As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1877-01/02) - 4

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uma:--ou a força dirigente do futuro social, a cabeça do paiz, ou uma
excrecencia apparatosa, um orgão atrophiado e inutil á civilisação.
* * * * *
Sendo os homens que escrevem ordinariamente superiores aos homens que
lêem, a funcção da publicidade é predominar nos espiritos--ou seja
lisonjeando-os, ou seja combatendo-os. Toda a obra litteraria dá um
d'esses resultados; ou se adapta ás opiniões existentes e as consolida e
reforça ou reage sobre ellas e as decompõe. Toda a litteratura ou é
_conservadora_ ou é _revolucionaria_. Queremos dizer: ou transige
passivamente com as condições do meio social ou se debate contra o
obstaculo que a influencia d'esse meio lhe impõe.
Sempre que a litteratura toma o caracter conservador tende a immobilisar
a sociedade e a atrophiar o progresso. Foi o que succedeu nos seculos em
que a litteratura não fez mais do que fortalecer as superstições que
achou consagradas no seu caminho, prostrando a humanidade n'um marasmo
de quinhentos annos embalados com o esteril rumor monotono das homilias
e das legendas dos santos. Felizmente, desaprendendo quasi completamente
de ler, a humanidade voltou a si. A litteratura havia sido para ella uma
catacumba em que jazera sepultada pela credulidade, amortalhada pelo
mysticismo. Guizot calcula em vinte e cinco mil as vidas de santos de
que se compõe a bibliotheca bollandista, e são esses _acta sanctorum
quotquot tote orbe coluntur_ que encerram a historia inteira da
humanidade sob o regimen clerical em toda a Europa e em quasi todo o
Oriente, desde o seculo VI até o seculo XII! Com razão conclue Buckle--o
grande historiador da civilisação--que o maior dos estorvos do progresso
tem sido a manutenção do erro pelo poder litterario.
Nos tempos modernos, sob os dominios despoticos, em quanto a obra do
pensamento foi disciplinada pela policia clerical e monarchica como
succedeu em Portugal durante o imperio do Santo Officio, a litteratura
deixou egualmente de ser o livre producto artistico e converteu-se n'um
poder do Estado, o mais enervante para a imaginação, o mais dissolvente
da intelligencia e da dignidade humana.
Portanto: a primeira condição social para a existencia de uma
litteratura compativel com o progresso é a liberdade.
Todo o escriptor portuguez actual nasceu n'esse meio propicio. Todavia,
por uma fatalidade physiologica, por um effeito da heriditariedade,
falta-nos a orientação cerebral da independencia. O nosso espirito
conserva o stygma servil, o signal da marca que, em muitas gerações que
nos precederam, foi deixando a grilheta da oppressão mental. A nossa
tendencia de escriptores é ainda hoje, geralmente, para lisonjear a
rotina, para comprazer com o vulgo, para seguir as correntes da
credulidade geral.
A maior parte dos individuos que fazem um livro teem, nas precauções da
forma, no rebuço das opiniões, na doblez do stylo, o ar miseravel de
pedintes que solicitam venia para divertir inoffensivamente o
respeitavel publico.
Entre as aberrações eminentes d'essa tendencia geral, como por exemplo
os srs. Anthero de Quental e Guerra Junqueiro na poesia, o sr. Theophilo
Braga na historia e na critica, o sr. Oliveira Martins na economia
politica, a Sr.ª D. Maria Amalia Vaz de Carvalho no
folhetim,--apparece-nos o sr. Eça de Queiroz no romance. Na pequena
litteratura portugueza destinada a ser um agente na evolução das ideias
e dos costumes, um elo no grande encadeamento das causas e dos effeitos
sociaes, _O crime do padre Amaro_, representa a obra mais profundamente
caracteristica.
Este livro foi recebido pela imprensa periodica com um silencio que pode
parecer o resultado de um _mot d'ordre_. Cremos, para honra do
jornalismo, que a razão do apparente despreso de que foi objecto este
romance está no simples facto de que a critica se considerou
incompetente para o julgar. A unica coisa de que temos de accusar a
critica é de nos não haver dito isso mesmo. Em circumstancias analogas
as _Farpas_ deram um exemplo de sinceridade que ficou esteril. Um dia
escreviamos um artigo ácerca do adulterio; a logica arrastava-nos a
deducções que nos não atreviamos a imprimir; publicámos o nosso artigo
até o ponto em que o julgavamos compativel com os costumes e
concluimol-o com a confissão franca de que nos achavamos coactos pelo
publico. Quando tivemos medo confessamol-o. É verdade que omittimos uma
opinião, mas, estudando os costumes, revelamos pelo menos um estado de
espirito que elles determinavam e que seria um symptoma a ponderar pelos
analysadores que se nos seguissem.
_O crime do padre Amaro_ é effectivamente difficil de sentenciar porque
constitue um caso novo, não previsto nas ordenações porque se regulam as
audiencias geraes do folhetim e do noticiario.
Essencialmente moderno este romance não é a narrativa de uma aventura ou
de uma serie de aventuras á Lessage, á Dumas ou á Gaboriot, não é um
estudo de sentimento á Rousseau, á Alfred de Musset ou á George Sand. É
uma pintura de caracteres, mas não uma pintura á Balzac ou á Flaubert,
porque este livro não é exclusivamente de nenhuma escola senão da escola
de si mesmo, e é esse cunho profundamente pessoal qne lhe dá o caracter
que o distingue como verdadeira obra d'arte.
Ora uma exposição de caracteres se pertence á sphera da arte pelos
processos da pintura, é um ramo da historia e está subordinado á
sciencia pelas operações de critica e de relacionação. O officio do
historiador é discernir no estudo das epocas e no estudo dos
acontecimentos o seu caracter social. O officio do romancista é
discernir no mesmo estudo das epocas e no mesmo estudo dos factos o seu
caracter artistico. O methodo do historiador é o methodo do romancista.
Não pode ser romancista um simples _observador_. Cada sciencia tem, como
diz Littré, o seu methodo particular e caracteristico. A _observação_ é
um methodo exclusivo da astronomia, para cujos phenomenos irreductiveis
o astronomo não pode fazer mais que olhar. O chimico procede pela
_experiencia_ e pela _analyse_. O biologo tem por methodo especial a
_comparação_. O historiador, e por tanto o romancista, teem como
instrumento particular a _filiação_, isto é, a producção dos estados
sociaes uns pelos outros. Pintar um caracter é expor no personagem a
figura moldada dentro do contorno delineado n'uma dada porção do espaço
e do tempo por um certo estado social.
Um caracter é um phenomeno historico, que se não comprehende senão
emoldurado na convergencia de todos os factores que o produziram.
É por isso que o romance de caracteres tem de ser uma exposição
concentrica de todas as influencias que determinam um pensamento ou um
acto;--influencias naturaes, o solo, o clima, os aspectos da paizagem, o
sexo, a idade, o temperamento, a idiosyncrasia, a heriditariedade;
influencias sociaes, as instituições, os costumes, a familia, a
educação, a profissão.
Comprehende-se a commoção de surpreza que produziu este livro, ao
notar-se que a proposito da biographia de um padre em uma parochia da
provincia elle suscitava as mais graves e melindrosas questões
physiologicas e sociaes que podem envolver a igreja, o celibato, a
sentimentalidade e o mysticismo, isto é, todos os pontos de controversia
philosophica que o jornalismo exclue da discussão para se não pôr em
conflicto com o assignante. Confessamos que n'este caso o melhor que
tinha que fazer a critica jornalistica era effectivamente calar-se.
Pela nossa parte, como é precisamente o conflicto que constitue o nosso
programma, não temos rasão plausivel para abster-nos da apreciação
d'este livro.
A rasão da condemnação silenciosa, do escandalo branco, que envolveu a
apparição do _Crime do padre Amaro_ está no simples facto de que elle é
um _romance de caracter_. Esta simples designação explica tudo. O genero
é novo e sem precedentes. Os livros do sr. Camillo Castello Branco são
romances de sentimento. A obra de Julio Diniz pertence á litteratura de
_tricot_ cultivada com ardor na Inglaterra pelas velhas _miss_. Apesar
das suas qualidades de paizagista, do seu mimo descriptivo, da sua
feminilidade ingenua e pittoresca, as novellas de Julio Diniz não teem
alcance social, são meras narrativas de salão.
O livro do sr. Eça de Queiroz offerece-nos o primeiro exemplo de uma
obra d'arte suggerida pela consideração de um problema social.
E todavia _O crime do padre Amaro_ não é de nenhum modo um livro de
critica, é um livro de pura arte na mais alta accepção d'esta palavra.
Nem na bocca do auctor nem na de nenhum dos seus personagens ha uma
palavra declamativa ou didactica.
Em uma pequena cidade de provincia, na Extremadura portugueza, o velho
parocho morre, o novo parocho chega com o seu capote ecclesiastico e o
seu bahu, apeia-se da diligencia de Chão de Maçãs, sobe aos quartos que
lhe estão preparados, calça uns chinellos de ourelo, veste o casaco
velho, e o drama principia, desdobra-se e termina de um folego,
caminhando para o seu desfecho, recto, implacavel, como um traço riscado
pela fatalidade atravez d'aquella estreita vida de provincia, com a sua
intriga local, os seus personagens mesquinhos, os seus padres, as suas
beatas, os seus tristes aspectos de coisas, sujos, tortuosos,
compungidos, pretenciosos, miseraveis.
D'este fundo sombrio, espesso, pesado como o tedio, a acção destaca-se
luminosamente, e penetra-nos com a nitidez poderosa dos espectaculos
vivos. É a vida mesma com toda a sua trivialidade real que n'essas
paginas perpassa aos nossos olhos como aquellas florestas que andam no
sonho de Machet.
Nunca artista portuguez desenvolveu na sua obra maior poder de execução.
O dialogo, trasbordante de verdade, é de um rigor psychologico, de um
colorido flagrante e de uma energia de naturalidade que os primeiros
stylistas francezes não conseguiram ainda egualar. A lingua portugueza,
pela incomparavel variedade das suas construcções grammaticaes, pela
inexgotavel abundancia dos seus idiotismos, pela bravura inculta do seu
arranco plebeu, presta-se admiravelmente a estes prodigios de execução
sempre que a não deturpa esse maneirismo requintado, esse culto da
farragem e do euphemismo, que tem sido em Portugal a sarna epidemica do
estylo erudito.
O dialogo do sr. Eça de Queiroz, não porque o trabalhasse a
preoccupação do purismo, mas em resultado do escrupulo com que foi
arrancado da indole e da natureza dos personagens, é de tal modo genuino
e tão accentuadamente portuguez, que o temos por intraduzivel.
Ao lado do dialogo mais vivamente travado e das situações dramaticas
mais profundamente sentidas, mais commoventemente narradas, o auctor
compraz-se habitualmente em pintar, com frio cynismo, as ridentes
paizagens em que scintillam as frescuras da manhã, os suaves occasos do
outomno impregnados do rumor das aguas e do perfume dos prados, os
tepidos interiores aconchegados e pacificos, todos os aspectos da
natureza vegetativa, da natureza animal, da natureza morta. E nada mais
profundamente real do que a impressão deduzida d'esse contraste entre a
inclemente immobilidade das coisas e a devastação tempestuosa das
supremas paixões no fundo da alma humana!
O desenho dos caracteres e principalmente o das duas personagens
principaes sobre que versa o drama, o padre Amaro e Amelia, é deduzido
com o mais scientifico rigor da diagnose n'um caso de pathologia
psychica.
A infancia de Amaro em uma casa nobre, onde a mãe d'elle era criada de
quarto. Os pequenos pormenores d'esse interior de familia, onde o
catholicismo era um requinte heraldico, onde as meninas, acreditando em
Deus como na omnipotente elegancia, tinham como culto dos destinos da
alma a preoccupação da _toilette com que haviam de entrar no paraizo_. A
creação de Amaro até aos doze annos n'essa convivencia mulheril,
ajudando ás missas na capella, espanando os santos, aparando as hostias,
dormindo entre as criadas, que lhe faziam cocegas, lhe chamavam
_Padreca, Frei Lombrigas_, e o utilisavam nas suas intrigas para «fazer
as queixas.» A sua mocidade no seminario, «abafando na estreitesa dos
corredores, invejando todos os destinos ainda os mais humildes, o
almocreve que via passar na estrada tocando os seus machos, o carreiro
que ia cantarolando ao aspero chiar das rodas, e até os mendigos
errantes, apoiados ao seu cajado, com o seu alforge escuro!» Os seus
primeiros alvoroços de adolescente ao pensar na mulher sobre os livros
dogmaticos: «Que ser era esse que atravez de toda a theologia ora era
collocado sobre o altar como a Rainha da Graça ora amaldiçoado com
apostrophes barbaras? Que poder era o seu que a tragica legião dos
santos, ora se arremessa ao seu encontro, n'uma paixão extactica,
dando-lhe n'uma acclamação o profundo reino dos céus, ora vae fugindo
diante d'ella como do universal inimigo com soluços de terror e com
gritos de odio, e, escondendo-se, para a não vêr, nas thebaidas, nos
claustros e nos sepulchros, vae alli morrendo do mal de a ter amado?
Amaro sentia, sem as definir, estas perturbações, e julgava-se
desgraçado e maldito.»
Vemos, a dia por dia, crescer, constituir-se, formar-se esse homem,
branco, lymphatico, molle, creado entre chumaços de mulheres ordinarias,
e sobrepelizes de padres boçaes, no fartum das alcovas sujas e na sombra
humida dos claustros musgosos. E prevê-se a quéda fatal d'essa natureza
stagnada e paludosa, atravez da qual os desejos insaciados luzem como os
olhos de um tigre.
É egualmente bem assignalado o caracter de Amelia. A sua educação
sentimental e devota é descripta a golpes de bisturi. Cada traço é uma
incisão. Aos oito annos tinha ido para a escola. A mestra era uma
velhita roliça e branca que fôra tacho das freiras de Santa Joanna em
Aveiro; com os seus oculos redondos, junto da janella, empurrando a
agulha, morria-se por descrever o convento, os seus terrores, as suas
legendas, as suas peripecias; as perrices da escrivã sempre a escabichar
os dentes furados; a madre rodeira preguiçosa e pacata, com uma
pronuncia minhota; a mestra de canto-chão, admiradora de Bocage e que se
dizia descendente dos Tavoras; a historia de uma freira que morrera de
amor e cuja alma ainda em certas noites percorria os corredores,
soltando gemidos dolorosos e chamando:--Augusto! Augusto!... Tinham-lhe
ensinado o cathecismo e a doutrina: fallavam-lhe sempre dos castigos do
céu; de tal sorte que Deus apparecia-lhe como um Ser que dá o
soffrimento e a morte, e que é necessario abrandar resando e jejuando,
ouvindo novenas e amando os padres. Era por isso toda cuidadosa e se ás
vezes ao deitar lhe esquecia uma Salve-Rainha, fazia penitencia no outro
dia porque temia que Deus lhe mandasse sessões ou a fizesse cair na
escada.» Além da doutrina aprendera a tocar piano com um velho
romanesco. Lêra livros de versos, fôra namorada durante uma estação de
banhos por um estudante de Coimbra, que lhe fizera umas quadras. Estava
pedida por um escrevente de tabellião, que se perturbava sob o seu olhar
voluptuoso mas que ella não amava, sentindo em si «como um grande somno
do coração.» Não tinha pae. Era sanguinea e forte, de grossos beiços
levemente sombreados de pennugem negra. Ouvia missa todos os dias e
confessava-se todas as semanas.--A mãe era protegida por um conego. Ella
padecia tedios nevralgicos e inquietações hystericas.
Todos os demais personagens, alguns d'elles apenas indicados por quatro
palavras, que têem o poder de uma evocação, o conego Dias, o padre
Natario, o padre Brito, o chantre, o coadjutor, o Libaninho, o tio
Esguelha, o escrevente, o redactor da _Voz do Districto_, as senhoras
Gançosos, a sr.ª D. Maria da Assumpção, a Joanneira,--vivem, têem uma
physionomia, uma personalidade.
O desenlace do drama, a morte de Amelia, a fuga do padre da quinta da
Cortegaça, de noite, levando o filho escondido na capa; o seu terror ao
sentir-se seguido, ao ouvir atraz de si no macadam as passadas surdas do
escrevente, passadas commedidas pelas d'elle, acompanhando-o como o
remorso, como o presentimento da catastrophe que se aproxima; o
infanticidio perpetrado no escuro, com os pés no lodo, á beira do rio,
escondido nos juncos como um animal ferido cercado pelos latidos
raivosos da matilha; a sua retirada de Leiria ao outro dia, por uma
serena tarde de outomno, de uma poetica serenidade ineffavel, partindo a
cavallo no momento em que os sinos da sé começavam a soluçar o dobre de
defuntos, emquanto um realejo toca na rua um trecho da _Norma_, e, de
uma casa defronte, um pequerrucho seguro ao peitoril da janella pelo pae
e pela mãe que riem, lhe diz adeus com a sua pequena mãosita
papuda;--constituem paginas de uma concepção e de uma tonalidade
tragica, profundamente elegiaca e solemne, que fica vibrando por muito
tempo na memoria como o ecco funebre de um _dies irae_.
Este livro misanthropicamente concebido, e executado com uma ironia
mordente e com um humorismo repassado de lagrimas, deixa todavia no
espirito uma forte impressão consoladora; é a obra de um grande artista,
de um poderoso revelador de ideal; e como toda a idealisação perfeita,
repousa-nos das nossas preoccupações pessoaes e egoistas,
engrandece-nos, eleva-nos aos nossos proprios olhos, infunde-nos a fé,
obriga-nos a crêr no sagrado desinteresse da arte, na divina
immortalidade do bello.
* * * * *
Se depois da idéa que procurei dar-te d'este livro, tu, leitor me
perguntares se o deves dar a ler á menina tua filha, eu respondo-te
terminantemente que não. As meninas nunca lêem romances, quaesquer que
elles sejam.
Se o podem lêr as mulheres--é uma outra questão, á qual respondo que
podem, ainda que com esta reserva--ás escondidas.
Não que este livro seja immoral. A arte é absolutamente independente da
moral, e não póde nunca nem servil-a nem prejudical-a.
Quando para minha consolação e refrigerio eu me desvio da estrada em que
succumbo de fadiga mordido pelo sol, e vou descançar um momento á sombra
de uma arvore, não pergunto se essa arvore dá peras ou se dá pilritos,
se da sua resina se póde extrair um balsamo ou um veneno, se dos seus
filamentos se póde entrançar uma corda para o sino ou um baraço para a
fôrca, se no seu tronco se podem serrar as pranchas para construir a
arca ou para armar o patibulo. A unica coisa que lhe pergunto é se ella
tem, para m'a dar, uma boa sombra fresca, macia, aromatica; e se a tem,
eu, que n'esse momento não sou um negociante de productos alimenticios,
nem um madareiro nem um chimico nem um engenheiro constructor, mas sim
um caminheiro prostrado, eu declaro, não só em meu nome, mas em nome da
sciencia, em nome da moral, em nome da religião, em nome do homem e em
nome de Deus, que essa arvore é boa, é util, é necessaria--não pelos
materiaes que ministra, não pelos fructos que produz, nem pelas
substancias que segrega, mas unica e simplesmente por uma condição
imponderavel e etherea, da qual em dada crise pode depender o meu
destino inteiro e toda a minha vida; e essa condição é a de se interpôr
no espaço entre mim e o ceu, e projectar sombra.
Na esphera das multiplas vegetações do nosso espirito a sciencia e a
philosophia fornecem as substancias alimenticias e ministram os
materiaes das construcções; a arte é a arvore santa, a arvore da sombra
para os peregrinos do pensamento.
Schiller em uma das suas cartas, cujo texto não tenho presente, expôe
uma theoria que pode resumir-se n'estes termos: «Se um critico em nome
da moral processa o meu livro não pelo que eu n'elle escrevi mas pelas
conclusões que elle critico lhe extrae, eu despreso esse julgamento. Se,
porém, a critica me convencer de que, dado o assumpto qual eu o concebi,
eu poderia executal-o por outro modo, eu n'esse caso submetto-me, não
porque tenha errado contra a moral, mas porque errei contra a arte.
Ora na execução do livro do sr. Eça de Queiroz ha na parte descriptiva
dois ou tres pormenores que não quereriamos eliminados--com quanto isso
fosse possivel sem quebra da verdade--mas que nos parece poderem ser
referidos de um modo--não dizemos mais pudico--dizemos mais artistico.
Ha em todos os grandes romancistas modernos, desde Balzac até o sr.
Queiroz, uma tendencia de que o vulgo tem feito o attributo de uma
escola, tendencia febril a demorarem sensualmente as analyses da torpeza
e da podridão.
O grande Eschylo dizia, censurando Euripides: «Elle deprimiu tudo
aquillo em que pegou, eu enobreci tudo aquillo em que toquei; os homens
saidos das minhas mãos respiram gladios e lanças, capacetes de
pennachos brancos e escudos reforçados com sete couros.» Os artistas
modernos não podem infelizmente inscrever nos seus brazões a nobre
divisa do velho tragico. A sociedade actual não fornece á arte os
grandes crimes que alimentaram o interesse da tragedia grega, porque as
depravações contemporaneas não gravitam em torno do crime heroico mas
sim em torno do vicio mesquinho e vergonhoso. Quem descreve os
caracteres modernos tem fatalmente de operar na gangrena; o que nos não
parece egualmente inevitavel é que o puz do tumor salpique a mão que o
opera. Ora o que julgamos notar, por duas ou tres vezes como acima
dissemos, na obra tão profundamente casta do sr. Eça de Queiroz é que os
seus instrumentos anatomicos, tão bem acerados e tão finos, teem os
cabos demasiadamente curtos.
A dissecção--permitta o nosso amigo que lh'o observemos--tem tambem as
suas leis de conveniencia e de elegancia. Além de que, para estudar um
orgão é ocioso expôr aos olhos do amphitheatro toda a nudez do cadaver.
Mesmo em anatomia o completo conjuncto é obsceno, porque é inutil.
As damas da côrte tão _pointilleuse_ de Luiz XIV--ellas que
representavam tudo quanto possamos conceber mais escrupuloso e mais
exigente no decoro e no gosto--frequentavam, sem offensa do seu fragil
melindre de estufa, os theatros anatomicos.
«Á medida, diz Fontenelle, que Verney se tornava um homem á moda punha
em moda a anathomia, a qual, encerrada até ahi nas escolas de medicina
ou em Saint-Côme, ousou produzir-se na alta sociedade apresentada pela
mão d'elle.» O tacto especial de Verney contém um exemplo que pode não
ser inutil ao sr. Eça de Queiroz.
As senhoras portuguezas não cursam os estudos scientificos. Não teem os
menores principios de biologia, de anathomia e de physiologia,
principios indispensaveis para entrar nos estudos mais complexos do
homem como são na sciencia a historia e na arte o romance de caracter e
a esculptura do nú.
Por isso a falsa noção que ellas teem do pudor as torna incompativeis
com muitas das mais preciosas convivencias intellectuaes.
Uma noção social não pode, porém, ser modificada pelos escriptores ou
pelas academias. Essa reforma é a obra collectiva e impessoal do
progresso nos costumes e nas instituições.
N'estas condições, deploraveis mas inamoviveis, maior deve ser a atenção
do artista em limar--tanto quanto isto seja possivel sem detrimento da
obra--os pequenos angulos subalternos que difficultem a adaptação d'ella
aos costumes.
Sob este ponto de vista _O crime do Padre Amaro_ está adeante do seu
tempo. Como obra de arte é este um destino feliz, porque n'este caso ter
de esperar é adquirir a certeza de sobreviver. Como obra de hygiene
social lamentamos que elle não possa desde já actuar pela sua
influencia no espirito d'este paiz onde o primeiro livro da educação
moderna _La femme, le prêtre et la famille_ é ainda tido por um
sacrilegio de Michelet, o impio!
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