As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1873-01/02) - 3

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Tal foi a notavel figura oratoria que a camara resolveu dar á luz na
presente legislatura como testemunho insuspeito e irrecusavel dos altos
quilates do seu espirito e da comprehensão profunda em que ella se acha
das terriveis e mysteriosas relações que podem prender no terreno da
eloquencia parlamentar a queda dos reis e os phenomenos meteorologicos.
Sim, ó principe infeliz e sympathico, cavalleiro e bravo, que acabas de
provar ao mundo que, a respeito da tua vida, sabes egualmente
arriscal-a e dirigil-a; que allias singularmente o valor e o senso
commum.... O valor com que entraste na Hispanha, alegre, destemida e
vermelha, como a capa que palpita á viração do circo, encobrindo uma
espada, no braço nervoso e astuto de um toureiro ... O senso commum com
que finalmente trocaste a Hispanha irrequieta e fremente pelos tepidos
vales da tua patria, nos suburbios tranquillos de Sorrento e de Almafi,
á beira dos golphos innundados de azul ...
Sim, ó principe, aprende n'essa figura rhetorica que Portugal te envia,
a affinidade estreita que une para identicos destinos os codigos das
monarchias e as folhinhas de algibeira! Tu que abdicaste, o que és tu?
Escuta-o, ó principe! Tu és--_o sol no occaso_. Teu augusto avô, que
tambem abdicou, é o chefe d'essa dynastia planetaria; teu avô é _Sol no
occaso_ I; tu és _Sol no occaso_ II; teu filho primogenito é sua alteza
_Sol no occaso_ presumptivo. Que em sua altissima guarda vos tenham os
deuses immortaes, os deuses--guarda-soes! Que tão augusta dynastia se
prolongue por muitos e dilatados annos, até que a posteridade possa
ainda reconhecer e honrar o mui alto o poderoso _Sol no occaso_ XIX,
por feliz antonomasia ditada pelo refrigerio dos povos _O entre nuvens
com brisa fresca!_
* * * * *
Tal foi o effeito de religioso acatamento que a desencerração do tão
vehemente quanto audacioso e brilhante tropo produziu no animo de toda a
camara, que nenhum dos oradores que se occuparam no parlamento da ultima
evolução politica da Hispanha tornou a dar ao rei abdicado outro nome
que não fosse esse. Sómente: como a vivida imaginação, como a fervida
phantasia peninsular de cada um, conseguiu retocar por variegadas côres
proprias tão engenhosa imagem! Assim vemos que durante a sessão a que
nos referimos, sua alteza o principe Amadeu foi consecutivamente
modificado em sua nativa e originaria designação pelas maneiras
seguintes:
Sol no occaso ... como ha bem pouco disse n'esta casa uma eloquente e
inspirada voz!
Sol no occaso ... qual lhe chamou momentos ha no recinto d'esta erudicta
assembléa, labio tão selecto como attico!
Sol no occaso ... só me é licito empregar a phrase penetrante que não
ha muito ouvi cair ali assim da bocca do disserto orador, meu illustre
amigo! (indicando o sr. Barros e Cunha).
Sol no occaso ... segundo calorosa e convictamente aqui tem sido dito
por todas as boccas excepto pela do fecundo e espontaneo orador, meu
immortal amigo, o sr. Jayme Moniz!
(O sr. Jayme Moniz erguendo-se, collocando uma mão sobre o coração e
estendendo a outra energicamente no espaço, profere um inspirado
monosylabo, que não foi ouvido na mesa dos tachigraphos).
Sol no occaso ... direi pela segunda vez, se a camara permitte que
comecemos a repetir aquillo que todos e cada um dos oradores teem já ...
(Muitas vozes: _Repita-se! repita-se!_ O sr. presidente: _Deu a hora_.
Vozes: _Muito bem! muito bem!_ Todos os oradores se cumprimentam uns aos
outros. O jubilo é geral. O sr. Barros e Cunha, dando para a meza alguns
d'aquelles passos que antigamente eram um menuete da corte e que hoje
são o andar de s.ex.ª, tira o _Times_ do bolso e vão fallar, uma idéa
porém lhe occorre, elle detem-se, toma rapidamente notas para uma
interpellação; seus pequenos olhos, contentes por saberem fingir-se
malignos, rebolem; e o ministerio, pallido, treme olhando Barros,
emquanto sobre o craneo d'este, eburneo e lustroso como o castão de uma
badine, os derradeiros raios do sol atravessando as gelosias desenham
luminosamente--uma pauta. O sr. Arrobas, festivo, vae a pôr na cabeça a
mesa da presidencia, julgando-a o seu chapeu. O sr. Lobo d'Avila, muito
commovido chora no seio do seu ex-correligionario politico e sempre
amigo fiel, Melicio--o fagueiro. E o sympathico sr. padre Boavida
desapparece como um relampago, levado da sala em triumpho, ao collo de
um desconhecido).
* * * * *
_Áquelle que jurou assassinar-me_
Meu senhor--Tendo recebido do Rio de Janeiro, pelo ultimo paquete, a sua
obsequiosa carta, o sendo ella anonyma, tomo a liberdade de lhe dirigir
a minha resposta por meio d'estas obscuras paginas, as quaes vejo com
prazer que merecem ao meu amigo a benevolencia de as ler. Como não
posso fixar por outro modo a pessoa a quem tenho a honra de me dirigir,
consinta que eu transcreva a parte mais importante das suas presadas
regras. Eu respondo á pessoa que me escreveu isto:
«Tiveste a ousadia de insultar com tuas estupidas _Farpas_ o monarcha
sobre cuja cabeça repousa a corôa immaculada do imperio da Santa Cruz?
Tu tiveste essa ousadia, gallego, pois bem juro-te que no dia...... de
...... d'este anno 1873 hei de comparecer em tua casa ás dez horas da
manhã e ahi far-te-hei saltar os miolos com uma bala. Espera-me, não
fujas, que é desnecessário! Has de cair em meu poder mais tarde ou mais
cedo, embora para isso consuma toda a minha fortuna.»
Omitto n'este extracto o dia e o mez--os quaes o meu amigo fixa com a
mais amavel pontualidade--porque, sendo um negocio inteiramente
particular o da pequena operação que se me projecta fazer, julgo
indiscreto que a policia se lembre de o vir testemunhar; basta-nos um
desenhista que esboce a scena para os jornaes illustrados que houverem
de occupar-se do caso.
Chegada a hora que se me aprasa para o fim da minha vida, é bem claro
que entre: nós ambos, se não poderão trocar explicações previas ...
Porque, comprehende bem, que se o meu caro commettesse a inconveniencia
de me repintar prolixamente todos os pormenores do modo como projecta
pregar-me o cerebro n'um muro, eu poderia não achar de um prazer divino
o passeio patriitico da sua bala atravez do meu craneo, e em summa, n'um
momento irreflectido, nervoso, animal, de instincto, cortar a questão
atirando com o meu amigo do alto do meu terceiro andar á rua.
Releve-me portanto que lhe escreva algumas das coisas que sentiria não
poder referir-lhe no momento da nossa futura entrevista. O prazo que me
assignala, se por um lado o podemos considerar curto como limite para
viver; é felizmente assás longo como tempo para conversar.
Meu amigo--Sem falsa modestia e sem fingida humildade, francamente,
sinceramente, eis aqui a respeito da morte que me promette a minha
opinião:
Eu não mereço o fim apparatoso e dramatico preparado ao meu pequeno e
obscuro destino sobre a face da terra. Sem que eu seja absolutamente de
uma mysantropia que obscureça a fama de Young ou que faça uma
concorrencia perigosa á reputação de Job, ainda assim por entre as
convidas e cordiaes risadas que me inspiram os parvos, confesso-lhe que
me não entreluz a vida tão iriada de côr de rosa e de azul, que o meu
empenho do a gozar por mais algum anno obrigue uma pessoa, tão rica como
o meu amigo denota ser, a _consumir a sua fortuna toda_ á espera do
momento em que eu me ache resolvido a arriscar-me pelo prazer de
conhecer a amavel pessoa que me procura. Ha de até produzir admiração no
Brazil--onde custa tudo tão caro!--o barato que ha de sair ao meu amigo
o seu encontro comigo. A modicidade do meu preço chega a este ponto de
barateza que nem costumo levar nada--por me achar em casa!
Resisto á morte unicamente por duas razões, das quaes a segunda é que me
apraz a lucta; resisto-lhe, mas não lhe fujo, porque é meu parecer que a
vida não vale os incommodos afflictivos que todas as retiradas trazem
ordinariamente comsigo.
Ora, deste modo, uma vez admittida a morte como o termo logico e fatal
da vida, a bala fecha tão concisamente um destino como o ponto final
fecha o discurso.
Demais conveiu-se n'esta falsa opinião, toda favoravel á memoria dos
assassinados: que só ás victimas do homicidio se concede o prestigio com
que se premeiam os martyres, e que só temos por assassinados aquelles
que entram na posteridade pelo bello portico por onde desappareceram,
violentamente mortos pelos tiros ou pelas punhaladas, o politico Lincoln
e o jornalista Courrier.
Ninguem commemora nos registos brilhantes do martyrio aquellas que,
dentro da sua mina, emquanto cá fóra uma bala amiga fixava o encephalo
de outros mais felizes n'uma luminosa pagina de historia, succumbiam
obscuramente de desalento ou de cansaço na galeria tenebrosa dos
trabalhos forçados da imaginação e da intelligencia!
Ai! não é unicamente por meio de um golpe de punhal applicado ao
coração, ou por meio de um tiro disparado n'um ouvido, que podemos
mandar um homem para o tumulo. Quantos para lá vão caminhando, menos
pallidos que Antony, menos desgrenhados que o principe Hamlet,--tão
correctos que parecem philosophos ou tão pobres que parecem
felizes,--irremissivelmente deportados da vida pelos decretos surdos e
implacaveis da desgraça!
No fim de contas, sem monopolisarmos em favor do ninguem o interesse que
inspiram os destinos dramaticos, quem é que não tem o seu mal, o mal que
o ha de matar, burguezmente levado mais ou menos sobre o coração, como
uma carta de amor, como um memorial, como um bilhete da loteria?!
Quer que lhe diga tudo? Ha certo tempo que eu me não sentia
completamente bem. De quando em quando, de repente, enrouquecia,
affrontava-me a digestão, tinha palpitações, tinha o pulso nervoso,
sentia a displicencia, a melancholia.
Antes de ter a sua carta, sabe o que eu suppunha que tinha?...
Vermes!
O meu amigo apparece-me do Brazil como uma revelação pathologica. A sua
existencia risca inteiramente das minhas apprehensões a suspeita que eu
começava a nutrir--de uma solitaria. Sei agora, com aquella viva alegria
com que a gente acompanha a explicação achada aos grandes mysterios
aziaticos, que o que eu tenho é--o meu amigo. Considero-o já como uma
parte integrante e interessantissima da minha economia. Trago-o comigo
como um abcesso, levo-o para toda a parte como um defluxo. O meu amigo é
a minha enfermidade incuravel, é a minha morte para d'aqui a poucos
mezes, e todavia--como é commodo isto!--o meu amigo não me obriga a
tossir, nem a gargarejar, nem a trazer a uma bota cortada com dois
golpes em cruz, nem usar uma bambinella sobre um olho. Como o meu amigo
é leve! Não me doe, não me affronta, não me dá crescimentos, nem
vertigens, nem gazes, nem rugidos, nem picadas lancinantes no ventre!
Não o lanceto, não o espremo, não o aparo, não lhe propino o _pronto
allivio_ nem lhe ministro aguas de Vidago!
E por fim morro, acabo exactamente como qualquer outro, retiro do mundo
o pequeno material que fornecia á critica, á maledicencia, ao despeito
de muitos que me odeiam e á estima talvez de alguns poucos que por
ventura me amam ... vou descansar para debaixo dos cyprestes--bastante
para debaixo! e depois de ter repartido o meu espirito com os homens,
que me mandaram embora, repartirei o meu corpo com os bons bichos da
terra, que me não expulsarão nunca--elles!--da sua convivencia gulosa,
mas discreta.
A unica differença entre mim e a grande maioria dos que morrem será--que
elles terão soffrido os tramites lentos e dolorosos das enfermidades
mortaes, uns terão tido um tumor no cerebro, um amolecimento na espinha,
um scirrho no estomago; eu terei apenas tido--o meu amigo! o meu amigo
que até o momento da crise final se patenteará levissimamente, com o
caracter mais benigno porque se pode manifestar um amigo:--ausente!
Espalhada a noticia da minha morte, os benevolos rumores sympathicos
zumbirão como doiradas abelhas sobre a minha memoria.
--Coitado! ainda hontem o vi passar com umas luvas amarellas!
--Sabem ... era aquelle com quem nós embirravamos ...
--O que trazia o bigode assim?...
--Esse mesmo!
--Pois, senhor, tenho pena! Dá-me cá lume ...
E algumas outras coisas doces e impereciveis.
E do meu amigo dirão apenas:
«A fera, tendo bebido o sangue da victima, retirou-se.»
Não, o bello papel que me destina no drama que imaginou nunca lh'o
agradecerei bastante! Unicamente o ser immolado áquillo que o meu amigo
tão eloquentemente chama _a corôa immaculada do imperio de Santa Cruz_,
isso apenas, é que me parece um tanto violento. Quando Sua Magestade
Imperial esteve em Lisboa pediu varias cabeças de porco, mas não me
consta que entre essas cabeças Sua Magestade tivesse especialisado
designadamente a minha ... Ora, se Sua Magestade se não pronunciou agora
directamente a meu respeito, o meu amigo é talvez demasiado solicito com
os appetites do principe, servindo-me ao imperial banquete--com feijão
branco.
* * * * *
Na camara dos pares alguns prelados da egreja portugueza convidaram com
encarecidas instancias o governo a alargar as missões no ultramar,
promovendo a fundação de seminários de instrucção ecclesiastica, onde os
soldados de Jesus possam adestrar-se no uso do gladio chammejante e
civilisador com que se vence para a fé o gentio ignorante e idolatra.
Sem desapprovarmos os meios propostos pelos dignos prelados para o fim
de recolher ao aprisco as ovelhas tresmalhadas do armento christão,
perguntaremos apenas se a salvação das almas rudes espalhadas pelos
sertões dos dominios portugueses não lucraria tambem alguma coisa em que
os dignos prelados, despachados para aquellas possessões fossem occupar
nas suas dioceses os unicos logares que convém á missão edificante e
redemptora dos representantes de Christo o dos alumnos de Paulo. Porque,
emfim, não será precisamente porque suas excellencias passeiam no velho
mundo sceptico uma pequena cruz suspensa de um cordão verde, nem porque
na camara dos pares do reino suas excellencias lavram finamente algumas
figuras de rhetorica sentimental e lacrimosa, que alguns pobres negros
selvagens, confiados aos cuidados espirituaes de suas excellenecas,
encontrarão nas nossas dioceses devolutas quem os console e quem os
instrua. Que por tanto nos queiram permittir os senhores prelados do
ultramar, oradores em S. Bento, que, propondo-nos nós dar á eloquencia
de suas excellencias o seu natural e legitimo destino, lhes digamos--com
o vate:
_Aos infieis, senhores, aos infieis!_
* * * * *
D'entre as palavras ultimamente proferidas nos debates parlamentares
resalta com o relevo poderoso com que se accusam as fortes
individualidades uma phrase singularmente cortante, rispida, sincera do
ministro do reino.
O sr. Antonio Rodrigues Sampaio, offerecendo á camara, do seu logar de
ministro da corôa um volume do _Espectro_, disse «que se honrava mais de
ter feito aquelle livro do que de sentar-se n'aquelle logar, e que, se a
camara achasse as duas coisas incompativeis, elle abandonaria a sua
pasta para ir adoptar o seu livro.»
O sr. Sampaio, actual ministro do reino, tem sido ultimamente muito mais
aggredido na camara e na imprensa pelo seu antigo denodo de democrata e
pela sua _verve_ de pamphletario, do que pelos seus erros e desmandos
de membro do actual gabinete.
É facil guerra a que se faz a um escriptor no momento traiçoeiro em que
elle não dispõe nem da sua liberdade nem da sua penna para as
represalias terriveis do talento injuriado. Não ha nada mais commodo
para as pessoas fracas ou ineptas do que acharem opportunidade de
poderem determinar como um crime a iniciativa dos fortes. A incapacidade
colloca-se assim na logica que leva a consideral-a--pelos effeitos
passivos da sua inanidade--como uma especie de virtude.
O processo d'aquelle que por uma causa qualquer--boa ou má, justa ou
iniqua--arriscou a sua vida em cima de uma barricada, não póde todavia
ser instaurado assim, pelas toupeiras que estavam inuteis e tremulas no
fundo dos seus buracos emquanto o accusado, combatendo, fazia estremecer
o chão.
Elle injuriou a rainha? Pois seja assim. Injuriar uma rainha, quando
ella tem na sua maxima força o poder e o mando, quando ella tem a ordem
guardada pelas baionetas dos seus regimentos em armas, injurial-a em um
papel publico, quando na praça publica estão carregadas as espingardas
que cobriram a «lei das rolhas», injuriar, então, era servir uma idéa,
era fazer uma resistencia e era cumprir um sacrificio.
Fallam-nos na honra inviolavel da mulher honrada. Mas perdão ... Quantas
mulheres honradas teem sido diffamadas na impunidade das confidencias
amigaveis, com a hypocrisia das reticencias, com a fatuidade dos
sorrisos, com a malevolencia das allusões?
Quantas reputações puras teem alguns demolido pelos effeitos corrosivos
de uma nodoa, que ficou para sempre indelevel, e que elles, a rir, entre
amigos, fumando um _carrajal_, no Aterro ou no Chiado, cuspiram
desenfadadamente sobre a honra de uma mulher que passava?!
Vamos, com franqueza, meus dignos, meus graves senhores: não é verdade
que muitas vezes teem os senhores mesmos feito esta acção torpe e
covarde, não declarando-a n'um livro, lançando-a na discussão e
respondendo por ella, mas fazendo-a passar surdamente, como um boato de
salão, como uma curiosidade galante, como uma chronica de moda, lançada
de bocca em bocca, infamemente, a coberto da responsabilidade, da
contestação, da policia correccional, do veredictum do publico, e das
bengalas particulares?! Pois bem! é a isso que se chama diffamar. Isso é
que é atacar e destruir o principio da inviolabilidade da honra
domestica.
A publicidade é como a lança de Télepho que sarava as mesmas feridas que
fazia. Se a senhora D. Maria II tem de passar á historia com o nome de
_virtuosa_, a consagração d'esse epitheto provem-lhe da discussão
publica da sua virtude.
Infelizmente a senhora D. Maria II não resumia na sua personalidade a
reputação total das senhoras portuguesas e nem todas estas poderão como
a victima do _Espectro_, sair gloriosamente da galeria das calumniadas!
As martyres da surda maledicencia obscura e irresponsavel essas é que
ficam para sempre na suspeita ou na ignominia.
Preferir a paternidade de um pamphleto escripto com o desinteresse da
paixão e do talento á triste gloria burgueza e constitucional de
ministro portuguez é ter um sentimento elevado e é dar um exemplo justo.
Porque em verdade ser apenas um ministro--unico estado social que nos
dispensa de sermos alguma outra coisa--não é propriamente um destino.
Para que uma existencia actue assignaladamente nas relações dos homens e
marque o signal da sua passagem é preciso que ella se affirme
eminentemente ou na justiça ou no sentimento ou na arte--pela coragem,
pelo sacrificio ou pelo talento--que são as tres maximas constellações
do trabalho, constituindo a familia, a obra ou o combate.
Aquelle que fez um livro, em que se debateram todas as idéas e todos os
interesses do seu tempo e da sua sociedade, movendo os espiritos,
inclinando as vontades, influindo nas consciencias, esse é o homem que
viveu.
Ter gerido uma pasta no constitucionalismo portuguez é unicamente ter
passado no mundo.
O governo em Portugal é apenas o capitolio das mediocridades
venturosas--com um ganso,--o sr. Jayme Moniz.
* * * * *
Durante o espaço da tempo a cuja chronica este volume se refere sairam á
luz alguns novos jornaes. D'estes conhecemos tres: a _Regeneração_, a
_Patria_ e a _Republica_. Estes tres jornaes, como a maior parte dos
periodicos portuguezes são--anonymos.
* * * * *
Ora eis aqui uma coisa que nunca podemos comprehender na legislação por
que se regula o direito de escrever e a liberdade de pensar:--que possa
alguem por qualquer razão que seja dispensar-se de assignar o que
escreve! O maior abuso da liberdade de imprensa e ao mesmo tempo o unico
que a lei portugueza não só não pune, mas auctorisa e regula é
este:--não assignar.
Ha apenas em Portugal um só periodico politico em que cada artigo é
assignado pelo jornalista que o fez. Este periodico é o _Diario da
Tarde_, folha portuense, onde cada um dos redactores não só acceita mas
declara acceitar todos os dias, por meio da sua assignatura, a
responsabilidade completa de toda a infracção commettida, bem como os
effeiios de todas as resistencias, de todas as controversias, de todas
as antipathias que tenha podido suscitar.
Esta coisa tão simples, para a qual muitos outros escriptores
portuguezes teem o preciso valor e a necessaria independencia, ninguem
mais a tem adoptado como condição imprescriptivel do direito que cada um
tem de emittir pela publicidade o seu pensamento.
* * * * *
A primeira razão por que se não assigna é esta:
A empresa do jornal, servindo-se d'elle para qualquer fim que seja,
convem-lhe sempre absorver na sua exclusiva personalidade todos os meios
de influencia, todos os instrumentos de trabalho que fazem mover a sua
machina. Para que isto se consiga toma-se necessario estabelecer como
lei fundamental da efficacia do apparelho jornal: que o que escreve se
eclipse inteiramente por detraz do que paga. Isto é apenas uma das
muitas explorações fataes da intelligencia e do trabalho pelo dinheiro.
N'este caso os resultados são graves para os interesses do espirito, da
dignidade e da razão.
Por um lado o escriptor, acobertado e escondido sempre no anonymo,
perde insensivelmente a comprehensão da coherencia em que se basea a
firmeza dos seus principios e a logica do seu systema moral. Começa por
transigir com a opinião alheia e acaba por abdicar a sua perante as
necessidades e as indicações da empresa. De resto, como não é
_responsavel_, como no fim de contas ninguem o conhece, o auctor
resigna-sel É assim que se fazem os escriptores indignos, porque na
imprensa é indigno de collocar uma palavra todo aquelle que não tem uma
opinião. O escriptor «de manivela» é um escandalo para a razão e uma
catastrophe para a justiça.
Por outro lado o empresario de jornal, conseguindo sustental-o pelo
apoio do seu partido ou pelo ganho proveniente dos seus annuncios, póde
sem vexame pôr ao trabalho litterario o seu aguadeiro no logar da
entidade anonyma da sua redacção. E assim os periodicos enchem-se
naturalmente com a collaboração gratuita ou barata dos _troisièmes
dessous_ da intelligencia e do estudo. D'aqui a progressiva decadencia
que se observa no jornalismo portuguez, e a fatalidade d'este resultado:
quanto mais se lê peor se escreve.
Ha outros casos em que o escriptor, apezar de inteiramente livre para
assignar ou para não assignar, não assigna. Isto então importa
immediatamente a condemnação da competencia moral do quem assim procede.
Se se entende que é tal a inutilidade da coisa escripta, que da
publicação d'ella não virá consequencia nenhuma, então não se escreva.
Na imprensa tudo quanto é inutil é nocivo. Supprimam, ao povo que lê
durante dez minutos por dia, todas as banalidades e todas as inepcias
que elle absorve n'esse tempo, e o povo começará a instruir-se nos seus
dez minutos de leitura. Tudo o que a educação do povo não recebe do
jornal rouba-o o jornal á educação do povo.
Se o escripto lançado ao publico envolve uma responsabilidade, é preciso
que a tome exactamente aquelle que lançou esse escripto; se elle encerra
apenas uma idéa, o publico a quem ella se offerece tem direito de saber
quem é aquelle que lh'a envia. Eu exijo o nome do que manipula as drogas
que sou chamado a engulir, porque a verdade é esta: que, por melhor que
me pareça uma limonada de citrato de magnezia ou uma fatia de
_galantine_, suspeito de uma e da outra se me disserem que a _galantine_
foi feita pelo sr. Jara, boticario, e a magnezia pelo sr, Colombe,
salchicheiro.
Ora uns tantos sujeitos que todas as manhãs vem jurar-me nas suas
respectivas gazetas que são muito republicanos, muito monarchicos, muito
socialistas ou muito auctoritarios--tudo isto com a expressa condição de
que nunca hei de saber quem elles são--dão-me exactamente aquelle
receio:--medicarem-me com paio de perú, ou servirem-me jantares de
magnezia.
* * * * *
Tinhamos já Melicio, o _José Prudhomme_ constitucionalismo portuguez.
Agora ultimamente surgiu Barros e Cunha, o _Pickuick_ do systema
representativo nacional.
Estes dois marcos levantados um ao lado do outro constituem um portico,
abalisam uma época, enquadram um seculo.
Os Tacitos e os Livios do futuro dirão da politica actual:
«Como fossem mortos Manuel Mendes Enxundia e Bertoldinho, appareceram
sobre a face da terra Melicio e Barros e Cunha, e tendo estes
determinado que a luz se fizesse, e batendo cada um d'elles em sua
respectiva nuca uma palmada magica, de cada uma de suas boccas rompeu
para o seculo attonito uma torcida,--e a luz foi feita. Os homens, os
principios, as instituições, toda a caravana longa e lenta de uma
geração que passa, ia indo, caminhando no tempo, emquanto elles dois, na
frente, deitando sempre torcida, allumiavam. Se este seculo immortal não
isempto de pequenas sombras intermittentes que algumas vezes--ai de
nós!--o empanaram e entenebreceram, é porque elles--o discreto Pickuick
e o profundo Prudhomme luzitanos, obedecendo á lei fatal de que nem
mesmo são isemptos os mais portentosos luminares, de quando em quando se
detinham,--geniaes, assombrosos e tremendos--para se espevitarem.»
* * * * *
O que estes dois grandes homens, verdadeiramente monumentaes e eternos,
teem feito para o movimento geral das idéas e para a affirmação
historica do progresso, não fazemos nós mais do que balbucial-o. A
posteridade, dominando o grande conjuncto dos successos é que ha de
fazer a devida justiça, inteira e completa, á iniciativa de Barros e de
Melicio. O ponto de vista nimiamente estreito e exiguo dos
contemporaneos não permitte á simples chronica o descriminar todas as
guitas complicadas, todos os torcidos arames, por meio dos quaes o
historiador averiguará como todos os factos e todas as idéas do tempo
actual se ligavam reconditamente ao impulso magnetico d'estes dois
varões extraordinarios!
No futuro se verá como pelo mero jogo das correntes electricas que
vibram a opinião se explicam os grandes effeitos no paiz produzidos
pelas pequeninas causas nestes dois personagens. Constatar-se-ha
scientificamente este phenomeno para muitos de nós despercebido:--Barros
ter sêde e o paiz pedir capilé! Melicio comer pevide de abobora e o
estado deitar a tenia! Barros em camisa tirar debaixo do travesseiro o
barrete de algodão branco--casto symbolo dos sonhos immaculados--e a
nação ter somno! Melicio ter dores cruciantes nos calos, e a opinião
publica, descalçando-se, arrojar as botas ás faces da hypocrisia!
Agora mesmo n'este momento, quando as agitações da Hispanha commovem os
espiritos patrioticos, quando as negras apprehensões ibericas ensombram
as alegrías da Baixa e seus innocentes jogos--outrora tão puros!--quando
se espera o accordo das grandes potencias para a fixação dos nossos
destinos nacionaes, poucos se lembrarão talvez que ha muito tempo que
esta questão foi cortada pela penna fulminante de Melicio em uma
correspondencia que o _Commercio do Porto_ se resignou a publicar nas
suas columnas, por não haver na cidade um templo de Jano em cujas portas
ella se gravasse em letras de oiro! Não se tratava ainda então de
nacionalidades nem de aggregações, fallava-se apenas da configuração do
solo e dizia-se em um documento hispanhol--a _Peninsula Iberica_, ao que
Melicio respondeu com um terrivel brado: «Peninsula iberica, não!
nunca!»
Bem feita coisa da parte do excelso patriota! Pavorosa lição á
geographia--e á canalha!
Peninsula iberica, tu! tu reles pedaço da superficie solida do globo
cercada de agua por todos os lados excepto por um, pelo qual ficas
unida ao continente! Tu, só por isso, seres uma das peninsulas, a
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