As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1873-03/04) - 1

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RAMALHO ORTIGÃO--EÇA DE QUEIROZ
AS FARPAS
CHRONICA MENSAL DA POLITICA DAS LETRAS E DOS COSTUMES
2.º ANNO
Março a Abril de 1873


Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder,
da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das
sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da
politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande
universo, e da adoração de si mesmo.
P.J. PROUDHON.


SUMMARIO
O sr. _Alexandre Herculano_, opusculista. Os semi-deuses e os rapazes.
As armaduras e as flanellas. _A Voz do Propheta_, geremiada de salão. A
biblia-cacete. Deus cartista. Reincidencia do milagre de Ourique. Os
egressos e Pharaó. A censura dramatica. As conferencias democraticas. Os
fins da arte e a bisca sueca. Em que o sr. Herculano se parece com
Theodosio II. A tristeza chronica do grande homem e o pronto-alivio de
Radway. A velhice e a arte. Os martyrios de vinheta. Spinosa,
Campanella, Diderot e Proudhon. Victor Hugo, Michelet, Quinet, Raspail e
Carl Marx. O sr. Herculano Salomão e nós o bôbo Marcullo.--João Felix
Pereira, historiador. Os compendios da instrucção publica e as
equarissages.--O sr. D. Fernando em Coimbra. Os rouxinoes do Mondego e
seus principios politicos.--A casa de detenção nas Monicas. O edificio,
as camaratas, o refeitorio, as officinas, a escola. A instrucção, a
catechese, a hygiene, a moral. A direcção technica. A colonia
penitenciaria de Meltray. Contrastes. Se é dado aos vadios rehabilitarem
se fazendo-se dezembargadores ou coroneis--As curiosidades infantis da
Republica Portugueza--_Duas palavras aos leitores das Farpas_, folheto
brazileiro. O commercio, a instrucção e a industria no Brazil:
testemunho insuspeito e juizo final. O sr. Mathias de Carvalho e a
actriz Emilia Adelaide. A America e a rainha Fulvia, a lingua de Cicero
e a nossa.--O alto dandysmo. As ultimas corridas no Campo Grande. O
Sport e o Lagoia. Perfil do _high-life_. Os srs. De Lagrange, De Mouchy,
Rothschild, Dudley Stuart. João Russo e Chico Perfeito. Hurrah! pelas
tipoias vencedoras--Representação da comedia _Magdalena_. Os caracteres,
os costumes, a peça. Conselhos amigaveis ás burguezas honestas.--Um anjo
catholico e uma jovem deusa da Razão, typos da litteratura e da moda.--O
leilão do espolio de sua magestade imperial.
O sr. Alexandre Herculano acaba de publicar sob o titulo de _Opusculos_
um livro em que, além de uma refutação erudictamente argumentada e
inedita da portaria que suspendeu as conferencias democraticas do Casino
Lisbonense, se encontram apenas reedições de algumas antigas obras do
illustre escriptor.
Reapparecendo assim na publicidade, reentrando na lucta das idéas novas
com os velhos engenhos de guerra despendurados dos arsenaes de 1836 ou
1843, sua excellencia lembra-nos demasiadamente o antiquario que sáe a
combater forças vivas á frente das naturezas mortas do seu museu,
formando em batalha contra os entes animados da creação os jacarés
empalhados e os monstros em espirito de vinho da sua galeria curiosa.
* * * * *
Os discursos d'estas paginas antigas, a que sobejam por um lado os
accessorios artificiaes da rhetorica e a que faltam por outro lado, com
as opportunidades do momento em que foram concebidas, as condições de
uma existencia necessaria e real, fazem-nos o effeito de armaduras
primorosamente cinzeladas, mas suspensas em ripes de pinho, finos
capacetes de viseiras caladas sobre caraças de papelão com verniz de
cera côr de rosa e olhos de vidro.
E causa-nos pena isto: que tantos apparatos de força e tão solidos
instrumentos de guerra se prestem a desabar, com o estampido ridiculo
dos louceiros que se quebram nas velhas farças, aos golpes de _stick_ do
primeiro irreverente que passe trazendo na cabeça as exaltações de dois
dedos de Proudhon e de um copo de Champagne!
Serão injustos depois os que bradarem contra a decadencia, contra a
corrupção, contra a irreligiosidade do seculo com o fundamento de que,
n'estes contactos das antigas armas consistentes e das novas modas
futeis, é o espesso arnez de Carlos Magno o que rende e a fina _veste
Bênoiton_ a que triumpha.
Ai! perdoae-nos ... Nós preferimos ás impenetraveis armaduras dos vossos
gigantes, que não servem hoje a ninguem e que não trazem ninguem dentro,
a simples flanella vulgar, talhada por Pool para as fórmas exiguas dos
macacos sabios da geração nova, dentro da qual flanella todavia se
abotoam homens, pequenos e frageis, mas emfim mais ou menos vivos,
graças ás capsulas ferruginosas e ao _Rob Lafecteur_, podendo
impunemente, perante os minotauros de cartão, n'um rasgo de cancan,
chegar-lhes com o bico do pé á ponta do nariz.
Ao passo que, sobre estes fracos mortaes, que ainda não estoiraram de
todo nos galopes da vida, as effigies dos antigos semi-deuses,
inoffensivos e inuteis como estatuas de louça branca--na attitude
classica dos Abrahões de jardim--suspendem os seus alphanges, como
poleiros aereos, cuja immobilidade tem convidado ao somno quarenta
gerações de pardaes!
* * * * *
Aqui temos nós, por exemplo, _A voz do propheta_, cem paginas sybilinas,
em estylo emphatico, allegorico, confuso, tremendo.
É uma especie de _Dies irae_--de salão.
Cada periodo ronca lugubremente como um estertor de moribundo, imitado
n'um figle.
Em cada phrase ha um vacuo premeditado que lembra a orbita sem olho da
caveira de um cyclope.
A locução, pintada como uma actriz vestida do branco, com os cabellos
desgrenhados, que se predispoz ao espelho para uma scena de delírio, tem
tons cadavericos, produzidos por grossos riscos pretos sobre gesso
esverdinhado e branco: ella passa mysteriosa e terrivel; não se sabe do
onde vem nem para onde vae, nem quem busca, nem o que pretende--ella,
desvairada, tambem o não sabe!--mas pisa o tablado a largos compassos
tectricos, brandindo um punhal, olhos fixos e dedo descarnado e livido
apontando o espaço. A orchestra, a golpes taciturnos e tremidos de
rebeção, imita os rumores das tempestades. E os espectadores
angustiados, presentindo que alguma coisa pavorosamente tragica vae
occorrer, desdobram os seus lenços nas mãos abertas, aprontando-se para
acolher aquella porção de sensibilidade oppressa de que a imperfeita
natureza humana se desencarrega--ai de nós!--pelo nariz....
O monologo porém termina; está volvida a ultima pagina da prosa
melodramatica do sr. Herculano; elle, o propheta, principiou estas
palavras:
«O espirito de Deus passou pelo meu espirito, e disse-me: vae, e faze
resoar nos ouvidos das turbas palavras de terror e de verdade. E eu
obedecerei ao meu Deus no meio dos punhaes de assassinos ...»
E conclue assim:
«N'este momento a visão desappareceu, e achei-me banhado em suor frio e
repassado de amargura. E por impossivel tinha que tão negro futuro
houvesse nunca de verificar-se: mas subito ouvi muitas vozes que
diziam:--Guerra á religião do Christo! Então cri na visão que o Senhor
me enviava, e apagou-se-me na alma o ultimo clarão de esperança.»
Ao terminarem a leitura, as turbas obscuras e humildes a quem o auctor
se dirigira, e das quaes nós temos a honra de fazer parte, perguntam
contristadas e attonitas:
Mas, bom Deus, poder-se-ha saber por que altos motivos está s.ex.ª o
propheta _banhado em suor frio_ e _repassado de amargura_?!
Ser-nos-ha dado apreciar quaes as razões por que o digno socio de merito
de Jeremias e da Academia Real das Sciencias, apagou dentro da sua alma
o _ultimo clarão de esperança_?
Sim! N'esta recente edição do seu opusculo, s.ex.ª o anjo, incumbido
directamente por Deus de _fazer resoar palavras de terror_, explica
satisfatoriamente o phenomeno pathologico da desesperança em sua alma e
dos suores frios em seu corpo, por via de algumas laudas de introducção,
destinadas a prehencher cabalmente os votos d'aquelles que tinham
promettido aos deuses um propheta de cêra, se os deuses lhes
consentissem penetrar o sentido da _Voz do propheta_.
A explicação d'essa voz que diz ao povo «_que a sua hora extrema vae
soar, que elle é maldito, que elle é empestado, que é pustulento e
pôdre, vil e malvado, escoria, immundice e relé_»,--a explicação da voz
que diz e rediz isto em 118 paginas de uma prophecia de exterminio e de
morte para o povo e para o paiz, é que:
A revolução de setembro triumphava com a democracia, o sr. Alexandre
Herculano não acreditava na democracia, tinha-a pela «declamação
interessada de engenhos superficiaes que pretendem jungir ao carro das
proprias ambições _as turbas más, porque ignorantes, odientas, porque
invejosas, espoliadoras, porque miseraveis_;» e Elle, o propheta, Elle,
o anjo exterminador, Elle, o enviado de Deus ás gerações ... Elle
era--cartista!
* * * * *
Se o sr. Herculano escreveu isto, que parece uma blasphemia pavorosa «_O
espirito de Deus passou pelo meu espirito e disse-me: vae, e faze,
resoar nos ouvidos das turbas palavras de terror_ ...»--é que
naturalmente Deus era tambem--cartista.
E assim rompe um livro, tendo por base a mancommunação de um Deus e de
um propheta, conchavados para espancarem patuleas a cacetadas de biblia
e de rhetorica!
* * * * *
Permitta-se-nos dirigir uma pequena pergunta humilde ao grande
historiador:
Se s.ex.ª nos affirma que o espirito de Deus o tocou e lhe disse: _Vae_,
o que acreditamos sob a palavra de s.ex.ª, como ousa s.ex.ª negar que o
mesmo Deus tivesse egualmente apparecido a Affonso Henriques e lhe
tivesse dito--_Vence_? Porque, em fim, a verdade é que o milagre que
precedeu a victoria de Ourique é exactamente o mesmo que inspirou a _Voz
do propheta_. Ao grande escriptor assim como ao grande rei Deus
appareceu e fallou. Se um d'estes cavalheiros nega a visão de outro, não
poderá a critica julgal-os suspeitos como officiaes do mesmo officio?
Não será plausivel que cada um d'estes Joões Marias Farinas dos divinos
cheiros queira para si o privilegio de ser o unico João Maria Farina,
authentico e legitimo?
* * * * *
Mais encerra o sobredito livro dos Opusculos:
Primeiro--Uma «consulta apresentada á Academia Real das Sciencias ácerca
do estado dos archivos ecclesiasticos do reino e do direito do governo
em relação aos documentos ainda n'elles existentes»--questão que se acha
resolvida desde 1857. Tem essa actualidade.
Segundo--«Os egressos, petição humilissima a favor de uma classe
desgraçada.» Mais: «As freiras de Lorvão», especie de petição em favor
da parte feminina da sobredita classe, acto philantropico que declarado
hoje, quarenta annos depois da extincção das ordens religiosas, nos
obriga a meditar nas razões por que o auctor não aproveitaria este
ensejo para peticionar egualmente em favor das familias dos companheiros
de Pharaó, victimas da terrivel catastrophe da passagem do Mar Vermelho.
Terceiro--«Theatro, moral, censura», discurso em que o auctor propõe que
a censura dramatica não seja eliminada mas sim substituida por «uma lei
para o theatro em harmonia com a lei politica da nação»--especie de
carta constitucional da monarchia da rua dos Condes e do Salitre. O sr.
Herculano quer _um jurado especial encarregado de defender a moralidade,
punindo com multas pecuniarias e com cadeia todo o delicto dramatico em
offensa da moral_,--o que nos parece ser, sem a minima duvida, o
restabelecimento puro da santissima inquisição, ou a renovação dos jogos
da eloquencia, de Caligula, em que o vencido era lançado no Rhodano,
sempre que não preferia apagar o seu discurso com a lingua.
Quarto e ultimo--Uma _advertencia preliminar_, na qual o autor explica
que compoz a sua obra _com o fim de_--matar o tédio das longas noites
de inverno na solidão da sua granja. D'onde somos levados a deduzir que
os fins da arte para o illustre solitario de Valle de Lobos--no inverno
pelo menos--são simples parceiros de jogo, questão de passar tempo: para
s.ex.ª a antiga coisa sagrada de Platão substitue--a bisca sueca. O fim
moral retira-se, havendo uma perna para o _voltarete_.
E nada mais se contém no ultimo livro recentemente publicado por aquelle
que justamente se considera o primeiro dos escriptores portuguezes!
* * * * *
Esse livro que se não baseia em nenhuma das necessidades da sciencia, da
razão ou do sentimento do mundo moderno, caminhando no ar como as
pinturas chinezas em que não ha solo, é uma pessima obra. Vem de alto,
firma-a um nome prestigioso, está escripta no estylo relimado a que
Michelet chama a _indigente correcção de Malherbe_: tem portanto as
condições da voga; é um exemplo funesto. Porque esse livro não instrue,
nem ensina, nem esclarece, nem consola ninguem.
Referindo-se ás conferencias do Casino repisa a velha questão catholica
e esquiva-se á apreciação da theoria artistica, economica e scientifica
da revolução, que essas conferencias propagavam.
Na politica é auctoritario, conservador intransigente. Impõe-nos a
carta, como Carlos IX impunha a missa a Henrique de Navarra e ao jovem
Condé, depois da Saint-Barthelemy. Nega a revolução democratica com um
desdem banal, como quem ignora ou finge ignorar que toda a revolução que
se oppõe á corrupção e á miseria, filhas das instituições, não é uma
theoria contingente mas sim uma lei fatal. Estava n'este ponto bem mais
adiantado, do que s.exª nos quer mostrar que se acha, aquelle velho
ministro francez que ha mais de cem annos exclamava: «_La légalité nous
tue_».
Na economia social, sem uma palavra para algum dos principios que
constituem o systema de credito e a organisação industrial, preconisa as
_caixas economicas_, escondendo que a questão de coarctar a miseria não
é de estabelecer o _mealheiro_ mas sim de crear o trabalho.
Na arte quer a manifestação do pensamento adstricta ás sentenças de um
jury tirado da academia das sciencias, da escola polytechnica e de não
sei que outros tribunaes regularisadores do direito da palavra,
justificando assim aquella definição do sublime dada por Galiani: «a
arte de dizer as coisas sem ir para a cadeia»; quando a verdade n'este
ponto é que nada ha que mais avilte a intelligencia e o caracter do que
o exercicio hypocrita, imposto pela legislação repressiva, de encobrir o
pensamento ou de disfarçar a verdade.
* * * * *
No momento actual, quando a Europa inteira, grande martyr, se agita na
polemica e no sangue, procurando nobremente e santamente resolver para a
justiça o problema do destino dos povos, reconhecendo com Proudhon que a
negação da sociedade feita em 93 implíca uma affirmação subsequente que
ainda não está feita, e que, depois de desorganisados os privilegios,
nos é hoje preciso organisar sólidamente e firmemente o trabalho na paz,
no bem estar e na virtude,--n'este momento supremo, um dos mais graves
em que se tem achado a humanidade, quando mais do que nunca se precisa
para a verdade do concurso de todos os espiritos elevados e rectos--, um
philosopho, um pensador educado nos severos estudos historicos, o mais
auctorisado dos nossos escriptores, entretendo-se no seu gabinete a
reconstituir antigos opusculos banaes e extinctos para passar o inverno,
lembra um pouco o imperador Theodosio entregue ás especulações
theologicas, e compondo symbolos no gyneceu, quando Genserico estava em
Cartago e Attila nas margens do Danubio.
* * * * *
Diz-nos o sr. Alexandre Herculano que está velho, desilludido,
desalentado ...
D'onde lhe veiu tanta amargura e tão singular abatimento, que nem os
annos nem os desgostos justificam?
Comprehende-se a tristeza d'aquelles que, consagrando a sua vida a uma
grande obra, absorvendo-se n'ella, pertencendo-lhe integralmente, se
acham repentinamente desacompanhados e sós ao verem a obra terminada.
Michelet consumiu quarenta annos a escrever a historia da sua patria.
«Pois bem, minha grande França, exclama elle, se foi preciso para achar
a tua vida que um homem se tivesse entregado e passasse e repassasse
tantas vezes o rio dos mortos, esse homem consola-se, agradece-te ainda,
e o seu maior pesar é ter emfim do deixar-te.» Gibbon, tão frio e tão
secco, não larga o seu livro sem uma commoção profundamente melancolica:
«Pensei que acabava de despedirme do antigo e agradavel companheiro da
minha vida.» Oh! sim, comprehende-se bem essa magoa profunda que absorve
o homem ao cabo da missão a que elle se dera no mundo! Comprehende-se
Alexandre morrendo de tristesa depois de conquistar a Asia, e Alarico
depois de tomar Roma; comprehende-se Godofredo de Bulhões, com a sua
herculea natureza que resistiu inalteravel ás fomes, ás sedes, ás
pestes, ás guerras, a todas as tragedias da cruzada, sossobrando
finalmente ao ter de embainhar a espada, e morrendo--por ter chegado!
Mas não se comprehende definhando de tristesa em Valle de Lobos o sr.
Herculano, porque elle não venceu, não conquistou, não concluiu a sua
obra: abandonou-a apenas, retirou-se, foi-se embora.
Como antigo litterato, historiador, romancista e poeta, s.ex.ª não se
póde contristar. Deve consolal-o a vida rural, que elegeu em
substituição da vida artistica.
Se o não satisfaz a solução que deu ao seu destino, se no remanso da sua
granja, na abundancia, no saudavel exercicio da lavoura, na familia, na
saude, na paz, na consideração e no respeito publico, s.ex.ª se sente
effectivamente velho, desalentado e triste, creia s.ex.ª então que não é
o litterato que ainda soffre, é o agricultor que já começa a padecer. A
padecer o que? Esta molestia:--a nostalgia da arte.
* * * * *
A tristeza não é nunca um estado de espirito normal no organismo de um
homem são. A tristeza é um symptoma de enfermidade physica ou moral. A
tristeza habitual quando se não cura com as pílulas de Radway e com as
aguas mineraes, cura-se com uma acção boa. Se com isso não passa, é
então uma lesão profunda e mortal.
O homem que durante vinte annos viveu no trabalho intellectual, na
applicação, no estudo, na poderosa contensão da arte, escrevendo,
publicando, dilatando-se, repartindo-se pelos seus semelhantes,
amassando e forneando para elles o divino pão da verdade, nunca mais
póde sem perigo retirar-se d'esse meio.
Nos serios trabalhos do espirito consagrados a uma idéa elevada ha uma
luz vivificante e serena que não sómente allumia o operario, penetra-o
tambem, alimenta-o, conforta-o. A sua obra não é inteiramente d'elle,
elle pertence tambem á sua obra. Elle cria-a, torna-a viva, poderosa,
immortal á força de amor, de verdade e de justiça; ella, generosa e
grata, educa-o, aconselha-o, consola-o, fortifica-o. Os dias passam,
tenebrosos ou limpidos, serenos ou revoltos no mundo externo; na
immutavel região da arte ha a pacificação permanente. Embebido na doce
mocidade eterna da sua obra, o verdadeiro artista, perfeitamente fiel ao
trabalho, não sabe nunca se envelhece ou não.
Veja o sr. Herculano aquelles que deixou nas lettras, ha alguns annos,
muito mais edosos que elle! Como ainda hoje são novos!
Quem guia, quem governa, quem encaminha hoje no mundo a grande marcha
das idéas modernas a que o illustre agricultor de Santarem se oppõe, no
seu recente livro de torna-viagem, com epigrammas cacheticos e vetustos?
Veja-os s.ex.ª, escute-os, attenda-os: como teem os labios vermelhos, a
voz clara e metallica, os cabellos loiros, os musculos fortes, o sangue
vermelho, salgado e alegre! Reconhece-os?...
São Victor Hugo, Michelet, Quinet, Thiers, Raspail e Karl Marx.
Companheiros de infancia de s.ex.ª eil-os ahi ainda, na mais perfumada e
viçosa flor da edade, entre os setenta e os noventa annos!
* * * * *
Quando uma vez se habitou o paiz luminoso da sciencia e da arte é
impossivel o expatriamento para os frigidos climas sombrios dos
interesses praticos e positivos. A mão que por vinte annos manejou uma
penna, não poderá jámais ageitar-se á rabiça de um arado. Sequestrar-se
á sciencia é roubar a sociedade. Para onde quer que te recolhas com a
porção de luz e de verdade que tinhas no teu cerebro e que subtrahiste
do thesouro commum da humanidade, para onde quer que te escondas, ó
triste foragido, irá sempre comtigo, pungindo-te na parte mais nobre do
teu ser não contaminada pelo egoismo, o remorso de uma acção má. Debalde
procurarás justificar o plano da tua deserção com os desgostos que
atravessaram a tua carreira. Desgostos, tu! o filho mimoso da tua
patria! a unica gloria official da litteratura do teu paiz! tu sempre
lido, sempre gloriado, sempre retribuido! Oh! como se rirão dos teus
pretendidos desgostos todos aquelles que tiveram no mundo uma idéa, que
se lhe consagraram, que viveram e que morreram por ella!
Pobre homem sem fé! que pensarão do teu martyriosinho de album, da tua
pequenina cruz de berloque, aquelles que realmente tiveram um martyrio e
uma cruz, onde padeceram e morreram, resignados e austeros?!... Spinoza,
que muitas vezes comeu hervas por não ter pão; Campanella preso vinte e
sete annos, sendo cinco vezes julgado e soffrendo sete vezes a tortura;
João Jacques dormindo n'um fosso por não ter outro asylo; Diderot
desmaiando de fome; Proudhon, vivendo com um tostão por dia, caminhando
oitenta leguas a pé para ir ver o seu amigo, só, odeado, perseguido,
caminhando sem meias, com os pés nús embrulhados em palha dentro dos
tamancos das suas montanhas do Jura!
* * * * *
Se o sr. Herculano, agricultor, está triste, volte a ser litterato,
restitua-se á sua patria, á sua geração e ao seu tempo.
Se definitivamente não quer ser mais um escriptor, poupe então a nossa
sensibilidade ás repetições da historia dos seus desgostos. Como simples
proprietario rural os jubilos ou as melancolias do sr. Herculano são
absolutamente indifferentes á humanidade.
Quando Quinet publicou a «Historia» das suas idéas, procurando dar sob
uma fórma individual a historia moral da geração de que fez parte, á
similhança do que parece ser intentado agora pelo sr. Herculano com a
publicação dos seus opusculos, Quinet não obedecia ao desejo de servir
um editor ou de entreter um inverno; Quinet, colligindo as suas idéas e
recompondo o seu passado, arrancava da sua obra uma grande idéa, bella,
radiante e fecunda: a coherencia, illuminando um caracter, e fazendo
d'elle uma força moral.
Quinet não vinha entristecer-nos com a sua melancolia nem contaminar-nos
com o seu desalento.
Se elle reconstituia e publicava os dispersos fragmentos obscuros de
antigos trabalhos era exactamente porque d'esse agrupamento e d'essa
reunião de idéas espalhadas pelas differentes edades e pelas diversas
phases da sua vida sobresahia como um nobre exemplo o luminoso
contentamento de uma alma perseverante e forte.
Decepções, chimeras, enganos, o que vem a ser essas coisas? ignoro-o;
ahi está a minha vida, dizia cele. O que uma vez amei, em cada dia me
pareceu mais digno do amor; de dia para dia adiei a justiça mais santa,
a liberdade mais bella, a palavra mais sagrada, a arte mais real, a
realidade mais artista, a poesia mais verdadeira, a verdade mais
poetica, a natureza mais divina, o divino mais natural. E se me sobrasse
tempo para ir mais ao fundo d'aquillo que ignoro, sinto que as coisas
que ainda me espantam acabariam por desapparecer. Onde a inquietação se
apoderara de mim, o enygma se decifraria por si mesmo. Eu repousaria na
luz.
São os homens que podem extrahir do seu passado a lição que encerram
essas formosas palavras os que teem direito de vir fallar-nos do seu
passado. Os que não teem como lembrança dos seus dias decorridos senão o
cansaço, o desalento, a indifferença o o desdem, podem fazer um serviço
maior do que escrevel-o; é calal-o.
* * * * *
Concluindo não pediremos ao sr. Herculano que nos perdôe a ousada
franqueza com que lhe fallamos. S.ex.ª sabe que a unica irreverencia
criminosa diante de urna verdade que se possue consiste unicamente em
esconder essa verdade. Que ella provenha do mais obscuro dos miseraveis
ou da mais alta e mais competente das actividades, que importa? É
preciso abate-a ou deixal-a passar. S.ex.ª conhece o dialogo asiatico de
Salomão e de Marculf. Salomão é o grande rei, dotado de todos os dons,
bello, omnipotente e sabio; Marculf é um villão-ruim, um rustico
insolente e bestial. No emtanto as subtilezas populares do bobo
esfarrapado embaraçam e humilham no seu throno o poderoso e sabio rei.
Isto prova que a magnanima auctoridade e a sacrosanta lei escripta podem
não perder tudo em escutar um simples, roto e despresivel raciocinio
plebeu.
Bem sabemos que não somos nós que temos as finas subtilezas ironicas do
bobo Marculf. Mas egualmente é certo que por outro lado o sr. Herculano
tambem não é inteiramente o filho de David, rei de Israel, o que
escreveu o _Cantico dos canticos_ e edificou o templo.
* * * * *
Ao passo que o sr. Alexandre Herculano, historiador, publica opusculos, o
sr. João Felix Pereira, opusculista, publica historia.--É a logica do
absurdo.
* * * * *
A recente obra de Felix é um resumo de historia romana traduzido do
latim. As primeiras linhas d'esta versão bastam para dar aos leitores
uma, idéa da obra.
_O imperio romano, menor do que o qual em seo principio, ou maior por
seo augmento em todo o mundo, de quase nenhum a memoria humana pode
recordar-se, tem principio de Romulo; o qual filho de Rhea Silvia,
virgem vestal, e, quanto se julgou, de Marte, foi dado á luz com seo
ermão Remo, d'um só parto. Elle como andasse roubando entre pastores,
chegando á edade de dezoito annos, fundou uma pequena cidade no monte
Palatino_ ...
Tal é Eutropio--traduzido para Felix. Não faltaria agora senão uma
coisa: traduzil-o de Felix para Portuguez--se por ventura houvesse
alguem no mundo que fosse capaz de advinhar perante a lingua de Felix,
qual a grammatica com que se rege Felix, medico, engenheiro civil,
agronomo, e auctor de opusculos para instrucção da mocidade!
Não, francamente, ó Felix, vós, que tendes tantos officios--medico,
engenheiro civil e agronomo--vós, que sois na sciencia o mesmo que são
na musica os homens dos sete instrumentos, que fazem uma orchestra
batendo com todas as partes do corpo, vós que egualmente sois medico com
a bocca do estomago, engenheiro civil com os cotovellos, agronomo com o
nariz e escriptor publico com os calcanhares, porque não deixaes vós de
ser, pelo menos, um preceptor da infancia, um escriptor das escolas?!...
Em primeiro logar isso descançaria um pouco o vosso corpo, ó habilidoso
João, ó feliz Felix.
Em segundo logar pouparieis á infancia o desgosto de desaprender a sua
lingoa lendo nas aulas os vossos escriptos, os quaes a benemerita Junta
Consultiva da Instrucção Publica não deixa nunca de approvar, servindo
assim na primeira communhão dos que estudam, em vez das sagradas
particulas da sciencia, os estercos nauseabundos e venenosos das vossas
equarissages litterarias.
A verdade, encyclopedico Felix, é que vós escreveis muito peior do que
fallam os botucudos do rio Mucury e os Pelles Vermelhas, no interior dos
sertões.
A verdade é que ninguem vos entende.
Se nós houvessemos de ir estudar os rudimentos da historia romana
prefeririamos ao trabalho de interpretar o vosso compendio ir
directamente estudar a geographia antiga, a ethnologia, a geologia, a
linguistica, a archeologia, todas as primitivas fontes da historia;
ser-nos-ia mais facil, mais rudimentar, do que analysar e reduzir á
grammatica qualquer dos vossos periodos, ir á Asia Menor estudar as
epigraphes funerarias sobre as ruinas do templo de Herodes Atticus,
interpretar e comparar os textos da escripta hieroglyphica, hierotica e
demotica, os documentos originaes bysantinos e orientaes, e as
inscripções babylonicas e assyrias gravadas nas estatuas, nos
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