As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1873-01/02) - 4

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Peninsula Iberica?... Não, nunca o serás. Sê tudo o que quizeres menos
isso. Sê nuvem, sê parteira, sê questão da fazenda, sê compota de
pecego. Mas peninsula!... Olha quem! Querias-te fazer peninsula, minha
tola?... Não! ainda cá ha um homem para te dar nas ventas para traz, ó
perra vil!
E depois de vibrado por Melicio este golpe tão fundo na questão iberica,
os lusos appellam ainda para as potencias, e já se não lembram do que
devem a Melicio! Ah! ingratos! ah! ladrões!
Fallaes na alliança da Inglaterra, no favor do sr. Thiers, na
benevolencia do imperador Guilherme ... Pudera! aquelle que acabou com as
peninsulas ainda cá está vivo para chegar a roupa ao corpo aos
congressos ... Boa duvida! Não que elle ainda a tem, á cabeceira da cama,
a sua bengala invencivel, a bengala dos seus avós, a mesma bengala com
cujo castão Certorius batia nos dentes ao namorar aquella que foi mais
tarde a virtuosa mãe de seus filhos!
Aproxima-se a conquista? adianta-se a invasão?... Que venham! Cada fita
de ceroulas que cinge os artelhos de Melicio será uma barreira! Cada
botão de seu collete um obuz! Cada um dos seus calos um baluarte--de
ôlho de perdiz!
Se o extrangeiro vier, nós, tranquillos, atirar-lhe-hemos com Melicio--o
extracto de peste concentrado e fulminante dos inimigos da patria--e das
peninsulas!
* * * * *
Agora--Barros.
Este publicou o seu relatorio sobre a emigração portugueza para o
Brazil--grande obra a que promettemos consagrar estudos criticos
consecutivos durante um anno! N'este livro o immortal philosopho explica
o facto da emigração e justifica-o por um modo que põe o alludido
phenomeno social para todo sempre fóra de controversia e de discussão.
Como o explica, como o justifica elle?
Meu Deus! por um argumento bem simples, e que todavia ainda não houvera
occorrido a ninguem ...--Pelo precedente das andorinhas!
* * * * *
Sempre que nós temos tido a immerecida honra da poder contemplar com
attenção e respeito a configuração pyramidal da cabeça do grande homem,
sempre que temos attentado, recolhidos e mudos, no seu bello craneo,
magestosamente elevado no occipicio, como se elle usasse uma cuia--por
dentro,--nós temos dito do varão illustre, como Chenier de si mesmo:
«Elle tem alguma coisa na cabeça!»
Oh! sim, elle tinha n'ella a theoria das andorinhas, esquecida ao mais
excentrico e original dos nossos compatriotas, o cavalheiro Machado, o
celebre amigo dos passaros, um dos mais interessantes perfis da galeria
parisiense de Champfleury!
Achar o precedente das andorinhas como justificação dos emigrantes é ter
um verdadeiro rasgo de genio. Mas o genio não surge de repente, o genio
é a paciencia, como disse Buffon. Consideremos, ó criticos, quantos
trabalhos, quantos estudos, quantas dôres não teriam precedido no
intellecto do grande politico a laboríosa gestação da sua lei immortal!
Ponderemos o sabio, absorto, contemplativo, extatico, considerando
simultaneamente em suas intimas correlações e consanguineas affinidades
o povo--e o passarinho!
Elle, o philosopho, sabe bem o que é a miseria no proletariado, elle
conhece de certo _Ginx's Baby_, o monstruoso producto humano das falsas
civilisações, elle tem lido certamente Malthus, e queremos que lhe
arranquem já um dente da bocca, ao grande homem, se elle não tiver do
pauperismo, da fome, do salario e dos systemas ideaes de Fourier, de
Owen, de Saint-Simon e de Proudhon, uma comprehensão tão perfeita como a
que lhe assiste a respeito das unhas dos seus proprios dedos!
Previamente armado de tão solidos principios e de tão profundos estudos,
como seria bello o poder vel-o depois, na obra, no momento augusto e
sacrosanto em que a idéa lhe veiu!...
Estamos em que não poderia deixar de ter sido--no campo! O sabio no
bosque, meditando, qual pastorinho de cordeiros brancos nas paizagens de
lyrio e rosa pintadas por Wateau no setim dos leques Luiz XV! Seria ao
toque poetico das ave-marias, como se permittiria dizer um serralheiro
portuguez em _grève_. O ar embalsamado pelos perfumes da baunilha e dos
laranjaes em flôr, os zagaes tangendo frautas ou dançando na relva com
suas pastoras, e ao longe, por entre o fumosinho que ondeia sobre o
tecto das cabanas, ao longe, na quebrada do monte, voejando em torno do
corucheu da velha ermida em ruinas--- ellas, as duas, as mysticas
amantes do philosopho, as ternas balisas de seu scismar--a andorinha e a
questão social--batendo a aza, abrindo o biquinho e rasgando juntas as
amplidões do azul em phantasticos arabescos....
E então seria que no espirito apocalyptico do mestre, na mente do
magnanimo doutor em extase, de repente, como um estalo, como um abcesso
que rebenta, como um inchaço que estoira, lhe veiu a idéa de que a
andorinha poetica explicava satisfactoriamente o operario faminto, e que
evidentemente nada mais semelhante diante dos olhos da sciencia a um
carpinteiro com mulher e oito creanças ganhando tres tostões por dia, do
que a avezinha innocente que esvoaça em torno de gothico balção, ou
paira no vergel, bebendo a perola matutina do orvalho no calice da rosa!
Como tudo isto é grande e ao mesmo tempo lindo da parte do sr. Barros e
Cunha! Como é bem _Paulo e Virgínia_! bem _Menino da mata e seu cão
Piloto_! bem puro cheiro de alfazema! bem legitima pomada alvíssima!
* * * * *
Não se detiveram porém ahi os serviços prestados ao mundo pelo grande
homem no breve decurso de tempo a que esta chronica se refere.
Mais dotou elle a sua patria com a idéa de uma economia, cujo alcance
profundo obrigou s.ex.ª o prelado viziense a arrojar de si com desalento
e desdem o facalhão legendario com que a s.ex.ª aprouve arrancar a
manteiga dos 15 por cento do pão dos empregados publicos, em que ella se
comia, e dos escriptos reformistas, em que ella se embrulhava!
O Mirabeau de Olhão, ponderando que cada navio que entrava no Tejo
recebia successivamente em tres botes tres visitas--a do porto, a da
saude e da alfandega--cogitou um momento e teve esta idéa enorme:
Que em vez de se gastarem tres botes para tres visitas, fossem as tres
visitas n'um só bote!
E foi o que o fogoso tribuno immediatamente propoz ao governo em um
discurso verdadeiramente maravilboso de lucidez e de profundidade.
* * * * *
Se a politica não aproveitar esta proposta do sabio, que a arte pelo
menos se encarregue de immortalisar para eterno exemplo e lição dos
homens o acto de arrojada iniciativa e sublime denodo do cidadão
portentoso que pretendeu economisar á patria--dois botes!
Que em nossos dias ainda nos seja dado ver em tela ou em estatua, o
Pickuick de Silves, regressando das côrtes do seu paiz, austero e
simples como Cincinato, detendo-se á porta do seu tegurio e pedindo a
extranhos que lhe tirem do bolso das calças a chave do trinco, por que
elle, o sublime martyr da patria, está impossibilitado de abrir
pessoalmente a porta do seu albergue, por trazer debaixo de cada braço
para o sagrado recolhimento da vida intima os dois botes arrancados por
elle com mão firme ás luctas acerbas do funccionalismo no reino dos seus
maiores!
O que sobretudo pedimos á posteridade é que não vá confundir este
heroe--sr. Barros e Cunha--com este outro--sr. Barros e Sá. Porque--ó
ilusão!--elles dois parecem-se fatalmente tanto um com outro, como se
parecem--dois coelhos,--dois porta-machados--ou dois pretos.
* * * * *
No mundo civilisado está-se tratando n'este momento de fazer isto--um
caminho de ferro de 1:600 leguas, de Nijni-Nowogorod a Pekin.
Uma vez alinhavada sobre o solo do nosso velho continente essa enorme
fita de ferro, nós poderemos ir do Aterro á capital da China em menos de
um mez, estendendo-nos n'um «fauteuil», abrindo um livro, accendendo um
charuto e tendo apenas o trabalho de nos vestirmos e de nos despirmos
algumas vezes, porque atravessaremos as mais diversas latitudes, as mais
extranhas regiões, os mais oppostos climas, com as suas novas paizagens,
novos ceus, novas floras e novas faunas.
Passaremos por Madrid, por Paris, por S. Petersburgo e por Moscow.
Veremos Nijni-Nowogorod, com as suas gregas cathedraes de cupolas de
oiro e a sua feira de Makariev, na qual se juntam quatrocentas mil
pessoas.
Deixaremos o nosso bilhete de visita em Kazan, a tartara, rebolindo-se
nos profundos ruidos do seu commercio com a Siberia, com a Boukharia e
com a Russia européa.
Visitaremos Perm, os seus numerosos lagos o os seus grandes rebanhos
felpudos de merinos e de martas famosas, d'aquellas martas de que o Czar
deu á Patti uma capa, no valor de cem mil francos!
Apearemos para aquecer os pés em Tobolsk, a capital da Siberia, onde o
thermometro desce a 45 graus abaixo de zero, e onde os rios estão
gelados nove mezes por anno.
Descançaremos em Irkoutsk, em cujas espessas florestas se refugiaram os
Strelitz.
Respiraremos um momento em Ourga, a dos sete mil sacerdotes, ou em
Kiakhta, já na fronteira chineza, onde descançam de ordinario as
caravanas do chá....
E tocaremos a final em Pekin, onde, se não soubermos fazer mais nada,
comeremos ninhos de andorinhas--uma especie de letria insipida, cara
como um d'aquelles molhos de Luculo feitos de perolas delidas!--mas se
soubermos o mantchou e o chinez, cujo alphabeto tem apenas 36:785
letras, poderemos fazer exame no «grande tribunal da historia e
litteratura», do celeste imperio, sermos approvados mandarins e usarmos
no chapeu o botão de ouro que distingue os litteratos dos demais
subditos do grande Filho do Ceu.
E tudo isto em menos do trinta dias, com menos de quinhentas libras, no
espaço de um romance de Michel Levy, de uma garrafa de absintho e de uma
caixa de «brevas», sobre as azas ardentes do monstro chamado o _Trem
expresso_--o heroe do poeta Campoamor--, que devora o espaço e o tempo,
fazendo-os rolar em redemoinhos em volta do seu rastro, emquanto elle
galga os abysmos, bebe os desertos, penetra as cordilheiras, e fura por
baixo do Cenis ou do Atlas, como uma bala por um tubo!
E assim poderá a civilisação, por desfastio, verter amanhã a rua dos
Fanqueiros nos jardins do grão-mogol Alemguir, do mesmo modo como
atravez de um funil se póde passar um liquido asqueroso e infecto de um
barril immundo para um fino cristal facetado!
* * * * *
A camara dos srs. deputados....
Oh! nós não podemos resolver-nos a separarmo-nos da camara dos srs.
deputados, que foi, durante este ultimo lapso de tempo, o nosso
encanto, a nossa delicia, o afago mimoso da nossa vida! Entre ella, que
se vae fechar, e este livrinho, que vae chegar ao seu fim--nós estamos
como o pagem namorado que á porta dos paços do rei Arthur, ao primeiro
cantico da cotovia, tem sellado o cavallo que escarva o chão e remorde o
freio, emquanto apoiada ao balção rendilhado a bella, a linda princeza
apaixonada, envolve o cavalleiro matinal n'um longo olhar de amor, e
permanece commovida e pallida para lhe enviar, quando elle fôr
desapparecer na volta do caminho, o seu derradeiro beijo, com aquelle
aceno--tão profundamente triste para os que partem--de um lenço branco
que palpita, ao longe!
E nós, como o pagem, como o menestrel, como o bardo, voltando a cabeça,
abrimos da mão as redeas e as clinas do ginete, descemos o pé do
estribo, e vimos dizer ainda á amada lacrimosa uma palavra terna....
A camara pois--diziamos--querendo collocar-se ao par do que a
civilisação pratíca de mais arrojado á distancia de alguns centos de
leguas de S. Bento, decidiu egualmente, á similhança da maravilha
realisada pela abertura do caminho de ferro de Moscow a Pekin, operar
um phenomeno--mais modesto, é verdade, mas não menos portentoso:
Pegar n'uma garrafa e metter-lhe dentro um cantaro, um caneco, um
barril, uma pipa ou um tonel!
E, consultando-se sobre a capacidade que lhe assistia para resolver este
problema, a camara reconheceu que poderia desempenhal-o. E mandou para a
camara dos Pares, devidamente estudada, meditada, escripta, impressa e
revista, a celebre e immortal lei--_do engarrafamento das vasilhas_, na
qual lei se lê textualmente no artigo 2.º o seguinte:
«Ficam tambem auctorisadas as camaras municipaes, nos termos do artigo
antecedente, a lançar taxas sobre o engarrafamento do quaesquer
vasilhas.»
Do qual textual artigo 2.º da precitada lei se deixa claramente ver que
a camara--intemerata e altiva--se acha habilitada para proceder á face
da Europa a este milagre:
_Engarrafar vasilhas_.
* * * * *
E com isto, ó camara, adeus! Tu vaes regressar em breve da scena
parlamentar--onde boiaste por algum tempo, impertinente e inutil, como
uma mosca caida sobre uma taça de creme--para o refugio inviolavel da
vida intima. Vae em paz, amiga; volta aos cuidados bucolicos e simples
das tuas couves, á guarda intelligente e pacifica do teu gallinheiro,
aos succos do teu lombo de porco, á frescura do teu bragal, aos teus
bons lençoes duradouros e fartos, recolhidos na grande arca e fortemente
perfumados com os doces cheiros nativos do linho, do feno e da maçã
camoeza!
Vae, ó camara, e se queres um bom conselho, ouve-o: não tornes cá!
Para se viver no grande meio sempre ruidoso, sempre agitado, sempre
coberto de luz de um foco civilisador, é preciso que se tenha uma
d'estas coisas: um nome, uma fortuna, um talento, uma aptidão; que se
seja uma causa de actividade ou um instrumento de trabalho: um operario,
um capitalista ou um sabio.
Ora nenhuma d'aquellas coisas tu tens, e nada d'isto tu és.
Profundamente mediocre, o teu destino é seres profundamente obscura.
Uma coisa extremamente difficil, que não conseguirás nunca, é fazer
leis; mas ha outra coisa muito facil, para que tu estás superiormente
habilitada e a que deves de todo em todo consagrar-te,--é não as fazer.
Não fazer leis, ó camara, eis a tua especialidade! cultiva-a, e serás
grande.
Não fizeste nada, não sabes fazer coisa alguma, não representas nenhuma
grande coisa que antes de ti se fizesse? Não é verdade isto?! Pois bem,
no mundo moderno, na sociedade actual, quem está n'esse caso só tem um
meio de não ser ridiculo:--é ficar em casa.
Cá fóra quem não domina e governa a critica tem de sujeitar-se a ser
trinchado por ella.... Fica pois em casa, tranquilla no teu rapé e no
teu voltarete.
Não queiras parecer-te com estes jovens burguezes que se arruinam, que
se encanalham, que se desgraçam voluntariamente para se darem nos salões
um falso ar de homens do mundo com que só elles se enganam. Chamam-se a
si mesmos os «janotas», põem a gravata branca e a casaca preta como a
outra gente, frisam-se um pouco mais do que os outros, acompanham-se das
suas mulheres ou das suas irmãs, de vestidos de bareje barata e de
narizes que, se se vendessem, custariam ainda mais barato do que as
barejes.... Correm de sala em sala, julgam-se no mais alto mundo, e
cerceiam no boi do jantar os excessos de despeza a que os obriga a sua
triste representação--de remendos brancos em pano preto! Não sabem, não
veem que os homens verdadeiramente distinctos e as mulheres
verdadeiramente elegantes não acceitam senão com repulsão os contactos
das suas mãos vermelhas e suadas, não lhes dando senão despreso--porque
elles não teem nascimento, nem dinheiro, nem ar, nem _toilette_, nem
orthographia, nem mão de redea!
O que estes são--na elegancia, não queiras tu, ó camara, voltar a sel-o,
como o foste--na politica! Não tornes cá.
Adeus. Vae com Nossa Senhora. Se te não abraçamos, se te não damos um
beijo, desculpa.... É que nós temos razões para desconfiar,--pelas tuas
moções d'ordem, pelos teus projectos de lei e pelos teus
discursos,--que tu usas _patchouly_ e comes alho.
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