As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1877-01/02) - 2

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Você não nem a escola rural, nem a biblioteca rural, nem a policia
rural, nem o banco rural. Você não tem a granja modelo que lhe ensine os
novos processos agricolas e lhe empreste as grandes machinas de
trabalho. Você não tem arborisação nos seus montes nem canalisação nos
seus rios. Para o dotar com todos esses instrumentos de aperfeiçoamento
e de prosperidade, arranjei-lhe eu um systema, que se chama o systema
monarchico-representativo, com uma carta, um rei, e doze homens, sendo
seis ministros e seis correios a cavallo, um parlamento, composto de
duas camaras, uma electiva e outra hereditaria. Quer você ou não quer a
civilisação? Se a quer, aceite o meu systema e eleja um deputado que vá
á minha camara electiva pedir por boca em seu nome tudo o que você
appeteça. Em troca d'este enorme serviço que eu lhe presto ha de você
resignar-se a pagar-me um imposto annual, que eu cá mandarei cobrar pelo
escrivão de fazenda, e cuja importancia applicarei a regalal-o e a
divertil-o summamente com um exercito, uma côrte, um sceptro, varias
duzias de repartições publicas, um theatro, um _Diario das Camaras_, um
arsenal, uma cordoaria, uma imprensa, etc., etc.
O Inundado começou desde então a pagar e o estado começou a dispender.
Ha perto de cincoenta annos que dura esta troca de serviços. O Inundado,
porém, ainda até hoje não pôde obter nem a escola pratica, nem a
bibliotheca, nem a granja, nem os novos instrumentos agricolas, nem as
grandes machinas para a lavoura a vapor, nem a arborisação, nem os
trabalhos hydraulicos no rio.
Um bello dia, um temporal rebenta, as aguas das chuvas, sem florestas
que as espongem, sem valas que sangrem a torrente, desabam de chofre no
rio, este trasborda por cima de velhos diques em ruina, alaga as
povoações, invade as casas, e deixa o Inundado entregue á nudez, á
desolação e á fome.
O Inundado pede então a alguem que em seu nome exponha ao Estado a
situação em que elle se acha:
* * * * *
Excellentissimo Estado e meu amigo.--Ha cincoenta annos que para aqui me
acho, tendo pago sempre a v. ex.'a quantia que combinámos quando v.
ex.'a fez comigo o contracto de eu lhe mandar o imposto para Lisboa e de
v. ex.'a me mandar para aqui a civilisação. Até á data d'esta nada
recebi.
Os deputados que para ahi tenho expedido á custa de muita intriga, de
muito dinheiro, de muito copo de vinho e de bastantes bordoadas
distribuidas com as listas á bocca da urna, nada remetteram para cá
senão discursos cheios de exclamações e de erros de grammatica. Graças
aos effeitos de quarenta annos de eloquencia sobre os trabalhos da terra
e sobre as obras do rio, este cresceu repentinamente com as ultimas
chuvas, invadiu-me a casa e levou-me tudo: moveis, roupas, generos,
ferramentas.
Acho-me na derradeira miseria.
Antigamente, antes do contrato que v. ex.'a fez comigo e a que já
alludi, o dinheiro que eu ganhava, em vez de o mandar para Lisboa,
entregava-o aqui assim ao morgado, ao capitão-mór, e ao convento. Mas o
morgado e o capitão-mór, se por um lado me arrancavam a pelle como v.
ex.'a hoje faz, por outro lado eram meus amigos. Eram meus compadres,
padrinhos dos meus filhos; davam-lhes as brôas e as amendoas pelas
festas do anno, esperavam pelas rendas, punham os varapaus argolados dos
seus moços e os d'elles proprios ao serviço da nossa causa, quebravam
todos os ossos do corpo aos corregedores, aos alcaides, aos portageiros
e aos almotacés, quando estes se faziam finos, matavam-nos de quando em
quando a creação ou davam-nos chicotadas quando estavam bebados, mas em
seu juizo eram bons homens e tinham sempre as portas e os braços abertos
para nos acudirem, para nos protegerem e para nos ajudarem. Os frades
resavam,--o que, se não nos fazia bem, tambem nos não fazia mal; e esta
é a differença que distingue os frades dos seus successores, os
deputados: o frade resava, os deputados intrigam. Além d'isso, os
frades, se diziam asneiras, diziam as pelo menos em latim, o que sempre
acho que lhes custaria mais do que dizel-as em portuguez rasteiro e
agallegado como me dizem que os deputados fazem. Finalmente os frades,
se de ordinario viviam á nossa custa, tambem nas occasiões de crise nos
permittiam viver á custa d'elles, e o caldo da portaria era uma
restituição.
Quem até hoje não tem restituido a importancia de um vintem nem em
dinheiro, nem em caldo, nem em presentes, nem em favores de nenhuma
especie é v. ex.'a, meu nobre e illustre senhor.
Tudo quanto tenho pago a v. ex.'a a titulo de imposto, v. ex.'a o tem
gasto na verba recreios: exercito com as suas revistas e as suas
paradas; corpo diplomatico; côrte; gratificações aos doze homens que
representam o governo trotando sobre as pilecas de uns atraz das tipoias
dos outros; governadores civis e secretarios geraes; desembargadores
para Gôa e juizes para os Açores; repartições publicas; arsenaes;
imprensa nacional; fabrica das cordas; etc.
Portanto, achando-me eu hoje sem real em consequencia de uma desgraça de
que v. ex.'a tem a principal culpa, quer-me parecer que não serei
desarrazoado pedindo-lhe o favor de me abonar para as minhas
necessidades mais urgentes uma pequenissima parte das sommas com que eu
ha cincoenta annos tenho estado a custear uma galhofa para a qual nem
sequer ao menos me teem convidado,
D'este que é
De v. ex.'a
Humilde subdito e servo
_O Inundado._
A resposta do Estado a estas argumentações e a estas instancias é de tal
modo recreativa, que pareceria inventada, se a sua authenticidade não
fosse reconhecida, como é, de todo o mundo.
O Estado respondeu:
Meu caro Inundado.--A tua estimada carta veiu encontrar-me em uma
situação bem critica para te poder servir, como desejava.
Acho-me a braços com a resposta ao discurso da corôa, com a apparição
dos granjolas e com a segarrega do Barros e Cunha. Falta-me tempo para
me occupar de ti.
Pedi a sua magestade a Rainha para te abrir uma subscripção. A rainha
acceitou gostosa esta incumbencia. Vieram a Palacio todos os banqueiros
e todos os capitalistas da cidade. Nomearam-se commissões de homens e
commissões de senhoras para promover bazares de prendas, concertos de
amadores e recitas de curiosos em teu beneficio.
Dizes-me que não tens nada de comer. É pouco. Todavia espero que, com
alguma economia, possas d'isso mesmo tirar alguns jantares, ainda que
simples, com que te alimentes durante este mez e parte do que vem. Sê
sobrio. Um bom caldo, um peixe, um assado, um prato de legumes e meia
garrafa de vinho é quanto te deve bastar. Como não tens nada, resigna-te
um pouco e abstem-te de champagne e de faisões dourados. Perdeste a
casa, a mobilia e o fato. Vae para o hotel, enrola-te na tua robe de
chambre e não saias por estes dias. Conserva-te no teu quarto, ao fogão,
toma grogs e lê romances. Reveste-te de paciencia, já que não podes
revestir-te de pano piloto, e espera.
Tudo está preparado e em via de execução para te acudir. Eduardo Coelho
e Rio de Carvalho escrevem o hymno e estão no segundo moteto. O nosso
Luiz de Campos prepara versos. Prepararam egualmente versos o nosso
Thomaz Ribeiro, o nosso Pinheiro Chagas, o nosso Fernando Caldeira, o
nosso Forte Gato, e outros.
É tal o movimento poetico e o consumo de rimas que escaceam já os
consoantes para _rainha_; manda-me pelo telegrapho os que ahi tiveres
disponiveis e mais proprios do alto estylo do que _tainha, morrinha,
doninha, carapinha, picoinha, espinha, ventoinha, gallinha e mezinha_.
Manda tambem para _Pia_ os que poderes obter, menos os que pareça
conterem allusões irreverentes como _enguia, folia, tosquia, letria,
azia, mania_ e _bacia_.
Cada um ajusta ao pé o patim da caridade e guina para seu lado em
arabescos cheios de phantasia e de elegancia: está-se n'um _skating
rink_ de beneficencia para te accudir, meu grande maganão.
Além dos que fazem versos e dos que fazem hymnos, ha sujeitos a quem os
teus revezes--tão lastimados elles são!--têem feito espigar mazurkas e
rebentar polkas... de pura dôr.
Entre as modistas tem havido largas discussões para se decidir se a
caridade se deve fazer com decote ou com vestido afogado. Para os actos
de beneficencia diurna têem-se adoptado geralmente os vestidos de meia
caridade, de veludo ou casimira, abotoados. Para os rasgos de
beneficencia nocturna as _toilettes_ são sempre de grande-caridade, isto
é: decotes quadrados guarnecidos de renda de Bruxellas, toda a cauda,
luvas de dez botões, e diamantes.
É indiscriptivel a animação ferverosa que reina em todos os salões para
se tratar de ti. Triplicaram as _soirées_ n'este inverno e dança-se
todas as noites com o expresso fim de te favorecer. Tocam-se os
lanceiros e fazem-se discursos para te obsequiar.
--Elle geme nas vascas da mais horrorosa agonia!... Chaine anglaise,
minha senhora!
--Mas nós havemos de arrancal-o das fauces da miseria... Sirva-me um
gelado!
--Arrancal-o-hemos, ainda que seja a ferros!... De fructa ou de leite,
minha senhora?
--Salvemol-o vivo ou morto!... De leite!
Ás duas horas ceia, volante ou de bufete, serviço quente e frio, menu de
Baltresquí.
Um telegramma que chega:--O Inundado está com agua pela cinta.
Um sujeito fugindo com um perú assado:--Vou levar-lhe uma boia!
Uma menina gritando:
--Não! Não! não o devo consentir! não consentirei jámais que o coração
generoso d'aquelle que me deu o ser se sacrifique assim, principalmente
por um inundado que só está em perigo--da cinta para baixo! Accudam ao
papá! Subtraiam-lhe essa boia! Subtraiam-lh'a, que lhe vae fazer mal:
elle já comeu uma!
De rasgos d'estes poderia citar-te centenas.
Restos de velhas edições de livros, de polkas, de almanacks, que o
consumo do publico se recusou a tragar e que jaziam desde tempos remotos
nos archivos de familia dos respectivos autores, acabam de te ser
coasagrados e cáem sobre as subscripções abertas para te proteger como
bençãos dos genios incomprehendidos e olvidados.
A mesma infancia estudiosa abre nas aulas de instrucção primaria
subscripções para te acudir, e meninos, que ainda não conseguiram
penetrar no _quadro de honra_ como sufficientemente fortes em leitura,
figuram nas resenhas dos jornaes como bemfeitores dos homens.
Não sei realmente, querido Inundado, como poderás agradecer-nos tão
reiterados e tão grandes beneficios! Como não sabes fazer mais nada,
espero ao menos quo rezes por nós. Compenetra-te bem de quanto nos
deves, e não te esqueças nunca, em primeiro logar de nos pagar as
decimas, e em segumdo de nos encommendares a Deus em todas as tuas
orações de manhã e de tarde para que o Altissimo vele constantemente
pelos nossos preciosos e divertidos dias e nos dilate a vida pelos mais
longos annos, como desejas e has mister.
Não te assustes, por quem és, com esse passageiro incidente da agua pela
cinta. Mantem-te em uma attitude serena e firme. As cheias bolindo-se
com ellas ainda enchem mais. Ao passo que, abandonadas a si mesmas, as
cheias aborrecem-se e esvasiam. Por tanto deixa obrar a natureza. Logo
que o tempo enxugue e os terrenos sequem, socega que irei ver-te. Podes
desde já preparar a foguetada, o vivorio, e o publico regosijo, para
receberes quem é devéras,
Teu amo e protector
_O Estado_.
_P. S._ O bom amigo Luiz de Campos recommenda-se-te muito e manda
perguntar-te como gostas mais da caridade, se escripta á latina com _c
a_, ou á grega com _c h a_.
* * * * *
Diz-se geralmente--e parece-nos util fixar este boato como um symptoma da
epoca--que sua magestade a rainha fôra aconselhada e guiada em todos os
tramites da sua intervenção a favor do Inundado por um personagem já
hoje eminentemente poderoso, mas ao qual os recentes conselhos a sua
magestade vão dar um novo grau de importancia culminante e unica na
governação publica. Será perfeitamente legitima essa importancia. Se
effectivamente houve um homem sufficientemente sagaz para se conservar
na sombra e para suggerir a sua magestade a rainha a idéa profunda de
apparecer ella, unica e exclusivamente, a debellar unma catastrophe
publica, esse homem fez aos partidos conservadores em Portugal um
servigo incomparavel e deu uma prova de pericia e de habilidade que
nunca se egualou e que se não póde exceder.
Como se sabe, os partidos conservadores não têem idéas, não podem e não
devem tel-as; os que por excepção as produzem commettem um erro fatal e
são victimas do seu proprio acto. Em todo o _statu quo_ toda a idéa nova
é um rombo. Quem no poder tem idéas, afunde-o. Nos regimens
conservadores, como o que vigora em Portugal desde muitos annos, as
idéas são erupções revolucionarias extranhas á acção governativa. A
missão dos que governam não é lançar na circulação essas idéas, mas sim
e unicamente vigiar o systema, como se vigia a couraça de um monitor em
batalha naval, e sempre que uma idéa penetre, rolhar o furo e
disciplinar em seguida o elemento novo introduzido a bordo pelo
projectil inimigo.
Aos governos conservadores não se pedem por conseguinte idéas: pedem-se
expedientes. Expedientes para quê? Para conservar. Como? Por todos os
meios que produzam este resultado:--a consolidação do que está.
É de dentro d'esta theoria, que encerra toda a sciencia de governar, que
nós dizemos: os conselhos a sua magestade a rainha, se alguem
effectivamente lh'os deu (cremos que sim e diremos já porque) são o acto
mais sabio, porque esse acto faz recair no assumpto o expediente mais
adequado e mais proficuo.
Se o governo procurasse directamente estudar e resolver o problema da
inundação, que succederia? A opposição contraditava-o. Na imprensa e na
camara os partidos dissidentes discutiriam as medidas ministeriaes,
controvertel-as-hiam, impugnal-as-hiam com argumentos, com sarcasmos,
com insultos. Quem sabe se o governo assim batido tenazmente de bombordo
e estibordo não acabaria por metter agua, iniciando um simulacro de
alguma coisa parecida ainda que remotamente, com uma idéa?!
Que aconteceu, porém, em vez d'isso?
Sua magestade a rainha, disse-se, toma a iniciativa de todos os
soccorros ás victimas da inundação. E sobre esta noticia publicada em
grandes letras nos jornaes da manhã, o governo foi para a camara, cruzou
os braços e esperou corajosamente que a representação nacional se
manifestasse. Então a opposição em peso, composta dos srs. Barros e
Cunha, Osorio de Vasconcellos e Pinheiro Chagas, pediu a palavra pela
bocca dos seus oradores.
O sr. Osorio de Vasconcellos disse:--«Partiu de alto a iniciativa;
partiu de uma illustre senhora, de sua magestade a rainha. Pois
congratulemo-nos com o paiz inteiro; congratulemo-nos com este
sentimento homogeneo de caridade manifestado por todos os cidadãos sem
distincção de classe e que veio em allivio e amparo da miseria, que é
geral _(apoiados)_ do soffrimento que é grande; das amarguras que são
immensas... O nosso paiz foi sempre reconhecido pelos impulsos da
caridade... Se porventura do alto do Golgotha o Divino Mestre, etc.,
etc.»
O sr. Barros e Cunha:--«Mando para a mesa a seguinte proposta que espero
seja desde já votada por acclamação: A camara prestando a caridosa
iniciativa de que sua magestade a rainha houve por bem usar em beneficio
das victimas das inundações a homenagem que lhe deve em nome do povo que
representa, resolve que este voto seja lançado na acta das suas sessões,
e que uma grande deputação deponha aos pés da augusta princeza o tributo
do seu reconhecimento.»
O sr. Pinheiro Chagas, (fallando comsigo mesmo)--«Trago tambem aqui uma
proposta da mensagem a sua magestade, feita com tanto patriotismo como a
de Barros e Cunha e com mais grammatica. Visto, porém, que a camara
approvou a d'elle, vou pôr a minha em verso e levo-a para o Gymnasio.
Tenho concluido.»
E na camara dos srs. deputados, onde o governo poderia ter sido
violentamente e perigosamente accusado pela sua cumplicidade nos
effeitos da inundação, os unicos tres deputados da opposição que n'este
dia se achavam na sala não tiveram voz senão para louvar a caridade,
para citar o Golgotha e para convidar uma grande commissão a ir depôr
nos degraus do solio os testemunhos mais humildes do reconhecimento
popular!
A imprensa toda, unanimemente, confessou que sua magestade a rainha era
indubitavelmente um anjo, ao qual todos os noticiaristas deviam
permittir-se a liberdade de mexer um pouco nas azas em signal de
gratidão.
Depois da imprensa e da camara dos deputados vieram as corporações todas
com o seu obulo e o seu communicado aos jornaes. Os soldados, os
empregados das repartições publicas, os carpinteiros, os serralheiros,
os cocheiros, etc. collocaram a sua prosa apologetica sobre os voadouros
angelicaes da santa princeza: versos, hymnos, valsas brilhantes,
_speechs_, mensagens, missivas particulares, desenhos á penna, vivas,
bordados a cabello e a missanga, hurrahs explosivos, tropheus
emblematicos e pratos montados com figuras allegoricas, tudo concorreu
n'esta immensa apotheose.
E, se, depois de tudo isto, o dique de Vallada ficou no estado em que
anteriormente estava, o throno dos nossos reis, pelo menos, acha-se mais
firme que nunca no amor dos novos.
Confessamos, pois, em vista de todos os factos, que o expediente de
resolver a crise aconselhando sua magestade a rainha a intervir pela
caridada revela o politico mais habil, o homem de estado mais profundo
que o paiz podia desejar na sua situação presente.
* * * * *
O que nos leva a admittir que sua magestade foi aconselhada por um
promotor das conveniencias politicas e não guiada por impulsos
expontaneos é o exame das pequenas circumstancias que acompanharam a
intervenção da Corôa e nas quaes se revela a mão burocratica do
conselheiro de estado, mais habituado a manejar algarismos e a redigir
programmas do que a imitar a graça engenhosa, a poetica delicadeza, o
fino primor, o tacto subtil, exclusivamente feminino, que assignala os
actos nativos de um coração de mulher. N'esses actos, quando legitimos e
authenticos, ha uma especie de vinco mimoso, de perfume ideal, que os
laboratorios officiaes não imitam senão por meio de falsificações
baratas e reles.
Por este lado, que já não é o lado politico mas sim o lado esthetico, o
lado artistico, por este lado o vosso anjo da caridade, o anjo que vós,
meus senhores, puzestes no vosso andor e passeastes em procissão de
popularidade pelo paiz inteiro, tem os defeitos das ingenuas nas
companhias de amadores dramaticos em que só representam homens: tem os
pés chatos, a cinta grossa, e uma rouca voz de falsete, fingida e
miseravel.
Por baixo das candidas vestes do vosso anjo percebem-se os contornos
grossos e rijos do um forte modelo masculino. Reparando-se um pouco na
alva pennugem immaculada das brancas azas em que o sr. Luiz de Campos
collocou os seus inspirados versos, reconhece-se com evidencia que essas
azas prendem por articulações de couro a espaduas de porta-machado.
Sua magestade a rainha, uma mulher, uma senhora, uma princeza, se vós a
não bouvesseis violentado com os vossos conselhos, ella de per si só,
teria representado a caridade por modo muito diverso. Guiada
simplesmente pelo seu delicado instincto de mulher e pela sua perfeita
educação de senhora, ella saberia ser util sem ser espectaculosa;
far-se-hia amar sem se deixar applaudir; chegaria á dedicação absoluta
de toda a sua alma pelos desgraçados e pelos humildes, sem passar por
cima da arêa encarnada dos triumpos de rua, sem transpôr os arcos de
murta das glorias de phylarmonica, sem se vulgarisar, finalmente, até o
ponto de animar os poetas e os jornalistas a fazerem-lhe as mesmas
_réclames_ com que se lisongeam as actrizes, tirando imagens
sentimentaes e sonoras do _perfume dos seus cabellos_, das _pregas dos
seus vestidos_, da _flexibilidade da sua estatura_, etc. Houve um
folhetinista que chegou pelo desenfreamento do lyrismo a comparar sua
magestade--a Magdalena!
Nós protestamos contra similhantes invasões do enthusiasmo nos dominios
da dignidade pessoal, e negamos á rhetorica monarchica o direito de
lançar ás faces de uma digna mulher que passa levando o seu sceptro pela
mão, as mesmas finesas que as bailarinas bonitas mandaram na vespera
deitar fora com as camelias murchas.
Este abuso iniquo e grosseiro fostes vós, conselheiros habeis nos
manejos politicos mas imperitos nas questões do gosto,--que os
promovestes e auctorisastes.
Vós começastes por abusar da vossa influencia no espirito da soberana
prefixando a quantia de um conto de reis como verba de subscripção.
Quando a miseria é geral, quando as amarguras são immensas, como disse o
proprio sr. Osorio de Vasconcellos, quando dos poderes publicos não
baixa uma só medida para acudir a tanto infortunio, quando todo o
remedio para tamanhos males se confia da liberalidade de uma rainha,
como quereis vós que se acredite que essa rainha, em uma tal
conjunctura, se tenha posto a contar pelos seus dedos magnanimos até
achar o numero de libras que compense a miseria geral e a amargura
immensa? Por que vibrações de piedade, por que processo de sentimento,
por que logica de consternação, por que inducção de pezares, quereis vós
que o alanceado coração de sua magestade tenha chegado de dor em dor, de
lagrima em lagrima, á conta, que só vós podieis ter feito, de duzentas e
vinte e duas libras em oiro e dez tostões em prata? Esta conta
deploravel é de um estalajadeiro ou de um cambista. Uma princeza, não
tendo aprendido pelas necessidades proprias qual é o valor do dinheiro,
não sabe contal-o para as necessidades dos outros. Se vós lhe tivesseis
dito simplesmente que para acudir a uma catastrophe nacional não havia
nem uma só disposição da sciencia ou da lei e que todo o remedio para
essa desgraça publica se esperava da influencia regia, a rainha,
entregue ao impulso instinctivo do seu coração, não deixaria de
contribuir para esse fim de um modo illimitado, sacrificando-se
inteiramente e incondicionalmente á fatalidade da fome como teria de se
sacrificar á fatalidade da guerra.
Depois não vos occorreu que tudo quanto se dispendesse em pompas se
cerceava em soccorros no producto dos espectaculos em beneficio das
victimas da inundação. Sendo esses espectaculos dirigidos por uma
senhora esqueceu-vos um ponto essencial que a toda a mulher occorreria:
a prescripção da _toilette_. Como sois homens publicos e viveis
permanentemente na ostentação e no apparato vós não podeis conceber
quanto ha de inopportuno, de indelicado, de offensivo do bom gosto no
aspecto de senhoras que se reunem para um fim de caridade cobertas de
joias como para um certame de luxo. Se fosse effectivamente uma senhora
quem tivesse a direcção d'esses actos de phylantropia, as joias teriam
sido abolidas, o preço das luvas de baile teria sido applicado á
subscripção para os pobres, e nas mãos nuas um annel de ferro mandado
fazer pela commissão ornaria toda a pessoa que quizesse acceital-o em
troca de um annel de oiro offerecido aos inundados. Em vez dos
ramilhetes, de 15 ou 20 libras, offertados aos actores, aos musicos e
aos poetas, uma mulher economisaria em favor dos pobres essa luxuosa
despesa e manifestaria o seu agradecimento por um modo extremamente mais
economico e mais expressivo como seria por exemplo, o offerecimento de
uma pequena photographia de sua magestade com uma simples dedicatoria
autographa.
* * * * *
Além da commissão de soccorros presidida nominalmente por sua magestade
a rainha a unica corporação que em Portugal se occupou do problema das
inundações foi a de suas excellencias os srs. bispos.
Apenas constou que alguns dos nossos rios tinham trasbordado, em todos
os bispados do reino se fizeram preces implorando da divina misericordia
que os rios voltassem aos seus leitos.
Este recurso piedoso lembra-nos que seria vantajoso para o fim de pôr em
harmonia a meteorologia e a religião, crear barometros especiaes
dedicados ás nossas circumscripções ecclesiasticas.
Estes barometros, que os srs. parochos collocariam nas sacristias ao
lado das folhinhas em que se prescreve a côr das vestimentas, teriam as
indicações precisas para constituirem um formulario perpetuo sem o
incommodo da intervenção dos srs. bispos por via das suas pastoraes.
Bastaria que os aneroides _ad usum ecclesiae_ fossem um pouco mais
desenvolvidos na indicação dos resultados da pressão atmospherica sobre
os aspectos do tempo. Por exemplo:--78, _bom tempo fixo, faça preces a
pedir chuva_;--74 _grande chuva, faça preces a pedir sol_;--73
_tempestade, saia procissão e faça preces a pedir bom tempo_.
N'este caso os observatorios astronomicos e meteorologicos poderão ser
substituidos com vantagem pelas cabaças rotatorias dos Kalmuks ou pelos
moinhos do Tibet. As cabaças, cheias de orações e agitadas polo vento,
produzem a adoração perenne. Os moinhos são uma fabrica mecanica de
preces continuas, de moagens devotas.
É preciso que n'este ponto nos decidamos por uma das duas:--pela
meteorologia ou pela prece. Se os estados atmosphericos se determinam
nos templos é absolutamente inutil estudal-os nos observatorios. As duas
coisas juntas refutam-se e destroem-se. Ou bem cabeças que pensem ou bem
cabaças que rodem. Decidam!
* * * * *
O que escreve estas linhas, tendo sahido do Porto no dia 8 de janeiro,
foi surprehendido pela tempestade e embargado pelas cheias, não podendo
chegar a Lisboa senão oito dias depois d'aquelle em que partira do
Porto. Foram seus companheiros de viagem alguns mancebos--quinze ou
vinte--que emigravam para o Brasil e vinham do Minho tomar em Lisboa um
dos paquetes da Mala Ingleza. Nas primeiras estações proximas de Gaya
esses rapazes, descorados, surprehendidos, vestidos de cotim, tendo
pendente do pescoço por um cordel a chave da caixa, apeavam e abraçavam
nas gares os seus parentes que ahi tinham ido abençoal-os, dar-lhes os
ultimos conselhos e as ultimas lagrimas. Havia um grande alarido de
mulheres que choravam. Vozes soluçadas diziam: «Adeus! adeus talvez para
sempre!» Abraços tenazes parecia não poderem deslaçar-se dos derradeiros
abraços. Tangia a sineta para largar a locomotiva. Passageiros alegres,
indifferentes, debruçados das portinholas, intervinham nos excessos da
ternura, nas crises da saudade, com palavras recreativas, com
commentarios facetos, com exclamações punidoras. Um aldeão já velho,
magro, alto, beijava um pequeno emigrante, talvez seu neto, que se lhe
abraçára ao pescoço; um jocoso soldado, trazendo a fardeta desabotoada e
uma borracha ao tiracollo, gritou-lhe da carroagem:--«Ó labrego, larga o
rapaz!» e accrescentou sentenciosamente este conceito:--«Beijos de
homens são coices de burro!» O velho teve a coragem de sorrir com uma
visagem dolorosa, de quem fingia resignar-se, e mettendo o rapaz na
carroagem, á pressa, em voz baixa, envergonhada: «Deus Nosso Senhor te
abençôe! Deus Nosso Senhor te abençôe e te dê boa sorte!»
O comboyo batido pelas rajadas do vento e pelas torrentes da chuva não
pôde, em consequencia dos rombos da estrada, passar de Pombal, onde
chegou ás duas horas da noite. Os pequenos aldeões, trespassados de
frio e talvez de fome, com as golas das jaquetas levantadas, os pés
molhados nas suas chinelas de coiro cru, as mãos nas algibeiras das
calças, adormeceram nas carroagens da terceira classe ou nas bancadas da
estação. O comboyo demorou-se ahi tres ou quatro dias. Os emigrados,
perdidos no meio da indifferença, desappareceram. Quando nós, no
primeiro dia em que a estrada se tornou praticavel, proseguimos de
Coimbra, onde ficaramos, até Santarem, não encontramos nenhum dos nossos
pequenos companheiros. É provavel que tivessem continuado a pé, sob a
tempestade, até chegarem a Lisboa, ao encontro da Mala Real Ingleza.
Esses pequenos, obscuros, miseraveis passageiros, troçados, escarnecidos
na sua dôr, cobertos de lagrimas e de lama nas suas esperanças de
fortuna, eram os embriões da riqueza portugueza, eram o brasileiro ao
deixar a patria.
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