As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1873-03/04) - 2

Total number of words is 4358
Total number of unique words is 1607
33.7 of words are in the 2000 most common words
46.9 of words are in the 5000 most common words
54.7 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
baixo-relevos, nos cylindros e nos amuletos ... Tudo isso, ó João, antes,
mil vezes antes, do que procurar entender-vos!
* * * * *
Se porém o nosso conselho vos não apraz, se quereis absolutamente
continuar a escrever compendios, em vez de seguirdes outro officio, não
nos afflijaes pelo menos, continuando a declarar-nos em cada uma de
vossas obras que continuaes sempre a ser medico, agronomo e engenheiro
civil! Se tudo isso vos não serve para ganhardes honradamente a vossa
vida sem vergonhas da grammatica dos vossos paes e do senso commum dos
vossos avós, então ponde unicamente nos vossos livros:
POR JOÃO FELIX BIMANE DA ORDEM DOS PRIMATAS SEGUNDO DARWIN E LAMARCK
* * * * *
O _Tribuno Popular_, folha democratica de Coimbra, referindo-se em um
notavel artigo á recente viagem áquella cidade do S.M. o sr. D.
Fernando, escreve estas linhas:
_«N'este intervallo a sr.ª condessa de Edlla, e o sr. infante duque de
Coimbra, acompanhados pelo sr. visconde do Seiçal e João José de Mello,
emprehendiam um passeio notavelmente pittoresco. Dirigiram-se ao caes,
entraram n'um pequeno barco, e seguiram rio acima, admirando estas
formosissimas margens, então realçadas pela luz do luar, e animadas pela
orchestra de mil rouxinoes que de ambas as margens pareciam advinharem
os espectadores nocturnos que os escutavam.»_
Poderosos ceos! Que teriam feito os rouxinoes para que se entendesse que
elles tinham advinhado «os espectadores nocturnos que os escutavam?!»
Cantaram o hymno da carta? Deram vivas á real familia? Perguntaram por
Melicio?...
Por Deus! que o _Tribuno Popular_ nol-o diga! Queremos pedir para o
peito d'esses passarinhos a commenda de S. Thiago.
Emquanto aos srs. viscondes do Seiçal e João José de Mello, estamos
certos de que não deixaram ficar a côrte endividada com a patriotica
manifestação dos rouxinoes do Choupal. Sim, ss.ex.'as seguramente
responderam aos rouxinoes, desentranhando-se por sua parte nos mais
ternos pios, nos mais vigorosos gorgeios ... Oh! nós conhecemos a fidalga
bizarria de ss.ex.'as, Pela parte que nos toca não podemos deixar tambem
de mandar um garganteado reconhecido ás avesinhas do Mondego. Ora pois:
_có, có ró, có!_ por Lisboa agradecida.
* * * * *
Sempre que em cada anno se celebra na cadeia do Limoeiro a ceremonia da
communhão aos presos, o senhor procurador regio convida a imprensa a
assistir a essa solemnidade, e a imprensa publica no dia immediato que a
cadeia está no maior aceio e que o senhor procurador regio é digno dos
maiores elogios. Porque? Porque commungaram os presos.
* * * * *
Ha dias lemos que a casa de detenção da comarca de Lisboa estabelecida
no antigo convento das Monicas estava no dito «maior aceio» e que o
mesmo procurador regio era digno dos referidos «maiores elogios.» Razão:
Tinham commungado os presos.
* * * * *
Ora é bom que o publico saiba de quando em quando o que são as prisões
portuguezas--quando os presos não commungam.
Nós visitámos a casa de detenção--antes da oitava da Paschoa. Eis o que
vimos:
* * * * *
Um predio frio, humido, abafado, sem ar e sem luz, espessas paredes e
pequenas janellas, a clausura mais estreita, mais escura, mais humilde.
Era no inverno. As paredes rebocadas de novo tinham grandes manchas
humidas, esverdeadas. O sol não penetrava em parte alguma do edificio.
Uma impressão de bolor e um ar em que se sentiam, resfriadas e fixas, as
exhalações peculiares da miseria, a atmosphera das enxovias
deshabitadas, as reminiscencias olphaticas dos cheiros emanados das
vasilhas de lata em que houve caldo e dos vestidos quentes dos mendigos
que apanharam chuva.
Era um domingo. Os rapazes detidos no estabelecimento, na promiscuidade
de todas as edades desde os seis annos até aos dezeseis, estavam juntos
em um estreito pateo interior, na sombra--porque tambem ali não chegava
o sol--frios, com as mãos nos bolsos, encostados aos muros, sentados ou
deitados no chão. Ninguem os vigiava. Elles porém estavam quietos--como
um rebanho no curral. Alguns tinham escrophulas. Outros tinham os olhos
doentes e os cantos da bocca feridos. Eram todos magros, pallidos,
anemicos, tristes.
Perguntamos-lhes por que esperavam. Não esperavam nada. Estavam ali. Que
faziam? Coisa nenhuma. Porque não cultivavam a quinta annexa ao
edificio, metade da qual estava cheia de hervas inuteis? Porque os não
deixavam: havia um hortelão. Porque não iam pelo menos passeiar na
quinta? Porque era prohibido. Não havia uma gymnastica? Não a havia. Não
havia de todos esses regimentos da guarnição de Lisboa um musico que aos
domingos lhes ensinasse rudimentos de musica para que tivessem uma
charanga? Não havia. Hão havia, pelo menos, um cabo de esquadra que os
fizesse marchar ao som de um tambor e lhes ensinasse o exercicio
militar? Não havia. Não havia, emfim, terra que remover, pedra que
acarretar, lenha que partir, um pau sequer espetado no chão para
treparem n'elle, uma escada de mão posta ali para subirem e descerem
por ella, uma occasião, um motivo, um pretexto, uma desculpa qualquer
para que esses infelizes pequenos se bolissem, se movessem, tivessem
alguma distracção, fizessem algum exercicio? Nada, absolutamente nada.
As lages do pateo interior da casa, pouco menos estreito que um saguão,
coberto de sombra e de frio e sobre as lages os pequenos. Era assim que
passavam os domingos.
* * * * *
Nos dias de semana trabalham em officinas terreas, sem soalho,
extremamente humidas, no mesmo pateo em que jazem nos domingos. Uns são
alfaiates, outros sapateiros, outros esparteiros. Ha sobre isto uma
escola de instrucção primaria. Não aprendem mais nada. Nada mais se lhes
ensina.
Este instituto tem uma missão especialmente moralisadora. Não ensina
moral.
Tem por fim punir e evitar as contravenções da lei. Não ensina a lei.
Tem a obrigação restricta da catechese. Não ha na prisão um padre, um
capellão, um perceptor.
Aos domingos um sacerdote diz missa e retira-se. Por essa razão entre as
attribuições dos chaveiros lemos esta disposição: «Obrigará os presos a
benzerem-se.»
Teem duas refeições por dia. Ao almoço arroz e feijões. Ao jantar
feijões e arroz.
Carne fresca ou salgada, de boi, de carneiro ou de porco nunca comem.
Nunca bebem vinho.
O rancho é fornecido pela cosinha do Limoeiro. Isto precisa de ser dito
duas vezes. O rancho é fornecido pela cosinha do Limoeiro. É o _menu_ da
enxovia. Se é mau na cadeia, imagine-se o que poderá ser na casa de
correcção!
* * * * *
Dormem, aos grupos de oito, em camaratas, onde ha, em cada uma, oito
camas e uma latrina.
Na camarata não ha luz. A porta é fechada por fora á chave.
Não ha vigilancia alguma durante todo o espaço de tempo que decorre
dentro d'aquellas podridões, desde que anoitece até que rompe o sol.
Apenas, fora do corredor que dá passagem para os dormitorios, dorme um
guarda no seu quarto. Este guarda teve a bondade de nos dizer que,
sempre que havia desordens nas camaratas, elle intervinha com o rigor da
sua auctoridade por isso que, concluiu elle, _quem dá o pão dá o
ensino_.
Cremos piamente que este guarda está convencido de que quem dá o pão em
Portugal á infancia criminosa é elle. O ensino pelo menos é exclusivo de
sua mercê.
* * * * *
A direcção geral da prisão está confiada a um homem que não sabemos quem
é, nem quem foi, nem quem poderá vir a ser. O que sabemos, e isso nos
basta, é que esse director ganha--cinco tostões por dia!
* * * * *
Eis a physionomia da casa de detenção da comarca de Lisboa, contornada a
traços mathematicos, sem commentarios, sem emphase, sem exclamações
doloridas ou sentimentaes, nenhum toque artificial de luz ou de sombra
que possa alterar a exacção rectilinea do quadro!
Para isto não ha pedir reorganisação ou reforma. Não se trata de uma
velha instituição apodrecida pelos annos. É uma creação nova, que tem
apenas alguns mezes de existencia. Dá a medida exacta das forças de
sciencia, de civilisação e de moral que o paiz se acha officialmente
habilitado para dispender, no dia de hoje, em favor do progresso. Não se
póde por em quanto pedir mais nada ao paiz! Eis a sua mais recente prova
de capacidade! Eis tudo quanto elle sabe do direito criminal, da hygiene
physica e moral das prisões, das modernas colonias penitenciarias, da
educação intellectual, da educação moral, da educação religiosa, dos
deveres phylantropicos do Estado, da missão paternal do poder para com
os orphãos, da organisação do trabalho infantil, de todas as questões
finalmente ligadas á creação de um estabelecimento penal da ordem
d'aquelle a que nos referimos.
O povo, tranquillo e satisfeito, lê as folhas baratas cheias de elogios
estolidos ás mais viciadas e perniciosas instituições do paiz, e
julga-se fielmente levado para a mystica terra da promissão pelos homens
que o governam e pelos homens que o instruem. De todo o tempo esteve na
tendencia popular esta profunda fé na simplicidade ignorante. Os
primeiros cruzados que foram á Terra Santa queriam ter por guias uma
cabra e um pato; os Sabinos baixaram das suas montanhas conduzidos por
um picanço; Cadmus foi á Beotia levado por uma vacca. Em Portugal João
Felix, no livro; Melicio, no jornal; e o sr. procurador regio na casa
das Monicas, dirigem os espiritos e guiam as consciencias para o ideal.
A opinião obedece-lhes.
* * * * *
Vemos em uma conta official que nas obras feitas no convento das Monicas
para adaptar o edificio ao fim a que elle hoje se destina, se gastaram
seis contos de réis. Junte-se esta quantia á de quinze contos, preço
minimo porque poderia ser vendido o convento e quinta annexa e ter-se-ha
mais que o sufficiente para fundar em qualquer baldio da Extremadura ou
do Alemtejo uma exemplar colonia agricola penitenciaria.
Seis contos de réis, só em obras n'um edificio torto, absolutamente
impossivel de adaptação ás necessidades do trabalho, da educação e da
hygiene!...
Mas é um desperdicio, que revela a ignorancia mais crassa em similhantes
assumptos. Na magnifica colonia agricola de Mettray, perto de Tours, em
França, as creanças presas estão divididas por edades e repartidas por
casas inteiramente separadas e independentes. Cada uma d'estas casas,
de 12 metros sobre 6,66, consta de um pavimento terreo e de dois
andares. Na sala do rez do chão está estabelecida a officina. Em cada um
dos dois andares ha uma sala, que serve successivamente de dormitorio,
de refeitorio, de sala de estudo, de sala de recreação nos dias de
chuva, e em caso de necessidade de escola. Dois travessões presos ao
muro por uma dobradiça em uma das suas extremidades estão levantados ao
longo da parede dos dois lados da porta de entrada. Quer-se preparar o
refeitorio, a classe, a sala de estudo? Descem-se estes dois travessões
e suspendem-se no muro fronteiro, ficando assim firmes, na altura de uma
mesa, aos dois lados da porta, e a todo o comprimento da sala; em
seguida descem-se das paredes lateraes pranchas de madeira fixadas
n'ellas por meio de dobradiças como os travessões; estas pranchas presas
ao muro por um lado prendem-se pelo lado opposto ao travessão por meio
de uma cavilha; e estão promptas as mesas. Os bancos levam-se da
officina. Se se quer armar o dormitorio, em vez das pranchas com que se
formam as mezas, descem-se dos muros as macas em que se fazem as camas.
Ao fundo de cada um d'estes dormitorios ha um quarto aberto para a sala
em que dorme o chefe da secção, secundado pelo contra-mestre. Os
contra-mestres estão alternadamente de quarto no dormitorio, de modo que
durante a noite passeia constantemente um guarda no espaço que medeia
entre os dois travessões de que fallámos.
Cada um d'estes pequenos predios contendo quarenta e tres pessoas,
custou, incluida toda a mobilia, um relogio, toda a roupa de camas, e
toda a loiça de lavatorio e limpeza, 8:300 francos, isto é: 1:494$000
réis.
Tres dos predios descriptos seriam muito mais que o sufficiente para
recolher todos os presos actualmente existentes na casa de detenção das
Monicas.
Temos portanto que em Lisboa se gastam seis contos unicamente em reparos
n'um velho edificio monstruoso, quando em Tours se funda para 120 presos
um estabelecimento completo, se construe um edificio modelo, provido
inteiramente de louça, de roupa e de mobilia, por menos de quatro contos
e quinhentos mil réis!
* * * * *
Em quanto ao regime e á organisação interna do estabelecimento
portuguez quasi tudo o que existe é erro.
Os presos não cultivam a quinta. Deviam cultival-a. Formar-se-hiam assim
hortelões e jardineiros.
Não cosinham, não tecem o estofo dos seus vestidos, não cozem o pão das
suas rações, não fazem a mobilia das suas casas. Tudo isso deveriam
aprender. Era facil, era economico, era moralisador, dava aos presos
novas aptidões, ensinando-os a padeiros, a tec-lões e a cosinheiros,--as
noções mais essenciaes á vida.
Não aprendem musica. Deviam aprendel-a. Uma charanga á frente de cem
rapazes em marcha faz d'elles cem homens.
Não teem uma bomba de incendios. Deviam tel-a, deviam saber manobrar com
ella. Devia-se conceder como um premio aos de melhor procedimento,
levarem a bomba aos incendios, permittindo-se por este modo aos
condemnados a faculdade de se rehabilitarem sacrificando a sua vida
pelos seus similhantes.
Não ha uma mulher dentro da prisão. É uma enorme falta para as
desgraçadas creanças de oito a doze annos. A cozinha, a lavanderia, a
enfermaria, a rouparia, coisas que alli não existem senão nominalmente,
deveriam organisar-se de um modo effectivo com o trabalho dos presos e
sob a direcção das irmãs da caridade portuguezas, que encontrariam assim
um emprego elevado e digno do seu tempo.
Só as mulheres sabem aconselhar as creanças, convencel-as da virtude; e
cumprir esta missão é mais bello e é mais meritorio perante a sociedade
e perante Deus do que mendigar por entre velhas fidalgas devotas,
embiocadas e inuteis, o pão de cada dia.
Os presos isolados no carcere celular estão na mais absoluta ociosidade
fechados n'um quarto escuro. Não ha nada que mais desmoralise, que mais
definhe e que mais corrompa. N'estes casos os rapazes deveriam ser
obrigados a rachar lenha ou a britar pedra--os exercicios mais saudaveis
para os musculos de quem está parado.
Finalmente a casa de detenção das Monicas não é sómente a negação do que
devia ser, é mais do que isso, é a affirmação contradictoria de todos os
principios oppostos aos principios verdadeiros.
Tal qual está constituido este estabelecimento, temol-o por um foco de
apodrecimentos humanos, um seminario de vicios torpes e secretos, um
curso accelerado de preparatorios infalliveis para o Limoeiro, para o
hospital, ou para o cemiterio.
* * * * *
Uma derradeira observação:
A maior parte dos presos detidos na prisão correcional das Monicas são
cumplices do crime de vadiagem.
Ora sendo aquelles presos todos menores, não tendo uma familia, não
tendo um officio, não sabendo ler nem escrever, com que direito os pune
por não trabalharem o Estado, que lhes não dá trabalho?
Que quer o estado que sejam esses pequenos para não serem vadios?
Quer que sejam medicos, tenentes coroneis, conselheiros do tribunal de
contas, escriptores publicos, capitalistas ou banqueiros?
Vamos! respondam-nos! Estamos interrogando sob o caracter mais digno de
attenção e de respeito de que se pode alguem revestir. Somos n'este
momento os interpretes inviolaveis e sagrados da infancia orphã,
desvalida e desamparada. Fallamos em nome de um pequeno que não quer ir
para a prisão das Monicas comer os feijões frios do Limoeiro, no que
está inteiramente no seu direito. É um innocente.
Todavia ninguem o chama para fazer artigos nos jornaes, ninguem o quer
para commandar a Municipal, ninguem o incumbe de tratar uma molestia, de
deffender uma causa, de montar uma fabrica ou de construir um navio.
Nenhuma viuva rica lhe offerece a sua mão de esposa. Os agiotas quando
elle passa levantam as bengalas e rangem os dentes. Não tem uma ponta de
trabalho nem um bocado de pão. Finalmente é um vadio. Agora o que elle
deseja saber é o seguinte:
O que é que o Estado lhe dá licença que seja desde o momento em que lhe
prohibe ser o que é.
Espera-se resposta.
* * * * *
A _Republica Portugueza_, jornal de Coimbra, exproba-nos a indifferença
que temos pela questão politica e pela forma do governo em Portugal, e
dirige-nos as seguintes textuaes perguntas:
1.ª «A redacção das _Farpas_ quer a resolução do problema economico,
quer que se preoccupem os animos com a questão social; mas sempre
quereriamos saber como isso se podia realisar, quando a formula politica
é insufficiente para garantir o direito?»
2.ª «O problema social em sua maior amplitude é a realisação pratica da
justiça, e sendo a fórma do governo o meio adquado á sua realisação em
uma dada epoca, como poderá haver quem imagine a resolução dos
principios da justiça actual em uma fórma de governo de ha dois
seculos?»
* * * * *
Temos a honra de responder á _Republica Portugueza_:
1.º Aquillo que a _Republica Portugueza_ chama a _formula politica_ não
é insufficiente em Portugal para garantir o direito que cada um tem de
estudar e resolver o problema social; essa questão póde-se tratar, com
todas as garantias da liberdade, nos livros, nos jornaes, nas camaras,
no governo; a unica razão que obsta a que isto se faça é apenas a
incapacidade intellectual ou moral dos que tinham obrigação de fazel-o.
Depois de estabelecida e firmada a liberdade politica aproximadamente
perfeita como ella existe em Portugal, a sociedade nada mais tem que
pedir ao principio politico; a sua obrigação é organisar as suas forças
industriaes e economicas e o seu systema moral para conseguir, dentro da
liberdade que tem, duas coisas de que carece: riqueza e virtude. Dada a
liberdade, a questão politica nada mais tem que dar ao povo; se elle
pede ainda á fórma de governo o remedio da sua corrupção e da sua
miseria, isso não prova senão uma triste coisa: é que o povo não está na
Revolução, está apenas na inepcia.
2.º A resolução dos principios da justiça cabe em todas as formas de
governo. Turgot, ministro de Luiz XVI, no tempo da monarchia feudal
queria exactamente isso: a resolução dos principios da justiça. Sabe a
_Republica Portugueza_ quem foi que impediu Turgot? Foi o povo. Não
somos nós que o dizemos. Proudhon, cuja auctoridade suppomos que a
_Republica Portugueza_ não terá por suspeita, exprime-se n'estes termos:
«Esse reformador rigorista, traido pelo povo, queria todavia a
_revolução_--tomada de alto, feita sem estrepito, consumada quasi sem
revolucionarios.»
Ora aqui tem a _Republica Portugueza_ como ha quem imagine, a solução
dos actuaes principios revolucionarios em uma forma de governo de ha
dois seculos. Quem teve a petulancia de imaginar isso, sem a previa
licença da _Republica Portugueza_, foi Proudhon.
* * * * *
Depois de nos fazer as suas perguntas, a _Republica_ tem a bondade de
nos dar os seus conselhos. As perguntas satisfizemos-lh'as. Os conselhos
não lh'os acceitamos. A ingenuidade pueril das interrogativas que a
folha conimbricense nos dirige, annulla a competencia das admoestações
que nos faz.
* * * * *
O folheto brazileiro intitulado _Duas palavras aos leitores das Farpas_,
ultimamente publicado e distribuido em Lisboa a milhares de exemplares,
tem por objecto contestar por meio dos processos aliás mais urbanos e
mais comedidos, a verdade dos factos que asseverámos ácerca da sociedade
e da civilisação do Brazil em um artigo consagrado á emigração
portugueza para aquelle imperio.
Se o escriptor brazileiro a quem temos a honra de responder tivesse
conseguido o poder alliar o alto espirito de amor patriotico, de que se
diz dominado, com a prudencia de discutir simplesmente o criterio das
nossas conclusões e não a verdade dos factos em que ellas se baseiam,
nós não teriamos duvida em estender affectuosamente o nosso silencio aos
pés triumphantes d'este sympathico patriota.
Como, exactamente pelo contrario,
São as nossas illações o que no dito libello se não contesta, e é a
verdade dos factos citados o que se combate, denunciando-nos como
fabricadores de aleives historicos phantasiados com o fim expresso de
ridicularisar o grande imperio,--o que se parece demasiadamente a nossos
olhos com a denegação da nossa probidade e com a suspeita de que
mentimos,
Soffrerá o auctor do folheto citado que nos permittamos fazer-lhe
sentir, em algumas linhas rapidas, que as _Farpas_ não são inteiramente
uma creação poetica e phantasista.
Não, nós não temos o distincto prazer artistico de ser _As fabulas de
Florian_, nem tão pouco os _Contos de Perrault_.
* * * * *
Examinemos a qualidade dos argumentos com que o opusculo a que nos
referimos tem a bonhomia de suppôr que nos desdiz. Tomemos tres dos
pontos mais importantes para a civilisação do Brazil: _A producção e o
commercio, a instrucção publica, o trabalho e a industria_.
* * * * *
Emquanto á producção e ao commercio nega o auctor que o valor annual das
substancias alimenticias importadas pelo Brazil seja, como nós
affirmamos, equivalente ao da quarta parte da sua exportação. Para este
fim dá-nos a estatistica da importação das substancias alimenticias
durante os ultimos annos, attesta que ella é inferior e não equivalente
á quarta parte do valor exportado; com tal fundamento accusa-nos de
fabricarmos puras invenções; e depois de tres paginas de recriminações
acerbas, conclue assim:
«Não quererão decerto considerar como substancias alimenticias o vinho,
o chá, o café, o azeite, as bebidas espirituosas e fermentadas etc.,
porque essas sim talvez reunidas áquellas (peixes, carnes, farinhas,
manteiga e sal) dessem essa tal quarta parte da exportação.»
Quer isto dizer:
O Brazil não tem duvida em nos convencer de tudo o que se pretenda a
respeito do estado em que se acham as suas forças productivas, bem como
a proporção existente entre a exportação e a importação no seu
mercado--com uma simples condição--e é: que se lhe concedam alguns
pontos de partido na arithmetica do seu calculo. Trata-se, por exemplo,
da importação de substancias alimenticias no valor de trinta mil contos
annuaes; deseja o Brazil, afim de nos convencer de que illudimos a
verdade, que a dita importação seja apenas de dez mil contos ... Nada
mais simples! O Brazil vae juntando successivamente as suas parcellas de
substancias alimenticias importadas até chegar á prefixada somma dos dez
mil contos. D'essa quantia para cima o Brazil começa a considerar as
substancias alimenticias, como não sendo--substancias alimenticias.
Registrou a importação do sal, da manteiga, da farinha, dos peixes e
das carnes, e achou dez mil contos; faltava-lhe, é verdade, registrar
ainda o vinho, o chá, o azeite, as bebidas fermentadas, o vinagre, as
fructas, os legumes etc; o Brazil porém espera que nós consideremos
estas coisas como não sendo generos alimenticios. Elle pede-nos isto,
espera isto de nós, e, para nos convencer de que estamos no erro mais
vil e mais torpe, elle não quer outras armas! não precisa senão d'isto:
que se lhe admitta que o vinho não é senão, por exemplo, simples
_producto de gutta-percha!_ o chá, o azeite, o vinagre, a cerveja ...
puros _tecidos de algodão!_ os queijos, os alhos, as cebolas, os figos,
as passas ... mera _perfumaria!_
* * * * *
Pelo que respeita á instrucção publica, diz-nos que o numero dos que
sabem ler não está, como nós dissemos, na proporção de 1 para 90
habitantes, mas sim na de 1 para 68. Sómente na estatistica official de
que se extráe esse dado, o governo brazileiro não conta, como homens que
habitam o Brazil, os escravos, cujo numero pode todavia ser calculado em
cerca de tres milhões, não diremos de habitantes, mas, emfim, de
cabeças. O auctor accrescenta ainda, para nos convencer dos progressos
da instrucção no Brazil que as escolas de instrucção primaria que ali
existem são na proporção de--1 para 3:021 habitantes _livres_; além do
que ha ainda no Rio de Janeiro varias corporações scientificas e
sociedades sabias, entre as quaes _As duas palavras aos leitores das
Farpas_ nos citam as seguintes: _associação commercial, sociedade
musical de beneficencia, sociedade auxiliadora da industria, associação
typographica, instituto pharmaceutico_, e finalmente a famosa
_associação dos guardas livros, sociedade jockey-club, tendo por fim
promover o melhoramento da raça cavallar_.
É realmente indigno, em vista de similhantes factos, que alguem se
tivesse lembrado, como nós, de deplorar a defficiencia da illustração no
Brazil, onde ha uma escola para cada 3:021 habitantes _livres_, e vinte
_sociedades sabias!_
Que nos perdoem os grandes propagadores da sciencia, que nós
desconheciamos antes da publicação d'este folheto! Que nos perdoem os
senhores musicos, os senhores typographos, os senhores pharmaceuticos, e
sobretudo suas senhorias os senhores guarda-livros do _jockey-club_,
encarregados do melhoramento da raça cavalar!
No tocante á industria, aos dados da estatistica official que nós
publicamos e dos quaes se deduz que tal ramo da actividade humana é
quasi nullo no Brazil, oppõe o nosso contendor as seguintes animadoras
palavras extrahidas de um _Retrospecto commercial de 1872_, publicado no
_Jornal do Commercio_:
«Em quanto a emigração nos não trouxer levas sobre levas de operarios e
de artistas, a industria manufactureira conservar-se ha como que
apertada em um circulo estreito.»
Logo: nós inventamos os factos para «achincalhar» o imperio. A
estatistica official da qual copiamos que em 1859 o numero dos
industriaes brazileiros era apenas o da quinta parte dos industriaes
extrangeiros residentes no Brazil, é falsa. A verdade suprema ácerca da
industria indigena na America brazileira é que: É enorme e poderosissima
a força expansiva do seu desenvolvimento. E tanto que, segundo os seus
mais enthusiastas apologistas, ella vive «como que apertada em um
circulo estreito.»
Do que tão clara e positivamente expuzemos ácerca da organisação
viciosissima das differentes colonias agricolas no Brazil, das
atrocidades pavorosas da feitoria do Mucury, dos textos tão expressivos
que sobre este ponto reproduzimos dos relatorios enviados aos governos
da Suissa e da Alemanha pelos seus delegados no Brazil os srs. Tschudi e
Avé-Lallemant, acha bem o auctor das _Duas palavras aos leitores das
Farpas_ não discutir nem contestar palavra nenhuma. Diz-nos apenas que
pediu sobre esse assumpto, o mais importante do nosso artigo,
informações officiaes, que publicará logo que lhe cheguem do Rio de
Janeiro.
Se espera esclarecimentos que desmintam os factos que nós referimos, não
os terá nunca. A verdade é unicamente o que dissemos. As _Farpas_ não
fizeram mais do que historiar realistamente, sem declamações e sem
objurgatorias, as causas que levaram a Suissa e a Baviera a prohibirem a
emigração para o Brazil, e a proclamarem officialmente como catastrophe
a colonisação agricola do solo brazileiro por trabalhadores europeus.
Em refutação do que affirmamos sobre a frequencia dos casos de alienação
mental no Rio de Janeiro, diz-nos a obra que analysamos e estamos
transcrevendo nas suas mais importantes partes, que apenas consta ao seu
auctor um facto isolado em abono da nossa affirmativa, sendo certo por
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1873-03/04) - 3