os
caminhos as hastes dos pecegueiros em flôr. Uma aragem tepida e
balsamica cahia do ceu azul e envolvia n'um doce torpor voluptuoso e
suave os nervos dos lisboetas que madrugavam voltando de Cintra ou
desembarcando na gare de Santa Apolonia.
* * * * *
Foi dominado por essas influencias do clima, da paizagem, dos aspectos da
natureza, que o sr. Fontes Pereira de Mello deliberou deitar-se abaixo
do governo, retirando-se ao diletantismo particular e abandonando aos
que iam pela via a burrinha pacata e fiel do poder, que elle cavalgara
em cinco annos de choito glorioso atravez das _diversas provincias da
publica administração_.
Somos informados de que s. ex.ª, reunindo os seus collegas do ministerio
e os seus mais intimos amigos politicos, lhes fallara d'esta arte:
Senhores! Achando-me esta manhã á janella do meu quarto, fazendo algumas
considerações philosophicas e a barba, deliberei apear-me por algum
tempo da azemola do poder.
_Vozes de amigos intimos desapontados_.--Oh! oh! Não o cremos!... Não o
podemos crer!... É um gracejo, um puro gracejo de s. ex.ª! Que a burra
do poder venha á presença de s. ex.ª para que s. ex.ª a cavalgue! S.
ex.ª não pode assim descer da burra! Seria altamente impolitico
deixar-nos n'este momento com a burra devoluta nos braços! deixar-nos,
para assim dizer, com a burra atravessada na garganta! Haja ao menos um
pretexto, haja uma razão!
_O sr. presidente proseguindo_: Quereis uma razão? Eu vol-a dou. Acho-me
impossibilitado de proseguir provincias da publica administração além. Á
força de meditar nos altos negocios do estado acaba de me cahir um
dente...
_Vozes_--Dê o dente para ordem do dia!
_O sr. presidente (tirando o dente da algibeira e collocando-o na
discussão)_--Ahi tendes o dente. Abri sobre elle os mais largos e
rasgados debates, e julgae-o como vos approuver. É um queixal. Nada mais
acrescento. Sobre este ponto considerações de melindre pessoal me
inhibem de continuar. Farei apenas sentir aos meus amigos politicos e
aos meus collegas do gabinete que nem a camara nem o paiz nem a corôa
poderão, segundo penso, exigir da minha fidelidade partidaria que eu
sacrifique á investigação dos negocios os dentes que o meu ardente
patriotismo me impõe a obrigação de reservar para os inimigos da patria.
Tenho dito.
(_Vozes:_--Muito bem! Muito bem!)
* * * * *
O sr. Manuel da Assumpção, havida então venia para fallar, consta que
estendera a dextra sobre o dente, e proferira com ardor e enthusiasmo as
seguintes palavras:
«Meus senhores! Este dente é a pagina mais gloriosa da nossa historia. É
effectivamente um queixal, como s. ex.ª muito bem disse na sua phrase
tersa, de uma energia e de uma concisão dignas de Tacito. Ha oito dias
que os jornaes que nos guerreiam lançaram este dente na tela da
discussão, procurando fazer acreditar ao paiz e ás nações extrangeiras,
por meio de insinuações malevolas, que elle é canino. Mandando o dente
para a meza o sr. presidente acaba de confundir de uma vez para sempre
os seus adversarios. Queixal! Longa foi a tua carreira gloriosa.
Enraizado no queixo de s. ex.ª atravessaste com elle as mais duras
provações de uma carreira brilhante. Roeste o pão negro do ostrocismo.
Atolaste-te na lampreia d'ovos das doces illusões. Mascaste a cabedella
dos terriveis desenganos. Depois de cada um d'esses estadios na senda
dos progressos materiaes e moraes, s. ex.ª, com mão decisiva,
palitava-te. Um dia porém, á meza do orçamento, no grande banquete da
civilisação, n'esse campo de batalha onde se travam os combates
incruentes do progresso e onde o talher de s. ex.ª por muitas vezes
fulgurou desembainhado ao sol das victorias, tu, depois de uma violenta
refrega, com umas amendoas torradas de exercicios lindos, com uns
biscoutos de gerencias anteriores, e com algumas outras verdades duras
de tragar, appareceste furado. No dia seguinte s. ex.ª chamava ás armas
a reserva e um dentista, e tu, ó dente, recebias como os bravos o
baptismo do chumbo. A bala inimiga....
_O sr. Presidente_--Tomo a liberdade de interromper o illustre deputado
e meu nobre amigo para lhe fazer notar que o dente não recebeu o
baptismo do chumbo sob a forma de bala, mas simplesmente sob a forma de
pingo.
_O orador_--Do mesmo modo então que um fundo de chaleira?
_O sr. Presidente_--Precisamente do mesmo modo.
_O orador_--Agradeço infinitamente a s. ex.ª a informação que acaba da
prestar-me, e, se s. ex.ª m'o permitte prosigo, pondo de pane a piada
relativa á bala do inimigo...
Dente! cahiste alfim. A tua queda tem o caracter de um triumpho, pois
não cahiste arrancado por uma opposição accintosa e malevola; cahiste
porque tinhas os teus dias cheios e um pouco tambem porque estavas
podre.
Que mais queres, ó dente? que mais desejas? que mais ambicionas?...
_O sr. Presidente_--Peço perdão para ainda uma vez interromper o
illustre deputado, rogando-lhe que não tome por incivil o silencio do
dente ás suas interrogações. O dente é hoje a primeira vez que apparece
em publico separado dos seus companheiros, e deve-se ter em conta o
justo acanhamento que a sua nova situação lhe infunde. Eu acho-me porém
habilitado para satisfazer a curiosidade do illustre deputado em quanto
ás ambições do dente logo que s. ex.ª o exija.
_O orador_--Como deputado da maioria tenho a declarar ao sr. presidente
que nunca dirijo ao governo, nem no seu conjuncto nem separadamente a
nenhum dos seus queixaes pergunta alguma para que deseje resposta. As
minhas interrogações são puramente rhetoricas. O silencio com que fui
escutado pelo dente não sómente me não escandalisa mas antes pelo
contrario me penhora como um testemunho de benevolencia a que não
ousava aspirar.
Concluindo, tenho a honra de propor que, depois de embrulhado
respeitosamente em um papel, o dente seja levado ás plantas do poder
moderador, para que sua magestade haja por bem resolver como lhe
approuver esta passageira crise. Faço votos por que o sr. Presidente do
conselho se apresse em pôr ao serviço da nação um novo dente.»
* * * * *
Approvada unanimemente a eloquente proposta do sr. Assumpção, o sr.
Presidente do conselho recolheu-se a sua casa a tomar bochechos
emolientes emquanto o resto do ministerio partia para o Paço a levar ao
soberano o dente resignatario.
Constou pelos jornaes quo apenas recebera o dente sua magestade se
dirigira a casa do sr. presidente do conselho, com o qual teve uma
entrevista de duas horas. Estas duas horas foram empregadas pela corôa
em procurar reintegrar, pelas suas proprias mãos, o dente caído na
maxilla do illustre estadista.
Diz-se que a corôa, suando em bica, esgotára, para consolidar o dente
caído no seu logar primitivo, todos os meios compativeis com as
disposições do codigo fundamental da monarchia. Sua magestade tentára
fixar o dente ao chefe do gabinete com obreias, com adhesivo, com lacre,
com pez, com gomma arabica, com barbante, com alfinetes e com pregos.
O dente reagiu a todas as reaes instancias: o excelso politico, em cujo
queixo inferior elle se firmára durante cinco annos de gerencia
governativa não queria mais a confiança da corôa, queria unicamente
cosimento de malvas.
O monarcha lavrou então o decreto mandando o seu antigo ministerio
bochechar, e encarregou o sr. marquez de Avila e Bolama de reunir com os
seus amigos o numero de dentes necessarios para formar uma gerencia
duradoura e firme.
D'este encargo se desempenhou o sr. marquez com o zelo que o
caracterisa, e o actual ministerio nasceu.
* * * * *
Um dos nossos mais distinctos amadores, o sr. Luiz de Campos, acaba de
dotar o theatro de D. Maria com um drama, cujo exito constitue o maior
triumpho modernamente alcançado pelas letras portuguezas.
Não só os jornaes todos consagraram a esta obra louvores emittidos com
uma energia desusada, mas até a alta sociedade, de ordinario tão
parcimoniosa de curiosidade dispendida com a arte, patrocinou com
especial favor esta peça. O auctor teve a gloria de ver os seus finaes
d'acto applaudidos do fundo dos primeiros camarotes pelas mãos mais
aristocraticas. Nas situações patheticas do seu assumpto lagrimas
illustres sulcaram o pó d'arroz com que se perfumam os brazões das mais
nobres e distinctas familias. Finalmente no fim do espectaculo o Poder
Moderador, que assistira á representação em companhia da sua familia,
expediu um dos seus camareiros, o qual foi ao palco cumprimentar o
laureado dramaturgo, pedir-lhe desculpa de lhe não pingar do alto do
throno sobre o peito da casaca a commenda de S. Thiago, e entregar-lhe
em vez das insignias d'essa ordem excelsa e em nome do referido Poder um
cofre com uma pedra preciosa, que os jornaes do outro dia pela manhã
almotaçaram em 1:500$000 réis.
* * * * *
O drama do sr. Luiz de Campos intitula-se _Leonar de Bragança_ e encerra
a historia d'aquella desditosa, cuja mocidade e belleza feneceram de
subito, surprehendidas no ventre por trez facadas com que a brindou seu
esposo, o mui nobre e poderoso duque de Bragança, um dos antepassados do
Poder que hoje nos rege, e ao qual, bem como á sua familia, acima
tivemos a honra de reportar-nos submissa e respeitosamente.
O pretexto sob o qual D. Jayme damnificou com instrumento perfurante o
abdomen de sua mulher foram os amores d'esta com o pagem Antonio
Alcoforado.
Existiram effectivamente esses amores? Era a duqueza realmente culpada
de uma fraqueza anormal pelos pagens? Era Alcoforado um honesto e leal
servidor do principe D. Theodosio, ou era uma ratoeira vil de duquezas
incautas?
* * * * *
Ha duas opiniões ácerca do modo de considerar no theatro a natureza
d'este facto.
Na sua _Leonor de Bragança_, escripta em prosa, o sr. Luiz de Campos
entende que a duqueza é innocente. Na sua _Leonor de Bragança_, escripta
em verso, o sr. Alfredo Ansúr julga a duqueza culpada.
Os fados, que tão propicios foram á obra do festejado sr. Campos,
trataram adversamente a obra não menos estimavel do malogrado sr. Ansúr.
Julgamos do nosso dever protestar contra esta dura injustiça pondo em
cotejo as duas composições a que deu origem a tragica aventura de
Leonor.
* * * * *
No drama do sr. Luiz de Campos a culpa toda do nojoso sarrabulho
perpetrado por D. Jayme está unicamente, segundo diz o sr. Campos, em
_haver o pagem um coração_. O sr. Luiz de Campos emprega constantemente
_haver_ em logar de _ter_, não só nos casos em que esse verbo é usado
como auxiliar mas ainda quando se toma na accepção de possuir. Acatamos
discretamente as rasões de pundonor e de dignidade que possam ter levado
este cavalheiro a cortar as suas relações pessoaes com o verbo _ter_. O
simples depoimento do verbo _haver_, conjugado com tanta lealdade,
cravado no discurso com tanta firmeza como aquella que se admira em
todas as locubrações litterarias d'este auctor, basta para nos convencer
da innocencia de Leonor.
Todos os encontros da duqueza com o pagem no decurso d'esta peça são de
um caracter fortuito absolutamente illibado.
A scena está vasia. Leonor tem por acaso de atravessar do segundo
bastidor á esquerda para o segundo bastidor á direita exactamente no
momento em que Alcoforado por egual acaso atravessa do segundo bastidor
á direita para o segundo bastidor á esquerda. Elles veem ambos meditando
no verbo _haver_, e descarregam um sobre o outro o objecto das suas
cogitações pouco mais ou menos nos seguintes termos:
_Duqueza_--Houveste alfim volvido?
_Pagem_--Houve; e vós, senhora, que heis de determinar-me?
_Duqueza_--Nada hei.
_Pagem_--Hão, quiçá, offendido-vos outra vez?
_Duqueza_--Não hão. Pagem, havereis de volver a casa do sr. D.
Theodosio.
_Pagem_--Visto que não heis de mim de, senhora minha, haja de se cumprir
vossa vontade! Haverei força, haverei de havel-a... Manhã, ao toque de
prima, serei partido. De nada mais heis mister?
_Duqueza_--De nada mais hei, pagem; e a Deus prasa que jámais haja de
haver! Idevos presto a D. Theodosio, consoante-vos hei di-lo pouco ha.
_Pagem_--Em mim havei fé, minha senhora ama: eu me vou.
_(Saem ambos, cada um por seu lado, meditabundos.)_
A entrevista que dá causa á vingança do duque não a tem Alcoforado com a
duqueza mas sim com uma das suas damas. Em toda a peça, finalmente, a
duqueza, nem por carta, nem de viva voz, nem de simples ôlho, tem para
Antonio uma palavra, um aceno, um gesto, em que se presinta de leve que
seja a exhalação da perfidia.
* * * * *
O sr. Ansúr é menos complacente com os seus personagens, como vamos ver.
BEATRIZ ANNES
_Grande mal, grande mal, senhor Fernão!_
FERNÃO RODRIGUES
_Que mal?_
BEATRIZ ANNES
_Homem em casa._
FERNÃO RODRIGUES
_Com a aia?_
BEATRIZ ANNES
_Não._
FERNÃO RODRIGUES
_Com quem pois?_
BEATRIZ ANNES
_Com nossa ama._
O fogoso e pittoresco sr. Ansúr vae mais longe ainda: colloca o pagem
aos pés da duqueza e põe na bocca de um e outro estas palavras:
PAGEM
_Que enthusiasmo sinto! Arfa-me o seio
Em vertigem de amor! Sinto a poesia
Na mente distillar grata ambrosia.
Ó senhora duqueza! Minha vida!
Como vos amo!_
LEONOR
_Antonio! alma querida..._
PAGEM
_Longe de vós a vida é-me desterro...
Perdoar-me-heis do coração este erro?_
LEONOR
_Sim._
PAGEM
_Sem vos escutar e sem vos ver
Não podia, senhora, mais viver!
Meu peito abrasa._
LEONOR
_Doce pensamento,
Longe de ti é egual o meu tormento._
E a duqueza prosegue exaltando-se n'uma gradação rhetorica perfeitamente
calculada pelo sr. Ansúr até o ponto de lhe dizer o Alcoforado:
_Calae-vos por piedade! Tende imperio
Sobre a imaginação._
Em outra scena da peça depois de uma entrevista secreta com o pagem, á
hora da meia noite, a duqueza profere uma palavra physiologica, de um
sentido decisivo:
_Como evitar que o duque venha, e veja
Aqui tua presença que me peja?_
PAGEM
_Meu Deus!_
LEONOR
_Jesus! esconde-te!_
Ao que o pagem, com o temerario valor que só os altos sentimentos
persuadem, replica energicamente:
_Fujamos!_
LEONOR
_Por onde oh! ceus?_
PAGEM
_Por esta porta._
LEONOR
_Vamos._
Sendo tanto a _Leonor de Bragança_ do sr. Luiz de Campos como a _Leonor
de Bragança_ do sr. Alfredo Ansúr peças offerecidas pelos seus auctores
a sua magestade el-rei o sr. D. Luiz I, é claro que ellas devem ser
consideradas pela critica não como livres producções litterarias mas
como especiaes mimos dedicados á familia de Bragança. Ora sob este ponto
de vista--não hesitamos em dizel-o--a obra do sr. Ansúr parece-nos muito
mais completa e perfeita que a do sr. Luiz de Campos.
Pomos de parte a questão da investigação historica, que foi egualmente
aprofundada pelos dois auctores. O sr. Luiz de Campos reforça-se com o
testemunho dos documentos que manuseou: _A historia genealogica, As
Decadas_ de Couto e de Barros, a _Chronica de D. Manuel_ por Damião de
Goes e o _Auto de inquirição e devassa_ existente na Torre do Tombo. O
sr. Alfredo Ansúr fortifica-se exactamente com os mesmos documentos por
elle compulsados.
Para suas excellencias, armados de eguaes argumentos pró e contra a
duqueza, a escolha do papel que tem de lhe ser dado n'este drama é pois
uma questão de gosto. O sr. Ansúr, emquanto a nós, escolheu melhor, e
fez a sua magestade el-rei uma dadiva mais delicada.
Segundo o sr. Ansúr o duque de Bragança D. Jayme é um cavalheiro infeliz
em familia, ao qual succede--como muito bem diz Menelau na Bella
Helena--uma fatalidade. O duque deteriora a região intestinal da
duqueza, mas deteriora-a em legitimo desforço da sua dignidade offendida
e ao abrigo das leis do reino.
Segundo o sr. Luiz de Campos, dada a innocencia da esposa, o duque não
passa de um sanguinario estupido, que envolve o seu brasão de familia e
a futura tradição dynastica n'um ignobil e affrontoso chouriço de sangue
innocente. O acto de mandar desossar pelo cosinheiro o pagem Alcoforado,
com o mesmo facalhão com que se picam os bifes, é um facto indecente
que, posto o criterio do sr. Luiz de Campos, estabelece um precedente
que pode levar os servidores da casa de Bragança a não distinguirem
inteiramente a differença que ha em ir para o paço e em ir para a
salgadeira.
Eliminada a circumstancia do adulterio o duque é um facinora vulgar sem
nenhum apoio na jurisprudencia ou na legislação. Depois da leitura da
peça do sr. Luiz de Campos, um jury sensato que houvesse de julgar D.
Jayme, mandal-o-hia degradado por toda a vida para a Costa de Africa.
Só assim se poria uma sociedade culta ao abrigo de um principe que faz
das esposas e dos vassalos um consumo que se não justifica pelas
necessidades ordinarias da vida exterior.
* * * * *
Parece-nos ser um serviço em extremo subalterno prestado a alguem o
publicar a historia de um dos seus antepassados á luz de uma critica
cujas derradeiras consequencias são, como no drama do sr. Campos, a
condemnação do mesmo antepassado a um genero de glorificação e de
apotheose que elle só pode remir com a prisão correcional perpetua.
Na peça do sr. Ansúr o antepassado do alto personagem a quem elle a
offerece e consagra apparece-nos satisfactoriamente levado ao crime por
uma provocação cheia de solicitude e de cortezia. «Ha homem em casa. Com
a creada? Não. Com a patrôa.» Este grito sublime de clareza e de
concisão esparge no facto um raio de luz juridica e lança um immenso
clarão de legalidade e de justiça sobre o chifarote brigantino destinado
á perfuração das damas.
Nada mais tocante do que a situação do duque ao receber o fatal
desengano:
_Horror! Infamia! Anathema! Vergonha!
.......................................
Rompe-se-me do ser toda a harmonia,
Passa-se-me na mente extranha orgia!
Estalam-me no corpo algumas fibras!
Meu pobre espirito, que assim te libras
Do desespero na mortal esphera,
Não te consumas tanto! Acalma! Espera!
.........................................
Mofina dor me roe, me despedaça!
Emquanto descuidoso andara á caça,
Tu deliravas... tu... oh! que villeza!_
E depois dirigindo-se ao pagem:
_Arrepende-te dos teus peccados
Que os fios da tua vida estão contados!_
PAGEM
_Perdão! piedade!_
DUQUE
_Soffre com valor
Que mais soffreu par nós o Redemptor!
.....................................
.........................Alfim
Com o manchil Domingos cortará
A cabeça do pagem. Morrerá._
A duqueza intervem com esta conceituosa
mas intempestiva maxima:
_Jamais decepes com manchil odioso
A cabeça de um justo. É horroroso!_
O duque não precisa que lhe ensinem a resposta...
_Sabe mostrar do Barbadão de Veiros
O descendente, como pune o ultraje,
Que lhe fizeste, Leonor! Apage._
Não são estes porém os unicos serviços prestados pelo sr. Ansúr á
clareza justificativa dos factos e ao esplendor immarcessivel da casa de
Bragança. A peça d'este benemerito cavalheiro abunda em conceitos e em
noções preciosas para a historia da nossa monarchia. Quem é o luso que,
presando-se de amar o rei e a patria, deixará de ler sem uma commoção
profunda as seguintes palavras que o auctor põe na bocca da mãe de D.
Manuel, por occasião do advento d'este monarcha ao regio solio?
_Omnipotente Deus! quiz o destino
Dar existencia ao throno manuelino!
Quem predissera tal, filho cadete,
Quando surgiste á luz em Alcochete?!_
Temos por indigno e refece todo o cortezão que achando-se ao serviço da
casa de Bragança se recusar a decorar os seguintes carmes em que o sr.
Ansúr celebra os antigos privilegios heraldicos de tão distincta
familia:
_A não ser o real, não ha poder,
Que possa hoje nos reinos exceder
O de nosso senhor! Póde D. Jayme
(Ó fóros brigantinos inspirae-me)
Nas salas dos seus paços ter doceis
E sitiaes nas egrejas dos fieis.
Forrada com arminhos, rica, larga
Vestir opa vermelha aberta á ilharga;
Ante si leva estoque, segundo acho,
Com o extremo voltado para baixo,
Distinctivo dos reis, que é para cima._
Faz gosto ler estas noticias e pensar a gente que pertence a um paiz em
cujo throno se acha uma familia que antes de reinar tinha o direito de
levar estoque para baixo, que ao reinar adquiriu o direito de levar
estoque para cima, de sorte que póde hoje em dia (ó fóros brigantinos
acudi-me), levar estoque simultaneamente para cima e para baixo!
A unica coisa que se nos offerece reprehender na peça do sr. Ansúr, por
innumeros titulos superior á do sr. Luiz de Campos, é que o auctor a não
tivesse accrescentado com mais um acto, no qual, para completa
rehabilitação da casa de Bragança, o duque D. Jayme nos apparecesse
resgatando-se aos olhos do Omnipotente por meio das penitencias em que
consumiu até o ultimo dia da sua taciturna viuvez. Nos paços de Villa
Viçosa ainda hoje se mostra aos viajantes uma tina cavada no chão, a que
se desce por quatro degraus, na qual é tradição geralmente crida que o
nobre duque se mettia em agua, durante uma hora por dia, para desaggravo
e remissão de suas culpas. O illustre heroe tão devéras se arrependeu
que chegou a mortificar-se d'esta maneira insolita e sem
precedentes--tomando banho!
Seria um bello melhoramento na obra do sr. Ansúr que s. ex.ª a
completasse com um breve epilogo, em que D. Jayme fosse visto amarrado
pelo grilhão da penitencia a uma bacia, e ciliciado no vivo das suas
carnes ultrajadas e viuvas pelo contacto expurgante de um sabão.
* * * * *
Postas estas considerações, não podemos deixar de perguntar: Porque
motivo não caiu do alto da regia munificencia sobre o peito inspirado do
sr. Ansúr o pingo da nobre ordem do lagarto, do merito artistico e
litterario, pingo suspenso da real goteira sobre as boças poeticas do
sr. Luiz de Campos? Não fez o sr. Ansúr um drama de assumpto brigantino
como o do seu collega? Não tem o sr. Ansúr a precedencia n'esta creação
litteraria? Não é a sua obra dedicada egualmente a el-rei? Não é ella
escripta em bellas parelhas de versos de dez syllabas, em vez de o ser
em prosa villôa como a do seu competidor?
O sr. Luiz de Campos, não podendo pela sua qualidade de deputado receber
mercês honorificas, teve de el-rei o presente de um cofre no valor acima
referido de 1:500$000 réis.
Não so dando com o sr. Ansúr a incompatibilidade annexa ao mandato
popular, porque não se lhe confere a commenda da nobre ordem ou, quando
menos, a sua equivalencia em cofre com pedra preciosa no valor de réis
1:500$000?
Grave e inexplicavel injustiça! Se a nossa debil voz póde chegar até ás
orelhas da corôa, nós diremos ao augusto soberano:
Senhor! A vossa protecção ás letras patrias não se tem até hoje
desmarcado de uma reserva tão discreta como constitucional. Os
dramaturgos que precederam Luiz de Campos e Alfredo Ansúr apenas teem
colhido da regia liberalidade a graça de haverem possuido collocado em
uma _avant-scène_, durante uma ou duas representações das suas peças, o
vosso real perfil, que outros não possuem senão collocado nas moedas de
5$000 réis, coisa miseravel e vil. Acabado o espectaculo vós enfiaes o
vosso paletot, accendeis o vosso charuto, retomaes o vosso sceptro no
bengaleiro, e ides para casa recolher as commoções da noite sob o
agasalho da vossa corôa de dormir, de algodão branco com uma borla na
ponta. O genio nacional não pôde ainda até hoje obter da vossa
munificencia manifestações mais expressivas. Uma vez, porém, que
deliberastes inaugurar a éra do galardão litterario, dae a Alfredo
Ansúr a commenda que Luiz de Campos não pôde acceitar. Dae-lh'a quanto
antes. Não espereis que á cabeceira do vosso leito se erga o espectro do
remorso, e que, sob a figura do poeta menosprezado, elle vos brade nos
silencios da noite:
«Descendente de Barbadão! solta-me o lagarto! Larga o lagarto,
Barbadão!»
Se o throno for surdo ás nossas vozes, cairemos sobre o sr. Luiz de
Campos, e com o manchil da justiça distribuitiva em punho
cortar-lhe-hemos a dadiva regia ao meio!
Que o sr. Ansúr nos diga para onde quer que se lhe mande a metade do
brinde que lhe lhe compete.
* * * * *
Hoje, 7 de maio, corridas de cavallos no hippodromo de Belem.
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