As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1873-01/02) - 2

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o que era divino e eterno? Quem não tem força para recusar o dominio da
sua consciencia aos padres tambem a não póde ter para disputar a sua
liberdade aos despotas. O fanatismo prostra.
Depois a alliança com que o clero tem estreitado a idéa do bem com a do
interesse espiritual e com a do sentimentalismo religioso abastardéa a
noção pura da justiça. Se Kant deu á moral o logar da verdadeira
elevação que lhe compete dentro da alma humana, foi precisamente porque
conseguiu separal-a do sentimento qua a enerva e do interesse que a
rebaixa.
* * * * *
Os esforços que fizemos para conquistar a liberdade que hoje temos não
bastaram para regenerar as nossas almas do aviltamento em que por muito
tempo estiveram. Tinha-nos ficado, como um defeito nativo, a dobra
servil. A nossa vocação expecial fôra por muitos annos--sermos victimas;
faltaram-nos repentinamente os algozes, não aprendemos a ser mais nada,
e ficamos n'uma desoccupação desconsolada e abatida. A guerra de que nos
proveiu a constituição deu-nos apenas uma vitalidade febril e
passageira. Logo que deixamos de discutir os principios da liberdade que
então nos puzemos, não tornamos a fazer mais nada senão servir os
interesses pessoaes e a ambição dos individuos.
Do regime que não temos sabido manter consistente e válido restam-nos
apenas hoje os beneficios que elle, depois de corrompido, faculta ás
mediocridades ambiciosas, ao patronato, á intriga, á pusilanimidade, á
baixeza. Temos do constitucionalismo--esgotado--tudo o que elle tinha da
mau na lia: a nobilitação dos _parvenus_, a falsa aristocracia, a falsa
grandeza, a falsa virtude, o falso talento, o funccionalismo exuberante,
a arrogancia burgueza, o reinado da usura, a ruina do trabalho, a
sophismação dos principios, a decadencia da arte, a depravação do gosto,
a queda dos caracteres e dos espiritos para o futil, para o ordinario,
para o reles, para o chinfrim ... Vêde a camara dos deputados: não é só a
precisão na idéa, a firmeza nos principios e a nobresa na palavra o que
a ella lhe falta, falta-lhe tambem a dignidade do porte, faltam-lhe as
maneiras, falta-lhe a toilette, e é quasi tão ridicula pelos seus
discursos como pelas suas gravatas; sente-se a má companhia, revela-se o
_mauvais lieu_ no simples aspecto chulo dos Ciceros pimpões.
Sem os partidos fortes, unico motor capaz de imprimir um jogo tão
regular ás engrenagens do regime constitucional como o que existe na
Belgica e na Inglaterra, achamo-nos quasi no estado atomistico de Hegel,
na desaggregação, em virtude da qual cada molecula social, entregue por
sua desgraça á liberdade quasi absoluta, volteia ás cegas em busca de um
novo centro de attracção. É a mesma situação em que ha pouco tempo ainda
se achava a Hispanha e em que está ainda hoje a Italia. Na Italia porém
a grande obra da unificação deu á vida nacional um forte impulso
saudavel de energia patriotica. Portugal não esteve talvez nunca tão
perto como hoje da pilha que o ha de estremecer e abalar.
* * * * *
O fallarmos tanto em republica depois que em Hispanha se aclamou a
republica demonstra a leviandade de quem se preoccupa de escolher um
nome de conducta no momento em que deveria antes pensar em descobrir uma
norma de proceder. A republica hispanhola foi uma transformação
necessaria, mas arriscada e perigosa. O que a prudencia nos aconselha é
que nos preparemos para que a aproximação de uma transformação qualquer
não seja para nós um irremediavel perigo.
Querem manter a ordem? Aqui teem um meio bem simples, bem pronto: Deixem
immediatamente de manter os abusos.
Querem governar bem? Lembrem-se do que dizia Washington: A probidade é a
melhor politica.
Sejam virtuosos os que não podem ser instruidos. A intelligencia só
longamente se adquire, a virtude penetra-nos de pronto, porque a justiça
é um axioma, é uma evidencia, não demanda estudos preleminares nem
reflexões subsequentes, é o principio e é o fim de si mesma.
Catão, escrevendo a seu filho, definia assim o perfeito orador
politico: Um homem de bem que sabe fallar. Ora quando se não possa ser
inteiramente o ideal de Catão, ignore-se como se falla, mas saiba-se
como se é homem de bem.
Ter, como alguns ou quasi todos os srs. deputados, uma opinião na camara
e uma opinião differente nos corredores de S. Bento, ter ainda além
d'isto uma opinião para o Chiado e outra para a cova em que se reune o
partido,--isto não é digno nem honesto. Ter sobre um principio vital de
governação ou de politica uma opinião firme, convicta, inabalavel, é
possuir, ao mesmo tempo e por esse simples facto, a força com que essa
opinião se deffende e se mantem. Não ter opinião ou ter uma opinião
oscillante e mutavel é comprometter inteiramente os principios pela
falta da virtude.
Porque sem a virtude não poderá nunca existir a democracia.
Em nenhum paiz do mundo os homens politicos são individualmente mais
probos que em Portugal; em poucos paizes do mundo elles procedem
publicamente de um modo mais adquado para deixar em duvida a consciencia
que cada um tem do dever e da honra. Luiz Filippe era tambem um dos
homens pessoalmente mais honrados que teem cingido uma corôa, e todavia
poucos reis espalharam em volta do seu reinado mais elementos de
corrupção. Foi d'esse bom homem que se creou a phrase proudhouniana de
que elle dominou pelo despreso, assim como dominaram--Cesar e Bonaparte
pela admiração, Sylla e Robespierre pelo terror.
Triste reinado aquelle em que o socego e a paz publica se baseam no
desdem publico! Debaixo d'essa ataraxia superficial do povo está a
gangrena e a dissolução latente do estado.
Quer-se a virtude publica, a virtude official, a virtude parlamentar, a
virtude de Montesquieu, que é a mola indispensavel de todo o estado
popular, e que consiste resumidamente em preferir--o dever á
conveniencia, o direito á força, a justiça á popularidade e ao exito.
De sciencia basta a precisa para se entender que o verdadeiro interesse
de todos reside no respeito da justiça para cada um, e que é n'essa
comprehensão e n'esse culto da justiça que verdadeiramente se baseia a
liberdade.
Lincoln, o maior homem que tem produzido a democracia não tinha estudos
nem letras. Tinha apenas a fé. Acreditava na immortalidade da sua alma,
acreditava em Deus e acreditava na justiça--a imagem immortal da
perfeição absoluta. E tão pouco bastou para que esse obscuro plebeu
entrasse na gloria, assignalando-se immortalmente com os dois maiores
actos que a homem algum foi ainda permittido commetter--dar a liberdade
aos negros e dar a paz á America.
* * * * *
Leitor amigo, se queres sinceramente contribuir nos teus meios para
fortificar a tua patria, dá-lhe modestamente, na pequena orbita da tua
influencia, entre os teus parentes e os teus amigos, aquillo que ella
mais precisa de ter para sua defesa dentro da casa de cada cidadão; não
se trata da força do teu braço, trata-se da rectidão do teu juizo: sê
prudente e justo.
No caminho em que nos puzeram aquelles por quem nos temos deixado
conduzir nós não vamos livremente para a escolha da fórma de um governo
livre; vamos submissamente para a sujeição voluntaria dos dominios
despoticos. Para que esses poderes nos subjuguem, basta simplesmente que
nos invada a anarchia que nos está batendo á porta. Na perturbação
geral, no conflicto, no perigo da fazenda e da vida, o egoismo
sacrificará sem nenhuma disputa a liberdade. Porque a liberdade, por
mais bella que ella seja, é na existencia uma circumstancia; a ordem é a
condição essencial--intrinseca--da vida, a garantia do trabalho e a
segurança do pão. Quem poderá calcular o numero de liberdades que nós
sacrificaremos á ordem no momento em que a desordem começar a
facultar-nos o direito ao governo, com a suppressão do direito ao
jantar?... É das profundidades demagogicas que saem sempre á periferia
social os tyrannos. Já Aristoteles dizia que o despota começa no
demagogo; assim nasceram Pisistrato em Athenas, Dinys em Siracusa,
Theagenes em Megara.
O nosso profundo mal está na nossa profunda indifferença. Aos que
ignoram os perigos d'esta enfermidade social lembraremos que quando
Napoleão desembarcou no golpho Juan não foi a força dos que o defendiam
que o reconduziu ao throno, foi a inercia dos que o não atacaram.
Ora as apathias, querido leitor sensato, curam-se pelos regimes
constituintes. Os meios revulsivos aggravam a prostração e produzem o
desfallecimento e a morte.
Quando o principio vital da auctoridade se acha ameaçado sob a sua
forma politica--no governo--, a primeira obrigação do povo é manter esse
principio sob a sua forma philosophica--na razão.
* * * * *
O exercito portuguez acaba de ser dotado com um melhoramento que o
colloca nas condições de rivalisar vantajosamente com as forças mais
intelligentemente armadas e equipadas da Europa....
A cavallaria da guarda municipal de Lisboa trocou os antigos estribos de
ferro por estribos de sola, inteiros, cobertos, agasalhados, verdadeiros
gabinetes de repouso suspensos de uns loros--coisa tão confortavel que
as familias que teem d'estes estribos dispensam-se de ter fogão, e
depois de jantar, no inverno, quando a neve cae, essas familias vão ler
o jornal e tomar o café--para os estribos.
O acto de profunda estrategia e alto valor militar de que procedeu
acharem-se os nossos guerreiros dotados com estribos de sola torna-os
desde hoje e para todo sempre invenciveis.
Porque até aqui havia uma consideração que impallidecia os espiritos
dos mais denodados homens de guerra, dos mais corajosos e valentes
soldados: é que, no ardor das pelejas, quando no campo da batalha a
artilheria varria os esquadrões e os corseis offegantes, relinchando,
com o pello hirto e os ilhaes rasgados pelas esporas, galopavam
freneticamente para o fogo dos quadrados e para as barreiras metalicas,
scintillantes e asperas das baionetas, se por fatalidade chovia, aos
nossos soldados acontecia então esta catastrophe pavorosa--molhavam os
pés!
De modo que, de repente, era mister arvorar nos bastiões a bandeira
branca, os esquadrões recuavam a trote largo, os chapéos de chuva
abriam-se, os cartuchos das pastilhas Regnauld e dos rebuçados de avenca
saiam das ambulancias, um parlamentario ia para o inimigo, e nós
pediamos treguas de algumas horas para que a nossa cavallaria--mudasse
de piugas.
* * * * *
Agora não. Agora, com os novos estribos de sola, podemos estar certos de
que, para todos os effeitos do valor, da disciplina militar, da arte e
do amor da guerra, a nossa cavallaria poderá sempre contar com este
infallivel penhor do cumprimento do dever e do despreso da vida--ter os
pés quentes!
Sómente pede a equidade que, uma vez que a cavallaria tem estribos de
sola, a infanteria seja egualmente dotada--com galochas de borracha.
Depois do que,--adoptadas estas disposições tão temerosas e aguerridas e
estabelecido em campanha o uso terrivel das palmilhas impremiaveis, do
sapato de ourello e do cobertor de papa--tendo o exercito os seus pés
quentes diffinitivamente garantidos pelas instituições--elle será feroz!
* * * * *
Foi submettido á votação da camara dos srs. deputados a seguinte moção
de ordem apresentada pelo sr. Barros e Cunha, deputado por Silves, ao
qual no passado numero das _Farpas_ chamámos erradamente _deputado por
Tavira_.
Que nos perdôe s.ex.ª--e Tavira!
Eis a moção:
«A camara dos deputados affirma que são inabalaveis no povo portuguez os
sentimentos de amor ás instituições liberaes, de respeito e affeição á
dynastia constitucional, e que a nação fará os ultimos sacrificios para
manter a independencia do reino contra quaesquer perigos que possam
ameaçal-a, e passa á ordem do dia.»
Procedendo-se em seguida a uma votação nominal disseram _approvo_ todos
os srs. deputados.
* * * * *
O sr. Barros e Cunha tinha motivado a sua moção com esta phrase:
«Parece-me conveniente que nos pontos da Europa aonde tenha chegado a
noticia de que n'esta terra houve uma conspiração tremenda contra a sua
independencia, possa haver a certeza de que a representação nacional
está ao lado d'essa independencia, da ordem e da dynastia
constitucional.»
Ora como o sr. Barros e Cunha entende e a camara approva que o simples
juramento de fidelidade prestado pelos srs. deputados bem como a alta
qualificação procedente do seu mandato não são bastante parte para
garantir nos differentes _pontos da Europa_ a incumplicidade de suas
ex.'as nos crimes commettidos no paiz, achamos bom que o mesmo sr.
Barros e Cunha repita e faça votar a sua moção a cada delicto novo que
apparecer.
E só assim suas excellencias se poderão considerar regosijadoramente
illibados.
* * * * *
Logo na sessão immediata áquella em que foi approvada a moção a que nos
referimos, declarou o deputado sr. Francisco de Albuquerque «que tinha
desapparecido das estações officiaes, sem que se podesse saber do seu
destino o espolio de José Antonio, criado de servir, fallecido em Lisboa
ha dois annos.»
Depois de tão grave accusação levantada no mesmo seio do parlamento, não
tendo nem o sr. presidente nem o governo restituido immediatamente ao
queixoso o espolio de José Antonio, ou nós não entendemos bem o espirito
da moção do sr. Barros e Cunha ou era outra vez o momento de sua ex.ª
illucidar os _pontos da Europa_ sob a sua innocencia e a dos seus
collegas, mandando para a mesa a seguinte moção:
«A camara dos deputados affirma que não foi ella que furtou o espolio do
criado de servir José Antonio, porque ella tem muito menos amor aos
espolios dos criados do que ás instituições liberaes, á monarchia e á
independencia, e passa á ordem do dia.»
Porque o sr. Barros e Cunha abriu este precedente:
Que á dignidade da camara cumpre justificar-se perante certos pontos da
Europa dos crimes que não praticou, assoar-se, e passar á ordem do dia.
* * * * *
Mais declarou o dito sr. Francisco de Albuquerque «que na estrada de
Gouvêa a Mangualde falta a parte que se comprehende entre a ponte de
Palhés e a villa de Mangualde.»
Projecto de moção offerecido ao sr. Barros e Cunha:
«A camara, tendo mostrado os forros das algibeiras e tendo-se
desabotoado para evidenciar que se não apropriou da estada de Mangualde,
passa á ordem do dia--e a abotoar-se.»
* * * * *
Entre as moções que propômos e aquella que o sr. Barros e Cunha adoptou
ha apenas uma differença: é que as nossas, posto o principio de sua
ex.ª, são logicas, são racionaes, baseam-se na verdade, referem-se a
crimes cujos reus se não conhecem e em que a camara é innocente: por
tanto a justificação é cabida. A do sr. Barros e Cunha refere-se a
crimes, cujos cumplices estão processados--d'aqui, inutil--e affirma o
que não é--pelo que: falsa. Logo é uma justificação absurda.
* * * * *
Affirma a dita moção o que não é: vamos demonstral-o. O sr. Barros e
Cunha e a camara asseguram que _são inabalaveis no povo portuguez os
sentimentos de amor ás instituições, de respeito e affeição á dynastia_.
No entanto por outro lado o mesmo sr. Barros e Cunha e a camara affirmam
que o povo conspira e que suas excellencias mesmo teem conspirado--não
certamente em favor das instituições vigentes nem da dynastia reinante.
O sr. Barros e Cunha disse textualmente, poucos dias depois da sua
moção:
«Eu vou fazer uma confissão á camara; eu sinceramente acredito em
tentativas permanentes contra a independencia do paiz, contra as
instituições e contra a dynastia ... Esses perigos não posso occultar á
camara que existem ... Extranho que o poder moderador não convocasse a
camara ... pelo duplo perigo que podia correr a dynastia, a liberdade e
as instituições.»
Ora é este paiz, em que _a dynastia, a liberdade e as instituições
correm perigo, em que são permanentes as tentativas contra a
independencia, contra as instituições e contra a monarchia_, que a
camara assegura ser _inabalavel nos seus sentimentos de amor ás
instituições, de respeito e affeição á dynastia_!
O partido reformista affirma que quando era poder luctava contra
conspirações continuadas.
O partido historico caiu victima de uma conspiração.
O partido regenerador abafa uma conspiração. O sr. Teixeira de
Vasconcellos disse ha dias: «_N'este ponto_ (as conspirações) _chegou-se
ao mais a que se podia chegar_.»
Effectivamente, depois de tudo isto, chegou-se a este ponto: de todos os
partidos se reunirem e votarem unanimemente--que ninguem conspira!
* * * * *
Sublime patria! vae, prosegue magestosa e olympica no teu destino
luminoso! Nada mais te queremos. Detivemos-te apenas para isto, para te
espetar, aqui assim, por cima, no alto da cuia, como um gancho, o sr.
Barros e Cunha. Sobre a fronte das figuras immortaes costumam os
artistas collocar uma estrella; sobre a tua cabeça, ó patria, o sr.
Barros e Cunha, assim fixado como um symbolo, lembrará aos vindouros a
pombinha branca, de assucar--tão casta!--das lampreias d'ovos.
* * * * *
Esta manhã Lisboa vestida do mais rigoroso lucto via passar um cortejo
funebre. O povo estava em alas nas ruas. As janellas cheias de senhoras.
Toda a gente conservava o chapéo na cabeça. Conversava-se, ria-se,
faziam-se grandes gestos, havia mesmo um movimento desusado de
conversação, de interesse e de _verve_. Os officiaes cumprimentavam as
senhoras com o sorriso e com a espada. Os soldados conversavam com o
povo. E, de parte a parte, tomando-se para assumpto o enterro,
trocavam-se ponderações alegres, chistosas, _grivoises_, entre os que
estavam com os cigarros nos beiços e os que passavam com as armas em
funeral.
Ao mesmo tempo, em um coche puxado por oito cavallos e coberto com um
longo panno preto, precedido de outro coche em que era levada a corôa
imperial envolta em crepe, dizem que ía indo para a derradeira morada,
entre as musicas funebres dos regimentos em fórma e os chistes das
multidões indifferentes, o cadaver da senhora duqueza de Bragança.
Dizia-se fallando-se d'ella:
«Deixou pouco.»
«Que fez ella ao que tinha?»
«Que miseravel! que mesquinha!»
E um jornal catholico escreveu:
«O testamento da senhora duqueza de Bragança lembra a sorte grande em
cautellas de vinte e cinco.»
Nós pensámos então nas distincções da stirpe e do sangue que fazem os
homens deseguaes.
Entre nós, os plebeus, quando as nossas mães deixam de existir, nós
acompanhamol-as á sepultura, silenciosos e recolhidos, lembrando-nos um
pouco dos carinhos que lhes merecemos, dos dôces conselhos que ellas nos
deram, das boas palavras desinteressadas e amigas que lhes escutamos.
Nas nossas aldeias, quando ao fim da tarde um enterro passa nos campos,
levado por quatro homens, seguido do prior com sobrepeliz, atravessando
silenciosamente as cearas, e fazendo dobrar as espigas dos trigos e as
flôres encarnadas das papoulas que salpicam as messes, as raparigas que
passam ajoelham-se e persignam-se e os trabalhadores tiram o chapéo,
suspendem o trabalho e pensam um momento n'aquelle para quem principiou
o descanço eterno.
E se alguem se ri das mulheres que nós levamos á sepultura, consideramos
que esses insultam a memoria d'aquelles que nós amamos, e punimos por
nossas proprias mãos esse aggravo, punimol-o a varapau nas
encrusilhadas, á faca nas esquinas das ruas, e á espada nos duellos.
As imperatrizes--coitadas!--teem de resignar-se á sua triste condição de
imperatrizes: passar a vida entre gente mediocre, mercenaria,
interesseira, aduladora e estupida; passar na morte entre as alas
ostentosas de curiosos e mal creados. Vivas, ellas teem a sua liberdade
de entes racionaes e os seus affectos e dedicações de mulher
escravisados á formalidade, á etiqueta, ás praxes; moribundas cerca-as
ainda a pompa que estabelece um diapasão ao arranco, uma melodia ao
soluço e um gesto nobre ás agonias; e finalmente nem depois de mortas
lhes é dado esperar que se lhes respeite o direito, para qualquer outro
ente indiscutivel, de legarem como quizerem e a quem quizerem o seu
triste dinheiro, o qual nenhum de nós quereria ter ganhado em
similhantes condições e com eguaes amarguras!
Parece-nos que é levar um pouco longe de mais a modestia democratica o
suppôrmo-nos tão pouca coisa, que aquelles que reinaram tenham que
descer tanto para que os consideremos nossos eguaes! É crear uma nova
gerarchia para os soberanos o estabelecer que perante o respeito que
devemos a todos os nossos similhantes que morrem, os principes tenham de
considerar-se menos que quaesquer outros.
* * * * *
É certo que o _Diario do Governo_ ordenou que tomassemos luto de dois
mezes pela princesa fallecida. Como porém quando chegar a nossa vez de
sermos levados para o cemiterio, nos custará admittir que a
circumstancia de consagrar umas calças pretas á nossa morte auctorise
alguem a imprimir chocarrices ácerca das nossas ultimas vontades, nós
proporiamos antes, como tributo ao fallecimento da senhora duqueza de
Bragança, que nos revestissemos um pouco menos de luto pela princesa
illustre que desappareceu da lista civil, e um pouco mais de respeito
pela mulher digna e virtuosa que morreu.
* * * * *
Por occasião dos disturbios populares com que a resistencia aos impostos
perturbou a ordem em Tavira, o commandante da força armada, chamado a
reprimir a desordem, sendo desobedecido e insultado pela multidão
insurgida, carregou os revoltosos, resultando ficarem alguns d'estes
feridos e dois mortos.
Ora com as revoltas portuguezas estava estabelecido pelo uso, pelo
programma, pela mesma natureza d'ellas, que não morria ninguem, que
ninguem era ferido.
Em todos os grandes ajuntamentos é vulgar moverem-se disputas,
levantarem-se resistencias, fazerem-se ameaças e trocarem-se mesmo
algumas bengaladas. Succede isto em toda a parte, nos toiros, nos bailes
de mascaras, nos theatros, nos circos, nos fogos de artificio, nas
illuminações publicas e até nas egrejas. Só onde nunca similhante coisa
acontecia era nas revoltas! Nas revoltas tudo era contentamento,
satisfação e paz! A bem conhecida e temerosa _idra da anarchia_ era
recebida em Portugal como uma d'essas doces e benevolas pessoas de cujos
sorrisos se suspendem as promessas dos salões confortaveis, dos verdes
jardins balsamicos, das alegres partidas da _croquet_ e do bom chá
preto. Quando ás multidões portuguezas se annuncia «s.ex.ª a idra», as
multidões portuguezas abrem alas, sorrindo, e a anarchia comprimentando
a um e outro lado, agitando o leque, mergulhando-se na roda do vestido
para fazer mesuras, passa, para ir lançar o grito de sedição--ao piano.
Ora como as coisas em Tavira se não passaram precisamente por este modo
usual, que fez o illustre o pacifico sr. delegado do ministerio publico
perante o procedimento extranho do commandante da força armada, que
desembainhara a sua espada e carregara ingenuamente a revolta? O sr.
delegado querelou do commandante da força armada. Querelou por que
delicto? _«Por abuso de defesa»_.
Oh! esta phrase do ministerio publico é boa, é bem symptomatica, é
caracteristica, é genial! Um militar incumbido de manter a ordem, tendo
atacado a desordem, querelado pelo ministerio publico--por _abuso de
defeza_.
* * * * *
Pois que! Julgava então o exercito que o estado lhe dava as suas
clavinas, as suas bayonetas e os seus sabres para que elle, uma vez
armado, se servisse das armas! Não! nunca! Defenda-se, mas _não abuse_.
Defenda-se, mas não arme as bayonetas nem carregue as espingardas, nem
desembainhe as espadas. Defenda-se, simplesmente, como a delicadesa o
pede, como o pede o brio, o valor, a disciplina militar:
contemporisando, levando-nos por bem, lisongeando-nos, distraindo-nos.
Quantas vezes a gente se revolta por _spleen_, por tedio, por vapores,
por sympathias gastricas! Quantas vezes não dizemos nós pela manhã,
espreguiçando-nos e mostrando ao espelho uma lingua ensaburrada: «Meu
Deus, que farei hoje? irei almoçar com Dolores, cortarei a cabeça ao
rei, ou tomarei bismutho?» E assim é que frequentemente faz a gente
barricadas por não ter mais nada que fazer. Por tanto que n'estes
momentos o exercito procure distrahir o povo enfastiado; que lhe toque
musicas, que lhe recite versos, que lhe mostre photographias, que lhe
diga assim:--«A proposito; se fossemos tomar bither? ou se comessemos
uma enxova com um copo de cognac para nos raspar o esophago? Anda! vem
d'ahi, bom povo, jogaremos os dominós!»
E se o povo ainda assim resistir--diacho ... então, que o exercito fuja!
Mas se foge, o conselho de guerra fuzila-o ...
Mas se não foge, o ministerio publico querela-o ...
Por consequencia o melhor de tudo é que o exercito tome uma deliberação
energica e heroica: Que o exercito se vá deitar! Não ha impedimento
nenhum para isto. Sim, podes ir deitar-te, ó exercito. Adeus. Boa noite.
Melicio vela!
* * * * *
A camara dos dignos deputados, não tendo tido em nenhuma questão
politica interna nem uma theoria, nem uma idéa, nem um dito, nem um
gesto sequer, que accusasse a intelligencia, o espirito, a penetração, a
vivacidade, resolveu aproveitar um incidente da politica extrangeira
para provar ao paiz que não estava no periodo imbecil dos amolecimentos
de cerebro, e, referindo-se á abdicação do rei Amadeu, a camara, por
meio de um esforço extraordinario, botou ao mundo--uma figura de
rhetorica. Depois do quê, o mundo, sensibilisado com tamanho dispendio
de força, teve pela sua parte vontade de botar á camara--uma funda.
* * * * *
Consta que todos os partidos se alliaram para tão alta manifestação
patriotica. Todos entenderam que importava apoiar sem restricções o
governo n'esta importantissima questão physiologica. Antes mesmo de
entrar na grave questão da fazenda a camara achou pois indispensavel
provar ao paiz ao cabo de um mez de trabalhos parlamentares este
phenomeno previo: que ella não era demente. Produziram-se varios
alvitres tendentes a dar ao publico o convencimento cabal d'essa
verdade obscura. Occorreu: advinhar uma charada, conjugar um verbo,
ouvir o sr. Melicio ácerca da immortalidade da alma ou obrigar o sr.
Barros e Cunha em nome do credito das instituições a dizer a taboada.
Por fim preferiu-se na vasta região do saber humano o campo da
rhetorica, e resolveu-se fazer estalar uma figura.
O dia do grande espectaculo, da terrivel prova chegou. As galerias
encheram-se. O aspecto da camara era recolhido e solemne: ella estava
sentada nos seus logares, tinha a mão mettida na abertura do collete e a
barba feita. Havia um silencio palpitante e commovido. Então um sr.
deputado, com voz pausada e firme disse:
«Sr. presidente chegou esta manhã a Lisboa, depois de ter
espontaneamente e livremente abdicado a corôa do visinho reino, aquelle
a quem verdadeiramente podemos chamar ...»
Era o momento! ia partir a figura! O orador deteve-se um instante,
bamboou a cabeça, puxou o catarrho das commoções supremas, tomou na
bocca um golo de agua, e fincando o queixo no peito recolheu-se por um
momento com a figura e com o bochecho para dentro da sua gravata. A
multidão immovel escutava. O silencio era tal que se ouvia crescerem os
tortulhos na lama das botas do sr. Arrobas, repentinamente aquecidas por
um raio de enthusiasmo fecundo e creador!
O orador, immergindo de dentro da gravata e proseguindo--«Aquelle a quem
verdadeiramente podemos chamar»--_O sol no occaso!_ (Prolongados
apoiados de todos os lados da camara e do banco dos srs. ministros.
Vozes: Muito bem! muito bem!)
* * * * *
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