As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1873-03/04) - 4

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caridade, a pobre e modesta caridade, que vós mandastes definir por S.
Paulo com aquella palavra tão inspirada e tão bella.--O amor dos
corações puros e das consciencias boas!
Elles entendem-a agora assim: vestida de faille azul claro, com segundo
vestido de tulle branco aventalado adiante, com finas pedras e um manto
branco preso na cabeça por um diadema de estrellas de oiro de lindo
effeito!
Comparae, ó Jesus, a descripção dos vossos antigos anjos feita por Santo
Ignacio--_incorporeas mentes_--com esta descripção que o _Diario
Illustrado_ nos apresenta dos vossos anjos modernos!
Que dirão os cherubins, os seraphins e os archanjos, que dirão Miguel,
Raphael e Gabriel, elles nus, sem mais _toilette_ que as suas longas
azas candidas, ao verem junto de si nas chorêas sidereas o novo
anjo--Almeida Fernandes?!
Como ficarão vexados e humilhados no Céo--os outros--quando o cherubim
Almeida lhes apparecer com as tranças torcidas a ferro, com vermelhão
nos beiços, e o seu _vestido aventalado adiante_, e contar que foi o
papá Fernandes quem o arranjou assim para elle representar diante dos
homem a imagem da caridade!
Oh! mas realmente, é um bom quinau dado pelo sr. Fernandes no Creador!
Lição terrivel de elegancia e de _chic_ ministrada a todo o reino dos
Céos pela Travessa de Santa Justa! Nem a Baixa calcula talvez a grande
importancia que isto vae dar ao estabelecimento do sr. Fernandes--no
Empireo!
Pela nossa parte não nos maravilhará extraordinariamente que o sr.
Fernandes, proseguindo nas suas conquistas sobre o territorio divino,
acabe por ajuntar ao seu estabelecimento de modas uma succursal da
côrte celeste, e que depois de converter a sua familia em anjos de
tulle, elle mesmo acabe por apparecer aos seus freguezes transfigurado
em Deus ... de filó!
E então, para nos entendermos com s.s.ª sobre os objectos do seu
commercio, teremos, ao entrar na sua loja, de nos ajoelharmos, de
batermos no peito e de exclamarmos com attricção verdadeira:
Eu peccador me confesso a Fernandes todo poderoso de que preciso de um
par de ceroulas de linho de Irlanda, e por tanto lhe dirijo humildemente
minhas fervorosas preces para que desça das alturas e venha a nós--para
nos tomar medida. _Amen_!
* * * * *
Acabamos de ver como os burguezes conservadores entendem a caridade no
catholicismo. Vamos ver agora como é que os operarios socialistas
entendem os principios do direito perante a revolução.
Ao passo que o _Diario Illustrado_, folha monarchica e catholica, nos
apresenta a religião na menina Almeida Fernandes, o _Pensamento Social_,
periodico revolucionario, expõe-nos, na menina Palmira da Conceição, os
direitos do povo.
O _Pensamento Social_ diz assim:
«Teve logar a annunciada sessão da propaganda na associação do trabalho
nacional. Estiveram presentes cêrca de 60 companheiras, frequentando a
sala durante a sessão proximamente 700 companheiros. Presidiu uma
companheira, mantendo-se uma assembléa tão numerosa na melhor ordem.
Deu-se n'esta sessão um facto que sensibilisou toda a assembléa; uma
companheira, que tem apenas nove annos de edade, como que sensibilisada
pelas aspirações da razão e da justiça, em plena assembléa pediu a
palavra e pronunciou a seguinte oração, que leu:
«Companheiros e companheiras.--Declaro-lhes que cada vez que tenho de
entrar em assumptos de tal natureza, arrasam-se-me os olhos de agua e
cobre-se-me o coração de uma nuvem negra; comtudo não posso deixar de
levantar a minha debil voz para dirigir duas palavras ás nossas
companheiras e companheiros da fabrica de fiação e tecidos lisbonenses.
Companheiros e companheiras: dirijo-vos os meus sinceros sentimentos,
porque tendo sido bem conhecedora das injustiças que se estão fazendo ás
nossas companheiras, e com especialidade ás menores, porque não só são
castigadas com o seu diminuto salario, como tambem as maltratam com
pancada.
«Ai companheiros e companheiras, não posso deixar de curvar o joelho e
pedir ao meu Deus, se estamos em peccado mortal: perdoae-nos. Mas não,
que já vou vendo raiar a aurora; continuemos sempre a empregar todos os
nossos esforços para que um dia breve estejam reunidos nas nossas dignas
associações todos os que vivem do trabalho. Conseguido isto, o que não é
muito difficil, e empregando todos a nossa vontade, poderemos dizer que
não estamos em peccado mortal, e tambem poderemos dizer que se acabaram
os castigos embrutecedores. Peço pois a todos os companheiros e
companheiras que empreguemos toda a nossa vontade, energia e dedicação
para podermos alcançar o nosso triumpho, que é a emancipação de todos os
trabalhadores, isto é, todos os direitos e deveres sociaes. Depois os
nossos vindouros nos cobrirão de bençãos por lhes termos creado tão bom
dote. Não querendo entreter-vos mais termino pedindo que vos não
esqueçaes dos nossos companheiros grevistas.--_Palmira da Conceição_.»
* * * * *
Esta creança de nove annos de edade que nos declara _que os olhos se lhe
arrasam de agua e o coração se lhe cobre de uma nuvem negra sempre que
lhe tem succedido ter de entrar em assumptos de tal natureza_, é uma
verdadeira menina benta, um phenomeno! Diremos mesmo: é um milagre, é
uma pequena nossa senhora apparecida--da fabrica lisbonense de fiação e
tecidos!
Ella é a destinada pelo povo a substituir, como futura deusa da razão, o
actual anjo Almeida Fernandes--nas festividades populares.
* * * * *
Ha pequenas differenças:
O anjo Almeida traz-nos a religião e a caridade. A deusa Palmira é a
portadora da _emancipação dos trabalhadores, dos direitos e deveres
sociaes._
O anjo adeja sobre as ruas pacatas da Baixa. A deusa surge no bairro
inquieto de Alcantara.
O anjo caminha gravemente--enfunado, crespo de folhos e de rendas, como
um peru armado--a passos cadenciados pelas harmonias da phylarmonica
_Alumnos de Minerva_, dando a mão a Fernandes, seu pae carinhoso,e
espargindo petalas de rosas, de dentro de um cesto de casquinha, sobre o
mundo velho.
A deusa vem ao collo de um _companheiro_ membro da _Fraternidade
Operaria_ e clarinete na mesma phylarmonica que bufou, talvez, o mais
convicto e consciencioso _hymno da carta_, atraz da angelica vergontea
de Fernandes. A deusa alliando em sua joven personalidade a innocencia
da edade que tem com a aspiração philosophica da classe a que pertence,
mette um dedo no nariz e aponta com o outro o destino do proletariado na
futura organisação social.
O anjo é a religião de barejes, de talagarças e de retalhos de bobinet.
A deusa é a justiça de figuras de rhetorica, de discursos de associação
e de erros de prosodia.
O burguez, contente com o seu meio de reacção, distribue ao anjo
confeitos e rebuçados de avenca. O operario, satisfeito com o seu plano
de resistencia e de revolução, solicito, assôa a deusa.
Ora, francamente, não nos parece que estes sejam os methodos mais
efficazes que possam escolher os srs. burguezes e os srs. operarios.
Não será com o seu anjo de vestido «ventalado», com veu branco e
pedrarias de lindo effeito, que a burguezia impedirá a passagem á
corrente das idéas novas que a assoberbam e intimidam.
Não será tambem com a sua oradora de nove annos, _inspirada pela razão e
pela justiça_, que o proletariado conseguirá convencer-nos da seriedade
dos seus direitos ao predominio das sociedades futuras.
O trabalho--bem o sabemos--é uma coisa augusta e sagrada. O
commercio--desculpem-nos os senhores proletarios--é tão sagrado como o
trabalho. O commerciante que compra a cada um dos que produzem as suas
obras, levando-lhes, em troca dos objectos que fabricam os objectos que
consomem, faz á sociedade, por meio do estabelecimento do mercado, um
serviço tão relevante e tão legitimo como o da producção da mercadoria.
O pae da menina Palmira que faz um chale quando ninguem quer chales e o
pae da menina Fernandes que lh'o compra logo, para o vender depois
quando lh'o pedirem, são dois cidadãos egualmente uteis e respeitaveis.
Se o pae do anjo é puramente ridiculo vestindo a sua filha como uma
boneca de _vitrine_ e encarregando o _Diario Illustrado_ de lh'a
apregoar como um symbolo de caridade, o pae da deusa é injusto, é
ignorante, é perigoso, e é egualmente ridiculo, ensinando á sua filha,
para que ella as leia em publico, palavras ôcas de falsa razão e de mal
entendida justiça, tão enthusiasticamente preconisadas pelo _Pensamento
Social_, orgão das classes operarias.
* * * * *
Já que fallamos no _Pensamento Social_ notemos que nem sempre nos parece
perfeitamente logico este jornal.
Succede que elle guerreia o burguez, o _infame burguez_, e não cessa
nunca de glorificar o operario. É a sua missão. Tem o seu partido. Nada
temos que objectar.
Quando se deu, porém, a _grève_ dos surradores, succedeu o seguinte:
Os operarios tinham escolhido para apresentarem as suas propostas a
phase da curtição em que os coiros não poderiam ser abandonados sem que
apodrecessem nos seus tanques. Por este modo os patrões ou tinham de
ceder á _grève_ ou correr o risco eminente de um grande prejuizo. Que
fizeram os patrões? Não acceitaram as propostas dos grevistas,
associaram-se todos, despediram os operarios, e foram em seguida, elles
mesmos, acompanhados de suas mulheres e de seus filhos, de fabrica em
fabrica, levantar os cortumes.
Ora é singular que fosse exactamente este momento solemne da existencia
dos patrões curtidores o que o _Pensamento Social_ escolheu para os
flagellar com as suas ironias e os seus sarcasmos! A verdade é que
exactamente n'esse momento é que os burguezes curtidores deixavam de ser
burguezes para serem operarios. Parecia-nos que n'esta conjunctura o
_Pensamento Social_ não deveria fazer senão o que nós fariamos no seu
caso: tirar o chapeu e inclinar-se respeitosamente perante a coragem
trabalhadora e digna dos seus altivos e honrados inimigos.
* * * * *
Os operarios na sua inquietação de candidatos á prosperidade baseada na
justiça e na virtude, vão mal encarreirados dirigindo o seu movimento de
revolução contra os pequenos burguezes que nunca lhes fizeram mal nenhum
e que os srs. operarios injustamente odeiam ou desprezam. Os pequenos
burguezes--deveriam lembrar-se d'isto os srs. operarios--são na actual
organisação social, os alliados naturaes de todos os que trabalham e
padecem. Os srs. operarios fariam bem se, em logar de encarregarem a
menina Palmira de discretear nos seus congressos, traduzissem n'elles em
voz alta esta pagina do seu amigo Proudhon:
«Vós, burguezes, fostes em todo o tempo os mais intrepidos, os mais
habeis dos revolucionarios. Sois vós que desde o terceiro seculo da era
christã, por meio das vossas federações municipaes, estendestes a
mortalha sobre o imperio dos romanos nas Gallias. Sem os barbaros que
vieram mudar a face das coisas, a republica, constituida por vós, teria
governado a edade media. Fostes vós que, mais tarde, oppondo a communa
ao castello, o rei aos grandes vassallos, vencestes o feudalismo. Sois
vós em fim que ha oitenta annos, tendes proclamado umas depois das
outras todas as idéas revolucionarias, liberdade de cultos, liberdade de
imprensa, liberdade de associação, liberdade de commercio e de
industria; vós que pelas vossas sabias constituições fizestes justiça ao
altar e ao throno; vós que estabelecestes sobre bases indestructiveis a
egualdade perante a lei, a garantia legislativa, a publicidade das
contas do estado, a subordinação do governo ao paiz, a soberania da
opinião. Fostes vós, sós, que fundastes os principios e lançastes os
fundamentos da revolução no seculo XIX. Nenhuma das coisas que se tentou
sem vós, viveu; nenhuma d'aquellas que vós emprehendestes falhou. Diante
da burguezia o despotismo tem curvado a cabeça: o soldado feliz, o
ungido legitimo, o rei cidadão, desde que teem tido o infortunio de vos
desagradar, teem desfilado diante de vós como phantasmas.»
* * * * *
Lemos em alguns periodicos que o sr. prior da freguezia da Encarnação
acaba de furar as orelhas de uma santa que tinha na sua egreja para lhe
pôr brincos.
Parece-nos que este senhor ecclesiastico abusa das suas relações com as
santas a ponto de proceder com ellas de um modo como não desejaria
talvez que ellas procedessem com s.ex.ª ...
Como quer porém que seja, e admittindo-se mesmo que o sr. prior tenha o
maior prazer d'este mundo em que lhe façam furos no corpo, entendemos
que sua excellencia introduz no culto uma reforma arrojada, posto que
extremamente simplificativa, substituindo as antigas manifestações de
reverencia e de respeito devidas ás sagradas imagens--as genuflexões, o
incenso, a missa cantada, a novena e o panegyrico--pela verruma!
Isto infunde nos fieis um certo desalento, porque começa naturalmente a
lavrar entre elles o receio que o sr. prior, adoptando definitivamente o
seu novo systema liturgico, resolva de repente, um bello dia--em vez de
pregar-lhes sermões--principiar a pregar-lhes pregos!
Isto infunde nos fieis um certo desalento, porque começa naturalmente a
lavrar entre elles o receio de que o sr. prior, adoptando
definitivamente o seu novo systema liturgico, resolva de repente, um
bello dia--em vez de pregar-lhes sermões--principiar a pregar-lhes
pregos!
Pede-se aos srs. assignantes das provincias o obsequio do mandarem
satisfazer a importancia das suas assignaturas em divida, por meio de
estampilhas ou do vales do correio. Correspondencia á calçada doa
Caetanos, 30, Lisboa.

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