As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1873-03/04) - 3

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outro lado, segundo elle mesmo assevera, que no Rio de Janeiro existe um
hospital de doudos sumptuosissimo e talvez no seu genero o primeiro
estabelecimento do mundo.
Ora, para aniquilar inteiramente a opinião de que é grandissimo o numero
de alienados no Rio de Janeiro, não basta dizer-se-nos que um vastissimo
e monumental hospicio de doudos existe n'aquella côrte; importaria
certificar tambem que as pessoas que enchem esse edificio estão--em
pleno uso das suas faculdades.
O que no entanto se nos não põe em duvida é que esse hospital está
muitas vezes cheio. Pois bem, n'esses casos, um nosso compatriota
alienado,--como a colonia portugueza não possue estabelecimento especial
para o receber--é recolhido na cadeia.
Lembra-nos que, ha cêrca de um anno, lêmos em um jornal a noticia de um
d'estes casos; o portuguez doudo, recolhido na cadeia por falta de outro
asylo estava á disposição do nosso vice-consul na Praia Grande. Este
facto basta para nos indicar qual é a praxe seguida com os portuguezes
pobres atacados de alienação mental. É natural que existam mais casos da
natureza do que citamos; nós desconhecemol-os, porque nunca tivemos a
vantagem de visitar o Brazil, não recebemos informações nem suggestões
de ninguem que ali esteja ou tivesse estado: os nossos conhecimentos a
respeito do imperio americano são o resultado da leitura dos poucos
documentos officiaes publicados em Portugal e dos escriptos de alguns
viajantes suissos, allemães e francezes. Se não adoptamos, em vez do
testemunho d'estes viajantes o que nos podessem ministrar escriptores
brazileiros, a razão é unicamente que os publicistas do Brazil, tão
sonoros na poesia, são inteiramente mudos na critica que nos instrua do
estado da civilisação na sua patria.
* * * * *
Tocaremos tambem o ponto em que o auctor do opusculo brazileiro
contraria a nossa opinião ácerca da inanidade diplomatica do sr. Mathias
de Carvalho, actual ministro portuguez junto de S.M. o imperador do
Brazil, com o fundamento de que este funccionario tem sabido sempre no
seu cargo captivar inteiramente os applausos da nossa colonia.
Se um diplomata deve ser julgado pelos seus actos em serviço do paiz que
representa e não pelos applausos que o seu publico lhe confere, o actual
ministro portuguez no Brazil é uma pessoa extremamente sympathica, mas
inutil. Conseguiu um tratado de extradicção, cuja historia se acha
resumida nas seguintes datas que extrahimos do _Livro Branco_: Em 7 de
junho de 1859--começa a negociação o encarregado de negocios interino no
Rio de Janeiro. No fim do mesmo anno--prosegue o sr. Mathias de
Carvalho. Em dezembro de 1871--principia negociações para um egual
tratado o encarregado de negocios do governo hispanhol. Em abril de
1872--terminam as negociações com a Hespanha. Em junho de 1872--é
assignado o tratado com Portugal. O diplomata hispanhol consegue em
quatro mezes o que o ministro de Portugal só pôde alcançar em tres
annos! E ainda se não fez nem o tratado de commercio nem a convenção
postal, nem a convenção litteraria!
Se, pelo contrario, não são os actos do funccionario, mas sim os
applausos do publico que determinam os merecimentos do diplomata, n'esse
caso achamos preferivel ao sr. Mathias de Carvalho--a sr.ª Emilia
Adelaide.
* * * * *
Por ultimo declaramos ao auctor do folheto intitulado _Duas palavras aos
leitores das Farpas_, aos leitores das _Farpas_, e ao mundo, o seguinte:
1.º Nem um só, nem um unico facto asseveramos a respeito do Brazil, que
antes de nós não tivesse sido clara e positivamente affirmado na
imprensa da Alemanha, da Suissa e da França, por differentes viajantes,
entre os quaes citamos especialmente como fonte de todas as nossas
informações os srs. Adolphe Dacier, Waldemar Schultz, Elisée Reclus,
Tschudi e Avé-Lallemant. Os leitores decidirão quaes affirmações merecem
mais fé: se as que são feitas pelos viajantes citados, em livros
propriamente scientificos devidamente assignados, e em relatorios
especiaes apresentados pelos auctores aos governos dos seus respectivos
paizes; se as que nos são propinadas no libello intitulado _Duas
palavras aos leitores das Farpas_, por um patriota brazileiro ... e
anonymo!
2.º Não estamos resolvidos a subordinar a opinião de que nos acharmos
convencidos, nem á vontade, nem aos conselhos, nem ás ameaças de
ninguem. Se Deus não fosse a absoluta verdade, a verdade estaria acima
de Deus. Como querem então que a prostremos debaixo dos _syllabus_ do
Catete ou das _bulas_ da rua do Ouvidor?!
* * * * *
Se porém, apezar de tudo isto, a joven America brazileira se parece
tanto com a rainha Fulvia que lhe seja absolutamente preciso para a sua
felicidade varar-nos a lingua com o seu prego de oiro, como fez a Cicero
a mulher de Marco Antonio, que a America se não incommode a escrever
para isso mais folhetos. Venha o prego. Aqui está a lingua.
* * * * *
As «corridas» do Campo Grande--Extraordinario successo de dandysmo!
Não assistimos, mas lemos que esteve o _high-life_, o famoso
_high-life_, com o qual temos sempre o infortunio de nos desencontrar!
Estamos todavia d'aqui a vêl-o, a imaginal-o, rico, elegante, bello, no
Campo Grande, em volta do lago--o _high-life_ ...
A aristocracia nos seus _landeaux_, com enormes cocheiros gordos, de
barrigas de pernas phenomenaes e bizarras.
A alta finança em carroagens de posta com os senhores na almofada, e os
creados, recamados de galões de ouro, dentro da berlinda, immoveis,
empoados, descobertos, com os tricornes na mão.
Os diplomatas, nedios, sorrindo na doce bestialidade espirituosa de quem
sente no paladar os succos perfumados de uma aza de codorniz _truffada,_
repimpados em _daumonts,_ com uma _carvajal_ nos beiços e uma marta
zibelina debaixo dos pés.
A galanteria, com as suas representantes de cabellos côr de manteiga e a
pelle especial dos estranhos climas do _cold-cream,_ da decocção indiana
aromatica e tonica, e da balneação mucilaginosa do leite de morangos e
de _ess-bouquet,_ dentro dos seus _broughams_ ou em pequeninos coupés de
flecha e oito molas, levando ao lado no logar devoluto da carroagem um
ramalhete de cem francos ou um microscopico _kings' charles,_
descendente, aperfeiçoado em pequenez, da cadellinha que Henrique III
trazia mettida na manga ...
Depois os picadores, de librés verdes, os batedores de encarnado, os
postilhões, as _victorias_, as _americanas_, os _poney-chaises_ ... os
_grooms_ em finos cavallos inglezes, nervosos, descarnados, de olhos
scintillantes e ventas altas, abertas, redondas, frementes. Os
_sportmen_ em _breaks_ ou em _dog-cart_....
Sente-se o fluxo e o refluxo do grande luxo, a maresia da elegancia.
Respira-se entre as arvores um ar empregnado de fina perfumaria, como
n'um salão. Vae-se a passo por causa da agglomeração das carroagens e
dos cavallos. De quando em quando succede mesmo que os cocheiros se
empinam de repente para traz, e que se é obrigado a parar.
Ouve-se então o respirar dos cavallos, o ranger dos arreios e os finos
ditos que partem do fundo dos _coupés_.
De carroagem para carroagem trocam-se as palavras que fazem estremecer,
e encontram-se os olhares que fazem scismar.
Por baixo dos guardas-soes de seda branca mostram-se as cabeças loiras
das mulheres, que estão de costas para nós, deixando vêr a nascença dos
seus cabellos penteados para a nuca, tocados de sol, luminosos como fios
de ambar. Cada mulher que passa traz comsigo a excitação particular do
seu genero de belleza. Umas reveem as finuras do amor moderno,
calculado, scientifico. Outras inclinadas para traz, dormentes,
languidas, obrigam a phantasiar as caricias orientaes.
As sedas, cingindo a curva do peito e caindo em pregas quebradas de
reflexos, as sedas da moda, de tons verdes aquaticos, dão ás mulheres
esveltas a côr das visões dos lagos, das heroinas das legendas druidicas
e dos cantos de Ossian.
Sob a palpitação dos leques sentem-se estremecer no espaço correntes
aerias de volupluosidade indefinida.
Pela estreitesa das testas, pela espessura dos beiços, pela carne
polpuda das pequenas orelhas, pelas frias expressões do olhar indagador
e critico, percebe-se porém que essas delicadas creaturas que passam,
ondulantes e harmoniosas como sereias, teem o bom gosto pratico de
preferirem aos suspiros de Fingal e de outros bardos os camarotes na
opera, os fofos _coupés_, os quentes _cachemires_, e os finos jantares.
Pela qual razão vae cada um pensando vagamente em se lançar nas
finanças, no jogo doa fundos, nas grandes companhias, nos emprestimos ao
governo, nos bancos, no dinheiro em fim, no vasto dinheiro, no profundo
dinheiro illimitado ...
E em quanto as carroagens esperam ou rodam em volta de nós, os
cavalleiros passam, e as _toilettes_ scintillam, a pobre natureza ao
longe, nas collinas, parece envergonhada na sombra das suas arvores, na
humildade dos seus limos e dos seus musgos, porque ella é verdade que
tem os altos montes e os fundos mares, tem o Niagara e o Etna, mas não
tem os braceletes de Sampere, as luvas de oito botões, e as rendas de
Malines!
Tal é o perfil das «corridas»; tal é o _high-life_.
Dizem as folhas que elle esteve no Campo Grande, e nós piamente o
crêmos.--Pelo que, d'aqui enviamos os nossos parabens ao _Collete
Encarnado_.
Não se inscreveram no Derby lisbonense os Hamilton, nem os Lagrange, nem
os Rothschild, nem os Mouchy, nem os Dudley Stuart. Inscreveram-se
apenas, com os seus trens, o João Russo e o Chico Perfeito, cocheiros da
praça.... _Alea jacta est!_
Elles partem nos seus fiacres, ao trote.--_Montjoie et Saint-Denis!_
O Russo venceu o Chico com a distancia do comprimento de uma pileca.
_Hurrah!_
* * * * *
Muito devemos esperar, para a civilisação e para o dandysmo, da boa
estreia d'estes hyppicos torneios especialmente destinados a apurarem em
Portugal a famosa, a incomparavel, a unica raça ... das tipoias!
Parabéus a todo o _Sport_ europeu, e ao nosso defunto Lagoia!
* * * * *
Hontem no theatro de D. Maria--primeira representação da _Magdalena_,
especie de _Dalila_, de Octave Feuillet, localisada entre o Arco do
Bandeira e o da Rua Augusta, como presente malicioso de Pinheiro Chagas
ás curiosidades do _chic_, na Baixa.
* * * * *
N'este drama ha tres typos principaes:
_O amante_--Um Hamlet de aldeia, um Conrado, um cavalleiro negro--de
Figueiró dos Vinhos. Dandy melancholico, como um Satanaz em uso de
figados de bacalhau. Um Alcibiades quebrado. Um pallido cherubim
portador de uma paixão e de uma tenia. Typo lamartiniano, o anjo caturra
da velha ode, a personalisação do antigo amor lyrico--sob os symptomas
lancinantes e urgentissimos da colica.
_A noiva_--Menina educada no convento. Creada com doces de freiras e com
livros de versos. Organisação de ovos de fio e de romances baratos. Amor
e dispepsia. Pouco cerebro e muita cuia. Não faz saborosos coscorões,
não deita alvas teias de linho nem gordas ninhadas de perus como sua
mãe, casta e sabia Penelope. Ella corta a serena tradicção burgueza e
rural da familia. Despresa com ascos as conservas do lombo de porco em
vinho e alhos. Cultiva a orthographia e a arte poetica com mais
disvello, mas menos proveito que aquelle que sua mãe tira do cultivo
modesto das alfaces, das finas hervas, dos primores horticolas. Não ama
finalmente senão uma coisa--o talento!... Pobre rapariga! desditosa
burgueza! que esteril e que perigosa idolatria a tua! O _talento!... a
divina inspiração!... o supremo encanto!.._ Coitada! se acreditas
n'isso, estás perdida. A tua imaginação doente entregar-te-ha submissa,
humilhada, ridicula, ao primeiro noticiarista de _soirées_ que te
appareça, á primeira _bas-bleu_ que te escreva cartas, ou á primeira
actriz que te beije e abrace. O talento!... Mas não ha nada
verdadeiramente respeitavel senão o trabalho, a abnegação, a
perseverança, o sacrificio e a virtude. O talento é uma simples
fanfarronada. O talento é uma invenção dos bohemios para substituirem a
_toilette_ e a roupa branca. O talento é um falso titulo clandestino de
apresentação, fabricado por aquelles que não teem titulos legitimos para
que a sociedade os receba. Fazer-se passar como «tendo talento» é um
meio de cada um se eximir a que lhe perguntem se «tem caracter.» O
talento finalmente é o seguinte typo d'esta peça:
_A amante do noivo_--Uma actriz que foi educada no convento com a noiva
o que, passados annos, a noiva recebe em sua casa com reconhecimento,
com adoração, com enthusiasmo, apezar da actriz não ser senão uma
_lorette_; uma artista _aux camelias_; grande genio de _petit-lieu_;
celebridade baptisada com _Champagne_, entre rapazes, depois das ceias,
em gabinetes reservados. Um martyrio, se quizerem, mas um martyrio que
exige um bracelete e uma nota do banco para se estender na sua cruz. Uma
paixão, se isso lhes apraz, mas uma paixão Rigolboche, que se concilia
com o _cancan_, que adopta a arte para canalisar o vicio, que nunca
chega ao fel do seu calix por que o tem sempre cheio de Malaga ou de
_pale-ale;_ que pede uma mortalha, mas talhada por Worth, á Rabagas, com
rendas de vinte libras o metro. Uma Magdalena emfim, mas uma Magdalena
penetrada do peccado moderno, barato, para todo o mundo, cheirando aos
sitios publicos, ao tabaco de fumo, á cerveja azeda e ao gaz
extravasado.
_O drama_. O noivo acha que _Tant-de-charmes_ é mil vezes mais
interessante do que _La-vertu-même_. Por tanto o noivo abandona a noiva
virtuosa e corre atraz da amante impudente. A burgueza abandonada vae
então chorar aos pés da comica. Esta resolve devolver-lhe o noivo com
tanto mais vontade quanto é certo que o noivo é a semsaboria toda d'este
mundo na figura insignificante de um provinciano piegas, em primeira mão
de conquista, que desmaia de puro amor ao declarar a sua chamma,--de
sorte que é preciso gastar tanto com elle em sal ammoniaco para lhe
restituir os sentidos quanto elle gasta em rhetorica para os fazer
perder aos outros.
O noivo pois regressa para a noiva. A actriz faz uma phrase. E o panno
cáe.
* * * * *
Ha n'esta peça uma personagem secundaria, sem acção nenhuma no enredo e
no desenlace, para a qual nos parece um bom serviço á moral o chamarmos
a attenção do publico. É uma burgueza que apparece no segundo acto em
casa da noiva, onde está hospedada a actriz. Essa pessoa, de notavel
juizo, que diz coisas justas a respeito das creadas e dos arranjos da
casa, apenas sabe que ha na reunião para que a convidaram uma mulher
cujos appelidos e cujos diamantes não se sabe d'onde procedem, toma sem
mais cogitações o braço de seu marido, deseja á dona da casa o juizo que
lhe falta, e retira-se em pleno escandalo.
O publico ri, e tanto na scena como na sala é um pouco apupada esta
_ménagére,_ que se declara abertamente incompativel, dentro do mesmo
recinto e debaixo dos mesmos tectos, com uma actriz _cocodette_.
Pois bem: é essa mulher que se vae embora--notae-o bem, minhas queridas
burguezas!--é essa mulher que se vae embora, a que ahi, deante de vós,
está dando o unico exemplo que deveis seguir. Todas as demais pessoas
d'esta peça teem o lyrismo, a eloquencia, a convenção litteraria; só
esta é que inteiramente possue a verdade e o juizo.
O que todas vós tendes que fazer perante a concorrencia e o cotejo a que
vos queiram sujeitar com as mulheres artistas, celebridades no mundo do
theatro ou no _demi-monde_, é tomardes o braço dos vossos maridos e
sairdes com elles.
Os maridos portuguezes estão pessimamente educados; foram creados com
as operas de Verdi, com os romances de Chateaubriand, com as poesias de
Lamartine e de Musset; teem o systema nervoso exaltado, a imaginação
plethorica, o temperamento irritado, e o juizo das coisas praticas
derrancado ou extincto.
As creaturas artificiaes, morbidas, irritantes pelos poderosos
contrastes do desvergonhamento da alma e das finas delicadezas da pelle,
serão sempre as que dominarão os homens corruptos e que os levarão
comsigo. Ellas teem um prestigio de vicios triumphantes, de elegantes
indolencias, de altos desdens, de serenas voluptuosidades perennes, com
que vós, mulheres honestas, dignas, impeccaveis, não podereis nunca
luctar.
Vós tendes o sentimento real que ri em grossas gargalhadas ou que incha
as palpebras e engrossa a pelle com o correr das lagrimas: ellas teem a
sentimentalidade correcta dos pasteis de Latour ou das porcelanas de
Saxe--inalteravel mimo de galeria ou de étagère.
Vós tendes a forma das vossas mãos um poueo affastada do ideal de
Praxiteles pelos habitos honestos da vida activa, do trabalho; algumas
vezes a ponta do vosso dedo está picada pelo bico da agulha: ellas teem
as mãos finas, afiladas, pallidas, transparentes, que obrigam a sonhar
estranhas caricias e que são o resultado de quinze annos de ociosidade
estupida de serralho, de chloroses e de massas de amendoas.
Vós tendes uma passagem de miudos e pacientes pontos n'um dos vincos do
setim dos vossos sapatos: ellas teem uns sapatos por noite e umas luvas
por dia.
Finalmente vós sois a probidade e o decoro. Ellas são a dissipação e o
vicio.
Ora os homens educados pela sociedade, por si proprios, e em grande
parte por vós mesmas, minhas senhoras, nas corrupções litterarias e
poeticas, nos falsos ideaes epidemicos do sentimentalismo, da
melancolia, da paixão, dos amores fataes, os homens assim educados,
quando lhes acorda o temperamento e a imaginação, começam--por enjoar a
virtude.
Não queiraes reagir. Vede bem. A lucta humilha-vos e deshonra-vos.
Evitae-a. O espirituoso drama do nosso amigo Pinheiro Chagas é um grande
aviso, maior talvez do que o auctor suppunha: As _Magdalenas_ não sobem
as escadas das casas em que ha mulheres honestas.
E então os direitos do talento? E as rehabilitações pelo amor?...
Oh! meus senhores, mas desde 1830 que os romancistas e os dramaturgos
pouco mais teem feito do que procurar convencer a sociedade d'esses
direitos e d'essas rehabilitações, ao passo que a sociedade tem
constantemente e invariavelmente refutado sempre os romancistas e os
dramaturgos!
Não lhes parece que vae sendo tempo de darmos a velha questão por
discutida?...
* * * * *
Não! não é para que nos tragam o premio da austeridade e da virtude! Não
somos nós os que fugimos para a Thebaida, a flagellar o nosso pobre
corpo, ao aspecto das peccadoras espirituosas a cujos pés passou a sua
vida, em extase, a geração litteraria que nos precedeu. Sómente para que
levemos a essas damas a visita da arte, achamos de bom gosto deixar
arejar um pouco os tapetes em que estiveram por tanto tempo prostrados
os nossos antecessores.
* * * * *
Chegamos do palacio das Janellas Verdes. Vimos de assistir ao leilão do
espolio de sua magestade a imperatriz, ultimamente fallecida.
Grandes salões enormes, altos, quadrados, angulosos,--á marquez de
Pombal.
Nas salas de honra, estofos de damasco e moveis do primeiro imperio, no
estylo chato, _parvennu_, pretencioso, mas rico, do seculo de Bonaparte,
esse Luiz XIV de caserna.
Mesas, sophás, tremós, de fórmas rectangulares, riscados pela regoa,
guarnecidos de columnas parallelas, de capiteis de bronze.--O que quer
que seja de fortaleza, de baluarte, de ariete, de escudo, e de templo do
genio!
As guarnições de chaminé, as taças, os candelabros, os lustres--tudo
bronze, macisso, pesado.
As pendulas doiradas são rematadas pela aguia imperial ou por assumptos
de fria inspiração bucolica bebida com assucar e agua de flôr de laranja
na contrafeita natureza dos parques de Versailles delineados a cordel.
Uma multidão compacta, plebeia, suada, conservando os chapeus na cabeça
e os cigarros nos beiços, cuspindo nas alcatifas, limpando com o dedo
molhado em saliva o pó das tellas e das estatuetas, ou apoiando a sola
da bota nas almofadas das poltronas para tomar notas sobre o joelho,
enche os salões e vae deitando os lanços.
O pregoeiro--_Uma mesa offerecida pelo imperador Napoleão I, o grande!_
Um adelo--_Ponha lá uma libra por ter sido d'esse sujeito ... e, em fim,
porque é de mosaico!_
Os licitantes animavam-se, os preços subiam, os objectos em praça eram
rapidamente adjudicados ao maior lanço, e tudo quanto enchia aquellas
regias salas ia successivamente passando para o povo que as invadia.
Não era sómente um leilão aquillo, era uma liquidação pronta e solemne
dos ultimos restos de um imperio extincto, de um cesarismo arruinado e
fallido, de um mundo inteiramente acabado e desfeito.--Extranho
espectaculo, de tal modo significativo que era quasi doloroso!
* * * * *
Passa-se aos aposentos particulares da imperatriz.
Lá fóra, nos salões, revelava-se uma epoca poderosa.
Aqui transparece apenas uma individualidade feminil, delicada e modesta.
N'estes quartos em que a viuva de D. Pedro IV se conservou por tantos
annos recolhida e occulta n'uma clausura inviolavel, sente-se
perfeitamente a sua personalidade em todos os detalhes da existencia.
Nenhum aspecto de luxo, de pretenção ou de apparato. O chão é coberto
com simples esteiras; todos os cortinados são de cassa branca, e todos
os estofos de chita em pequenos ramos de flôres sobre fundos pallidos.
Os aposentos estão cheios de étagères de todas as fórmas, com todas as
disposições. Pequenas bibliothecas e pequenos armarios, dispostos por
toda a parte. Uma infinidade de mezinhas de escripta, de leitura, de
costura ou de bordado. Cadeiras de todos os formatos e das mais diversas
proporções, sem nenhum estylo, sem genero artistico, sem época, sem o
minimo lavor, sem concessão alguma á elegancia ou á simetria--uma
visivel exigencia da vida sedentaria e doente, a necessidade physica de
mudar a todo o momento de posição, para deslocar a sua dôr, para
motivar o seu pequeno exercicio e povoar por si mesma, com as suas
diversas attitudes a sua solidão. Defronte das janellas ha pequenos
biombos de chita franzida para impedir as correntes de ar, formando uma
especie de kiosques, subdivisões minimas de abrigo e de recolhimento. Ha
muitas estantes de leitura, mezas de desenho ao crayon ou á aquarella, e
uma caixa cheia de lapis aparados, de diversas côres e de differentes
numeros. Uma grande secretária, larga pesada, lisa, e defronte d'ella
uma enorme poltrona ingleza, estofada de carneira escura, usada, tendo
aos pés uma almofada esfarpada e gasta. Era a cadeira em que a
imperatriz se sentava ordinariamente, e que se vê em todos os seus
ultimos retratos. Sobre uma mesa apparece um Christo, antigo,
marchetado, trazido de Jerusalem, deante do qual, por muitas vezes,
decerto, se ajoelhou a imperatriz. Ao lado d'esta sagrada imagem e como
diversão á gravidade do seu dolorido e pallido aspecto encontrámos
dentro de uma caixa aberta um instrumento de uso demasiadamente intimo
de Sua Magestade, o qual objecto suppunhamos que não era licito expôr em
publico senão como accessorio da scena triumphal do ultimo acto do
_Malade imaginaire_, ou como vinheta illustrativa nas obras de Avicena:
ao lado do aphorismo, _Medicamen clister nobile est_.
E aqui suscita-se-nos o meditar, diante d'esta caixa aberta, quaes serão
os principios politicos de suas excellencias os executores
testamentarios da fallecida soberana.
Porque, realmente, não nos occorre como os possamos classificar....
Se são republicanos, democratas, socialistas, suas excellencias deveriam
saber que nunca se abrem as caixas reservadas da _toilette_ de uma
senhora.
Se são monarchicos, deveriam comprehender que n'estes tempos de
discussão implacavel é perigoso para o prestigio das testas coroadas
denunciar aos povos, por via de uma imprudencia de suas excellencias,
que se os soberanos que os governam estão por um lado tanto acima
d'elles pelo direito divino, não são por outro lado mais que seus
simples eguaes pelo direito therapeutico, e que finalmente pode ser um
novo e terrivel argumento inesperado em favor da egualdade dos homens--a
constipação intestinal dos principes!
* * * * *
O pregoeiro do leilão é acompanhado pelo sr. barão de S. George, consul
da Suecia e representante de Sua Magestade a rainha, irmã da imperatriz
fallecida.
O sr. consul faz a historia de alguns objectos postos em praça, garante
a sua authenticidade historica, e encarece com tocantes discursos o
valor de cada coisa.
S.ex.ª o sr. barão, delegado de sua magestade a rainha da Suecia, em
beneficio da qual se faz a venda em hasta publica do espolio de sua
irmã, attesta-nos que tal cama é a mesma em que dormia na sua tão breve
mocidade sua alteza serenisssima a princeza do Brazil; tal chavena
aquella por que Sua Magestade bebia os seus remedios; taes bonecos os
mesmos com que a infeliz infanta D. Amelia brincava em pequenina, e que
sua mãe conservava como um piedoso penhor de saudade!
* * * * *
Graças a todos estes preciosos esclarecimentos, amavelmente dados por
s.ex.ª o consul á multidão dos licítantes, dos adelos, dos ferro-velhos
e dos cabeças de pau, Sua Magestade a rainha da Suecia terá a doce
consolação--tão sensivel ás almas sublimes--de receber duzentas libras a
maior da somma em que haviam sido avaliados os saudosos e queridos
despojos d'aquella que duas vezes fôra na terra sua irmã--como mulher e
como rainha!
* * * * *
Oh! como deverá ser bom e suave, na ultima estação da vida, quando os
rheumatismos rangem nas frias articulações da nossa velha ossada,
embrulharmo-nos tremulos na purpura real, no alto do nosso
throno,--tendo aos nossos pés os nossos vassallos inclinados e a nossa
cova aberta,--fitar serenamente no espaço a branca apparição d'aquella
que amamos no mundo e que nos espera entre as estrellas nas esfumadas
sombras do crepusculo, e podermos então exclamar em nossa consciencia:
«Sim, ella morreu ... mas abençoado sejas tu, nas alturas infinitas, ó
Deus meu e dos meus exercitos, pois quizestes permittir que aquelle
objecto que lhe pertenceu e que ella tinha occulto por detraz de uma
cortina no seu quarto de lavatorio fosse venturosamente arrematado--por
trez mil e seiscentos!»
* * * * *
SCENAS DE RELIGIÃO.--Lemos no _Diario Illustrado_ o seguinte:
«Em additamento á noticia que ontem démos da saida processional do
Senhor aos entrevados da freguezia de Santa Justa e Rufina, somos hoje
informados que a interessante filhinha do sr. Marcos Maria Fernandes e
D. Maria Cecilia da Conceição Almeida Fernandes, proprietarios do
acreditado estabelecimento de modista de chapeus e vestidos na travessa
de Santa Justa n.º 81, vae tambem n'essa procissão, distribuindo esmolas
aos enfermos pobres, que receberem o Viatico, sendo vestida a custa e
por generoso e espontaneo offerecimento de seu pae, que é irmão do
Santissimo d'aquella freguezia.
«Leva a gentil menina, symbolo de caridade, vestido de faille azul
claro, com outro de tulle branco aventalado adiante, com finas pedras, e
um manto branco preso na cabeça por um diadema do pedraria e semeado de
estrellas de oiro de lindo effeito.
«Esta devoção do sr. Fernandes, que ha quatro annos successivos tem
levado a sua filhinha vestida de anjo n'aquelle acto religioso, offerece
no presente anno uma novidade elegante, e que decerto será do mais
apurado bom gosto, se attendermos ao extremo paternal do sr. Fernandes,
e ao esmero e apuro de todos os trabalhos do seu estabelecimento, onde é
variadissimo e primoroso o sortimento de tudo quanto respeita a enfeites
de senhora.»
* * * * *
Ó dôce Jesus, eterna bondade simples e infinita como o Céo! aqui tendes
como elles a comprehendem, na freguezia de Santa Justa e Rufina, a
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